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Crise Democrática no Século XXI e Desafios da Pesquisa em Administração Pública

Resumo

A pesquisa no campo da administração pública encontra-se permanentemente desafiada a refletir sobre a complexa relação que envolve a administração e democracia. O retorno ao cenário nacional e internacional de forças políticas situadas no campo da extrema direita, que recorrem às regras do jogo democrático como ferramentas contra a clássica democracia liberal, coloca desafios teórico-epistemológicos adicionais ao campo. Quais os desafios e perspectivas da produção do saber no campo da administração, particularmente no que diz respeito à articulação entre modelos de gestão e democracia, considerando projetos de sociedade e modelos de desenvolvimento? Esse debate requer a mobilização de conhecimento crítico, o redesenho de objetos de estudo, do significado da participação, o aprofundamento do caráter interdisciplinar da pesquisa, além de explicitar a dimensão política da relação entre res publica e democracia.

administração pública; democracia; extrema-direita; participação; interdisciplinaridade

Abstract

Public administration research is constantly challenged to reflect on the complex relations between administration and democracy. The national and international reemergence of far right political forces, which use democratic ground rules as tools against classic liberal democracy, poses additional theoretical and epistemological challenges to the field. Which knowledge production challenges and perspectives appear in the field of administration, especially regarding the articulation between management models and democracy, considering society projects and development models? Such a debate requires mobilizing critical knowledge, redesigning study subjects, reframing participation, deepening the interdisciplinary character of research, and clarifying the political dimensions of the relationship between res publica and democracy.

public administration; democracy; far right; participation; interdisciplinarity

Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali;

então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar.

O caçador concordou mas disse:

"Se deseja derrotar o javali,

você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas,

para que possa guiá-lo com estas rédeas,

e coloque esta sela nas suas costas,

para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo."

O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou.

Assim, com a ajuda do caçador,

o cavalo logo venceu o javali, e então disse:

"Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas".

"Não tão rápido, amigo", disse o caçador.

"E o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim".

O Javali, o cavalo e o caçador ( Fábulas de Esopo )

Introdução

A pesquisa em administração pública tem se consolidando enquanto campo do saber, porém precisa inovar na forma como aborda temas próprios da área e, sobretudo, na forma como articula temas, recortes, contextos (políticos, sociais, econômicos), escalas e elementos de natureza setorial e estrutural. Quem acompanha as publicações e análises dos perfis da produção científica da área tem se deparado com uma rica e fecunda produção de textos que abordam, de forma mais ou menos estrita, temas variados: (a) modelo, estratégia e prática de gestão em suas várias escalas; (b) federalismo, coordenação federativa, descentralização e poder local; (c) planejamento com viés burocrático, gerencial, societal e estratégico; e (d) controle gerencial, finanças e transparência no setor público. São muito caros ao campo os estudos relativos à tecnologia, informação, governança pública e alocação de recursos públicos, assim como governo inteligente, relações internacionais e marketing, além de valores organizacionais, gestão da ciência e do conhecimento.

À semelhança da organização setorial da máquina pública, encontramos nas nossas revistas produtos de pesquisas sobre a administração da saúde, educação, política ambiental, assistência, habitação e saneamento, previdência e transportes. Encontramos, também, trabalhos sobre avaliação de desempenho da gestão pública, sobre políticas públicas, sociais e processo decisório, sobre gestão estratégica de pessoas e gestão por competências, sobre reforma administrativa, dívida pública, modernização e regulação, e sobre terceiro setor, ONGs, movimentos sociais e participação social, além de gestão de risco, sustentabilidade e cidadania e accountability , dentre outros ( Brasil & Jones, 2020Brasil, F. G., Jones, B. D. (2020). Agenda setting: mudanças e a dinâmica das políticas públicas. Revista de Administração Pública, 54(6), 1486-1497. doi:10.1590/0034-761220200780 ; Brunozi Junior, 2022; Marques, Chimenti, & Mendes-da-Silva, 2021; Norman & Alemán, 2022Norman, E. R., Alemán, D. M. (2022). Note from the editors. Politics & Policy, 50(5), 892-893. doi:10.1111/polp.12502
https://doi.org/10.1111/polp.12502...
; Seabrooke & Sending, 2022Seabrooke, L., Sending, O. J. (2022). Consultancies in public administration. Public Administration, 100(3), 457-471. doi:10.1111/padm.12844 ; Shikida, 2022). É longa a lista e não pretendemos ser exaustivos, nem fazer uma avaliação sistemática da produção da área, mas, tão somente, trazer alguns elementos ao debate.

É frequente, ainda que muitas vezes de forma indireta, a associação de vários temas, como os anteriormente relacionados, ao debate sobre democracia. Em alguns trabalhos, encontramos correlações mais estritas discutindo, por exemplo, a associação entre eficiência administrativa, coordenação federativa, estrutura organizacional, ação governamental, legitimidade no exercício do poder e democracia, assim como temos uma produção científica e publicações com orientação editorial que abordam temas ou aspectos setoriais, mas que buscam construir correlações explicativas mais estruturais e amplas. Vários são os movimentos teórico-empíricos que tentam escapar da síndrome do estudo de caso, em muitas situações ensimesmados, autorreferentes e pouco analíticos ( Irigaray & Stocker, 2022Irigaray, H. A. R., Stocker, F. (2022). Diversidade, singularidade, sustentabilidade e decolonização: avanços na pesquisa científica nacional. Cadernos EBAPE.BR, 20(1), 1-4. doi:10.1590/1679-395185306 ; Lima, Pereira, & Dias, 2022; Love & Stout, 2022Love, J. M., Stout, M. (2022). Transforming power dynamics through prefigurative public administration. Administrative Theory & Praxis, 44(3), 179-185. doi:10.1080/10841806.2022.2058289
https://doi.org/10.1080/10841806.2022.20...
; Peters, Pierre, Sorensen, & Torfing, 2022).

