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O caminho da terra: revisitando a história do MST no Pontal do Paranapanema - SP - desde uma ótica psicopolítica

Los caminos de la tierra: reconstruyendo la memoria política del MST en el Pontal do Paranapanema - São Paulo

Pathways to the land: recovering a political memory of MST - Brazil's landless workers' movement in western São Paulo, Brazil

Resumos

No presente artigo pretendemos recuperar aspectos psicopolíticos da luta pela terra empreendida pelo MST no Pontal do Paranapanema - SP, conhecida região de conflitos fundiários. Este trabalho resulta de uma ampla revisão bibliográfica acerca do tema feita com o intuito de compreender os processos de construção deste movimento social e de resgatar mais do que os fatos históricos vividos por ele. Resgatar essa história contribui para a construção de uma memória coletiva destes homens e mulheres incógnitos; fazê-lo é conceder-lhes voz, visibilidade, é reconhecê-los e reconhecê-las como sujeitos políticos, mesmo que aqui apenas o façamos de maneira indireta a partir de nossos estudos e de outros que contribuíram para visibilizar a luta travada no campo nessa região paulista.

Psicologia dos movimentos sociais; psicologia política; movimentos sociais agrários


En el presente artículo, pretendemos recuperar aspectos psicopolíticos de la lucha del MST por la tierra en la región del Pontal do Paranapanema - SP - Brasil. Esa es una conocida región de conflictos rurales en el Estado de São Paulo. Este trabajo resulta de una amplia revisión bibliográfica acerca del tema con el intuito de comprender los procesos de construcción de este movimiento social y de rescatar los fatos históricos vividos por él y contribuir para que también pues recatar a memoria colectiva de estos hombres y mujeres incógnitos/as; hacerlo es reconocerles como sujetos políticos, aunque de modo indirecto y partiendo de nuestros trabajos y de otros que contribuyen para visibilizar la lucha trabada en el Campo paulista.

Psicología de los movimientos sociales; psicología política; movimientos sociales agrarios


This paper unveils the political psychology of the shapping of a collective memory in the MST - Brazil's Landless Workers' Movement in the western corner of the state of Sao Paulo in Brazil, a region named Pontal do Paranapanema, known for its conflicts between landlords/large estate owners and landless rural workers. The paper results from an extensive review on the subject and highlights the underlying dinamics in the process of shapping/building the Movement. Not only does the paper/article tell one this history, but also enhances the voice of those men and women, so as to identify them as relevant political actors.

Psychology of Social Movements; political psychology; agrarian social movements


ARTIGOS

O caminho da terra: revisitando a história do MST no Pontal do Paranapanema – SP – desde uma ótica psicopolítica

Pathways to the land: recovering a political memory of MST - Brazil's landless workers' movement in western São Paulo, Brazil

Los caminos de la tierra: reconstruyendo la memoria política del MST en el Pontal do Paranapanema – São Paulo

Alessandro Soares da Silva

Doutor em Psicologia Social, Professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alessandro Soares da Silva Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades Av. Arlindo Bettio, 1000, Ermelino Matarazzo, CEP 03828-000, São Paulo-SP, Brasil E-mail: alessoares@usp.br

RESUMO

No presente artigo pretendemos recuperar aspectos psicopolíticos da luta pela terra empreendida pelo MST no Pontal do Paranapanema – SP, conhecida região de conflitos fundiários. Este trabalho resulta de uma ampla revisão bibliográfica acerca do tema feita com o intuito de compreender os processos de construção deste movimento social e de resgatar mais do que os fatos históricos vividos por ele. Resgatar essa história contribui para a construção de uma memória coletiva destes homens e mulheres incógnitos; fazê-lo é conceder-lhes voz, visibilidade, é reconhecê-los e reconhecê-las como sujeitos políticos, mesmo que aqui apenas o façamos de maneira indireta a partir de nossos estudos e de outros que contribuíram para visibilizar a luta travada no campo nessa região paulista.

Palavras-chave: Psicologia dos movimentos sociais; psicologia política; movimentos sociais agrários.

ABSTRACT

This paper unveils the political psychology of the shapping of a collective memory in the MST - Brazil's Landless Workers' Movement in the western corner of the state of Sao Paulo in Brazil, a region named Pontal do Paranapanema, known for its conflicts between landlords/large estate owners and landless rural workers. The paper results from an extensive review on the subject and highlights the underlying dinamics in the process of shapping/building the Movement. Not only does the paper/article tell one this history, but also enhances the voice of those men and women, so as to identify them as relevant political actors.

Key words: Psychology of Social Movements; political psychology; agrarian social movements.

RESUMEN

En el presente artículo, pretendemos recuperar aspectos psicopolíticos de la lucha del MST por la tierra en la región del Pontal do Paranapanema – SP – Brasil. Esa es una conocida región de conflictos rurales en el Estado de São Paulo. Este trabajo resulta de una amplia revisión bibliográfica acerca del tema con el intuito de comprender los procesos de construcción de este movimiento social y de rescatar los fatos históricos vividos por él y contribuir para que también pues recatar a memoria colectiva de estos hombres y mujeres incógnitos/as; hacerlo es reconocerles como sujetos políticos, aunque de modo indirecto y partiendo de nuestros trabajos y de otros que contribuyen para visibilizar la lucha trabada en el Campo paulista.

Palabras-clave: Psicología de los movimientos sociales; psicología política; movimientos sociales agrarios.

Pela não realização da reforma agrária, a ocupação tem se tornado uma importante forma de acesso à terra. (Bernardo Mançano Fernandes, 2000:281)

Pensar os movimentos sociais e suas histórias é contribuir para que estes sejam legitimamente reconhecidos enquanto sujeitos sociais e sujeitos políticos. Neste contexto, é nossa intenção pensá-los a partir da Psicologia Política1 1 A Psicologia Política é uma área transdisciplinar e encontra suas raízes em autores como Gustave Le Bon (1897). Não se trata de um campo teórico, mas de um campo temático que busca entender as relações entre os elementos psicológicos e políticos da produção social de indivíduos e coletivos. Já que não há espaço nesse texto para considerar mais do que essa nota permite, recomenda-se aos/as interessados/as no campo a leitura de autores como Dorna (2004) e Sabucedo (1999). e do conceito de memória coletiva e (por que não dizer?) política, de modo especial na perspectiva que apontam autores como Soraia Ansara (2001, 2008). Vale ressaltar que este trabalho não é especificamente um trabalho de memória, mas uma revisão histórica de trabalhos que julgamos portarem um corte psicopolítico e que não necessariamente foram produzidos na Psicologia. Por esse motivo, procuraremos efetuar nossa leitura histórica a partir da relação existente entre os elementos psicológicos e políticos presentes nas questões agrárias. Disso decorre o uso de conceitos como memória (coletiva) política, pois uma revisão histórica constitui uma importante contribuição para a construção do mosaico da memória política daqueles e daquelas que têm lutado por reconhecimento e cidadania no campo. Como aponta Ansara, (2001) a memória coletiva "(...) não é a somatória das memórias individuais". A produção da memória coletiva é algo mais complexo que resulta de processos psicossociais forjados mediante a interação social e de processos de socialização e ressocialização. Como ressalta essa autora,

Um mesmo evento ou um fato comum a um determinado grupo permite diferentes reconstituições, diferentes lembranças, pois a memória é reconstituição psíquica que leva a uma representação seletiva do passado, que não é só do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num grupo e num contexto social e político (p. 15).

