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Tolerância: uma questão política ou moral?

Resumos

Este artigo analisa as dificuldades e os limites da proposta liberal de fundamentar moralmente a tolerância a partir do ideal de autonomia. O autor argumenta a favor de uma justificação mais cética, contextualista, política e pragmática da tolerância para um Estado liberal democrático. O problema da tolerância deve ser tratado como uma questão política, e não moral. A tolerância como prática do Estado liberal deve preencher uma exigência básica de legitimação, que delimita o exercício do poder político, segundo a qual aqueles que reivindicam a autoridade política sobre os demais devem oferecer boas razões sobre as bases dessa autoridade.

Limites da tolerância; autonomia; Estado liberal; legitimação política


The article analyses the difficulties and the limits of the liberal proposal of grounding morally the tolerance from the ideal of autonomy. The author argues for a more sceptical, contextualist, political and pragmatic justification of the tolerance for a liberal democratic State. The problem of the tolerance must be treated as a political question, and not moral. The tolerance as practice of the liberal State must fill out a basic demand of legitimation, which delimits the exercise of the political power, according to those who claim the political authority on the others must offer good reasons about the basis of this authority.

Limits of toleration; autonomy; liberal State; political legitimation


DOSSIÊ TOLERÂNCIA

Tolerância: uma questão política ou moral?* [* ] Texto originalmente publicado em Diógenes, vol. 44/4, nº 176, 1996, pp. 35-48 [N. do Ed. ].

Bernard Williams

Tradução: Denílson Luis Werle

RESUMO

Este artigo analisa as dificuldades e os limites da proposta liberal de fundamentar moralmente a tolerância a partir do ideal de autonomia. O autor argumenta a favor de uma justificação mais cética, contextualista, política e pragmática da tolerância para um Estado liberal democrático. O problema da tolerância deve ser tratado como uma questão política, e não moral. A tolerância como prática do Estado liberal deve preencher uma exigência básica de legitimação, que delimita o exercício do poder político, segundo a qual aqueles que reivindicam a autoridade política sobre os demais devem oferecer boas razões sobre as bases dessa autoridade.

Palavras-chave:Limites da tolerância; autonomia; Estado liberal; legitimação política.

ABSTRACT

The article analyses the difficulties and the limits of the liberal proposal of grounding morally the tolerance from the ideal of autonomy. The author argues for a more sceptical, contextualist, political and pragmatic justification of the tolerance for a liberal democratic State. The problem of the tolerance must be treated as a political question, and not moral. The tolerance as practice of the liberal State must fill out a basic demand of legitimation, which delimits the exercise of the political power, according to those who claim the political authority on the others must offer good reasons about the basis of this authority.

Keywords:Limits of toleration; autonomy; liberal State; political legitimation.

Há alguma coisa obscura sobre a natureza da tolerância, pelo menos quando é compreendida como uma atitude ou um princípio pessoal. Na verdade, o problema sobre a natureza da tolerância é sério o suficiente para perguntarmos se ela é de fato possível em sentido estrito. Talvez, em vez disso, contenha alguma contradição ou paradoxo segundo o qual as práticas da tolerância, quando existirem, têm de se apoiar em algo diferente do que a mera atitude de tolerância tal como tem sido descrita classicamente pela teoria liberal1 [1 ] Para uma análise desses problemas, ver Heyd, D. (org.). Toleration: an elusive virtue. Princeton, Princeton University Press, 1996, especialmente os capítulos de Williams. "Toleration: an impossible virtue?"; Fletcher, G. P. "The instability of tolerance"; Scanlon, T. "The difficulty of tolerance". .

Existem, sem dúvida, práticas da tolerância. No século XVII, a Holanda seguiu políticas diferentes, mais tolerantes em relação às minorias religiosas do que as da Espanha, e se poderiam ainda citar muitos outros exemplos. Contudo, a simples existência de exemplos não diz muito sobre as atitudes que lhes estão subjacentes. As práticas da tolerância podem, por exemplo, refletir apenas ceticismo ou indiferença. Tais atitudes foram, com certeza, importantes para o crescimento da tolerância como prática no final das guerras de religião. Algumas pessoas tornaram-se céticas acerca das reivindicações específicas de qualquer igreja e começaram a pensar que não existia nenhuma verdade - ou, pelo menos, nenhuma verdade que poderia ser descoberta pelos seres humanos - sobre a validade do credo de uma igreja em oposição ao de outra. Outras pessoas começaram a acreditar que o conflito ajudou-as a compreender melhor os desígnios de Deus: que é indiferente a Deus a forma como os seres humanos o veneram, contanto que o façam de boa fé e no interior de determinados limites cristãos amplos. Essas duas linhas de pensamento, ainda que num certo sentido estejam em direções opostas, acabam desaguando numa mesma posição, qual seja, a idéia de que as questões precisas sobre a crença cristã não importam tanto como as pessoas supunham. Isso levou à tolerância como uma questão de prática política, mas, como atitude, não chega a ser a tolerância tal como tem sido entendida em sentido rigoroso. A tolerância "requer de nós aceitar as pessoas e consentir suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente " 2 [2 ] Scanlon, op. cit., p. 226. Ver também o artigo "A dificuldade da tolerância", presente neste Dossiê. , mas ceticismo e indiferença, pelo contrário, significam que as pessoas não mais desaprovam profundamente as crenças em questão, e sua atitude não é, no sentido rigoroso, a da tolerância.

