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A falta no outro como subversão da estrutura na teoria lacaniana

The lack in the other as subversion of the structure in lacanian theory

La falta en el otro como subversión de la estructura en la teoría lacaniana

Resumos

O surgimento da noção de uma falta no Outro corresponde, na obra de Lacan, ao fato de a especificidade da reflexão psicanalítica constranger a teoria a assimilar a impossibilidade de uma estrutura totalizante que, sobrepujando completamente o sujeito, fizesse dele, no limite, uma espécie de epifenômeno do significante. O artigo tem o objetivo de fornecer algumas diretrizes para a compreensão desse movimento, na medida em que ele atravessa especialmente a abordagem lévi-straussiana da estrutura. Para tanto, abordará o problema a partir de dois eixos: a ideia de que não há nada de discursivo capaz de funcionar como garantia do próprio discurso e a de que prevalece no conceito de Outro uma duplicidade empírico-transcendental.

Psicanálise lacaniana; estruturalismo; outro


The appearance of the notion of a lack in the Other corresponds, in Lacan's work, to the fact that the specificity of psychoanalytical thought obliges the theory to assimilate the impossibility of a totalizing structure that, completely overwhelming the subject, would turn it into a kind of epiphenomenon of the signifier. The paper has the aim of providing some guidance for the understanding of this movement especially as it crosses the levi-straussian approaching of structure. In order to do this, it will follow two axles: the first one is the idea that there is nothing within discourse that is capable of functioning as a guarantee of discourse and the second that of the prevalence of an empirico-transcendental duplicity in the concept of Other.

Lacanian psychoanalysis; structuralism; other


La aparición de la noción de una falta en el Otro corresponde, en la obra de Lacan, al hecho de que la especificidad de la reflexión psicoanalítica fuerza la teoría a asimilar la imposibilidad de una estructura totalizante que, sobrepujando totalmente el sujeto, lo convirtiese en una especie de epifenómeno del significante. El artículo tiene el objetivo de proveer algunas directrices para la comprensión de este movimiento en la medida en que cruza especialmente el abordaje lévi-straussiano de la estructura. Para esto, el acercará al problema a partir de dos ejes: el primer es la idea de que no hay nada de discursivo capaz de funcionar como garantía del discurso y el segundo la de que prevalece en el concepto de Otro una duplicidad empírico-transcendental.

Psicoanálisis lacaniana; estruturalismo; outro


ARTIGOS

A falta no outro como subversão da estrutura na teoria lacaniana

The lack in the other as subversion of the structure in lacanian theory

La falta en el otro como subversión de la estructura en la teoría lacaniana

Léa Silveira Sales

Doutora em Filosofia, Professora Adjunta I da Universidade Federal de Lavras, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Léa Silveira Sales Campus Universitário, Departamento de Ciências Humanas, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000, Lavras-MG, Brasil E-mail: lea_silveira@uol.com.br

RESUMO

O surgimento da noção de uma falta no Outro corresponde, na obra de Lacan, ao fato de a especificidade da reflexão psicanalítica constranger a teoria a assimilar a impossibilidade de uma estrutura totalizante que, sobrepujando completamente o sujeito, fizesse dele, no limite, uma espécie de epifenômeno do significante. O artigo tem o objetivo de fornecer algumas diretrizes para a compreensão desse movimento, na medida em que ele atravessa especialmente a abordagem lévi-straussiana da estrutura. Para tanto, abordará o problema a partir de dois eixos: a ideia de que não há nada de discursivo capaz de funcionar como garantia do próprio discurso e a de que prevalece no conceito de Outro uma duplicidade empírico-transcendental.

Palavras-chave: Psicanálise lacaniana; estruturalismo; outro.