Vale dizermos aqui que em nenhum momento entendemos história e memória como conceitos sinônimos, mas sim, como conceitos que se relacionam dialeticamente. História refere-se aos fatos ocorridos, vividos individual e coletivamente, narrados, descritos, registrados e tendentes a cristalizar-se no processo de sua construção. Já a memória (social e coletiva) é um conceito que diz respeito ao permanente processo de reconstrução e ressignificação dos fatos experienciados por um sujeito individual ou coletivo. Lembramos que o conceito de memória coletiva foi desenvolvido, inicialmente, por Maurice Halbwachs, partindo das ideias de Emilie Durkheim. Segundo este autor, para a análise da memória, faz-se necessária a localização das lembranças referentes aos fatos experimentados. Todavia, é impossível conceber o problema da evocação e da localização das lembranças se não aplicarmos os quadros sociais reais que servem de ponto de referência nesta reconstrução, aos quais chamamos memória (Ansara, 2001; 2008) e que subsidiarão uma revisão que possibilite a (re)construção dos elementos memórias da luta pela terra no Pontal do Paranapanema - SP.

Contrariamente ao que muitas vezes se pode notar em afirmações cotidianas, a memória coletiva não é a leitura cristalizada de experiências do passado ou mesmo as tradições que se tornam elementos inamovíveis. Entendemos a memória coletiva como um processo psicossocial dinâmico e em permanente movimento, formando múltiplos mosaicos, que são construídos segundo os diversos contextos sociais, políticos e culturais nos quais indivíduos e grupos estão inseridos. Neste sentido, Ansara (2001) ressalta que, "Do ponto de vista psicossocial, a memória coletiva aparece como um 'mosaico', onde o significado que cada um atribui ao mesmo evento tem uma relação íntima com a identificação social" (p. 34). Neste trabalho procuraremos retomar elementos históricos que nos permitam reconstruir esses múltiplos mosaicos acerca das lutas políticas no meio agrário que resultaram no surgimento do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra.

Contextualizando a luta pela terra em São Paulo

Fernandes (1996, 2000) e Silva (2002a) afirmam que a modernização do campo era um objetivo claro para os governos militares. Diversas foram as iniciativas que procuraram implantar uma lógica agroindustrial no campo, tornando a agricultura familiar uma realidade desvantajosa e incômoda, um elemento a ser ao menos contido em prol da efetivação do projeto econômico desenhado no período da ditadura, entretanto esse desenho tem suas raízes no avanço da industrialização e do crescimento urbano ocorrido a partir da década de 1950.

Nesse cenário, a agricultura paulista tem sua estrutura produtiva remodelada. Com o aumento do crédito agrícola fornecido pelo Sistema Nacional de Crédito Rural, observa-se na década de 1960 a modernização de certos setores agrícolas. Com a modernização tecnológica, esses setores da agricultura paulista passaram a depender menos das variáveis naturais e cada vez mais dos insumos produzidos pelas agroindústrias. Essa transformação resultou no crescimento das relações de trabalho assalariado no campo. Um exemplo cristalino da evolução desse processo é a expansão da cultura canavieira para a produção de açúcar e álcool combustível. Os subsídios fornecidos pela esfera federal aos usineiros, assim como aos seus fornecedores mais vultosos, não permitiam aos pequenos produtores que se utilizavam do crédito rural geral competir com eles e muito menos modernizarem-se para garantir sua permanência no campo.

Graças a essa política agrícola e ao desenvolvimento econômico ocorrido entre os anos 1970 e 1980, durante o regime militar, em grande parte os pequenos estabelecimentos rurais acabaram sendo "adquiridos" pelos usineiros de cana-de-açúcar ou pelos grandes fornecedores. Essa política gerou o aumento da concentração fundiária em São Paulo, o êxodo rural e o aumento dos índices de trabalho assalariado. Os trabalhadores rurais que se mantiveram no campo ou acabaram como pequenos fornecedores das usinas e, com isso, totalmente dependentes delas, ou tornaram-se parceiros ou até mesmo arrendaram suas terras aos usineiros ou a seus fornecedores (Thomaz Jr., 1988, p. 213-14).

Na década de 1980, como resultado do êxodo rural acentuado na década de 1970, começa uma onda de ocupações de terras públicas por boias-frias, posseiros, rendeiros, parceiros e arrendatários meeiros - enfim, por uma gama de "sem-terras" que, após terem sofrido um processo de empobrecimento, passam a reforçar as fileiras dos movimentos sociais agrários, até então sufocados pela repressão do governo militar. Com a abertura do regime militar durante o governo do general João Baptista Figueiredo, a qual se materializava com o controverso processo de anistia (Ansara, 2008) e com as primeiras eleições diretas para governadores desde o golpe de 1964 realizadas em 1982, estão dadas as condições para que os movimentos sociais se estabeleçam como uma força política no cenário nacional. Nesse processo, é conduzido ao Palácio dos Bandeirantes Franco Montoro, candidato do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

Em campanha, Montoro comprometeu-se a instalar em terras públicas assentamentos. Na verdade, assentamentos planejados foram poucos. A maioria dos assentamentos implantados entre 1980 e 1985 resultou das ocupações que forçaram o governo estadual a regularizar a situação de seus ocupantes. Entre os anos de 1980 e 1985 foram efetivados 15 assentamentos distribuídos em 25.184,88 hectares, os quais contemplaram a 1.240 famílias.

Na segunda metade dos anos de 1980, a maior parte dos assentamentos se deu em terras devolutas, de terceiros ou ainda em terras griladas. Nesse período, as conquistas foram feitas por trabalhadores expropriados e expulsos de suas terras, que migraram para a cidade mas continuaram a trabalhar na terra como cortadores de cana ou na colheita da laranja. Ainda que trabalhassem como assalariados, esses trabalhadores e trabalhadoras mantiveram seu vínculo com a terra. Tal vínculo impossibilitou que muitos desses sujeitos se proletarizassem de um modo efetivo. Nesse sentido, ao manterem seus vínculos com o modus vivendi próprio do campo, acabaram por constituir-se como subproletários que não assimilam completamente a lógica urbana nem se desfazem da lógica campesina. Longe da terra, aqueles que foram para a cidade tiveram de trabalhar onde encontrassem emprego e essas experiências vividas na urbe proporcionou-lhes um capital psicopolítico-cultural para lutarem pelo direito de regressar ao campo.

Elementos históricos e políticos do surgimento do MST em São Paulo

Em São Paulo, o MST segue no trilho das lutas iniciadas a sete de setembro de 1979 nas glebas Macali e Brilhante no município de Ronda Alta – RS (Fernandes, 1996, 2000; Silva, 2002a). O marco inicial da luta dos/as trabalhadores/as rurais no Estado de São Paulo foi a luta dos posseiros da fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência para garantir sua permanência na terra (Fernandes, 1985).

Indica-se essa luta em particular não apenas por ser historicamente a mais antiga desde o golpe militar de 1964, mas também por sua relevância no processo de organização do movimento no Estado Paulista. A luta dos posseiros da Primavera começa na década de 1920, quando chegam à região como migrantes do Nordeste e das Minas Gerais ou como imigrantes da Itália devido ao "(...) processo de expropriação em seus lugares de origem e ali se fixaram com a esperança de adquirir a posse da terra" (Fernandes, 1996:89). Todavia, essa população teve suas esperanças roubadas, pois acabou vítima das grilagens de terras devolutas do Oeste Paulista.

A fazenda Primavera é uma das tantas que se constituíram na região mediante a grilagem. O grileiro, além de tomar-lhes as terras mediante a apresentação de documentação falsificada, explorava-os cobrando altos percentuais dos colonos para que pudessem permanecer na terra. A situação de exclusão e expropriação dos posseiros da Primavera agravou-se muito. Mais que pagar altas taxa para obterem o "direito" de permanecer na terra, começaram a sofrer os mais diversos tipos de violência. Tiveram suas plantações invadidas e destruídas pelo gado, suas casas queimadas, suas vidas controladas e ameaçadas por jagunços. Dessa última tática resultou a morte de um trabalhador. Como aponta José Eli da Veiga (1990, p. 43),

Os Trabalhadores tinham que gastar mais energia para se defender do terrorismo desencadeado pelos grileiros desapropriados do que no trabalho de seus lotes. O ódio do grupinho de espertalhões que foi atingido pelas desapropriações era tão grande que eles chegaram a envenenar a água dos assentados.