O ressurgimento, em pleno século XXI, de organizações, movimentos e formas de governo de extrema direita no Brasil, e nos quatro cantos do mundo, coloca a necessidade de um certo deslocamento teórico e epistemológico, de modo a aprofundar a relação entre os temas do campo da administração pública e a democracia. Assim, poderemos enfrentar o desafio de enriquecer o conhecimento sobre a área e dar conta da sua complexidade nestes tempos de crise. Os embates em torno de temas e da complexa relação entre formas de estruturação da gestão e modelos de desenvolvimento incorporam uma distinta gama de interesses e projetos políticos, colocando a necessidade de repensar a própria noção de res publica , as funções e alcance da ação do estado e, por extensão, conceitos e limites da própria democracia. Esse desafio está posto, igualmente, para contextos nos quais a democracia liberal burguesa é considerada consolidada e amadurecida, como a dos Estados Unidos (EUA), como também nas democracias mais jovens, como a brasileira.

Uma das formas de tentar sacudir a poeira é voltar aos nossos clássicos. São múltiplas as referências e possibilidades, sempre, é claro, a gosto das nossas diversas preferências teóricas e ideológicas. Podemos nos referir aqui a nomes como Emile Durkheim (2007)Durkheim, E. (2007). As regras do método sociológico. São Paulo, SP: Martins Fontes. , Max Weber (2000)Weber, M. (2000). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. , Karl Marx (1988)Marx, K. (1988). O capital – vol. I. São Paulo, SP: Nova Cultural. , Guerreiro Ramos (1989)Ramos, G. (1989). A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV. e Maurício Tragtenberg (1977)Tragtenberg, M (1977). Burocracia e ideologia. São Paulo, SP: Ática. , dentre tantos outros. Voltar aos clássicos é um movimento típico dos tempos de crise de paradigma, quando é preciso reinventar ou mesmo redescobrir correlações e determinações entre temas de pesquisa disciplinarmente instituídos e consolidados. O redesenho de nossos objetos ou a construção de uma maior aproximação entre os múltiplos temas recortados pelo campo – particularmente dos modelos de gestão, desenvolvimento e de participação – com o debate teórico sobre democracia pode se constituir em um fecundo exercício de renovação.

Avançando na reflexão sobre a correlação entre administração pública e democracia, partimos do pressuposto, sempre polêmico, de que o exercício do poder, materializado em formas de governo (mais ou menos democráticos) em suas distintas escalas, determinam e condicionam sentidos e práticas no campo da administração pública. Essa afirmação genérica parece plena de obviedade. Porém, está longe de se constituir em uma referência explicativa concreta em muitas das pesquisas realizadas no campo da administração pública. A recorrente discussão sobre crise de paradigma nas ciências, ao longo dos anos noventa do século passado, colocava o seguinte desafio: em tempos de crise (que parece algo permanente nas nossas vidas) precisamos, às vezes, fazer perguntas simples, aquelas que só as crianças fazem. Esse pode ser um bom começo para olharmos para nós mesmos, para a forma como pensamos nossos temas e nosso tempo, com outros olhos.

Quando falamos de administração pública, de vida coletiva, de res publica , estamos falando de poder – inclusive quando alimentamos nossos futuros algozes acreditando estarmos, assim, combatendo um mal maior, como nos ensinam as Fábulas de Esopo (2013)Esopo. (2013). Fábulas completas de Esopo. São Paulo, SP: Cosac Naify. . É nesse contexto que sugerimos a articulação e aprofundamento da reflexão sobre os tradicionais modelos de desenvolvimento (desenvolvimentista e neoliberal), modelos de gestão situados no contexto burocrático ou gerencial (em geral, perpassados por elementos e traços patrimonialistas) e participação cidadã (mais ou menos emancipatória ou funcional) com determinações, conceitos e práticas no campo da democracia.

Afinal, quais os desafios e perspectivas na produção do saber no campo da administração pública no atual contexto de crise democrática, particularmente no que diz respeito à articulação entre modelos de gestão e democracia, considerando os distintos projetos de sociedade e modelos de desenvolvimento? Reafirmamos, então, o argumento de que precisamos avançar na problematização sobre a forma como o campo da administração pública constrói argumentos explicativos realizando os deslocamentos teóricos e epistemológicos necessários à compreensão das múltiplas determinações que envolvem o complexo universo da administração pública, sob pena de não conseguirmos enfrentar a atual crise democrática e de, ainda que coetâneos, envelhecermos.

A referida questão estruturante se desdobra em tantas outras, como: quais projetos e modelos de sociedade e de desenvolvimento podem contribuir para a democratização da gestão da res publica ? Quais modelos de gestão, práticas e vivências têm contribuído para o aprofundamento dos processos de participação, com ênfase na sua dimensão política, redesenhando paradigmas já consolidados? Quais experiências de gestão, de construção de políticas públicas e de participação nas distintas escalas territoriais (local, regional, nacional e internacional), têm contribuído para o enfrentamento de problemas estruturais, como universalização do acesso à infraestrutura e serviços públicos, acesso à terra no campo e na cidade, à assistência social, o combate à fome ou à crise ambiental?

Avancemos nesse debate refletindo sobre (a) a complexa relação entre administração pública, democracia e neoliberalismo – o que nos remete ao debate sobre alguns conceitos de democracia –; (b) modelos de gestão e participação no contexto de desconstrução democrática, e (c) administração pública e o desafio da interdisciplinaridade. Desse modo, tentaremos sugerir algumas pistas sobre como a crise da democracia liberal coloca novas exigências teóricas, epistemológicas e práticas para o campo da administração pública.