ABSTRACT

The appearance of the notion of a lack in the Other corresponds, in Lacan's work, to the fact that the specificity of psychoanalytical thought obliges the theory to assimilate the impossibility of a totalizing structure that, completely overwhelming the subject, would turn it into a kind of epiphenomenon of the signifier. The paper has the aim of providing some guidance for the understanding of this movement especially as it crosses the levi-straussian approaching of structure. In order to do this, it will follow two axles: the first one is the idea that there is nothing within discourse that is capable of functioning as a guarantee of discourse and the second that of the prevalence of an empirico-transcendental duplicity in the concept of Other.

Key words: Lacanian psychoanalysis; structuralism; other.

RESUMEN

La aparición de la noción de una falta en el Otro corresponde, en la obra de Lacan, al hecho de que la especificidad de la reflexión psicoanalítica fuerza la teoría a asimilar la imposibilidad de una estructura totalizante que, sobrepujando totalmente el sujeto, lo convirtiese en una especie de epifenómeno del significante. El artículo tiene el objetivo de proveer algunas directrices para la comprensión de este movimiento en la medida en que cruza especialmente el abordaje lévi-straussiano de la estructura. Para esto, el acercará al problema a partir de dos ejes: el primer es la idea de que no hay nada de discursivo capaz de funcionar como garantía del discurso y el segundo la de que prevalece en el concepto de Otro una duplicidad empírico-transcendental.

Palabras-clave: Psicoanálisis lacaniana; estruturalismo; outro.

No início da década de 1950, Lacan (1953; 1953/1966) proclama um "retorno a Freud" e faz disso uma espécie de bandeira de seu ensino. Os textos que desenvolvem essa sua hipótese interpretativa nos conduzem diretamente à demarcação de um conceito de inconsciente muito específico, de claro acento lévi-straussiano. A seu lado, a teoria oferece um trato detalhado à noção de significante cujas origens, como é sabido, remontam, via etnologia, à linguística tal como configurada por Ferdinand de Saussure. Daí por diante (ao menos até 1964), é o debater-se com a estrutura que mais dá a ver os impasses pelos quais a teoria lacaniana se desenvolve, dos quais, sem dúvida, o mais importante do ponto de vista epistemológico se configura nos termos a seguir: tendo definido a emergência da subjetividade como algo dependente do significante articulado em estrutura, como preservar a referência à categoria sujeito?

Imediatamente vemos que, por outro lado, em que pesem os equacionamentos positivos possibilitados pelo encontro com a racionalidade estruturalista, é visível sua consequência problemática: ela conduz a uma estrita incompatibilidade com a posição que deve ser preservada para o sujeito em suas potencialidades mais significativas. O movimento autônomo da estrutura – nem coisa, nem ideia – exige uma ordem própria de consideração que passa ao largo da subjetividade ou até mesmo solicita seu cancelamento. Dizia Lévi-Strauss nesse sentido:

Não pretendemos (...) mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E talvez (...) convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre eles. (Lévi-Strauss, 1971/1991, p. 21)

Declarava Lacan na abertura de seu seminário de 1953-1954: "nossa tarefa aqui é reintroduzir o registro do sentido, registro que é preciso, ele mesmo, reintegrar a seu nível apropriado" (Lacan, 1975, p. 8). Assim, se o estruturalismo viabiliza a tarefa de restabelecer o âmbito do sentido, ele o faz ao preço de simplesmente ameaçar, da mesma feita, sua contraparte, qual seja, a manutenção da subjetividade como o único lugar onde esse sentido, por assim dizer, faz sentido, o que na psicanálise lacaniana significa: sustentar, num corpo que viabiliza o discurso, a verdade de um desejo inconsciente.

Paulatinamente, o confronto com isso que podemos legitimamente chamar por "crise" vai exigir de Lacan uma reconfiguração dos dois polos da questão: tanto daquilo que em psicanálise podemos entender por "sujeito", quanto da instância – em primeiro lugar, transcendental – que o determina, ou seja, da estrutura, então sobreposta pelo conceito mais específico de Outro. A "subversão do sujeito", disposta ao redor da ideia de negação, é inevitavelmente acompanhada de uma subversão da estrutura a ser divisada por meio da ideia de falta. Como já abordamos o primeiro passo em outro lugar (Sales, 2005), o propósito do presente artigo é encaminhar uma reflexão sobre essa segunda consequência necessária do diálogo entre psicanálise e estruturalismo.

