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Uma visão crítica da política do menor

Uma visão crítica da política do menor

Além de situar como e por que as políticas oficiais de atendimento aos menores não conseguem beneficiar este segmento da população brasileira, o psicólogo Benedito Adalberto Boletta de Oliveira, com base em quase 10 anos de experiência como técnico em órgãos de atendimento de menores, sugere também algumas alternativas de intervenção tanto em termos de atendimento direto quanto de compreensão dos problemas vividos pelos menores num contexto estrutural de pauperização da população brasileira. Eis as suas opiniões:

Para fazer uma análise das políticas de atendimento à menoridade num país como o nosso, é importante fazer simultaneamente um histórico delas buscando relacioná-las com o contexto de onde se originaram e como foram praticadas.

No Brasil, a partir do golpe de 64, os projetos comunitários desenvolvidos pelo Estado foram paulatinamente desmantelados por causa da conseqüência política inerente a eles, pois lidava com a conscientização das condições de vida das pessoas. Principalmente na Secretaria de Promoção So, cial de São Paulo, os técnicos são retirados desse trabalho direto com a população e passam a desenvolver atividades burocrático-institucionais denominadas de "acompanhamento técnico". Começam a administrar a miséria da população dentro das instituições oficiais que já existiam. E importante mostrar que as FEBEMs não surgiram de repente, a partir de 1964. Antes delas, tinha o RPM (Recolhimento Provisório de Menores), que era muito conhecido pelo horror, maus-tratos etc. Depois, criou-se a Pró-Menor e só depois surgiram as FEBEMs, a partir da criação da FUNABEM. É um serviço que foi mudando de nome e também de fachada, mas se manteve, fielmente, a péssima qualidade do atendimento.

Com a criação da FUNABEM, desenvolve-se uma política de institucionalização do menor abandonado ou carente e, principalmente, do infrator. A ideologia que embasou esta política de institucionalização foi a da Escola Superior de Guerra com a Lei de Segurança Nacional. Para a ESG, as crianças das classes populares eram mal-educadas e precisavam ser amparadas, educadas e corrigidas, por serem bandidos em potencial. Como se corrigiam essas condutas de pobreza, de delinqüência? Concebiam-se reformatórios nos quais os menores deviam ser ressocializados, ficando afastados de suas famílias. Estimulava-se a internação na medida em que a família, por suas condições de vida e risco, não era o lugar adequado para o crescimento e desenvolvimento dessas crianças e adolescentes. O "país do futuro" precisava começar a ser construído.

Na FUNABEM, do Rio de Janeiro, criou-se um programa chamado Brasil Jovem, que foi denunciado na "Folha de São Paulo" pelo jornalista Carlos Alberto Luppi. Este programa tinha uma inspiração fascista e seu objetivo era formar quadros de "Novos Adolescentes", segundo normas disciplinares rígidas, com estilo militar, para posteriormente serem utilizados em funções disciplinares.

Como prática em meio aberto, nessa época, proliferaram as guardas mirins, entidades privadas conveniadas com o Estado, que desenvolviam projetos educativos orientados a partir de estratégias militares, reproduzindo assim práticas repressivas e autoritárias.

Durante a ditadura militar, principalmente nos anos 70, gastou-se muito dinheiro com a construção de internatos. A necessidade de se responder à ideologia da Lei de Segurança Nacional - através do recolhimento e abrigo em "prisões" de seguimentos da população - constituía-se, num momento de milagre econômico, em terreno fértil para a implantação da referida política de atendimento aos menores.

Num momento seguinte, com a crise econômica refletindo diretamente nos custos destes serviços, o governo passou a se desobrigar cada vez mais do serviço de atendimento direto a menoridade e começou a repassá-lo para as entidades assistenciais privadas. No Estado de São Paulo, essa tendência coincidiu com o governo Maluf. Nessa época, houve uma proliferação muito grande de novas entidades assistenciais que foram surgindo na medida em que ocorria uma acentuada pauperização de segmentos da população e da própria desatenção do Estado para estas questões. Tal fato tem suas vantagens: além de ser mais barato para o Estado, foi a possibilidade que o governo teve de fazer política clientelista com os dirigentes destas entidades: quem apoiava e oferecia votos a um político do governo, recebia verba; quem não apoiava, não recebia. O que ocorre também hoje, por parte do governo.

O poder de intervenção do Estado nessas questões deixa de ser direto. Além de essas entidades atenderem as demandas sociais de acordo com suas "ideologias", pressionam o Estado quando ameaçam não prestar mais esses serviços sempre que suas práticas são questionadas. De fato, a cooperação técnica-financeira é só financeira.

No caso do atendimento das FEBEMs, plenamente articuladas ao Poder Judiciário, é importante dissociar o discurso da prática. No discurso, elas se propõem a amparar, dar assistência e educar os menores; mas, na prática, confinam os menores oriundos de classes populares em grandes internatos nos quais se desenvolvem práticas de contenção e de repressão. De fato, o que acaba ocorrendo com muita freqüência é a criminalização da miséria. Os meninos que roubam balas, frutas, relógios etc. são tratados na FEBEM como se fossem delinqüentes, potencialmente com periculosidade criminal. Eles vão ser internados lá porque não existem instituições que dêem conta de atender e de assistir adequadamente esses menores.