É verdade que para poder propriamente designar uma práxis como sendo "tolerante" tem de haver alguma história ou pano de fundo acerca desse conceito - ou pelo menos uma comparação com práticas de outros lugares. Se nunca houve outra coisa a não ser a indiferença sobre determinado assunto, então não há lugar para o conceito de tolerância. De fato, quando a indiferença ou a ausência de reprovação se tornam a norma, referências à tolerância podem parecer inapropriadas ou mesmo ofensivas: um casal homossexual ficaria provavelmente ofendido se percebesse que os vizinhos "toleram" sua convivência. É uma característica da tolerância, tal como esse termo é normalmente usado, representando uma relação assimétrica: a noção é tipicamente invocada quando um grupo mais poderoso tolera um grupo menos poderoso. Isso aponta muito mais para a tolerância como uma prática do que como uma atitude. De fato, aponta para um exemplo particularmente importante da tolerância como uma prática, a saber, a recusa de usar o direito como um meio para dissuadir um grupo e suas crenças. O simples fato de que a questão a ser considerada é o uso do direito implica que a decisão é tomada por um grupo mais poderoso, isto é, o grupo que tem a oportunidade de assim usar o direito. Como vimos, essa prática em si mesma pode expressar mais do que uma única atitude, e somente uma ou algumas poucas dessas atitudes merecem o título de "tolerantes" no sentido rigoroso. Mas todas essas atitudes, quer se trate de indiferença ou de tolerância autêntica, podem muito bem ser mantidas entre grupos que possuem mais ou menos um poder igual; situação em que nenhum deles estaria em condições de impor o direito ao outro, mesmo se o quisesse. É a prática da tolerância ou intolerância como um empreendimento político que introduz a assimetria associada ao conceito, e não as atitudes subjacentes, quaisquer que possam ser. Uma atitude tolerante, e do mesmo modo uma disposição tolerante nascida da indiferença, podem ser ambas obtidas entre grupos que são iguais em poder.

Mas então o que é uma atitude de tolerância genuína? Algo contrário, por exemplo, à mera indiferença? Como Scanlon mostrou3 [3 ] Ibidem. , é preciso encontrar uma posição entre duas possibilidades opostas. De um lado, existem modos de comportamento e atitudes que não devem ser tolerados, em relação aos quais a tolerância é inapropriada. Diante do assassinato e do abuso de crianças, não se espera que alguém, em nome da tolerância, reprima sua reprovação ou sua disposição para aplicar a lei. Para os liberais, essas atitudes intoleráveis incluem naturalmente atitudes de tolerância: nenhum liberal sente-se pressionado a tolerar o racismo ou o fanatismo, e ele bem pode acreditar que manifestações nesse sentido devem ser proibidas em nome do direito (ainda que os liberais, particularmente nos Estados Unidos, tenham dificuldades para definir o ponto exato a partir do qual a restrição correta de expressões racistas ou fanáticas se torna uma restrição da liberdade de expressão e, com isso, ela mesma ofensiva à própria tolerância). O primeiro caso em que a tolerância não se aplica ocorre, portanto, quando a atitude negativa do agente em relação a outras visões não é adequadamente restringida por uma respectiva atitude de tolerância. O segundo acontece quando o agente percebe que não deveria existir de sua parte uma atitude negativa acerca de outras visões, que o que tem de apreender não é a manter essa posição, nem restringi-la por meio da tolerância, mas sim a abandoná-la. Esse seria o caso do exemplo acerca das relações homossexuais, mencionado anteriormente.