Cansados dessa situação de quase escravidão, os posseiros da Primavera ajuntaram na justiça um processo contra a manutenção das mais de 5.000 cabeças de gado que destruíam suas lavouras. Com o apoio da Igreja de Andradina, por meio da Comissão de Justiça e Paz e da posterior criação da Comissão Pastoral da Terra a nível local, e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo, os posseiros da Primavera começaram a se organizar até que progressivamente todos estavam engajados na luta pela terra. A vitória desses trabalhadores rurais se deu a 8 de julho de 1980, quando o então Presidente João Baptista Figueiredo assinou o decreto de desapropriação, declarando os 9.385 hectares da fazenda desapropriados para fins de reforma agrária. Em 1981 foram entregues às 264 famílias de posseiros da Primavera os primeiros títulos de propriedade. Os 1.200 hectares de terra que sobraram depois de feito o loteamento da Primavera entre as famílias de posseiros foram usados em 1982 no assentamento de 13 famílias de trabalhadores boia-frias que se denominavam Trabalhadores Sem-Terra, e aconteceu com apoio da CPT. Assim, as lutas dos posseiros e boias-frias da Primavera abrem caminho para que comece a se formar, em Andradina e região, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do Oeste do Estado de São Paulo.

A ampliação desse movimento proporcionou a geração de espaços de formação política para os trabalhadores rurais. Um bom exemplo da relevância e da abrangência de tais espaços de socialização política proporcionados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Oeste do Estado de São Paulo em parceria com a CPT foi o encontro realizado em 1980 no salão paroquial de Andradina, o qual reuniu mais de 1.200 trabalhadores rurais de 34 municípios.

O campo passou por mudanças de ordem capitalista implementadas pelo regime militar e por momentos e movimentos de resistência a elas. Estão registrados, no período que vai de 1964 até 1981, 128 conflitos pela terra no Estado de São Paulo (Fernandes, 1996). As lutas paulistas concentram-se naquelas empreendidas pelos posseiros contra a grilagem2 2 Para Monbeig: "Os falsários deram provas de imaginação e habilidades diabólicas: buscaram folhas de papel timbrado com as armas imperiais, imitaram escritas fora de uso, descolaram velhos selos, amarelaram propositadamente os seus documentos, arrancaram páginas dos registros dos tabeliães. Implantavam-se à pressa cafeeiros de vinte ou trinta anos nas clareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casa velhas, que eram guarnecidas com móveis antigos, para criar um ambiente adequado e simular uma antiga ocupação do solo. E, por fim, era o assassinato uma solução levada em conta" (Monbeig, 1984, p .144-45). ; pelos atingidos por inundações no processo de construção de barragens; por trabalhadores assalariados e trabalhadores sem terra. Assim, a luta do MST em São Paulo está fragmentada em diversos eixos, em distintas situações de privação relativa (Gurr, 1970) vividas pelo homem rural, fato que a torna mais complexa. Essa condição também mostra a importância de se revisar a história desse movimento com vistas a uma permanente ressignificação de sua memória política.

Essa fragmentação, existente desde sua origem, aponta para um mosaico memorial que tende a impossibilitar uma visão unitária do movimento exatamente porque, na realidade, o MST se constitui de múltiplos movimentos sob uma única bandeira. Tal pluralidade interna faz necessário o reconhecimento de muitas fontes e formas memoriais, afastando, assim, a possibilidade de uma memória oficial de corte único. Essas fragmentações derivadas de múltiplas formas de privação relativa apontam, sim, para uma luta comum em torno da permanência/regresso à terra, porém essa meta de ação coletiva comum traz consigo lutas internas por seu reconhecimento e significação, o que leva o MST a se constituir como um movimento social em rede, como já temos apontado em outras ocasiões (Silva, 2003; 2007).

A experiência da luta dos posseiros da fazenda Primavera motivou outras ações coletivas em São Paulo, as quais geraram muitos movimentos regionais que se articulariam e viriam a compor o MST. Além da luta dos posseiros da Fazenda Primavera, que já estavam na terra e pugnavam pelo direito de nela permanecer, e da do Movimento dos Sem Terra do Oeste do Estado de São Paulo, destacam-se outras lutas. Em particular, destacamos a de meeiros e arrendatários pela fazenda Pirituba no município de Itapeva e o Movimento dos Sem-Terra de Sumaré, composto por trabalhadores que foram expropriados e espoliados e acabaram migrando para a cidade em busca de condições de sobrevivência (Andrade, 1998).

Nesse artigo, atentaremos para as lutas contra os grileiros travadas na região do Pontal do Paranapanema pelos posseiros, boia-frias e desempregados das construções de barragens.

A ocupação do Pontal do Paranapanema: uma história de grilos e violência

O início da ocupação da Alta Sorocabana, região geográfica onde se localiza o Pontal do Paranapanema, e a posterior formação das fazendas na região, deveram-se à presença de frentes pioneiras advindas das Minas Gerais em fins do século XIX (Martins, 1972). No século XX, o processo de ocupação e formação das fazendas foi incrementado pela chegada de migrantes vindos do Nordeste Brasileiro e das regiões fronteiriças do Paraná e Mato Grosso do sul. Em obra de 1923, Amador Cobra lembra que até a chegada das frentes pioneiras as tribos indígenas3 3 Segundo Leite (1981), a populações indígenas ficaram comprimidas entre as frentes pioneiras vindas do leste e oeste do Paraná. Ao verem suas terras invadidas e ao serem atacados pelos pioneiros que lhes comprimiam, eles reagiram. Leite escreve que não havia outra opção a não ser "(...) atacar, vez por outra, ao pôr-do-sol, ou ao amanhecer, as palhoças instaladas fortuitamente no seio da floresta" (p. 44). Todavia, para Cobra (1923) "Em um recanto do sertão paulista" a reação do colonizador branco ao ataque das populações indígenas era extremamente violenta e brutal. Cobra relata que os brancos "(...) encontrando-se com as índias, a umas aprisionam, a outras matam, bem como aos indiozinhos, aos quais conta-se que chegavam a levantar do chão ou da cama, atirá-los para o ar e espetá-los em pontas de faca; outras vezes, tomá-los pelos pés e dar com as cabecinhas nos paus, partindo-as. As índias grávidas rasgavam-lhes o ventre e depois de finda a carnificina amontoavam os cadáveres sobre os quais lançavam fogo bem como aos ranchos" (p. 91). O autor ainda destaca que "(...) a luta é desigual. O branco usa armas de fogo que o inimigo não possui. O combate não dura mais de meia hora; as balas dizimam os que vêm de arco e flecha para a luta. Cada índio que cai é socorrido por outro que o toma para o retirar, vivo ou morto, da refrega e assim são dois que deixam a linha de combate" (p.141). "(...) estiveram senhoras de toda a extensão da bacia do rio do Peixe até ao fim do século dezenove e princípio do século vinte, quando desapareceram, exterminadas" (Cobra, 1923, p. 135). A respeito do processo de ocupação e formação das fazendas na região da Alta Sorocabana, Armando Antonio (1990) afirma que foram utilizados, por quem estivesse interessado em apossar-se de terras na região, diversos meios para garantir a legitimidade do grilo:

Nas apropriações indevidas, os grileiros para legitimarem as suas posses tiveram que derrubar a mata e cultivar as terras, tornando-as produtivas, e o fizeram trazendo pessoas (...) tais como: familiares, amigos e interessados. Num segundo momento, já com muitos casos de grilagem, trouxeram migrantes, geralmente do nordeste brasileiro, contratados como arrendatários. (Antonio, 1990, p. 12)

Falar de terras na região do Pontal do Paranapanema e não falar de grilagem constituiria uma grande lacuna da parte de qualquer pesquisador que viesse a estudar a questão fundiária nessa região, pois para Fernandes (1996), "A grilagem das terras no Pontal é de conhecimento geral e faz parte da história e do imaginário social de toda a população da região" (p. 183).