Em um primeiro momento, o novo instrumento teórico aportado por Lévi-Strauss permite pensar, em psicanálise, além do conceito fundamental de inconsciente – até então rejeitado por Lacan (1946/1966, p. 182) –, modos de interseção entre fala e linguagem que reinterpretam de maneira muito singular tópicos como a localização do Édipo como estruturação do sujeito, a distinção entre neurose e psicose e a noção de desejo, a ser por esse caminho elevada à condição de função pura.

Nesse momento, não abordaremos todos esses pontos com a profundidade que de fato lhes é devida, mas apenas lembraremos, à luz do objetivo que temos em vista, o fato de que todos eles podem ser vistos como resultantes da elaboração de conceitos que muito se aproximam da leitura endereçada por Lévi-Strauss ao termo polinésio mana, na qual o toma por "símbolo zero". Façamos então algumas rápidas observações sobre esse conceito, tendo em vista que a subversão lacaniana da estrutura será entendida, como veremos abaixo, como uma espécie de "para além do símbolo zero".

Em Introdução à obra de Marcel Mauss, Lévi-Strauss (1950/1977) dirige uma crítica a esse seu predecessor nas investigações antropológicas, crítica que se articula, grosso modo, nos seguintes termos: Mauss teria acompanhado o próprio discurso dos indígenas a respeito da magia em vez de, subtraindo-se ao universo pesquisado, propor uma teoria que a pensasse à luz da racionalidade, e não da afetividade. Dizer que o mana é a explicação da manifestação da magia entre os indígenas significaria reduzir a antropologia à descrição da concepção que o próprio indígena faz de sua realidade, substituindo aquilo que é obscuro em seu pensamento por algo igualmente obscuro no pensamento do etnólogo. Por consequência, o mana era por ele consolidado como conceito da função mágica e não observado em seu valor estrutural. Para Lévi-Strauss, esse valor deve ser visto como algo que expressa a necessidade de estabilizar uma contradição que é intrínseca a qualquer sistema simbólico, tornando possível o seu funcionamento: a estrutura de significantes é o fundamento da apreensão do ser próprio, do outro e ainda dos próprios significantes na mesma medida em que isso que é o fundamento da circulação também circula entre os sujeitos nela implicados. O símbolo zero – por exemplo, na sua modulação em mana – é, assim, "(...) a expressão consciente de uma função semântica, cujo papel é permitir ao pensamento simbólico exercer-se apesar da contradição que lhe é própria." (Lévi-Strauss, 1950/1977, p. 188)

É exatamente esse mesmo tipo de lógica – uma lógica própria à ideia de sistema simbólico – que vemos surgir na leitura lacaniana do Édipo, segundo a qual ele se constitui como uma configuração transcendental articulada por dois significantes específicos: o Nome-do-Pai e o falo. Aqui, a contradição mencionada reverbera no conceito de desejo que, sofrendo a marca do significante, encontra-se irremediavelmente afastado da possibilidade de existir um objeto que pudesse satisfazê-lo. Ele é, assim, o resultado, no corpo, do fracasso da linguagem em refletir uma referência à realidade, de modo que o símbolo fálico representa sua não conformação a qualquer objeto e sua eterna remissão ao desejo do Outro. Nesse registro, do mesmo modo que o mana tornava possível o universo de sentido da magia, o falo e o Nome-do-Pai tornam possível, para Lacan, o universo de sentido do desejo. Assim, ambos representam tanto a existência daquela contradição na ordem simbólica quanto as condições de seu funcionamento. Eles são símbolos da existência do símbolo: o Nome-do-Pai é o nome do fato de haver nome, a metáfora que torna possíveis todas as outras, e o falo é o nome das consequências disso no nível da implicação do corpo no caráter intersubjetivo do desejo. Tal como o símbolo zero (Lévi-Strauss, 1950/1977, p. 189), eles se opõem à ausência de significação, que, no caso, também seria ausência de desejo, sem implicarem, por si mesmos, nenhuma particularidade ou designação diretamente empírica. São símbolos "no estado puro" (Lévi-Strauss, 1950/1977 p. 189): valores puramente formais cuja vinculação ao concreto encontra-se limitada aos reflexos imaginários que fatalmente produzem.