Portanto, a esfera da tolerância circuncreve-se na existência de uma forte concepção sobre determinado assunto; quando o agente acredita que estão erradas as pessoas cujas concepções conflitam com a sua, mas, ao mesmo tempo, acha que, de certo modo, deve ser permitido aos outros terem concepções diversas, podendo manifestá-las publicamente. Essa formulação apreende certamente um ponto de vista que é suficiente para manter uma prática de tolerância. Porém, ainda não é o bastante para definir a atitude de tolerância no sentido rigoroso. Um agente pode, por exemplo, sentir que deve ser permitido aos outros expressarem suas opiniões porque considera o equilíbrio de poder entre seu próprio grupo e o outro muito sensível e instável para ser testado por uma tentativa de impor o que acredita ser a opinião correta. Isto não é tolerância. A tolerância implica a crença de que o outro tem o direito de não ser constrangido no que se refere às concepções que sustenta e expressa.

Qual seria a natureza desse direito? Neste ponto, há dois caminhos que podemos seguir, e que levam a duas concepções diferentes de tolerância. De um lado, o direito pode ser rotulado (muito grosseiramente) como um direito moral, de outro, pode ser rotulado (também grosseiramente) como direito político. A distinção fica clara se considerarmos a formulação de Thomas Nagel acerca das relações entre tolerância e liberalismo. Segundo o autor,

[... ] o liberalismo pretende ser uma concepção que justifica a tolerância religiosa não apenas aos céticos, mas também aos devotos, e a tolerância sexual não apenas aos libertinos, mas àqueles que acreditam que o sexo fora do casamento é pecaminoso. O liberalismo faz a distinção entre os valores aos quais uma pessoa pode recorrer na condução de sua própria vida e aqueles a que pode recorrer para justificar o exercício do poder político

4 [4 ] Nagel, T. Equality and partiality. Nova York: Oxford University Press, 1991, p. 156.

.

Espera-se que essa perspectiva possa salvar o liberalismo de ser, na memorável formulação de Rawls, "meramente uma doutrina sectária". Os princípios da tolerância associados com o liberalismo desfrutariam de uma posição superior em relação às demais perspectivas morais particulares, tornando possível a coexistência destas no interior de uma estrutura de respeito e tolerância mútua que forma uma sociedade pluralista estável do tipo descrito por Rawls5 [5 ] Rawls, J. Political liberalism. Nova York: Columbia University Press, 1993. .

Na formulação de Nagel, a tensão característica da atitude de tolerância é expressa ao dizer que o agente considera que determinada conduta ou modo de vida é pecaminoso, mas, ao mesmo tempo, pensa que o poder do Estado não deveria ser usado para reprimir aquela conduta. Contudo há pelo menos dois modos de interpretar essa posição. O agente poderia pensar: "Tal pessoa tem um modo de vida pecaminoso e repugnante, engajando-se em práticas pecaminosas e repugnantes. No entanto, não é assunto de ninguém fazê-lo, forçá-lo, induzi-lo ou (talvez) mesmo persuadi-lo a tomar outro curso. Depende dele - sua moralidade está em suas próprias mãos". Como conseqüência, o poder político não deverá ser usado para reprimir aquele agente. Aqui, o contraste ilumina o que considero uma doutrina moral que tem, incidentalmente, uma conclusão política. Essa doutrina expressa um ideal de autonomia moral.

Numa segunda interpretação, o agente poderia, antes, refletir: "o modo de vida dessa pessoa é pecaminoso e repugnante. De fato, deveríamos fazer qualquer coisa para persuadi-la a mudar seu modo de vida e para desencorajar outras pessoas a viver como ela. Podemos advertir adequadamente nossos filhos para que não convivam com os filhos dela, podemos não compartilhar sua vida social e desencorajar outras pessoas de pensar positivamente a seu respeito enquanto mantiver tal modo de vida. Porém, não é apropriado que o poder do Estado seja usado desse modo". Considero que exista aqui uma doutrina política expressiva do conceito liberal de Estado. Pode ser que o contraste do agente tolerante nessa segunda forma política se apóie, ele mesmo, em algumas idéias morais, particularmente sobre a natureza do Estado. Mas a conclusão política não se segue como um caso especial de uma doutrina moral que esteja relacionada de modo mais geral e intrinsecamente com a tolerância, mesmo fora da política - uma doutrina como a que poderia surgir da primeira leitura da formulação de Nagel, que expressasse o valor da autonomia.

Se a tolerância como atitude moral está fundamentada no valor da autonomia, como foi afirmado, então existem fortes argumentos para pensar que a defesa liberal da tolerância como prática não deveria se apoiar essencialmente em sua crença no valor daquela atitude. Há várias razões para isso. Primeiro, é muito difícil afirmar que o valor da autonomia é o fundamento da crença liberal na tolerância e sustentar, ao mesmo tempo, como o fazem Nagel, Rawls e outros liberais, que o liberalismo não é meramente mais uma doutrina sectária. Uma crença na autonomia é, com certeza, uma crença moral específica que acarreta considerações filosóficas complexas.