Administração pública e democracia: a necessária análise crítica

A relação entre administração pública, democracia e modelos de desenvolvimento, em tempos de emergência e fortalecimento de forças políticas qualificadas como de extrema direita, se torna ainda mais complexa. Já no começo dos anos 2000, em um texto que se tornou uma referência importante no debate sobre democracia, Carlos Nelson Coutinho (2008)Coutinho, C. N. (2008). Democracia: um conceito em disputa. São Paulo, SP: Fundação Lauro Campos. coloca algumas dificuldades teóricas e políticas para lidar com a noção de democracia, em uma arena política na qual praticamente todas as forças reivindicam o atributo de democrático. É sempre preciso ter cautela, afirma Coutinho, ao usar o conceito de democracia ao longo do processo de redemocratização mais recente no Brasil: “. . . o fato de que todos hoje se digam ‘democratas’ não significa que acreditem, efetivamente, na democracia, mas sim, que se generalizou o reconhecimento de que a democracia é uma virtude” (p. 1).

Estamos, às vezes, diante de um descolamento, de uma dissociação entre o discurso e a ação, ou do que Coutinho, recorrendo a La Rochefoucauld , pensador francês do século XVII, define como hipocrisia dos que, entusiasticamente, se dizem democratas: “a hipocrisia consiste em que, com extrema frequência, essa palavra – ainda que dita com ênfase – não significa absolutamente o que a história da humanidade e o pensamento político entenderam e entendem por democracia”. Nesse exato sentido, nos termos do referido autor, a hipocrisia pode ser compreendida como uma homenagem que o vício presta à virtude. Enfim, o reconhecimento da virtude alheia não nos converte em sujeitos virtuosos. A título de exemplo, é sempre bom lembrar que, ao longo da história, o liberalismo, defensor ardoroso das liberdades individuais, nem sempre se apresentou como democrático ( Coutinho, 2008Coutinho, C. N. (2008). Democracia: um conceito em disputa. São Paulo, SP: Fundação Lauro Campos. , p. 1).

Com a crise dos países socialistas e o fim das ditaduras na América Latina, ainda que persistissem, aqui e acolá, países com regimes abertamente autoritários, tinha-se a sensação de que, finalmente, a democracia, com seus vários matizes, teria se universalizado – a democracia liberal burguesa e o capitalismo. Houve mesmo quem afirmasse o fim da história. De fato, uma certa universalização do conceito de democracia encobre, sempre, uma diversidade grande de sentidos e de práticas.

Ao nos reportarmos à história mais recente, do que de fato estamos falando quando nos referimos ao conceito de democracia? Várias são as possibilidades de resposta. Joseph Schumpeter (1961)Schumpeter, J. (1961). Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro, RJ: Fundo de Cultura. , por exemplo, define a democracia como um procedimento que se caracteriza pela concorrência entre as elites pelo direito de governar, não se reportando exatamente à noção de bem comum. Friedrich August von Hayek (1994)Hayek, F. A. (1994). O caminho da servidão. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca do Exército. a conceitua como um instrumento de salvaguarda da liberdade individual, de defesa da liberdade negativa, ou seja, contra a submissão, a servidão, um instrumento de luta contra a tirania da maioria, sendo o seu locus de realização o mercado. A partir de uma certa tradição marxista, Jürgen Habermas (1997)Habermas, J. (1997). Direito e democracia: entre facticidade e validade II. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro. define democracia como processo, como ação comunicativa orientada para uma compreensão mútua, comunicação desimpedida entre os homens livres e iguais como processo de formação da opinião e da vontade públicas, sendo a noção de esfera pública o elemento estruturante. De uma perspectiva política mais radical, Nikos Poulantzas (1997)Poulantzas, N. (1997). Poder político e classes sociais. São Paulo, SP: Martins Fontes. afirma, de modo enfático, a impossibilidade estrutural da democracia no contexto capitalista, uma vez que a desigualdade material impede a efetiva realização da liberdade.

Reportando-nos apenas ao século XX, muitos são os marcos teóricos constituídos em torno desse debate, e incontáveis são as possibilidades de definição. Afinal, como articular o debate em torno da liberdade (individual e coletiva) e da igualdade, elementos constitutivos do conceito de democracia, com as nossas reflexões no campo da administração pública? Parte significativa da nossa reflexão, reportando-se de forma implícita ou explícita aos vários temas tratados pelo campo, tratam essa diversidade como algo dado e estabelecido, quase que como um pressuposto, diriam alguns. É como se essa diversidade de conceitos, hegemonizada pelas noções liberais de democracia, fossem um pano de fundo sem maiores implicações, ou, ao menos, com implicações já estabelecidas no tratamento dos temas do campo da administração pública.

Continuemos, ainda, com o conceito de democracia, nos aproximando dos tempos de hoje e do Brasil, para tentar avançar no argumento da necessidade de reinventar a sua correlação com a administração pública. A referência ao princípio da hipocrisia de La Rochefoucauld e à diversidade conceitual em torno da democracia são obrigatórias a esse debate. Porém, esse começo de século desafia alguns dos nossos clássicos, provoca e instiga a nossa capacidade de reflexão, uma vez que estamos diante de uma profunda crise do próprio conceito de democracia liberal. Hoje, muitos que se declaram de direita e de extrema direita o fazem por meio das instituições democráticas e, por vezes, de forma distorcida e contraditória, mesmo ainda se afirmando democratas. Estamos falando da crise do conceito hegemônico de democracia liberal, crise que se espraia pelos continentes, como muito bem caracterizada pelos contundentes e polêmicos trabalhos de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como as democracias morrem (2019) e O povo contra a democracia , de Yascha Mounk (2019)Mounk, Y. (2019). O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo, SP: Companhia das Letras. . O conceito de democracia iliberal, em sua clareza e imprecisão, inspira e problematiza a reflexão sobre o impacto dos atuais processos políticos nas distintas formas de administração da res publica.