O importante a ser notado agora é o seguinte: à proporção que Lacan vai desenvolvendo a ideia de um furo no Outro – isto é, na estrutura subjetivada –, passa a se tornar possível a formulação de uma ingerência não total do sistema de significantes sobre o sujeito (possibilidade desprovida de sentido em grade lévi-straussiana), estratégia que permite à teoria relativizar as vias do determinismo e retirar-se às armadilhas da hipóstase da estrutura. De fato, "(...) se o Outro não é furado, se é uma bateria completa, a única relação possível do sujeito com a estrutura é a de uma alienação total, de um assujeitamento sem resto (...)." (Žižek, 1988/1991, p. 78)

É importante observar, porém, que tal estratégia não chega à teoria como hipótese ad hoc convidada a resolver, de fora, um impasse cuja origem é interna. Ela é, antes, secretada pela própria lógica significante no esteio das consequências que produz quando o campo em que se trata de pensá-la é um campo psicanalítico.

Isso fica claro quando recobramos as motivações básicas do conceito de Outro. O que conduz Lacan até ele é, antes de tudo, a consideração do modo de funcionamento não apenas de uma linguagem (tanto que o funcionamento do código não o requer), mas da ordem simbólica justaposta à função da fala; mais especificamente, o fato de que a projeção do lugar do Outro institui uma nova dimensão da alteridade que ultrapassa a alteridade imediata do semelhante e que é mais uma figura do inconsciente quando visto não como representação, mas como condição (da ilusão) da representabilidade. Que o ser humano seja capaz de "fingir que está fingindo" é algo que se deve à instituição desse diferencial vis-à-vis à natureza, algo que se intromete na efetividade temporal à medida que implica mecanismos de antecipação e de retrospecção na fundação de uma presença subjetiva na qual se trata sempre da colocação em jogo de uma verdade. O Outro é, assim, o ponto a que remete, necessariamente, o funcionamento da significação. Dadas as premissas assumidas – o significante prevalece sobre o significado, o signo não tem relação de correspondência com o real, uma significação remete a outra significação –, ele se torna uma remissão imprescindível: o significante, por só se definir pelo laço de diferença relativamente aos outros, supõe, em cada ponto singular, o conjunto – incompleto – dos significantes.

O sujeito do inconsciente, aquele que era visto como a contraparte do eu e de seu estofo imaginário, constitui-se alienando-se nesse conjunto. Isso não deixa de causar surpresa quando lembramos que o objetivo de Lacan, ao desdobrar as antinomias do conflito entre determinação e subjetividade atravessando o estruturalismo, era abordar um sujeito verdadeiro, para além da alienação especular. Mas um sujeito desalienado é, simplesmente, inexistente (mais uma contradição em termos), pois a relação a si é sempre uma relação com o Outro. A alienação lhe é coextensiva e não posterior a um movimento no qual um eu previamente dado se perderia na alteridade. O sujeito verdadeiro só não se torna um alvo inatingível porque sua verdade é que sua "natureza" encontra-se definida por esta negação mesma (Sales, 2005). Dito de outro modo, um sujeito não alienado seria o mito de alguém que existiria fora da linguagem, não submetido ao governo do simbólico – isto é, seria alguém a quem faltaria aquilo que, exatamente, define a categoria "sujeito". Enfim, um sujeito não alienado não seria um sujeito, porque a alienação é a própria essência de sua definição.