A atitude moral centrada na autonomia apresenta, de modo particularmente agudo, dificuldades que, como já vimos, estão associadas à atitude de tolerância. Segundo essa explicação, o agente que não aprova os valores do outro deveria evitar fazer qualquer pressão imprópria para mudar a perspectiva do outro. Há, naturalmente, a questão do que significa "imprópria", mas é fundamental na explicação da perspectiva liberal que a idéia de tal pressão imprópria se estenda para além de uma simples questão de interferência política direta. Sem dúvida, segundo a explicação usual da autonomia, a argumentação racional será considerada um meio apropriado para influenciar a opinião do outro. Mas, se alguém levar seriamente em conta o ideal de autonomia, levanta-se o problema real sobre, por exemplo, o tipo de expressões de reprovação que aplicam uma pressão social ou psicológica sobre o outro. Supõe-se que o conceito de autonomia implica que o outro está livre de influências externas, causais, "heterônomas" que possam levá-lo a mudar sua opinião por razões não-morais, como aquelas derivadas do desejo de conformidade social. Mas quando o agente que desaprova os valores do outro e que se sente obrigado a adotar uma atitude de tolerância tem de renunciar a todas as expressões de reprovação, torna-se progressivamente obscuro qual espaço de ação ainda lhe resta para censurar genuína e profundamente os valores do outro. A idéia de uma censura forte, moral, que somente pode ser expressa numa argumentação racional (ou algo semelhante), mas que, por outro lado, deve permanecer privada em virtude das exigências da tolerância, parece muito fraca e estreita para satisfazer o que tem sido aceito como requisito de uma atitude tolerante, a saber, que o agente realmente condena fortemente as práticas em relação às quais tem de ser tolerante.

Naturalmente, é de fato impossível estabelecer alguma linha clara, ou talvez razoável, entre os tipos de influência e persuasão que supostamente são compatíveis com o ideal de autonomia e os que não são. Essa é uma fraqueza inerente ao conceito de autonomia, uma vez que está fundamentado no ideal kantiano do que está e do que não está no interior do domínio da vontade racional. No entanto, o objetivo da presente argumentação não é rejeitar o ideal da autonomia como um todo, mas perguntar em que medida esse ideal, se caso for aceito, pode fundamentar uma atitude tolerante que, por sua vez, pode ser entendida como estando subjacente à prática liberal da tolerância. O argumento pode ser formulado da seguinte forma: uma coisa é perguntar que tipo de influência ou pressão social pode ser considerado uma intervenção na autonomia do outro; outra coisa é perguntar quais formas de expressão têm de estar disponíveis aos agentes para que se possa afirmar que censuram seriamente as condutas e os valores do outro em tal grau que se torna necessário reivindicar a suposta atitude de tolerância; e não há razão para acreditar que a resposta a essas duas questões coincidirá necessariamente. Poderíamos assegurar que elas coincidiriam somente se traçássemos as fronteiras da autonomia do outro à luz do que os agentes que censuram precisam fazer para efetivamente expressarem sua censura. Mas isso evidentemente não está disponível sob a presente construção da atitude tolerante, pois é justamente o valor da autonomia do outro que é o pressuposto para traçar os limites do que o agente tolerante, mas que também censura, pode fazer. É por essa razão que a construção da atitude tolerante em termos de autonomia expressa uma versão particular extrema do conflito sempre inerente à tolerância: o conflito entre desaprovação e contenção.

Uma versão desse problema vem à tona com as defesas liberais da tolerância, mesmo quando não estiverem baseadas em noções exigentes de autonomia. Críticos que negam que o Estado liberal possa deixar de ser apenas outra doutrina sectária afirmam freqüentemente que, na verdade, os Estados liberais impõem um determinado conjunto de atitudes - atitudes grosseiramente favoráveis à escolha individual (pelo menos à escolha do consumidor), à cooperação social, ao secularismo e à eficiência nos negócios. Os métodos pelos quais tais valores são impostos na sociedade liberal são mais sutis do que aqueles condenados pelo liberalismo, mas o resultado é muito parecido. Thomas Nagel dá uma resposta liberal a essa crítica ao distinguir precisamente entre impor algo como o individualismo, de um lado, e a prática da tolerância liberal, de outro, ainda que não negue que as práticas de educação liberal e outras forças sociais na sociedade liberal não sejam "iguais em seus efeitos". De fato, pode ser que a sociedade liberal se incline a corroer os valores religiosos e outros valores tradicionais, mesmo que a prática liberal seja tolerante em relação a eles.