Desde que se tem registro, já são 159 anos de grilagem no Pontal. A Lei de Terras de 1850 (Lei n.º 601), ao possibilitar que a legitimação das terras ocupadas antes de 1850 fosse efetuada até o ano de 1856, ao proibir que, a partir do ano da publicação da Lei, se ocupassem terras devolutas e, por fim, ao determinar que as terras não tivessem sido registradas e legitimadas seriam consideradas devolutas, pertencentes ao patrimônio público, ela acaba por incentivar a grilagem de vastas extensões de terra por aqueles que fossem dados a maracutaias.

Dois casos típicos de grilagem que remontam ao período da Lei de Terras e se estenderam até nossos dias são os casos das fazendas Pirapó - Santo Anastácio e Rio do Peixe (ou Boa Esperança do Aguapeí). No ano de 1856, mês de maio, Antônio José Gouveia registra na paróquia de São João Batista do Rio Verde (hoje município de Itaporanga - SP) a gleba de Pirapó-Santo Anastácio, na qual afirma residir desde 1848. A gleba registrada conta com 583.100 hectares. Concomitantemente a isso se dá o registro da gleba do Rio do Peixe na paróquia da vila de Botucatu (atual município de Botucatu – SP). O registro é feito por José Teodoro de Sousa, que alega habitar aquelas terras desde 1847. A Gleba do Rio do Peixe é registrada com uma área de 872.200 ha. Não obstante, os referidos grileiros efetuaram apenas o registro e nunca providenciaram o título de legitimação, como rezava a Lei n.º 601 de 1850.

Durante as tentativas de legitimação (posteriores a 01856, prazo limite imposto na Lei de Terras) feitas por esses grileiros e por aqueles que lhes sucederam no comando das terras ficou claramente evidenciado que as terras das fazendas Pirapó (Santo Anastácio) e Rio do Peixe tinham sua origem no grilo e por isso os pedidos de legitimação foram todos negados total ou parcialmente; entretanto, como as terras permaneceram por longa data devolutas, imenso foi o número de novos grileiros a se apresentarem como "legítimos proprietários" das terras da região. De acordo com Fernandes,

(...) na década de 40 o governador Fernando Costa cria as reservas florestais do Pontal: Reserva Lagoa São Paulo, Reserva do Pontal do Paranapanema e Reserva Morro do Diabo, com o objetivo de retomar as terras e proteger a floresta. A área das três Reservas correspondia a 297.400 hectares. Contudo, este ato não teve efeito. Somente a Reserva Morro do Diabo não foi devastada pelos grileiros do pontal (Fernandes, 1996, p. 108)

Mas os latifundiários opuseram-se ao decreto do governador e aos laudos da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário de São Paulo que criavam as reserva e que declaravam "(...) nula e falsa a documentação do imóvel conhecido por Fazenda Pirapó-Santo Anastácio, constituindo um grande 'grilo' da Alta Sorocabana, irmão xenófago do 'grilo' Boa Esperança do Aguapeí, existente na Alta Paulista" (Laudo da PPISP citado por Borges, 1996, p. 60). Como observa Borges (1996), os "latigrileiros" (expressão corrente com a qual são nomeados os pseudoproprietários de grandes latifúndios grilados (Veiga, 1990; Silva, 2002)) fizeram-se "donos da lei", tomaram mão do machado e do fogo e colocaram abaixo cerca de 8 alqueires por dia. Entre os idos de 1950 e 1978 as reservas florestais do Pontal do Paranapanema já haviam sido devastadas em grande quantidade, restando apenas uma pequena área da reserva Morro do Diabo. Para garantir a segurança de seus bens, aos "latigrilos" importava apenas derrubar as árvores, pois elas poderiam posteriormente ser comercializadas sem preocupação, graças à inexistência de restrições legais.

A situação que imperava naquele canto sem dono do País, ou de onde os legítimos donos já haviam sido expulsos ou trucidados, era de constantes disputas entre os grileiros e entre estes e os pequenos posseiros. Se antes as vítimas eram os indígenas, agora era a vez dos pequenos posseiros, pois

Houve conflitos entre os próprios grileiros, em contenda pelas mesmas terras, e não era raro os grandes posseiros terem a seu soldo grupos de jagunços armados visando a expulsão de pequenos ocupantes. Houve época que 'cada sitiante tornar-se-ia, com carabina em punho, o defensor externo da (sua) cobiçada gleba' (Leite, 1981, p. 46).

E num trecho seguinte continua dizendo que "(...) não eram raros os cadáveres vistos boiando em águas de riachos e rios do sertão sorocabano, vítimas de tocaias em picadões recém-abertos" (Leite, 1981, p. 56).

Na década de 1950, Hernani Donato escreveu o romance Chão Bruto. A conquista do Extremo Sudoeste Paulista, no qual narra o processo de ocupação do Pontal do Paranapanema e a corrida pela posse dessas terras. Nele estão descritas as estratégias adotadas pelos fazendeiros para lograr a expulsão de índios e posseiros, dos antigos moradores da região:

A gente subia procurando boi e a que descia em arribada às boiadas começou a falar daquelas terras. E havia também a geografia, os mapas mostrando ao governo e aos olhos dos homens de negócios, aos ambiciosos e aos preocupados, que a terra não havia sido partilhada no papel. Essa gente alicerçou a sua cobiça com os papéis da lei, tapou os rasgões da consciência com os carimbos e os selos da lei, encheu as carteiras com as notas, as cartucheiras com balas. E correu para o Pontal. Isso foi fins de 1906 e princípios de 1907 (Donato, s/d, p. 11).

Donato ressalta que os fazendeiros portavam-se como verdadeiros "donos da lei"; denuncia sua violência e a brutalidade "verbalizada" por meio das "palavras" da carabina, das balas e do fogo utilizados por eles nas ações de despejo. Lê-se o seguinte: "Num dia qualquer blandiciosa dos que tinham a lei no bolso do casaco e os tiros dos que tinham a truculência na mira das carabinas, expulsaram o sossego antigo para a outra banda do Rio Paraná" (p. 21).

O marco das mobilizações dos trabalhadores rurais no pontal foi a desapropriação da Fazenda Rebojo durante o governo de João Goulart, na década de 1960; contudo esse movimento não era por reforma agrária, e sim, por terras, pois era uma luta local de famílias contra um grileiro, e não contra o sistema de distribuição de terras. A vida de desterrados vivida por aquela gente que a cada dois ou três anos era obrigada a abandonar as terras que ou desmataram ou limparam, que tornaram produtivas a duríssimas penas, e buscar outras paragens, era marcada pela escola da dor. Muitas vezes deixavam aquelas terras prontas para a boiada dos senhores do grilo, deixavam para trás seus sonhos e sua esperança. Iam-se ainda mais depauperados do que quando chegaram.

Por outro lado, a dor e angústia que roubava a esperança de muitos não era vitoriosa para todos. Entre eles houve quem não apenas estivesse insatisfeito com aquela vida, mas estivesse indignado a ponto de reagir, de dizer um basta e de iniciar o processo de mobilização e resistência. Ainda que os pequenos posseiros fossem expulsos pelos "latigrileiros", eles regressavam para continuar a luta, num primeiro movimento como trabalhadores da fazenda e num segundo como "posseiros, constituindo as glebas e dando um novo teor ao processo de lutas. Resistiram e se acomodaram – velhos sujeitos sob uma nova condição" (Borges, 1996, p. 66). Exemplos desse "novo teor" da "resistência e acomodação" desses "velhos sujeitos sob uma nova condição" são a luta iniciada em fins da década de 1960 na gleba Santa Rita e os movimentos que se seguiram ao movimento da gleba Santa Rita e que se estendem durante as duas décadas seguintes. São eles os movimentos das glebas Ribeirão Bonito, XV de Novembro e São Bento, entre outros (Barbosa (1990); Fernandes (1996); Leite (1981).