A chegada ao poder de Donald Trump nos EUA, em 2017, e de Giorgia Meloni na Itália, em 2022, são exemplos do peso que forças políticas de extrema direita têm tido na América e na velha Europa. Inspirados na formulação nazista “ Deutschland Über Alle ”, e com os slogansAmerica First ” e “ Dio, patria e famiglia ”, as referidas forças políticas não apenas recusam e se contrapõem às experiências históricas do new deal e do welfare state mas também aos fundamentos da própria noção de res publica . Esse movimento chega ao Brasil e ganha expressão política mais clara com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, com um lema que sintetiza, de forma precária, o espírito das lideranças e movimentos aqui referidos: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Nas primeiras décadas do século XXI, temos claramente na conjuntura nacional e internacional um conjunto de forças políticas, projetos de sociedade e modelos de administração que não apenas divergem em relação a concepções e práticas democráticas convencionais, mas que negam os princípios mais gerais da democracia clássica, defendendo ardorosamente formas de governo ditatoriais e autoritários. Alguns autores chegam a qualificá-los como fascistas ou neofascistas. As velhas regras do jogo democrático passam a ser questionadas. A tolerância mútua cede lugar ao discurso de ódio, as tradicionais instituições republicanas passam a ser atacadas nos seus princípios, e mesmo a chamada imprensa livre (que, ainda sendo assim qualificada, sempre esteve associada a interesses de classe) passa a ser considerada inimiga.

Como afirmam Levitsky e Ziblatt (2019)Levitsky, S., Ziblatt, D. (2019). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , a “erosão da democracia é quase que imperceptível”, às vezes “o retrocesso democrático começa nas urnas” e “as democracias morrem não pela mão de generais, mas de líderes eleitos . . ., como fez Hitler na sequência do Reichstang em 1933 na Alemanha” (p. 15). De forma sintética, Levitsky e Ziblatt afirmam: “o paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la” (p. 19).

A partir do polêmico conceito de populismo autoritário, Mounk (2019)Mounk, Y. (2019). O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo, SP: Companhia das Letras. tem procurado refletir sobre as expressões políticas resultantes do descontentamento de parcela significativa da população, descontentamento que ameaça alguns dos princípios históricos da democracia liberal. Segundo o referido autor, estamos diante do fato histórico da dissociação ente liberalismo e democracia, particularmente do ataque aos clássicos direitos individuais e às instituições independentes e consolidadas. Em linhas gerais, trata-se da rejeição às regras clássicas do jogo democrático ou mesmo aos seus compromissos, muitas vezes débeis.

O fato é que, como em outros tempos, forças antidemocráticas, às vezes qualificadas como fascistas ou neofascistas, têm tido um amplo apoio de parcela significativa da população e têm alcançado o poder através de processos eleitorais, com alternância de poder. O ataque às instituições e a recusa da legitimidade e da alteridade dos seus oponentes são movimentos que têm se constituído por meio de processos formais situados dentro dos marcos legais estabelecidos. Logo, olhando esse nosso tempo sob uma perspectiva histórica, como afirmam Levitsky e Ziblatt (2019)Levitsky, S., Ziblatt, D. (2019). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , as democracias nascem, crescem e morrem.

Essa nova forma de constituição da vida política fragiliza e corrói as organizações, matéria prima do fazer da administração e da administração pública. Um dos traços mais característicos dessas novas velhas lideranças é a reprodução de relações de autoridade de caráter tipicamente messiânico, com a reinvenção da figura do mito , da inexistência ou enfraquecimento da mediação entre o líder e as massas. Estamos falando do desmonte de um amplo leque de instituições, tradicionais elementos de mediação e de representação nas esferas pública e social.

A reinvenção desse tipo de liderança, em um cenário de extraordinário avanço das tecnologias de comunicação, tem trazido de volta uma pauta política e cultural que, aparentemente, estava adormecida ou mesmo tinha sido, ao menos em parte, superada. Ao lado da ênfase incondicional à liberdade individual, tem-se uma genérica crítica à política e à política “tradicional”, ainda que reproduzindo elementos típicos da “velha” política, como a corrupção. De forma marcante, são produzidos discursos conservadores, com traços fortes de nacionalismo, racismo e mesmo irracionalismo, de desconfiança em relação à reflexão e à reflexão crítica. Com efeito, o arsenal digital, que muito nos prometia (inclusive o aprofundamento da democracia), passa a se constituir em uma poderosa ferramenta de manipulação e de produção de “inverdades”.

Associados, esses elementos adicionam novos desafios à compreensão das formas de funcionamento das organizações e instituições, do perfil do trabalho e do trabalhador, da cultura organizacional e da forma de compreensão dos vários temas próprios da área de administração pública. O retorno às velhas formas de autoritarismo, ao não reconhecimento da diferença, da alteridade, das dimensões propriamente públicas e coletivas da vida, calcadas na violência e no medo, desconstrói avanços e conquistas alcançados no processo mais recente de democratização no Brasil.

Desse modo, as transformações mais recentes nos modos como se processa o exercício do poder, particularmente a chamada crise da democracia liberal burguesa, nos modelos de desenvolvimento, de produção de políticas públicas e de administração da res publica , desafiam a pesquisa acadêmica em suas várias dimensões. Como os dilemas em torno da construção democrática no contexto neoliberal, com traços autoritários, conformam a res publica e a sua gestão? O que pode ser dito sobre temas tradicionais do campo da reflexão e da atuação, como gestão, controle, estratégia, centralização e descentralização do poder, planejamento, governança e construção de políticas envolvendo os distintos setores e recortes territoriais? O que dizer da dimensão propriamente institucional dos processos de regulação, da produção e gestão do risco (social e ambiental)? Enfim, o que dizer das possibilidades da própria sociabilidade?