Alhures critiquei a distinção de Nagel6 [6 ] Nagel, op. cit., p. 24. argumentando que o uso que ele faz de tal distinção não é neutro em sua inspiração, mas orienta a questão numa direção liberal: "[o uso dessa distinção] atribui muito valor a uma diferença de procedimento, enquanto o que importa para um crente não-liberal é a diferença de resultado". Ou seja, o crente não-liberal não será persuadido de que essa distinção faz toda a diferença. No entanto, é perfeitamente compatível com isso que o Estado liberal possa usar decentemente a distinção de Nagel para defender, no nível político, o que ele está fazendo. O que o Estado liberal não pode fazer - e esse é o ponto central - é apoiar-se nessa distinção e também fundamentar sua prática tolerante no valor da autonomia, tal como tem sido considerado até aqui. Pois não há certamente nenhum senso substantivo de autonomia - exceto um que tem sido idealizado precisamente para coincidir com as práticas liberais - no qual um grupo de crentes poderia dizer que está desfrutando da autonomia ao decidir privilegiar suas crenças religiosas quando são afetados em larga escala por influências sociais que tendem a corroer tais crenças.

Pode ser que o projeto de fundamentar a tolerância liberal no valor moral da autonomia tenha sido particularmente encorajado pela importância histórica e ideológica da tolerância religiosa. Um argumento muito importante a favor da tolerância religiosa tem sido tradicionalmente fundado na idéia de que coagir crenças religiosas é infrutífero, porque as forças do Estado não conseguem atingir as convicções mais internas de uma pessoa. O máximo que o Estado poderia assegurar é um comportamento conformista, mas, para muitos, o objetivo da perseguição religiosa era assegurar mais do que isso. Esse argumento pode ser visto como um apelo a certa concepção de autonomia, ao livre exercício das capacidades do indivíduo na elaboração das crenças religiosas. Porém, a referência à autonomia nesse contexto é muito específica. A contenda entre os que apoiavam a tolerância religiosa e aqueles contrários a ela girava em torno de idéias de salvação; por conseguinte, as idéias de autonomia que podem ser invocadas aqui recorrem à relação entre os indivíduos e Deus, juntamente com alguma concepção do que Deus poderia esperar de suas criaturas no que diz respeito às suas disposições de trabalho para Ele - uma concepção que, nas mãos daqueles favoráveis à tolerância religiosa, provavelmente era usada para argumentar que Deus não está particularmente interessado num comportamento conformista produzido pelo poder do Estado. Quando a questão da tolerância é generalizada para além da questão da tolerância religiosa, essa constelação de idéias não está disponível. No caso religioso, a parte tolerante poderia, no limite, reivindicar que, até onde podemos conhecer os desígnios de Deus, a idéia de crenças religiosas coagidas não faz sentido, e que a prática religiosa coagida, sem a fé, não pode fazer sentido aos olhos de Deus. Porém, não existe um conjunto comparável de considerações que pudesse ser usado quando tentamos resolver a questão, por exemplo, da tolerância da venda ou exposição de materiais pornográficos. O apelo ao valor da autonomia não ajudaria muito neste caso.

Por todas essas razões, parece-me que a tentativa de fundamentar a prática da tolerância numa atitude moral orientada pelo valor da autonomia está condenada ao fracasso. Neste ponto, será útil voltar nossa atenção à segunda interpretação da formulação de Nagel, aquela que leva a uma concepção especificamente política. O poder político está impedido de impor determinados resultados não porque as pessoas têm direito de escolher, com base no bem da autonomia, seu modo de vida sem influência externa indevida, mas sim porque o poder do Estado não deveria ser usado para esse tipo de propósito. A própria idéia política pode ter uma ou outra raiz de tipo moral, mas segundo a interpretação que estamos agora considerando sua raiz não consiste na promoção ou expressão de um ideal de autonomia. A proibição, ao contrário, refere-se única e exclusivamente ao uso do poder estatal para afetar o comportamento em questão. Quando assumimos tal concepção sobre a restrição do poder do Estado, então temos de fato como resultado a tolerância como uma prática. Isso deixa em aberto a questão sobre se alguma atitude específica de tolerância poderia estar na base da prática da tolerância. Argumentamos até aqui que a prática tolerante não está fundamentada de modo plausível numa atitude que afirma o valor da autonomia. A autonomia tem, de fato, desempenhado um papel proeminente nas concepções morais da tolerância, o que pode favorecer a idéia de que a busca por uma defesa diretamente moral da atitude de tolerância pode ser um erro. De qualquer forma, em vez de se tentar chegar à política do liberalismo a partir de uma suposição moral relativa à tolerância, talvez se poderia primeiro considerar a política do liberalismo, incluindo suas práticas de tolerância, e depois se perguntar quais (se houver) os tipos de pressupostos morais relacionados com ela.