Nossas investigações mostram claramente que o quadro de concentração fundiária e as gritantes desigualdades sociais, decorrentes do próprio processo de ocupação do Pontal do Paranapanema, são as principais causas da manutenção dos conflitos existentes na região. Dessa feita, a história do Pontal confunde-se com a história da opressão e exploração do trabalhador.

Durante as décadas de 1970 e 1980 tem-se um progressivo movimento reivindicatório por terra no Pontal. Posseiros e sem terras são os atores sociais dessa cena. Borges (1996) assinala a esse respeito que

As grandes propriedades foram sendo ocupadas evidenciando um processo histórico que não se deu linearmente, pelo contrário, apresentou conflitos constantes que tiveram a sua fundamentação no próprio processo desencadeado pela ocupação das terras na região (p. 66).

Essa revisão histórica também nos permite observar o peso da violência e da repressão que marcam as memórias desses sujeitos que contribuíram para a realização das diversas pesquisas realizadas no Pontal. Esses trabalhos revelam os traumas causados pela luta no campo, uma luta política e por sobrevivência que organiza a vida cotidiana desses atores.

O poder da mídia

A retomada dos estudos realizados sobre o Pontal mostra-se valiosa para ampliar a compreensão dos processos de ocupação e de resistência dos trabalhadores rurais da região. Em casos como os das glebas Ribeirão Bonito e Santa Rita foram mais de 20 anos de luta contra os donos do capital e pretensos donos da lei. Esses sujeitos lutaram contra a manipulação da informação a respeito da luta do trabalhador e contra as investidas dos grandes empresários rurais (Capelato, 1980). Exemplo disso é a análise de Borges (1969) da atuação da mídia na manipulação as informações em prol dos latifundiários. Em sua análise o autor observa:

No artigo Posseiros ou Invasores, publicado no ano de 1981, percebemos uma reação do Jornal O Estado de São Paulo, contrária às articulações dos movimentos sociais de luta pela terra do país. Nesse artigo discute-se o proselitismo ideológico que "consiste em dar nomes novos a coisas velhas, conotar positivamente um conceito antes considerado de forma pejorativa ou pelo senso comum (ou fazer o inverso, ou definir pessoas, coisas e situações) a partir de uma linguagem que, por si, já desvela o juízo de valor (ideológico) que se pretende transmitir." (O Estado de São Paulo, 20/09/1981). Este artigo, ao criticar a inversão do sentido de determinados termos - no caso, a dos posseiros, que antes, segundo ele, eram considerados meros invasores e hoje tornaram-se os posseiros reais e de direito à terra - formulava a sua crítica à forma como os movimentos de luta pela terra começaram a ser impedidos a partir de fins da década de 70. Ao conquistar um determinado espaço na mídia estes movimentos começaram a demonstrar um novo lado das lutas no campo, isto é, a existência de posseiros e de sem-terra, entre outras categorias, que reivindicavam, além da propriedade da terra, o reconhecimento de sua cidadania. Isto começou a assustar os defensores da concepção de invasor, comumente dada aos trabalhadores rurais que ocupam determinadas áreas (Borges, 1996, p. 71-2)

De modo sistemático a imprensa tem dado aos movimentos sociais o caráter de baderneiros, perturbadores da ordem e do direito e outros qualitativos descabidos. Ao defender o modelo e a propriedade e abrir espaço para os detentores do capital, a imprensa tem buscado formar a opinião pública de modo a garantir que esta não se posicione a favor dos movimentos sociais. A estratégia de qualificar as ações coletivas dos trabalhadores rurais como invasões ao invés de ocupações é um bom exemplo de como a imprensa alia-se ao grande capital, defende a manutenção do conceito de propriedade da forma atual e deforma a luta ao omitir ao público informações importantes.

Em artigo publicado em 25/12/1983, o correspondente do Estadão, Valdir dos Santos, fez o seguinte comentário:

Quais são, na verdade, os proprietários de algumas terras do Pontal do Paranapanema? Esta pergunta deve ficar sem resposta por mais algum tempo: a própria justiça mostra-se indecisa, mas, de qualquer forma, os fazendeiros levaram vantagem, após os casos de invasão de terras em que os agitadores, mais uma vez, tiveram influência.

Fica mais do que evidente que correspondente e periódico entendem que os grileiros são os legítimos donos das terras e os movimentos sociais não passam de um bando de agitadores, baderneiros de plantão. Também fica claro que a justiça indecisa tendia a decidir-se pelos fazendeiros.

Nos anos 1980 o Estado de São Paulo mostrou-se um importante aliado dos grileiros do Pontal na luta destes contra os movimentos sociais e contra o Estado, que tanto na esfera estadual, com Montoro (1982-1985), quanto na federal, com Sarney (1985-1989), buscava garantir a implementação da reforma agrária. O período inicial do governo Sarney, quando se buscava a implementação do Plano Nacional de Reforma Agrária, foi um dos importantes momentos em que a imprensa esteve alinhada aos grileiros, pois nessa ocasião o processo de assentamento de famílias no campo, até então patrocinado pela esfera estadual, passou a ser tocado no âmbito federal. Em outras palavras: durante o governo Montoro foram assentadas famílias em 16 áreas, das quais apenas uma por atuação do Governo Federal, enquanto no período seguinte foram assentadas famílias em 12 áreas, das quais apenas duas tiveram o patrocínio do Governo Estadual administrado por Orestes Quércia (PMDB).

A Imprensa e os latifundiários ainda buscavam desqualificar as tentativas de implementar a reforma agrária na região. Em diversos momentos eles referiam-se aos assentamentos populares dirigidos pelo Estado como experiências malsucedidas, que resultaram em fracasso. Outras vezes buscavam desqualificar os órgãos que estavam à frente destas iniciativas. Para os fazendeiros, o governo era um dos agitadores da desordem estabelecida (Borges, 1996:84). Parece haver uma espécie de conluio entre a oligarquia e a imprensa para garantir o fracasso das ações coletivas empreendidas pelos trabalhadores rurais, que até então viviam sob a tutela dos grileiros e dos esforços do Estado para diminuir a tensão existente na região ao promover algumas desapropriações de terras.

De acordo com Antonio (1990), os latifundiários do Pontal, na tentativa de garantir que a população ficasse a seu favor e de pressionar o Estado a retroceder nas suas ações pró-reforma agrária, lançaram mão de panfletos anônimos. Num deles, acampados e assentados eram qualificados pelos latifundiários, que viam suas terras sob a mira dos movimentos sociais e do Estado, como "(...) um grupo de marginais, homicidas, maconheiros e até ladrões de gado"4 4 Trecho do panfleto A aventura do Pontal, s/d, s/f, encontra-se anexado à tese de doutorado de Antônio, 1990. . Para eles, era esse tipo de gente que assumira a liderança e era beneficiária "(...) da chamada implementação agrícola, na qual uma enorme fortuna drenada dos cofres públicos está sendo consumida sem a menor esperança de sucesso ou retorno". Nesses panfletos, as ações do Estado eram caracterizadas como puramente eleitoreiras e ilegais, que apenas vinham vitimar a eles, latifundiários, bons cumpridores da ordem e verdadeiros defensores da real finalidade rural: "Para demonstrar a infidelidade inicial, de uma atitude atabalhoada e resolvida no afogadilho da ambição política, em busca de propósitos incompatíveis com a grande finalidade rural, tomamos como exemplo, o descalabro e a precipitação ILEGAL feita pelo governo do Estado de São Paulo no Pontal do Paranapanema (município de Teodoro Sampaio na já famigerada Gleba XV de Novembro". Na mídia local encontram-se afirmações como as veiculadas no panfleto. Em trecho de artigo publicado em 15/06/1984 no jornal O Imparcial lê-se que "(...) as razões que levaram ao decreto de Montoro não são reais, mas apenas de cunho político, pressionado pelas lideranças de esquerda radicais que dão apoio ao atual governo do Estado".