Ao ser inscrito pelo significante, o sujeito é anulado porque nada em seu ser pode ser reduzido a uma cristalização em matéria de linguagem. Em contrapartida – e é isso o que legitima a dialetização da dimensão da verdade no registro simbólico –, essa inscrição, sem dizer o sujeito, aponta e sugere certa coerência do lugar que ele ocupa como desejo e repetição diante do Outro. Sua representação é equívoca, mas há algo que, a partir dessa equivocidade, se organiza como marca. Isso significa que o fracasso do significante em representar o sujeito produz efeito de estrutura ao gerar seu posicionamento diante do Outro.

Toda a questão reside, então, em perceber que a estrutura, ao ser nomeada Outro à luz dos processos do desejo, não pode ser suposta completa segundo dois níveis de análise:

a) não há nada de discursivo capaz de funcionar como garantia do próprio discurso;

b) nesse conjunto totalizado prevalece uma duplicidade empírico-transcendental.

No tocante ao primeiro ponto (a), vemos que, na teoria lacaniana, o processo metonímico só é barrado por uma coisa: por algo que representa a impossibilidade de ele ser barrado. O significante de uma falta no Outro – S (A barrado) – padece de uma ambiguidade: sendo significante, deveria pertencer ao mesmo nível dos demais, mas, sendo o significante que representa o limite da significância, deve ser, ele mesmo, a circunferência (aberta) que demarca o campo transcendental constituído por todos os outros significantes. Ele encarna o paradoxo da necessidade de simbolizar a existência da simbolização levando-se em conta, ainda, seu caráter metonímico. Um significante, para ser significante do Outro, teria, evidentemente, que estar fora do Outro – só poderia representá-lo a partir de um lugar terceiro. Como só há significante no Outro, um significante do Outro é impossível (não há metalinguagem). Dessa forma, seu movimento também não recebe nome e essa impossibilidade é sua falta (é seu desejo). O Outro é o lugar no qual o sujeito, submetido a seu próprio regime de volatilidade, procura respostas para sua falta e a garantia do dispositivo construído para a ilusão de evitá-la; mas, como não há estrutura da estrutura, o Outro também possui uma falta, uma incapacidade de fundamentação em função da qual não pode prover uma resposta segura e estável. O Nome-do-Pai sendo o significante da inscrição simbólica, o falo se revela sua contrapartida: é o significante de que, apesar de haver inscrição significante, nada em seu nível é capaz de responder por um objeto adequado ao desejo. Lacan explica no Seminário 6 que a expressão "não há Outro do Outro" significa que "não há, no Outro, nenhum significante que possa, em sendo o caso, responder pelo que sou." (Lacan, 1958-1959, p. 309) O fato, discursivo, de não haver, no nível do significante, algo que garantisse a verdade que ele mesmo instaura, modula-se, em termos de sexuação, na inexistência de uma designação para o ser do sujeito. Isso quer dizer que o falo leva para o interior do jogo significante a "(...) impossibilidade de encontrar a sexuação na ordem do ser" (David-Ménard, 2003, p. 162). Ou, como expressa Safatle, ele "(...) é apenas a simbolização de uma negação. Seu conteúdo normativo e positivo é nulo, já que ele não pode dizer nada sobre o objeto empírico adequado ao gozo." (Safatle, 2003, p. 200).

É por isso que Lacan afirma que o significante de uma falta no Outro só é "(...) simbolizável pela inerência de um (-1) no conjunto dos significantes" (Lacan, 1960/1966, p. 819. Positivar a presença do significante de uma falta no Outro corresponderia a eliminar sua função, uma vez que tal operação produziria um significante que completaria o Outro, fornecendo a amarração última da verdade e, consequentemente, designando uma única posição de desejo para todos os sujeitos. Sendo essa amarração impossível devido ao caráter metonímico do desejo e do discurso, a única alternativa lógica que resta para o significante de uma falta no Outro é apresentar-se no Outro como um significante, ele próprio, faltante: presença significante indicadora de sua própria ausência, presença da ausência no cerne do discurso, (-1). Assim, só é possível dizer que todos os significantes representam o sujeito para um único significante1 1 "Quanto a nós, partiremos do que a sigla S(A barrado) articula, por ser antes de mais nada um significante. Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante. Esse significante será, portanto, o significante para o qual todos os outros significantes representam o sujeito; o que quer dizer que, na falta desse significante, todos os outros não representariam nada. Já que nada é representado senão para." (Lacan, 1960/1966, p. 819) na medida em que esse significante único seja o significante da ausência de um significante no Outro para representar o desejo.