Existe uma diferença fundamental entre governo legítimo e poder não-mediado (unmediated): uma das poucas verdades necessárias sobre a "justeza política" (political right) é que não se trata de mera força.

Aqueles que reivindicam a autoridade política sobre um grupo têm de ter algo a dizer sobre as bases dessa autoridade e sobre por que esta autoridade está sendo usada para restringir de um determinado modo e não de outro. Além disso, existe um sentido no qual, ao menos idealmente, a autoridade política tem de ter algo a dizer para cada pessoa por ela constrangida. Se isto não acontecer, a autoridade política tratará algumas pessoas como meros inimigos entre seus cidadãos, como os antigos espartanos fizeram, consistentemente, com os hilotas que tinham subjugado. Essa exigência sobre a autoridade política pode ser adequadamente chamada de exigência básica de legitimação.

Há várias questões substantivas sobre a exigência básica de legitimação e suas conseqüências não serão analisadas no presente texto7 [7 ] Espero investigar algumas delas num estudo a ser publicado sobre a liberdade política. . Existem dois princípios gerais que parecem razoáveis e relevantes para a discussão em pauta. Primeiro, a idéia de que a exigência básica de legitimação tenha sido satisfeita por um determinado Estado não é igual à idéia de que tenha sido satisfeita de modo que nos agradaria. A distinção entre o uso do poder que pode reivindicar razoavelmente autoridade e o uso arbitrário do poder, tirania ou mero terror, aplica-se, por exemplo, a formações históricas, tais como os reinos medievais, cujas pretensões e práticas não seriam aceitáveis hoje. Evidentemente surgem questões inteiramente diferentes quando lidamos com os Estados no nosso mundo atual, questões que se referem às nossas relações morais e políticas com regimes não-liberais. Provavelmente seja verdade que, no mundo moderno, somente uma ordem liberal possa satisfazer adequadamente a exigência básica de legitimação, mas, se o faz, é devido às características específicas do mundo moderno, e não porque todo governo legítimo tenha de ser, necessariamente e em todo lugar, um governo liberal.

Segundo, quando é dito que o governo deve ter "algo a dizer" para cada pessoa ou grupo sobre os quais reivindica autoridade - e isso significa, naturalmente, que tem o propósito de legitimar o uso do poder em relação a eles -, não pode estar implícito que se trata de algo a ser aceito necessariamente por aquela pessoa ou grupo8 [8 ] Essa é uma das razões pelas quais a idéia de satisfazer a exigência básica de legitimação não coincide com esse ideal, incapaz de ser satisfeito, acalentado por muitos teóricos políticos: o consentimento universal. . Não pode ser assim: podem ser anarquistas ou inteiramente irracionais, ou bandidos, ou meros inimigos. Quem tem de estar satisfeito com o fato de que a exigência básica de legitimação tenha sido preenchida por uma dada formação numa determinada época é uma boa questão, e ela depende das circunstâncias. Trata-se de uma questão política que dependede circunstâncias políticas. Obviamente, a satisfação deveria atingir um número substantivo da população, incluindo outros poderes, grupos que simpatizam com minorias, pessoas jovens que precisam entender o que está acontecendo, críticos influentes que precisam ser persuadidos, e assim por diante. (Se essa posição parecer alarmantemente relativista, é importante - na verdade, essencial - ponderar que, no final das contas, nenhum teórico apresenta um caminho para avançar para além disso. Ele pode invocar condições de legitimidade absolutas ou universais que qualquer pessoa "razoável" teria de aceitar; mas ao fazê-lo, fala a uma audiência que compartilha essa concepção de razoabilidade, ou que o teórico espera poder persuadir - por meio de seu texto, entre outras coisas - a aceitá-la).

Nesses termos, o problema da tolerância liberal pode ser entendido da seguinte maneira. Em relação a uma questão controversa da crença religiosa ou moral, o Estado liberal dirige-se a vários grupos diferentes. Estes incluem (1) minorias que, se tivessem o poder, gostariam de impor sua própria crença. Se eles consideram o Estado liberal legítimo, com alguma pretensão de autoridade sobre eles, então têm de reconhecer que existem exigências de governo legítimas diferentes daquelas inspiradas em seu próprio credo. Também terão de reconhecer, se tiverem algum senso, que em sua disposição efetiva tais exigências serão feitas por outros cidadãos. Se considerarem tudo isso, se suas crenças e práticas não ofenderem de modo muito veemente as crenças centrais do liberalismo (voltaremos a este ponto mais adiante), então será sensato para o Estado liberal aceitar esses grupos, tolerando-os e, assim, assegurar uma situação em que, na medida do possível, esse grupo possa aceitar as exigências do Estado.