A própria noção de res publica sempre esteve eivada de polêmica, e, nos últimos tempos, os embates em torno das suas definições e da sua práxis se aprofundam. Tem-se reafirmado, de forma contundente, a noção de esfera pública como resultado das vontades privadas e o princípio de que a busca pelo interesse individual, a competição e a mão invisível do mercado gestam e asseguram o bem-estar coletivo. Nesses termos, caberia ao estado tão somente criar as condições para o bom funcionamento do mercado. Assim, atualiza-se, de forma primorosa, o princípio formulado por Adam Smith (1996Smith, A. (1996). A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo, SP: Editora Nova Cultural. , p. 74), de que “não é da benevolência do açougueiro, do fabricante de cerveja ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que ele tem pelos próprios interesses”. Não é à humanidade ou à complacência, mas ao amor-próprio, às vantagens pessoais e financeiras do padeiro que devemos o nosso café da manhã.

Inspirados em A fábula das abelhas, de Bernard Mandeville (2018)Mandeville, B. (2018). A fábula das abelhas. São Paulo, SP: UNESP. , alguns liberais não têm hesitado em relembrar que, afinal, os fundamentos da sociedade, da vida coletiva, não são tão somente as assim chamadas qualidades amigas ou virtudes reais, mas o que pode ser denominado de mal, quer seja natural ou moral. Esse seria o princípio “que nos torna criaturas sociáveis, a base sólida, a vida e o esteio de todo o comércio e de todas as profissões, sem exceção; . . . e, no momento em que o mal cessar, a sociedade necessariamente estará arruinada, se não totalmente dissolvida” (p. 2). No limite, os interesses privados podem se converter em virtudes públicas, princípio esse às vezes envolto por um discurso moralista anticorrupção, bélico e de cunho nacionalista.

Friedrich Hayek (1994)Hayek, F. A. (1994). O caminho da servidão. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca do Exército. , dentre outros, é frequentemente mobilizado pela produção acadêmica mais recente, sobretudo por suas considerações acerca da natureza individualizante e moral da sociabilidade, quando afirma que o elemento constitutivo do que podemos chamar de sociabilidade é o fato de termos aprendido a seguir regras e que a regra é, enfim, algo que resulta da complexa associação ente o instinto e a razão: “é a substituição de reações inatas por regras apreendidas que nos torna humanos” (p. 27, grifo nosso). São o aprendizado, o hábito, o costume e o instinto, herdados, que nos humanizam. Somos mais imitação do que propriamente percepção ou razão, e a sociabilidade, ou seja, a vida coletiva, o resultado desse complexo processo de interação. Uma caracterização, como essa da constituição da vida coletiva, só poderia ter como referência a noção de democracia como liberdade negativa.

Quais elementos teóricos e empíricos dessa vasta tradição teórica e política acionamos para analisar modelos de desenvolvimento, de gestão, políticas públicas, planos e projetos, à exemplo da política habitacional do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), materializada no Programa Minha Casa Minha Vida (2009-2017), ou a política ambiental do governo Bolsonaro (2019-2022)? Quais conceitos de democracia e de res publica fundamentam a reflexão em torno da eficiência e eficácia dos referidos planos, políticas, modelos de desenvolvimento e de gestão?

Os cenários e perspectivas não são claros e a nossa capacidade de avaliação é sempre limitada. Alguns sinais parecem, às vezes, indicar certo arrefecimento da onda de extrema direita que tem varrido esse começo de século – certa desmobilização do Make America Great Again , o que é um bom indicador. Parece que estamos voltando a certa normalidade, problemática, polêmica, segregada, racista, mas, ao menos, estamos voltando ao reconhecimento de que, de alguma forma, a estabilidade e a regra são necessárias. Particularmente, as regras da democracia liberal burguesa são essenciais no contexto do capitalismo, no centro e na periferia do sistema.

Quase como um lamento, e recorrendo à Irving Kristol, David Brooks (2022)Brooks, D. (2022, November 10). The fever is breaking. The New York Times. Retrieved from https://nyti.ms/3h23YtL
https://nyti.ms/3h23YtL...
, em The Fever Is Breaking , o jornal The New York Times, apela para a sensatez: “Como escreveu certa vez Irving Kristol, as pessoas em nossa democracia não são extraordinariamente sábias, mas sua experiência tende a torná-las extraordinariamente sensatas.” (tradução nossa). Sim, esse é um tempo que exige sensatez e reflexão crítica, requisitos fundamentais da boa pesquisa. Estaríamos, então, voltando ao normal anormal?!? Podemos, na nossa pesquisa, ampliar a noção de normalidade de modo a fazer caber outros tantos objetos, temas e correlações? O que dizer, afinal, dos modelos de gestão e de desenvolvimento quando a democracia liberal (com toda sua diversidade e complexidade) deixa de se constituir em referência teórica e prática hegemônica?

Participação e democracia na pesquisa em administração pública

A necessária relação entre modelos de desenvolvimento, de gestão e democracia nos aproxima da discussão sobre os avanços e retrocessos em relação à participação cidadã experimentados nas últimas décadas no país, especialmente considerando os desafios do atual cenário de retrocessos de direitos e de afirmação de práticas autoritárias. Temos um vasto repertório teórico e empírico que reflete e documenta a mobilização político-institucional que envolveu a redemocratização (pós-ditadura militar instaurada em 1964), que tem a Constituinte como referência e o resultado das campanhas pelas eleições diretas, da luta pelos direitos à organização política, à direitos trabalhistas, à emancipação feminina, da luta contra a discriminação racial, pela reforma agrária, contra a carestia e pelo direito de ter diretos.

Situamo-nos, então, no contexto de constituição de organizações como o Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores, do Movimento Negro Unificado e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, da reorganização da arena política e partidária e dos ricos estudos que analisam o cotidiano da participação nas distintas esferas de governo – com destaque para a reflexão sobre os processos de formação e constituição da burocracia e a relação entre estado e sociedade civil. Ainda é muito rica e diversificada a reflexão sobre o assim chamado presidencialismo de coalização, a relação entre os poderes nas várias escalas federativas e a participação, controle social e os construtos relativos à governança e accountability.