Uma atenta análise dos discursos dos fazendeiros veiculados pela mídia nos anos 1980 e 1990 ou em seus panfletos, e de documentações das entidades que os representam - como, por exemplo, o Sindicato Patronal Rural - revela um continuum entre eles e os discursos anticomunistas, comuns nas décadas de 1960 e 1970. A permanência de discursos desse tipo na pauta social do Pontal pode ser explicada pela identificação feita pelos fazendeiros entre os comunistas e os membros dos movimentos sociais que emergiam naquele momento. Estes, como os comunistas, eram considerados "como as esquerdas radicais, os extremistas, subversivos e agressores da propriedade privada" (Borges, 1996, p. 87).

O poder judiciário também é denunciado como aliado dos fazendeiros da região. A pesquisa de Borges (1996), por exemplo, demonstra em diversos momentos como a ação da Justiça auxiliou, e ainda auxilia, na manutenção das tensões na região. Nós mesmos acompanhamos a atuação do juiz de Teodoro Sampaio em relação ao julgamento dos conflitos de terra na região e de algumas lideranças locais. A ação do juiz Átis de Araújo Oliveira nem sempre condizia com as atitudes esperadas de um magistrado, mas com aquelas próprias de outro advogado de acusação. Um caso que merece nota é o da ordem dada pelo juiz ao capitão comandante da PM de Botucatu de despejar imediatamente e a qualquer custo as famílias acampadas em áreas na região. O caso é sui generis, porque, além da intransigência do juiz, o Capitão negou-se a cumprir a ordem sem antes efetuar todas as negociações possíveis. Enquanto o então governador Covas (PSDB) apoiou formalmente a decisão do Capitão, o juiz abriu uma ação contra ele.

Conquanto tenha havido algumas decisões favoráveis aos agricultores sem terra, a grande e absoluta maioria delas vinha em socorro dos fazendeiros locais. Pertas e Weltmeyer (2001), por sua vez, afirmam que a ação do sistema judiciário contribuiu para que as ações do MST, que até os primeiros anos dos anos 90 não eram de caráter massivo, viessem a assumir essa característica. Em seu entendimento, o Poder Judiciário colaborou para a redefinição das políticas do movimento quando, em diversas ocasiões, sustentou as oligarquias com interpretações visivelmente tendenciosas. Novamente o trágico episódio do massacre de Eldorado de Carajás é o melhor exemplo da atuação do Judiciário. Em nível nacional, a atuação desse Poder entre 1989 e 2005 é desalentadora. Nesse período foram assassinados, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra – CPT, cerca de 1.378 trabalhadores rurais e aliados do movimento, porém pouco mais 70 pistoleiros foram a julgamento e nem metade deles sofreu condenação por seus crimes. Para Petras e Weltmeyer, esse quadro retrata "os poderosos vínculos" existentes entre os latifundiários e o Judiciário (Petras & Weltmeyer, 2001, p. 150).

O nascimento do MST no Pontal

Ainda nos anos 80 vemos posseiros e trabalhadores assalariados que servem de reserva de mão-de-obra barata à disposição do sistema capitalista, implicados na construção do Movimento Sem Terra – MST – no Pontal. A situação de marginalidade vivida por esses sujeitos contribuiu para que eles também se sentissem e se identificassem como sem terra e, assim, se associassem à luta do Movimento nascente (Fernandes, 1996; Silva, 2002ab, 2005, 2007).

A ocupação das fazendas Tucano e Rosanela em 15 de novembro de 1983 resultou desse processo, todavia redundou em fracasso judicial e no consequente despejo dos trabalhadores e reintegração de posse dos "latigrileiros". As cerca de 350 famílias engajadas na ação eram constituídas de desempregados das obras hidrelétricas (46,5%), boias-frias demitidos da destilaria de álcool Alcídia (37,5%) e de posseiros, ilhéus e ribeirinhos atingidos pelas barragens (16%).

É de se perguntar: acaso esse fracasso não estaria ligado à formação de uma consciência política (Silva, 2001) incipiente daqueles que se comprometeram com o Movimento? Ainda que essa consciência política tenha possibilitado a grande ocupação de terras na região, parece-nos não ter sido suficiente para garantir a manutenção daquela ação coletiva. Por meio de transferências, negociatas e outros artifícios, essas fazendas estavam sob o controle da construtora Camargo Corrêa e da empresa VICAR S/A Comercial e agropastoril; e com a derrocada do movimento, permaneceram com elas.

Uma das razões que apontamos para que a construção e desenvolvimento da consciência política dos trabalhadores rurais do Pontal envolvidos na grande ocupação e em outras ações se arrastassem ou não tenham frutificado como o esperado é o fato de as experiências vividas pelos sujeitos na esfera política terem sido superficiais e pouco determinantes. Por isso a ressignificação pela qual passaram as experiências vividas na esfera política na estrutura do self e a análise crítica produzida por essa consciência política foram fragmentárias e incapazes de produzir nos sujeitos a necessária ruptura com as figuras populistas que apoiaram a luta. O rompimento com essas figuras (em particular do PMDB), que se encontravam divididas entre aqueles que apoiavam os próprios interesses e os dos "latigrileiros" e aqueles que apoiavam os trabalhadores (Veiga, 1990, p. 45)), era necessária para que estes últimos pudessem conquistar o seu espaço político, fruto dessa consciência política revolucionária. Ressignificar experiências passa pela recuperação de memórias coletivas e por sua releitura política, que possibilitam aos sujeitos reconhecerem-se como sujeitos políticos e lhes permitem reconfigurar suas consciências políticas e mobilizar-se em torno de metas coletivas de ação e resistência.

Outro fator que contribuiu para a não elaboração de uma consciência política mais complexa foi a ausência de espaços de socialização política efetivos (como aqueles fornecidos pela Igreja nas CEB's e pela CPT aos colonos de Ronda Alta – RS – ou aos posseiros da fazenda Primavera em Andradina – SP). A atuação da Igreja Católica junto às questões fundiárias do Pontal nunca teve o apoio de D. Antonio Agostinho Marochi, bispo diocesano até 06 de abril de 2002. A intervenção que grande parte do clero da Igreja de Prudente se propunha a fazer era de caráter estritamente religioso. Fazer mais do que a celebração dos sacramentos ou a arrecadação de mantimentos para auxiliar as famílias acampadas à beira das estradas ou em situação de litígio com os latigrileiros da região significava estar em desobediência ao pastor. Por vezes, alguns poucos padres participaram de uma ou outra negociação como os fazendeiros5 5 A Igreja Católica se mostrou mais participativa entre os anos de 1982 e 1984, quando o padre José Antônio assumiu a paróquia de Teodoro Sampaio em caráter provisório, visto que o seu antecessor afastara-se para tratamento de saúde. Nesse período, o Pontal estava imerso nos conflitos entre posseiros e grileiros nas Glebas XV de Novembro e Ribeirão Bonito e a ocupação do trevo de Porto Euclides na SP – 613 no município de Teodoro Sampaio por centenas de famílias de sem terras e desempregados da Cesp que foram despejados das fazendas Rosanela e Tucano. Padre José Antônio fora um dos poucos clérigos que na ocasião optou por não apenas dar apoio religioso a essas famílias, mas em certo aspecto político. Seu apoio político se materializava em negativas para celebrar missa nas sedes de fazendas ocupadas nas quais já celebrava entre os acampados (Ver Borges, 1996; Silva, 2002a). .