Alternativamente, tal grupo pode pensar (ou pode começar a pensar, se o Estado liberal agir de forma indevida) que não existe nenhum governo legítimo fora de seu próprio credo, e que o Estado liberal não pode lhe fazer nenhuma exigência. Se realmente pensarem dessa forma, então são potenciais separatistas ou rebeldes, que têm de tomar sua própria decisão política sobre em que medida estão preparados para levar adiante sua secessão. O Estado liberal tem de lidar com isso como qualquer outro Estado prudente que deseja evitar a violência, enfrentar as possibilidades de secessão ou - numa forma intermediária - de ruptura. Seus métodos podem incluir de modo sensato a continuidade da tolerância, na medida em que as coisas forem acontecendo moderadamente. Mas caso se chegue a um ponto em que o Estado liberal não veja mais possibilidade de tolerância, ele deverá fornecer uma explicação bastante razoável para tanto, e o grupo minoritário, o que quer que diga por razões políticas, não poderá se mostrar surpreendido com o que lhe estiver acontecendo.

Entre os grupos com os quais o Estado liberal tem de lidar, pode haver (2) uma maioria que desejasse impor sua crença. Se essa maioria é suficientemente poderosa e convincente, e se sua crença não é ela própria parte da perspectiva liberal central, talvez seja improvável que exista um Estado liberal: se houver, será porque a maioria, ou grande contingente dela, tem motivação para pensar que tal crença não deveria se impor. Uma razão para isso pode ser a consideração, por parte da maioria, de que não se trata de um tipo de crença que valha a pena tentar impor: perspectiva que já havia sido reconhecida no caso da tolerância religiosa. Essa perspectiva será o produto de certo tipo de reflexão sobre certos tipos de crenças. Outra razão pode ser o reconhecimento de que as pessoas que discordam da maioria - que podem pertencer ou não a grupos evocados no tipo (1) - se sentirão coagidas caso a crença seja imposta, sendo que a maioria não acredita que valha à pena pagar o preço, levando-se em conta a lealdade, a cooperação e as relações amistosas entre essas pessoas.

É nessas esferas que, naturalmente, as perspectivas das minorias (ou de seus confrades em outra parte) são freqüentemente representadas de forma distorcida. Em particular, tais grupos podem ser descritos como sendo formados inteiramente por fanáticos intransigentes ou separatistas desleais. (Esta é uma tendência padrão, nos tempos atuais, na demonização do Islã). As atitudes necessárias aqui por parte dos liberais são, antes de tudo, uma compreensão social realista, um desejo de cooperação quando possível, e inteligência política.

Como último dentre esses exemplos (mas não o último entre todas as possibilidades políticas) o Estado liberal pode defrontar-se com (3) um grupo cujos membros não tenham o desejo de impor suas crenças, mas cujas práticas e perspectiva violam as crenças liberais fundamentais. Este pode ser o caso quando, por exemplo, um grupo viola estruturalmente o que a maioria liberal acredita ser igualdade de gênero. Mas, neste âmbito, a tolerância liberal se enfraquece de todo modo, e nos encontramos no plano da divergência substantiva (sobre o papel dos gêneros e sobre a natureza da sexualidade, por exemplo), onde o liberalismo simplesmente não consegue evitar se apresentar como "mais uma doutrina sectária". Neste ponto, não há como esperar que o liberalismo possa recorrer a um fundamento superior indiscutível. As únicas considerações de ordem superior que o liberalismo pode usar para pensar sobre o que fazer são os recursos do bom senso político: considerar como as coisas parecem da ótica da minoria (algo em que, de fato, os liberais não são os melhores especialistas); ponderar os custos da coerção, como já mencionado; e refletir sobre os efeitos precedentes da coerção em questões controversas sobre a moralidade, como parte do respeito geralmente saudável do liberalismo pelos efeitos não intencionados do poder coercitivo. Não existe nenhuma razão do porquê de essas considerações deverem prevalecer num determinado caso. No entanto, prevalecem à medida que as práticas de minorias são toleradas em vez de serem vistas como intoleráveis; e as atitudes que produziram isso expressam o tipo de atitude e compreensão políticas já mencionadas.