Durante os anos noventa, assistimos a certo contraponto e ao conflito entre uma estrutura analítica e propositiva, em torno da participação qualificada como substantiva (que envolvia a descentralização de poder), e a de cunho marcadamente neoliberal (de perspectiva gerencial, baseada na eficiência, eficácia e produtividade). Já nas duas primeiras décadas do presente século, a proposta política do P T prometeu a ruptura com o modelo neoliberal de gestão da res publica , inflexão que a produção acadêmica vem documentando de maneira bastante rica.

A criação de espaços institucionais de participação que marcaram o modelo neodesenvolvimentista (2003-2016) são avaliados, com ponderações e críticas, como avanços significativos na relação entre participação social, modelo de gestão, de desenvolvimento e democracia. São exemplos dessas iniciativas: a realização de Conferências (nos níveis nacional, estadual e municipal) sobre temas como meio ambiente, saúde, mulheres e cidades, a criação e reformulação de Conselhos, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, a aprovação de marcos regulatórios, como o MROSC (Lei nº 13.019/2014), e a instauração da Política Nacional de Participação Social e do Sistema Nacional de Participação Social (Decreto nº 8.243/2014).

No entanto, os referidos avanços em termos de participação e controle social, como registra a produção acadêmica, parecem não ter sido suficientes para evitar o esvaziamento da dimensão política do envolvimento de amplos setores da sociedade na discussão sobre as políticas públicas. A captura da participação por interesses estranhos às forças políticas situadas no campo propriamente democrático, mais à esquerda ou ao centro da arena política, produziu um cenário bastante particular: ao lado da desregulamentação e do esvaziamento da participação cidadã no processo de gestão, forças políticas consideradas como de direita e de extrema direita enchem as ruas do país vestidas de verde e amarelo, pedindo a volta da ditadura militar. Vem Pra Rua e Brasil Livre são movimentos e organizações políticas desse novo tempo, que tornam irreconhecível e põem em desordem as velhas (e ainda plena de atualidade política) palavras de ordem que conformaram as ruas e a esfera pública dos tempos de redemocratização.

Vasta é a produção acadêmica que discute participação, gestão pública e democracia no Brasil. Tem-se feito um esforço grande em pesquisa, construção de taxonomias, métricas e tentativas de mensuração de efetividade, com o objetivo de aprofundar essa reflexão. Entretanto, vamos, de novo, recorrer aqui ao apelo da associação de nossos temas ao debate mais geral sobre democracia. E o faremos com o auxílio do conceito de confluência perversa , criado por Evelina Dagnino (2002)Dagnino, E. (org.). (2002). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo, SP: Paz e Terra. e publicado em texto datado do começo dos anos 2000.

O conceito de confluência perversa consiste no fato de que a participação pode terminar por servir a projetos políticos que, em tese e na prática, defendem modelos de sociedade distintos ou mesmo conflitantes. No contexto histórico da gestão pública brasileira, é no processo de redemocratização, por exemplo, que a sociedade civil é chamada a colaborar com a ação estatal, assumindo atribuições de provisão e gestão de políticas e serviços públicos, dentre outras, nas áreas da intermediação de trabalho e de assistência social.

No entanto, como parte da literatura sobre o processo de reforma gerencial do Estado ressalta, essa harmonia entre Estado, mercado e sociedade foi “conquistada” por meio de um forte processo de desestruturação dos tradicionais espaços de organização da luta popular. Os sindicatos, por exemplo, sofreram com as reformas que se processaram no campo dos direitos do trabalho que, associados aos efeitos ideológicos dessas reformas, produziram o esvaziamento político de tais organizações.

Além disso, como as pesquisas têm demonstrado, a operacionalização de políticas públicas, por meio da descentralização de recursos e desresponsabilização do Estado através da mobilização de organizações da sociedade civil, traz importantes repercussões sobre a relação entre participação e democratização das relações entre essas esferas. Uma delas está, certamente, nos efeitos ideológicos e organizacionais que os imperativos burocráticos da operacionalização das políticas carregam, especialmente a separação ou hierarquização entre técnica e política, que se converte na separação entre os setores que pensam, formulam as políticas e decidem e aqueles que as executam.

Nesses termos, as experiências de participação, mesmo aquelas qualificadas como substantivas e associadas a projetos social-desenvolvimentistas, como a produção acadêmica registra, estiveram perpassadas pelas tradicionais práticas de cooptação e despolitização dos movimentos sociais e de suas lideranças. Nem mesmo os espaços colegiados como os Comitês e os Conselhos que, embora oportunizem o envolvimento de representações de organizações e movimentos sociais, se mostraram, necessariamente, capazes de alterar a centralização da estrutura do processo decisório.

Analisando a experiência de participação nos Comitês de Bacias Hidrográficas, o “parlamento das águas”, previsto na Lei das Águas (Lei Federal nº 9.433/1997), por exemplo, podemos encontrar fortes evidências dos efeitos do poder de setores econômicos sobre as decisões que envolvem o uso e apropriação de recursos comuns, que reforçam desigualdades econômicas e a exclusão social. Nesse sentido, como nos chama a atenção Gohn (2019)Gohn, M. G. M. (2019). Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Caderno CRH, 32(85), 63–81. doi:10.9771/ccrh.v32i85.27655
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, ao se descolar da análise das desigualdades estruturais no plano econômico, a profusão de trabalhos no campo da participação falha na constituição de uma agenda de efetiva superação das desigualdades políticas e sociais.