É à luz desse mecanismo que podemos, então, realmente identificar a necessidade de inserir um furo na estrutura como momento exato de ultrapassagem do estruturalismo, como o confirmará o trecho que leremos em seguida. Antes de fazê-lo, porém, será necessário especificar o sentido suposto a "ultrapassar o estruturalismo". Em primeiro lugar, pelo seu negativo: não será, naturalmente, a eliminação de uma recorrência ao valor propriamente estruturalista do conceito de estrutura – algo que, aliás, de imediato, corresponderia a um retrocesso em termos epistemológicos, tendo em vista que um pensamento da estrutura é justamente a ferramenta que torna possível uma reflexão sobre o sujeito que se pretende imune às insígnias do substancialismo. Lembremos que, desde sua pesquisa de doutorado, Lacan (1932/1987) é fortemente influenciado pela crítica direcionada por Georges Politzer (1928/1998) à psicologia clássica no sentido de eliminar do discurso teórico qualquer referência a uma suposta substância do sujeito que seria então decorrente do denunciado "mito da vida interior". Mas aqui - cabe bem ressaltar - se Lacan conduz o estruturalismo a um limite em que ele não mais se sustenta, isso não é feito com o resultado de "abandoná-lo", mas com a proposição de articulações teóricas absolutamente devedoras do caminho traçado até então. A indicação de uma espécie de negatividade como resposta à determinação totalizante do significante sobre o sujeito decorre do próprio desdobramento das noções de significante e estrutura. Assim, ultrapassar o estruturalismo não será outra coisa senão a relativização dessa determinação inaugurando o valor teórico de uma estrutura reinterpretada no sentido da incompletude e da inserção da falta no fundamento de seu mecanismo como condição de sua convivência necessária com a preservação do lugar do sujeito.

Dito isso, vejamos como Lacan opõe, agora, o significante de uma falta no Outro exatamente ao "símbolo zero" de Lévi-Strauss:

Observemos então com cuidado o que objeta a conferirmos a nosso significante S(A barrado) o sentido do Mana ou de qualquer de seus congêneres. É que não podemos nos contentar em articulá-lo a partir da miséria do fato social, ainda que ele seja acuado num pretenso fato total. Sem dúvida, Claude Lévi-Strauss, comentando Mauss, quis reconhecer aí o efeito de um símbolo zero. Mas, no nosso caso, parece tratar-se, antes, do significante da falta desse símbolo zero. (Lacan, 1960/1966, p. 821, grifo nosso)

A partir desse momento, tudo se passa como se, aos olhos de Lacan, Lévi-Strauss não tivesse levado suficientemente longe a contradição que o simbólico engendra de sua própria existência, como se o antropólogo não tivesse retirado disso as suas últimas consequências: não basta indicar, para o seu limite, um significante vazio; é preciso entender que seu funcionamento secreta um significante da impossibilidade lógica da existência desse significante último (Zafiropoulos, 2003, p. 238); ou, ainda, em outros termos, é preciso desenvolver as consequências da estrutura até o ponto em que ela mesma se mostra incomensurável com qualquer ideia de completude.