Esse esboço grosseiro e superficial das várias possibilidades que podem assistir ao Estado liberal fundamenta, acredito, a conclusão de que se abordarmos a tolerância como uma questão política em vez de vê-la primeiramente como uma questão moral, teremos muita dificuldade para descobrir uma atitude única que fundamente a prática liberal. O que o esboço sugere é que, dado um Estado liberal e seus típicos padrões de legitimação, nos casos em que a tolerância é considerada adequada (e vimos que há muitos casos em que ela não é) ela está apoiada numa variedade de atitudes, e nenhuma delas está direcionada especificamente para o valor da tolerância como tal - muito menos para a crença moral na tolerância baseada no valor da autonomia, como identificado anteriormente na discussão. As atitudes necessárias à tolerância incluem aquelas virtudes sociais tais como o desejo de cooperar e de conviver pacificamente com seus concidadãos e a capacidade de ver como as coisas lhes parecem. Também incluem compreensões que pertencem mais especificamente ao campo do bom senso político, dos custos e limitações do uso do poder coercitivo. Novamente, por detrás disso haverá sempre a necessidade de algum ceticismo, de ausência da convicção fanática particularmente sobre questões religiosas que, como vimos, tiveram uma importante contribuição para a prática da tolerância, ainda que sejam inconsistentes com a tolerância entendida estritamente como uma atitude moral.

A questão da tolerância é, de modo não surpreendente, central para fazer a distinção entre uma concepção fortemente moralizada do liberalismo baseada em ideais de autonomia individual e uma concepção mais cética, atenta histórica e politicamente orientada do liberalismo como a melhor aposta para um governo legítimo humanamente aceitável sob as condições modernas. A primeira dessas concepções tem sido dominante na filosofia política norte-americana nos últimos 25 anos. Os argumentos levantados aqui favorecem a segunda concepção, mais próxima do que a finada Judtih Shklar chamou de "liberalismo do medo"9 [9 ] Shklar, J. "The liberalism of fear". In: Rosenblum, N. (ed.). Liberalism and the moral life. Cambridge Mass.: Cambridge University Press, 1989. Ver também a coletânea de ensaios sobre a obra de J. Shklar em Yack, B. (ed.). Liberalism without illusions. Chicago: University of Chicago Press, 1996. . Mas, como Judith Shklar seria a primeira a destacar, sempre tem de ser uma questão política e histórica saber quais condições permitirão que tal forma de liberalismo, ou na verdade qualquer outra, possa existir ou realizar algo.

Recebido para publicação em 2 de junho de 2009.

Bernard Williams (1929-2003) foi professor de filosofia em Cambridge entre 1967 e 1979 e reitor do King's College de Cambridge entre 1979 e 1987, momento em que aceitou uma cadeira em Berkeley, regressando em 1990 à cadeira de filosofia moral em Oxford.

  • [1] Para uma análise desses problemas, ver Heyd, D. (org.). Toleration: an elusive virtue. Princeton, Princeton University Press, 1996,
  • [4] Nagel, T. Equality and partiality. Nova York: Oxford University Press, 1991, p. 156.
  • [5] Rawls, J. Political liberalism. Nova York: Columbia University Press, 1993.
  • [9] Shklar, J. "The liberalism of fear". In: Rosenblum, N. (ed.). Liberalism and the moral life. Cambridge Mass.: Cambridge University Press, 1989.
  • Ver também a coletânea de ensaios sobre a obra de J. Shklar em Yack, B. (ed.). Liberalism without illusions Chicago: University of Chicago Press, 1996.
  • [*
    ] Texto originalmente publicado em
    Diógenes, vol. 44/4, nº 176, 1996, pp. 35-48 [N. do Ed. ].
  • [1
    ] Para uma análise desses problemas, ver Heyd, D. (org.).
    Toleration: an elusive virtue. Princeton, Princeton University Press, 1996, especialmente os capítulos de Williams. "Toleration: an impossible virtue?"; Fletcher, G. P. "The instability of tolerance"; Scanlon, T. "The difficulty of tolerance".
  • [2
    ] Scanlon, op. cit., p. 226. Ver também o artigo "A dificuldade da tolerância", presente neste Dossiê.
  • [3
    ] Ibidem.
  • [4
    ] Nagel, T.
    Equality and partiality. Nova York: Oxford University Press, 1991, p. 156.
  • [5
    ] Rawls, J.
    Political liberalism. Nova York: Columbia University Press, 1993.
  • [6
    ] Nagel, op. cit., p. 24.
  • [7
    ] Espero investigar algumas delas num estudo a ser publicado sobre a liberdade política.
  • [8
    ] Essa é uma das razões pelas quais a idéia de satisfazer a exigência básica de legitimação não coincide com esse ideal, incapaz de ser satisfeito, acalentado por muitos teóricos políticos: o consentimento universal.
  • [9
    ] Shklar, J. "The liberalism of fear". In: Rosenblum, N. (ed.).
    Liberalism and the moral life. Cambridge Mass.: Cambridge University Press, 1989. Ver também a coletânea de ensaios sobre a obra de J. Shklar em Yack, B. (ed.).
    Liberalism without illusions. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      02 Jun 2009
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