Isto é, quando falamos da participação, é preciso destacar o conflito entre as dimensões funcional e política e, mesmo, os múltiplos significados da sua recusa. Estamos falando, então, da associação entre participação e projeto político, e, consequentemente, da relação entre participação e democracia. Afinal, qual o sentido da participação nos modelos de desenvolvimento – neoliberal e desenvolvimentista ou social-desenvolvimentista – e nos modelos de gestão – gerencialistas, burocráticos, societal (segundo algumas abordagens) – e como se articulam com a democracia?

Apesar dos seus limites e contradições, a importância da participação no âmbito da gestão pública nos referidos modelos termina por ser reafirmada quando avaliada a partir do atual contexto político de ameaça antidemocrática. O enfrentamento às forças políticas consideradas como de direita e de extrema direita tem mobilizado os mais amplos esforços de concertação no campo político. Retomando, portanto, o argumento da confluência perversa de Dagnino, é preciso que a inclusão das organizações da sociedade civil nesse trabalho de reconstrução das instituições democráticas seja abordada de forma crítica e reflexiva pela pesquisa no campo da administração pública.

O que a produção acadêmica durante muito tempo tomou como pressuposto, a regulação da participação na gestão pública, de um golpe, se desmancha no ar nos últimos anos. A revogação do Decreto que instituiu a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social e a promulgação do Decreto nº 9.759/2019, impõe limitações e, na prática, extingue, instâncias colegiadas de gestão. O cenário politico partidário que torna isso possível é o esvaziamento da rua como lugar de expressões emancipatórias e democráticas. Movimentos e organizações, que se mobilizam pedindo a intervenção militar, por vezes, utilizam as próprias regras e instituições democráticas para combater a democracia.

Ao identificar as raízes de nossa condição violenta e autoritária, reportando-se, inclusive, às marcas deixadas (e renovadas permanentemente) pelo escravismo e patrimonialismo, Lilia Schwarcz (2019)Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras. aponta os elementos que moldaram a nossa formação econômica, social e a nossa cultura organizacional. Os processos de mobilização em 2013, segundo Schwarcz, “destamparam o caldeirão da democracia”, do qual saíram as mais radicais expressões de valores dissimulados, porém, persistentes, de natureza racista, misógina e contrários ao ideal republicano de constituição de uma res publica .

O fato é que, no Brasil de hoje, ao falar de movimentos sociais, participação, gestão pública e democracia, é preciso adjetivá-los, indicando a existência ou inexistência de significados mais ou menos funcionais ou emancipatórios. É preciso, então, refletirmos sobre os efeitos de nossa recente caminhada teórico-prática de institucionalização da participação, movimento que nos descolaram, por vezes, da dimensão política da participação. A problematização da relação entre participação e democracia, ainda que estejamos nos referindo à democracia liberal, é mais do que necessária em tempos de negacionismo e de desmonte.

É preciso, portanto, refletir sobre a relação entre participação e democracia para além do viés conservador da legitimação e instrumentalização. Precisamos reconhecer a sua natureza conflituosa (e não harmônica), colocar em destaque as implicações de natureza material (especialmente econômicas) que conformam desigualdades historicamente consolidadas. Nesse exato sentido, o debate sobre participação e democracia, ou seja, sobre determinações teórico-práticas relativas ao campo da gestão, pode, em muito, contribuir com a reinvenção da própria noção de administração pública.

Administração pública e interdisciplinaridade: desafios e perspectivas para a pesquisa

O debate em torno dos desafios e perspectivas da administração pública e sua relação com o tema da democracia requer a mobilização de conhecimentos especializados, construídos ao longo do processo de construção da administração enquanto ciência. Mas, em tempos de convulsão e de crise paradigmática, demanda o aprofundamento da ruptura de fronteiras constituídas pelo saber disciplinar.

Não resta dúvida que o próprio campo da administração pública se constitui e se desenvolve a partir do diálogo entre campos disciplinares distintos e que esse diálogo tem contribuído, inclusive, para a construção da identidade da própria área. Entretanto, precisamos renovar e ampliar os horizontes das nossas pesquisas a partir de uma perspectiva interdisciplinar crítica que evite a mera transferência de conceitos de outras áreas do conhecimento, sendo capaz de estimular a redefinição de objetos e abordagens e de refletir a sua riqueza e complexidade, como sugere Guerreiro Ramos (1989)Ramos, G. (1989). A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV. . Aliás, é também Guerreiro Ramos quem nos alerta sobre a necessidade de uma adequada articulação entre o avanço teórico das ciências (particularmente, das ciências sociais) e as questões concretas que caracterizam a nossa formação econômica e social. Assim, por exemplo, ao falarmos em diversidade nas organizações, devemos refletir sobre um significado diferenciado daquele utilizado pela literatura de natureza prescritiva e operacional, de natureza funcional, relativa, tão somente, ao incremento da produtividade.

No caso brasileiro, quando nos referimos à diversidade, precisamos reconhecer que estamos falando, na realidade, de desigualdades – de gênero, de raça e etnia, de classe social e outros tipos de opressão – que se desdobram e se materializam em precárias condições de vida e de trabalho. E, nesse sentido, a produção do conhecimento no campo da administração pública tem um grande desafio teórico e prático caso queira contribuir com a realização da democracia. Um passo importante é a valorização dos diversos saberes e experiências oriundas de variadas tradições (inclusive não ocidentais), que consideram formas emancipatórias de relação entre poder e comunidade e que recusam os critérios dominantes de validade na produção do conhecimento.

Somos, afinal, uma ciência social aplicada. Para além da sempre aludida proximidade entre conhecimento e ação, precisamos enfrentar o desafio da produção de um saber reflexivo, capaz de voltar-se sobre a sua episteme e sobre o seu significado político-institucional, sob pena de não conseguirmos compreender as transformações que nos circundam e fundamentar a ação pública ou acabarmos falando de forma pouco criativa para uma pequena bolha. Na verdade, os desafios teórico-práticos relativos à administração pública e democracia têm significados teórico-epistemológicos, metodológicos (a velha compartimentação entre o quali e quanti nos empobrece e nos afasta do mundo da vida, do lebenswelt , como diz a boa tradição fenomenológica) e ontológico, uma vez que dizem respeito à produção do saber, mas também à ação social, à sociabilidade, à construção da vida em sociedade.