As próprias entidades privadas do tipo internato colocam esses menores na rua ou mandam para a FEBEM quando atingem a adolescência, porque eles começam a desenvolver um pensamento mais crítico, próprio da adolescência, ou surgem questões de sexualidade etc. Então, os internatos particulares só atendem crianças boazinhas que não lhes causam problemas.

Ainda nos anos 70, a FUNABEM começou a esboçar trabalhos comunitários no Nordeste, através do atendimento de menores carentes, no âmbito da não-internação. Esse programa foi trazido para São Paulo pelo ex-primeiro presidente da FUNABEM, então Secretário da Promoção Social, e foi chamado de Plano de Integração do Menor na Comunidade(PLIMEC). Destinava-se a atender crianças durante o período em que não estavam na escola ou quando não tinham acesso à escola, com o objetivo de prevenir para que não se transformassem em delinqüentes no futuro. Esse programa tinha a vantagem de não internar a criança, mas era totalmente assistencialista, apenas remediando a própria deficiência do sistema escolar: falta de vagas, evasão escolar, alunos-problema etc.

Com o advento da Nova República, a FUNABEM começou a adotar uma retórica oficial de negação total a qualquer tipo de institucionalização, fazendo críticas ao projeto pedagógico e à perspectiva técnica deste trabalho. Só que a FUNABEM está se modernizando na retórica para se perpetuar enquanto instituição e pára por aí. Hoje está fora de moda falar em internatos, então descobrem-se o menino de rua, os projetos comunitários, alternativos etc. Na mesma proporção, esquece-se das crianças e adolescentes que continuam confinados nas instituições.

A FUNABEM propõe-se a realizar a descentralização, mas eu questiono esta proposta porque mais uma vez descentralizar significa somente repassar verbas, na medida em que não é definido um programa mínimo e integrado em uma rede de serviços que contemple de fato as reais necessidades dessas crianças, adolescentes e suas famílias. Hoje como ontem, o que se constata? Os serviços dos órgãos federais se sobrepõem aos dos estaduais que, por sua vez, se sobrepõem aos dos municipais, sem contar as iniciativas privadas. São práticas totalmente desarticuladas. Quer dizer, há uma grande quantidade de dinheiro gasto com um retorno irrisório no que se refere à quantidade e qualidade do atendimento ao menor.

Posso dar um exemplo elucidativo. A Secretaria do Menor do Estado de São Paulo foi criada em 1987, como um órgão normativo que deveria elaborar e coordenar as ações da área de menoridade, no âmbito estadual. Por causa de problemas que envolvem as diferentes Secretarias de Estado, que não querem perder o seu filão de influência política, aconteceu que a Secretaria do Menor também passou a prestar serviços. Ela tem hoje uma política de atendimento direto ao menor totalmente diferente da política da Secretaria da Promoção Social, que também é diferente da política da FEBEM-SP. Mais uma vez, cada Secretaria caminha em faixa própria, ignorando as demais, sem contar as ações desenvolvidas pela FUNABEM e pela LBA, no Estado de São Paulo. O resultado é evidente: gasto exagerado de recursos em trabalhos técnicos sem critérios coerentes, sem avaliações consistentes. A não-existência de uma política que contemple a articulação destas diferentes práticas acaba gerando um ativismo sem conseqüências. Nesse sentido, acredito que deveria ser feita uma racionalização dos recursos oficiais e privados no sentido da criação de uma rede integrada de serviços de amparo e assistência à menoridade. Cada Estado deveria montar seu sistema de atendimento à menoridade, mas não como um órgão burocrático que se transforma em cabide de emprego, o que continua acontecendo até hoje, mas que se articulasse em uma rede de serviços, com racionalização de investimentos.

Por exemplo, poderia haver uma reformulação da Secretaria de Educação no sentido de que a escola abarcasse um grande segmento de menores,que mais tarde transformam-se em menores de rua. Eles ainda não se desgarraram completamente da família e do local de moradia. Se a escola se reformula para dar conta desse tipo de criança, que é transformado geralmente em criança-problema dentro da escola atual, então um grande contingente dessas crianças já teria um tipo de assistência mais adequada.

Essas mudanças burocrático-institucionais, que não resolveriam a questão dos menores, pelo menos, elevariam o nível de qualidade dos serviços, justificando assim os investimentos (que não são poucos) feitos no setor. Na minha opinião, a questão da menoridade desamparada é fruto de condições históricas e estruturais da nossa sociedade, envolvendo antes de mais nada as condições de vida de suas famílias. O menor não é geração espontânea; ele nasce de uma família que tem sua história dentro de um contexto social. É uma realidade vivida de geração em geração, numa sociedade de classes. Enquanto existir uma distribuição de renda que privilegia alguns em detrimento de muitos, enquanto o homem continuar sendo expulso da zona rural, vamos continuar tendo inúmeros programas de atendimento que nunca resolverão o problema da pobreza e suas decorrências: abandono, desamparo, delinqüência etc.

Se não houver uma mudança estrutural, as práticas repressivas e de nítido controle social, que tanto denunciamos hoje, vão continuar existindo incólumes, com fachadas modernizadas. E nós, técnicos, continuaremos produzindo um saber e uma prática que não significam necessariamente o equacionamento e a solução de tais questões .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2012
  • Data do Fascículo
    1988
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