Entendido esse aspecto, o segundo (b) – vale dizer, a duplicidade empírico-transcendental – pode ser desdobrado como questão correlata. A falta no Outro não é apenas o significante da falta no nível transcendental (da estrutura), mas também a presença do desejo em uma figura do Outro que se apresenta à criança como interseção entre corpo e fala. O desejo do sujeito está, diz Lacan,

(...) situado entre o Outro como lugar puro e simples da fala e o Outro na medida em que ele é um ser de carne à mercê do qual nos encontramos quanto à satisfação de nossa demanda. Que esse desejo esteja situado aí é algo que condiciona sua relação com essa simbolização da ação do significante que produz aquilo a que chamamos sujeito (...). (Lacan, 1998, p. 476)

Vemos aqui uma duplicação fundamental entre empírico e transcendental: é, ao mesmo tempo, a estrutura em seu funcionamento puramente simbólico, toda a linguagem à qual qualquer fala se dirige e também a estrutura tal como incide (e aparece encarnada) na primeira figura da alteridade (a mãe) – na qual a estrutura age segundo as respostas (de presença ou ausência, de sim ou de não) que ela provê enquanto sujeito conforme as configurações particulares de seu próprio desejo.

Assim, a marca do significante no Outro não decorre somente de uma lógica transcendental (tal como visto acima), mas também de um fato que se registra na experiência: também a mãe é um sujeito desejante, também a ela a plenitude é recusada.

Na verdade, essa hibridização, nos desenvolvimentos da noção de Outro, entre lugar transcendental e função de transcendência que secreta, sob os destinos do desejo, um lugar de sujeito, pode ser simplesmente vista como um dos ângulos do desenvolvimento da interseção entre o nível da fala e o da linguagem. Que o Outro já fosse, por sua vez, um sujeito, era, assim, algo imediatamente decorrente desde suas primeiras descrições, e a indicação dessa transcendência na estrutura transcendental talvez, inclusive, baste para nos explicar a efetiva oscilação, na obra de Lacan desse período, entre a afirmação de que o Outro é sujeito e a afirmação oposta, de que ele não o é. Quanto ao primeiro ponto, temos, por exemplo, o seguinte trecho:

É na medida em que o Outro é um sujeito como tal que o sujeito, nesse momento, se instaura e pode se instituir por sua vez como sujeito, que se estabelece nesse momento essa nova relação ao Outro pela qual ele tem, nesse Outro, que se fazer reconhecer como sujeito. Não mais como demanda, não mais como amor, mas como sujeito. (Lacan, 1958-1959, p. 386)

Quanto ao segundo, lemos que "(...) o Outro (...), é essencial mantê-lo como tal. O Outro não é um sujeito, é um lugar para o qual nos esforçamos em transferir o saber do sujeito" (Lacan, 1961-1962, p. 20), de modo que, à luz da análise até aqui desenvolvida, o Outro poderia ser dito sujeito apenas sob o aspecto da transcendência correlativa da submissão à marca do significante, mas não no de constituição de uma posição particular de desejo, como posição repetível diante da estrutura, uma vez que ele próprio é a estrutura.

Somente possuindo, ela mesma, a falta, pode a estrutura ser o lugar de referência para o desejo do sujeito: "É precisamente na medida em que o Outro é marcado pelo significante que o sujeito pode – e só o pode por essa via, por intermédio desse Outro – reconhecer que ele também é marcado pelo significante (...)" (Lacan, 1998, p. 366). Sendo assim, a interferência recíproca entre lugar transcendental e inscrição por meio de um personagem concreto também submetido ao desejo e que se registra no nível imaginário impele, por si mesma, à asserção de que o Outro também é barrado, de que a barra deve compor a estrutura enquanto tal.

A esse propósito, a falta no Outro não é, assim, consequência apenas dos impasses envolvidos em um conceito de sujeito que resiste a desaparecer sob a estrutura, mas da própria interseção entre empírico e transcendental que permeia a reflexão lacaniana; é, sim, uma outra face da junção capital entre fala (como transcendência) e linguagem (como campo transcendental), a respeito da qual jamais seria demasiado insistir quando se trata de ler a obra de Lacan. São, assim, elementos pertinentes ao próprio arcabouço do fenômeno abordado que já providenciam o direcionamento da reconfiguração necessária da ideia de estrutura simbólica.