A atuação de instituições que habitualmente vinham apoiando as lutas do movimento dos sem-terra país afora foi ou inexpressiva – como a da Igreja de Presidente Prudente, que tem uma diretriz tradicional –, ou ambígua – como no caso da atividade do PMDB –, ou de omissão – como no caso do sindicato dos trabalhadores rurais da região, que negou a ajuda jurídica solicitada pelos assentados para que pudessem contestar as decisões da justiça a eles desfavoráveis porque os ocupantes das fazendas Tucano e Rosanela, em sua maioria, não eram, sindicalizados. Com o despejo, essas 350 famílias acamparam na beira da Rodovia SP-613 e a elas juntaram-se muitas mais, pois corriam boatos de que o Governo do Estado fosse assentá-las. Em 1984 o governador Franco Montoro assinou os primeiros decretos de desapropriação de uma área de 15.110 hectares para assentar 466 famílias lá acampadas.

As lutas empreendidas no Pontal e em outras regiões do país e as desapropriações ocorridas provocaram a reação dos latifundiários, que fundaram a União Democrática Ruralista – UDR – com vistas a defender seus interesses e a estarem melhor instrumentalizados para fazer pressão sobre o Estado em suas diversas esferas e a resistir às mudanças que eram iniciadas na estrutura fundiária local e nacional. Claus Germer entende que a UDR, fundada, segundo Veiga (1990), pelos "(...) griloterroristas do Pontal" (p. 43), não apenas era a organização representativa dos proprietários rurais, atingidos ou não pelas desapropriações realizadas tanto pelo Governo Federal quanto pelo Governo Estadual. Para ele, a UDR "Unificou e deu legitimidade ao velho discurso conservador e reacionário do grande proprietário brasileiro, 'modernizando-o' com o auxílio da ideologia neoliberal ressuscitada em todo o mundo" (Germer 1994, p. 274). Com este discurso plasticamente renovado foi possível à UDR reestruturar e fortalecer a oligarquia rural conservadora, pois

a UDR deu expressão verbal renovada a uma visão e a um discurso reacionários envelhecidos, dando-lhes uma nova embalagem, com a qual reaglutinou os velhos e os novos conservadores da agricultura (Germer, 1994, p. 274).

Embora já houvesse muitos conflitos de terra na região, a primeira ocupação oficialmente organizada pelo MST no Pontal se deu em 14 de julho de 1990. Setecentas famílias ocuparam a Fazenda Nova Pontal, no distrito de Rosana (hoje emancipado), então no município de Teodoro Sampaio. O ano de 1990 sinalizou para uma nova forma de luta no Pontal, pois o MST acenava para uma nova forma de visualizar o processo de lutas na região. A organização da ocupação da Fazenda Nova Pontal levou aproximadamente seis meses e reuniu arrendatários, boias-frias, desempregados, etc. No dia 21 de julho ocorreu o despejo das famílias, que acamparam às margens da SP-613, onde permaneceram até o início de 1991. A partir dessa data, os trabalhadores ocuparam a Fazenda São Bento. Até a obtenção da posse da terra esses colonos tiveram que participar de mais de 22 ocupações dessa área. A área da Fazenda São Bento só seria conquistada pelos acampados a 12 de fevereiro de 1994 depois de quase quatro anos de lutas incansáveis. Hoje a Fazenda São Bento chama-se Assentamento União da Vitória.

Finalizando com um mosaico possível da luta pela terra no Pontal do Paranapanema

Um balanço da trajetória que fizemos nesse artigo passa por percebermos que a memória coletiva das lutas no campo pode estimular a consciência política e proporcionar novas formas de ação coletiva a partir da tomada de consciência de si que a produção da memória propicia. Da mesma maneira, também nos parece que a existência de uma consciência política pode ser determinante na construção de uma memória coletiva e política, pois,

mais do que uma reflexão sobre o passado, a memória coletiva aparece como uma memória política capaz de subverter as versões instituídas e fixadas pela história oficial, como uma estratégia de resistência e luta política e cria um espaço público de disputa que pode desmontar os mecanismos de institucionalização da memória social (Ansara, 2008, p. 9).

Neste sentido nos parece que, ao trazermos aqui um novo tipo de registro da vida cotidiana, desta feita com base nas vozes de muitas famílias sem terra, registro que foi visibilizado por meio de diversas pesquisas, entre as quais as nossas, estamos auxiliando na produção de uma memória política sistematicamente silenciada por aqueles que detêm o poder. A luta desses homens e mulheres, quando visibilizada, raramente o é de um modo justo, pois raramente sua ótica é beneficiada.

Não poucas vezes se escuta que a essas pessoas foi dada a terra e que quem trabalhou para adquirir seus bens foi injustiçado ou, ao menos, prejudicado. Poucas são as vezes em que pudemos observar notas que esclarecessem que a maior parte das terras utilizadas pela reforma agrária eram disputadas na justiça desde muitas décadas e que, na realidade, eram terras devolutas que pertenciam ao Estado e haviam sido griladas. Destarte, não se pode negar que a questão agrária no Estado de São Paulo adquire contornos extremamente importantes na luta política pela reforma agrária. Neste artigo buscamos retomar a ideia de que a reforma agrária precisa ser implementada como estratégia de superação da violência no campo e de promoção da justiça social. É necessário fazê-lo mesmo onde o capitalismo agrário desenvolveu-se com maior força, sem nos esquecermos que ainda se encontram disponíveis grandes extensões de terras improdutivas ou aproveitadas de forma insuficiente, de acordo com os critérios legais em vigor no Brasil.

Ao resgatarmos a memória política das lutas dessas famílias no decorrer da história, deixamos claro que, no caso do Pontal do Paranapanema, não há como escamotear a realidade. Nessa região registra-se uma área de aproximadamente um milhão de hectares, ocupada principalmente por grandes fazendeiros cujos títulos de propriedade são, em boa medida, irregulares, falsificados ou inexistentes, visto serem eles títulos que frequentemente apenas confirmam o delito da grilagem e tudo o mais que se esconde atrás desse ato. Ao olharmos globalmente para os números da reforma agrária em São Paulo, percebemos que entre 1979 e 2000 foram assentadas apenas 9.600 famílias, distribuídas em 141 núcleos de assentamento, e que 60% delas, 4.683 famílias, estão no Pontal do Paranapanema. Diante dos números do êxodo rural essas cifras apenas nos revelam o descaso com que os governos, em seus diferentes níveis, têm tratado a questão da reforma agrária.

Hoje os acampamentos em São Paulo estão divididos entre diferentes movimentos sociais agrários. Entre esses diversos movimentos sociais presentes no campo paulista destacamos o MST, por concentrar algo em torno a 68% das mobilizações; mas não podemos deixar de mencionar movimentos que nasceram de divisões internas no MST e que, juntos, são numericamente bastante significativos. Esse é o caso de movimentos como o MAST e o MLST, que, juntos, devem ser responsáveis por cerca de pelo menos 20% das ações de movimentos sociais no campo. O MAST – Movimento dos Agricultores Sem Terra – surgiu em 1998 no Pontal do Paranapanema, e o MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra, surgiu em 1997, após o massacre de Eldorado de Carajás.

Outro dado importante para se entender melhor a questão fundiária na região do Pontal pode ser observado na origem das terras utilizadas para os assentamentos. Inicialmente as terras que foram utilizadas para a implantação de assentamentos, durante o período mais crítico dos conflitos de terras no Pontal do Paranapanema, eram terras devolutas e terras não discriminadas que em grande parte haviam sido griladas desde muito tempo, e não as terras de propriedade do Estado ou as terras de particulares. Com o avanço dos processos de discriminação das terras na região do Pontal passaram a ser mais utilizadas as terras de particulares que não cumprem a sua função social e acabam sendo alvo do Movimento e dos órgãos oficiais que estão implicados no processo. Entretanto, como apontam estudos realizados pelo ITESP, até o ano de 1995 as terras mais utilizadas para a reforma agrária na região eram as terras devolutas que haviam sido griladas, em sua maior parte, desde a Lei de Terras de 1850.