Nessa linha, o campo da administração pública precisa mobilizar e valorizar saberes diversos e comprometidos com a emancipação e esclarecimento, teorias e epistemologias, de corte disciplinar, interdisciplinar e mesmo transdisciplinar, capazes de aproximar teoria, conceito e realidade. Seremos sempre perpassados por pontos de vista, ideologias e preferências, como toda e qualquer produção e produto teórico-prático, inclusive no campo da administração e da administração pública, como já afirmava Maurício Tragtenberg (1977)Tragtenberg, M (1977). Burocracia e ideologia. São Paulo, SP: Ática. . A diluição e a ruptura de fronteiras entre os saberes disciplinares podem favorecer a conformação dos nossos objetos – a aproximação com o tema da democracia pode, nesse sentido, ser um caminho fecundo.

Em verdade, várias são as vozes no campo da administração pública que sugerem a diluição de fronteiras disciplinares e o redesenho de objetos e de abordagens; citá-los aqui perderia o sentido, além do risco do esquecimento. Precisamos reforçar esse movimento e avançar no cotidiano da pesquisa acadêmica, estimulando o diálogo com outros campos do conhecimento nas ciências sociais e para além de suas fronteiras e muros. O diálogo interdisciplinar e transdiciplinar, o retorno à macroteoria e ao diálogo entre teorias de escalas diferenciadas pode ajudar o enfrentamento a desafios teórico-práticos e vislumbrar perspectivas para a construção coletiva e democrática da pesquisa e da produção acadêmica no campo da administração pública.

Conclusão

Esse texto não tem a pretensão de ser prescritivo – se ele conseguir suscitar a dúvida, já terá cumprido sua função. A dúvida e a crítica podem ser guias fecundas em tempos de crise. Somos, atualmente, perpassados pelo sentido da urgência – o próprio sentido de tempo, como em geral acontece em momentos de transição, desloca-nos de territórios consolidados e confortáveis, nos desenraiza. A reflexão sobre a administração pública e democracia no século XXI, sobre seus desafios e perspectivas, é um convite à crítica, no sentido mais substantivo que esse conceito poderia ter. Talvez, precisemos reforçar mais uma vez a associação entre crítica e crise. Mas, e quando não estivemos em crise exatamente? É claro que a resposta a esse tipo de questão vai depender do ponto de vista, da perspectiva ideológica e teórica de cada um. Talvez o que pode nos orientar nessa profusão de possibilidades é saber quão a experiência e a percepção da crise, de fato, se generalizaram.

Stefan Zweig (1942), em O Mundo Que Eu Vi ( Die Welt von Gestern ), no ano de 1942, em pleno furor fascista, narra, perplexo, o fim do mundo da segurança… Até então, “tudo na monarquia austríaca, quase milenária, parecia estabelecido para sempre e o próprio Estado parecia ser o supremo garante dessa estabilidade”. Os direitos eram confirmados pelo parlamento, o dinheiro circulava como que imutável, enfim, “cada um sabia quanto possuía ou quanto ia receber. O que era permitido e o que era proibido. Tudo tinha sua norma, sua medida e seu peso determinados ” (p. 11). É certo que esse sentimento de segurança era propriedade dos que tinham posse, como afirma o próprio Zweig.

De qualquer modo, “o conforto estendeu-se das casas dos mais ricos para as dos remediados, já não se tinha que buscar água no poço ou na torneira do corredor e acender trabalhosamente o fogo na lareira, a higiene difundiu-se e a imundice desapareceu. Os seres humanos tornaram-se mais belos . . .” ( Zweig, 1953Zweig, S. (1953). O mundo que eu vi (Minhas memórias). Rio de Janeiro, RJ: Editora Delta. , pp. 13). Em um ambiente assim, radicalismos, conflitos, guerras, “revoluções e derribamentos” pareciam não ter lugar – eram impossíveis “numa época em que reinava a razão” (pp. 11). Esse mundo esvaiu-se como um “castelo de sonhos” e, segundo os próprios termos de Zweig (1953)Zweig, S. (1953). O mundo que eu vi (Minhas memórias). Rio de Janeiro, RJ: Editora Delta. , a “boa burguesia Judaica” vienense viu-se envolta em uma grande tempestade. O mundo nunca mais foi o mesmo.

De fato, situações extremas nos conduzem a uma sensação de desterritorialização, de vertigem. Quando as transições se dão na longa duração, fica difícil, na esfera individual e mesmo organizacional, ter a noção de mudança. Precisamos apurar nosso olhar para tentar compreender as múltiplas possibilidades e perspectivas do nosso tempo – esse é um desafio individual, coletivo e organizacional.

Em linhas gerais, a reflexão aqui desenvolvida não nos conduz exatamente a uma conclusão, mas a um alerta sobre o sentido da urgência e a necessidade de desnaturalização da situação de crise, com desdobramentos na forma como produzimos conhecimento, na qual estamos mergulhados. Ao refletir sobre as possibilidades da pesquisa acadêmica em administração pública e a necessidade de redesenhar objetos e perspectivas, apontamos para um movimento mais do que necessário e urgente, em vários campos do saber, em tempos de negação da ciência. O que de fato esperamos da pesquisa em administração pública é que ela se permita reinventar-se a partir do diálogo com tantos outros campos do conhecimento. Refletir sobre a relação entre administração pública e democracia no século XXI pode ser um excelente pretexto nessa nossa aventura que é o fazer cotidiano da pesquisa e do esclarecimento.

Agradecimentos

Agradecemos a leitura cuidadosa do professor Eduardo Davel e do professor Paulo Ricardo Reis.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023
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