Os dois níveis de análise (a e b) são, então, dois aspectos de um mesmo problema: que a estrutura tem que ser aberta (ou inconsistente). Sem abdicar de seu lugar suposto ao caráter necessário de uma determinação simbólica, ela deve, ela própria, encontrar-se sujeita à contingência, não possuindo ponto de parada para a garantia de si mesma.

Seria, então, pertinente concluir a partir daí que um plano transcendental continuaria a responder, sozinho, pela natureza do Outro? Nesse ponto, é preciso lembrar novamente que, por vezes, Lacan diz que o Outro é sujeito. Dada sua definição para essa categoria, isso só pode significar uma coisa: que a estrutura, antes ponto de partida transcendental da determinação subjetiva, é agora também, em si mesma, transcendência ou o sair de si no exercício da negação. Se é assim, mais uma vez, o sujeito não é mais totalmente determinado pela estrutura, mas existe um seu movimento, aliás o movimento mesmo que o define, que o conduz a uma relação de negação a negação com a estrutura que, por sua vez, em certo sentido, também se desdobra, por essa própria presença da negação em seu cerne, em função de sujeito. Em última instância, o "Outro faltante" significa, portanto, um dos limites da identificação do sujeito do inconsciente com um funcionamento transcendental2 2 Um outro limite pode ser verificado na natureza irredutível de sua presença corporal (Sales, 2007). , exigindo que sobre a própria estrutura se projete uma função de transcendência.

Vemos assim que a contrapartida do sujeito como negação é a falta no Outro e que a necessidade desta última noção para a dinâmica interna da teoria é que, com ela, o vínculo sujeito/estrutura passa a ser visto como relação de negação a negação, e não mais como um processo de mão única, no qual a determinação partia da estrutura para sobrepujar totalmente o sujeito. Então, o problema que temos em mãos talvez se configure mais ou menos assim:

1- o impasse resultante do estruturalismo (desaparecimento do sujeito) tem no cenário da dialética tal como apresentada por Alexandre Kojève (o sujeito como negação inobjetivável) sua contrapartida;

2- um novo impasse então se apresenta pela presença de um sujeito diluído em sua pura negatividade;

3- seu desenvolvimento necessário exige a apresentação do objeto a na fantasia.

Pensamos ser esse o movimento, constituído de impasses sobre impasses. capaz de iluminar uma observação como a seguinte: "(...)paradoxalmente, porque enquanto sujeito é inobjetivável, apenas pode demarcar-se em posição de objeto; porque é indeterminado, apenas pode determinar-se perdido, porque é insubstancial, apenas pode preencher-se vazio. Como não é, é dito (que não)" (Bairrão, 2003, p. 132). Isso não significa, portanto, que o sujeito deixa de ser negatividade, mas que ele passa a possuir uma positividade (de apresentação da negação) como correlato de sua existência negativa. É nesses termos que pode ser indicada a ultrapassagem do estruturalismo na obra lacaniana; seu início mais efetivo pode ser, então, situado exatamente no Seminário 5, quando Lacan começa a falar de "falta no Outro". Trata-se de um momento de transição que ainda pode ser qualificado de estruturalista – haja vista a abordagem do complexo de Édipo aí encontrada – mas que já anuncia, conforme os termos acima apresentados, a necessidade de relativizar esse referencial.

Recebido em 06/06/2008

Aceito em 03/10/2008

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  • Endereço para correspondência:

    Léa Silveira Sales
    Campus Universitário, Departamento de Ciências Humanas, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000, Lavras-MG, Brasil
    E-mail:
  • 1
    "Quanto a nós, partiremos do que a sigla S(A barrado) articula, por ser antes de mais nada um significante. Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante. Esse significante será, portanto, o significante para o qual todos os outros significantes representam o sujeito; o que quer dizer que, na falta desse significante, todos os outros não representariam nada. Já que nada é representado senão para." (Lacan, 1960/1966, p. 819)
  • 2
    Um outro limite pode ser verificado na natureza irredutível de sua presença corporal (Sales, 2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Aceito
      03 Out 2008
    • Recebido
      06 Jun 2008
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