Salientamos que no processo de construção e consolidação do MST no Pontal do Paranapanema não estiveram presentes (pelo menos com a mesma intensidade e interesse com que participaram desse processo em outras partes do País e do Estado) aliados tradicionais como a Igreja (por meio da CPT), os sindicatos rurais, a Fetaesp, a Contag, etc. A ausência desses tradicionais aliados dos trabalhadores acarretou a formação de uma parcela do movimento em que os espaços de socialização política, de formação e de organização propiciados pelas CEB's, por exemplo, não existiram, ou se existiram, eram muito frágeis e pouco institucionais, visto que se faziam presentes por meio de uns poucos agentes de pastoral, membros da hierarquia, políticos de esquerda e outros.

O Pontal ainda foi palco de uma mudança estratégica do Movimento. Se antes os grupos que participariam das ocupações eram fruto da discussão das histórias de vida, da partilha de todos nos espaços de socialização a que tinham acesso, da organização na qual todos tinham vez, da orientação dos agentes de pastoral, etc., agora o movimento passa a ser centralizado na pessoa do líder, passam a se formar grupos-relâmpago para ocuparem as terras e pressionar o Estado. Essa estratégia surge porque é preciso dar visibilidade ao movimento. Oitenta, cem famílias não mais impactam a mídia. É necessário que movimentos de massa apareçam para que o movimento não naufrague pelo esquecimento. A mobilização é feita a partir da divulgação da luta e das perspectivas de conquistar terras na região. Esse tipo de estratégia torna a trajetória do MST no Pontal muito diferente daquela trilhada, por exemplo, pelos sem-terra de Sumaré.

Cumpre observar, não obstante, que esse tipo de estratégia acarretou problemas. Em não se construindo o espaço de socialização política, em não havendo espaço para o amadurecimento da memória e da consciência política de cada indivíduo e do grupo, não ocorre o necessário fortalecimento da representação e da organização do Movimento. Sem que se tenha propiciado a identificação entre militância e base, o movimento ficou fragilizado e sujeito à ação de pessoas que a ele se opõem. Pelo fato de a necessária identificação entre base e militância ser frágil é que ocorreram situações como: membros não militantes identificarem como membros do MST apenas os sujeitos militantes; identificarem os militantes como as únicas pessoas aptas a decidir; e, por fim, provocarem uma situação de divisão interna entre os grupos favoráveis e contrários à militância. Ainda assim, a inexistência de um projeto político agrário em que a reforma agrária realmente fizesse parte da pauta organizativa do Estado abriu espaço para que os trabalhadores se reconhecessem, reconstruíssem suas memórias políticas em face de uma memória oficial opressiva, organizassem-se e se tornassem uma força política importante no cenário nacional.

A falta de um programa de reforma agrária e de uma política clara para a imensa extensão de terras devolutas e não discriminadas no Estado de São Paulo foi um dos grandes motivadores da manutenção dos conflitos fundiários no Pontal. Essa situação fez das ocupações um instrumento legítimo, ainda que ilegal, dos trabalhadores rurais sem terra para puderem fazer valer os direitos que lhes são garantidos na Constituição e negados no dia a dia. Ocupar, Resistir e Produzir é a estratégia daqueles que querem apenas ter direito ao acesso à terra, ao trabalho e à cidadania - portanto, direito à memória. Nessa luta política por direito a ter direitos, por reconhecimento e por uma ação justa segundo o espírito republicano, não é possível deslegitimar e destituir de razão as lutas que essas pessoas têm travado sob as diversas bandeiras dos movimentos sociais agrários. Assim, como já apontara Fernandes, há que se reconhecer que, "Diante da inoperância do Estado, que por mais de um século, não conseguiu dar solução à situação fundiária da região, o MST aparece como uma força política capaz de fazer avançar os processos de regularização fundiária" (Fernandes, 1996, p. 189) .

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Recebido em 09/05/2007

Aceito em 22/08/2009

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  • Endereço para correspondência:

    Alessandro Soares da Silva
    Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades
    Av. Arlindo Bettio, 1000, Ermelino Matarazzo, CEP 03828-000, São Paulo-SP, Brasil
    E-mail:
  • 1
    A Psicologia Política é uma área transdisciplinar e encontra suas raízes em autores como Gustave Le Bon (1897). Não se trata de um campo teórico, mas de um campo temático que busca entender as relações entre os elementos psicológicos e políticos da produção social de indivíduos e coletivos. Já que não há espaço nesse texto para considerar mais do que essa nota permite, recomenda-se aos/as interessados/as no campo a leitura de autores como Dorna (2004) e Sabucedo (1999).
  • 2
    Para Monbeig: "Os falsários deram provas de imaginação e habilidades diabólicas: buscaram folhas de papel timbrado com as armas imperiais, imitaram escritas fora de uso, descolaram velhos selos, amarelaram propositadamente os seus documentos, arrancaram páginas dos registros dos tabeliães. Implantavam-se à pressa cafeeiros de vinte ou trinta anos nas clareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casa velhas, que eram guarnecidas com móveis antigos, para criar um ambiente adequado e simular uma antiga ocupação do solo. E, por fim, era o assassinato uma solução levada em conta" (Monbeig, 1984, p .144-45).
  • 3
    Segundo Leite (1981), a populações indígenas ficaram comprimidas entre as frentes pioneiras vindas do leste e oeste do Paraná. Ao verem suas terras invadidas e ao serem atacados pelos pioneiros que lhes comprimiam, eles reagiram. Leite escreve que não havia outra opção a não ser "(...) atacar, vez por outra, ao pôr-do-sol, ou ao amanhecer, as palhoças instaladas fortuitamente no seio da floresta" (p. 44). Todavia, para Cobra (1923) "Em um recanto do sertão paulista" a reação do colonizador branco ao ataque das populações indígenas era extremamente violenta e brutal. Cobra relata que os brancos "(...) encontrando-se com as índias, a umas aprisionam, a outras matam, bem como aos indiozinhos, aos quais conta-se que chegavam a levantar do chão ou da cama, atirá-los para o ar e espetá-los em pontas de faca; outras vezes, tomá-los pelos pés e dar com as cabecinhas nos paus, partindo-as. As índias grávidas rasgavam-lhes o ventre e depois de finda a carnificina amontoavam os cadáveres sobre os quais lançavam fogo bem como aos ranchos" (p. 91). O autor ainda destaca que "(...) a luta é desigual. O branco usa armas de fogo que o inimigo não possui. O combate não dura mais de meia hora; as balas dizimam os que vêm de arco e flecha para a luta. Cada índio que cai é socorrido por outro que o toma para o retirar, vivo ou morto, da refrega e assim são dois que deixam a linha de combate" (p.141).
  • 4
    Trecho do panfleto A aventura do Pontal, s/d, s/f, encontra-se anexado à tese de doutorado de Antônio, 1990.
  • 5
    A Igreja Católica se mostrou mais participativa entre os anos de 1982 e 1984, quando o padre José Antônio assumiu a paróquia de Teodoro Sampaio em caráter provisório, visto que o seu antecessor afastara-se para tratamento de saúde. Nesse período, o Pontal estava imerso nos conflitos entre posseiros e grileiros nas Glebas XV de Novembro e Ribeirão Bonito e a ocupação do trevo de Porto Euclides na SP – 613 no município de Teodoro Sampaio por centenas de famílias de sem terras e desempregados da Cesp que foram despejados das fazendas Rosanela e Tucano. Padre José Antônio fora um dos poucos clérigos que na ocasião optou por não apenas dar apoio religioso a essas famílias, mas em certo aspecto político. Seu apoio político se materializava em negativas para celebrar missa nas sedes de fazendas ocupadas nas quais já celebrava entre os acampados (Ver Borges, 1996; Silva, 2002a).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Recebido
      09 Maio 2007
    • Aceito
      22 Ago 2009
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