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A LINHA TÊNUE ENTRE MATERNIDADE E EVASÃO ESCOLAR

La línea Tenue entre Maternidad y Evasión Escolar

RESUMO

A interrupção dos estudos é a realidade de grande parcela de jovens brasileiras que vivenciam a maternidade durante o período escolar. A presente pesquisa teve como objetivo analisar os mecanismos que as instituições de ensino utilizam para apoiar ou dificultar os estudos de jovens mães a partir da perspectiva de alunas e ex-alunas adolescentes e jovens adultas do Distrito Federal. Foram realizadas seis entrevistas individuais semiestruturadas com adolescentes e jovens mulheres, entre 17 e 30 anos, que vivenciaram/vivenciam a maternidade durante os estudos. Foi utilizada a análise de conteúdo temática para a interpretação das informações. O artigo focaliza a primeira categoria analítica construída. A partir da análise, foi possível compreender que o fenômeno da evasão escolar é sustentado por bases históricas e culturais relacionadas a concepções sexistas acerca das normas binárias de gênero que não contemplam a diversidade de vivências das mulheres em relação à maternidade e à própria feminilidade.

Palavras-chave:
maternidade; gênero; psicologia

RESUMEN

La interrupción en los estudios es la realidad de gran fracción de jóvenes brasileñas que vivencian la maternidad durante el período escolar. En la presente investigación se tuvo como objetivo analizar los mecanismos que las instituciones de enseñanza utilizan para apoyar o dificultar los estudios de jóvenes madres a partir de la perspectiva de alumnas y exalumnas adolescentes y jóvenes adultas del Distrito Federal. Se realizaron seis entrevistas individuales semiestructuradas con adolescentes y jóvenes mujeres, entre 17 y 30 años, que vivenciaron/vivencian la maternidad durante los estudios. Se utilizó el análisis de contenido temático para a interpretación de las informaciones. En el artículo se focaliza la primera categoría analítica construida. A partir del análisis, fue posible comprender que el fenómeno de la evasión escolar es sustentado por bases históricas y culturales relacionadas a concepciones sexistas acerca de las normas binarias de género que no contemplan la diversidad de vivencias de las mujeres con relación a la maternidad y a la propia feminidad.

Palabras clave:
maternidad; género; psicología

ABSTRACT

The need to interrupt their studies is the reality for a large number of young Brazilian women who experience motherhood during their school years. This research aimed to analyze the mechanisms used by educational institutions from the perspective of students and former students, teenagers, and young adults in the Federal District. Such mechanisms can be used use to support or hinder the studies of young mothers. Six semi-structured individual interviews were carried out with adolescents and young women, between 17 and 30 years old, who experienced motherhood during their studies. Thematic content analysis was used to interpret the information. The article focuses on the first analytical category constructed. From the analysis, it was possible to understand that the phenomenon of school evasion is supported by historical and cultural biases related to sexist conceptions about binary gender norms that do not contemplate the diversity of women’s experiences regarding motherhood and femininity itself.

Keywords:
maternity; gender; psychology

INTRODUÇÃO

A interrupção e o atraso nos estudos são a realidade de grande parcela de jovens brasileiras que vivenciam a gestação e a maternidade durante o período escolar, mostrando-se necessário repensar quais são os fatores socioculturais envolvidos em tal problemática. De acordo com dados do Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA (2016Nações Unidas (2016). Cerca de 79% das brasileiras usaram métodos contraceptivos em 2015, informa ONU. Recuperado de:https://nacoesunidas.org/cerca-de-79-das-brasileiras-usaram-metodos-contraceptivos-em-2015-informa-onu/
https://nacoesunidas.org/cerca-de-79-das...
), o Brasil possui um índice de 65 gestações para cada mil adolescentes entre 15 e 19 anos, tornando-se assim a sétima maior taxa de gravidez adolescente da América do Sul.

A ausência ou carência de informações a respeito da sexualidade e da contracepção parece ser muito comum entre as adolescentes e jovens, enquanto igualmente é esperado delas uma maior responsabilidade em suas relações íntimas. Nesse sentido, podemos observar a presença de uma conflituosa ambiguidade em tais expectativas sociais. Ou seja, por um lado, muitas vezes, não há um espaço para o diálogo sobre os cuidados contraceptivos, seja no ambiente familiar ou escolar; por outro lado, há a culpabilização, quase que de forma exclusiva, das adolescentes pela gravidez (Hoga, Borges, & Reberte, 2010Hoga, L. A. K., Borges, A. L. V., & Reberte, L. M. (2010). Razões e reflexos da gravidez na adolescência: narrativas dos membros da família.Esc Anna Nery Rev Enferm, 14(1), 151-7.).

Tais questões interligam-se com a discussão desenvolvida por Soares, Amaral, Silva e Silva (2008Soares, S. M., Amaral, M. A., Silva, L. B. & Silva, P. A. B. (2008). Oficinas sobre sexualidade na adolescência: revelando vozes, desvelando olhares de estudantes do ensino médio. Esc Anna Nery Rev Enferm,12(3), 485-91.) que ressaltam que a castidade e a virgindade feminina são socialmente valorizadas, e a partir disso é esperado que a mulher retarde o início da sua vida sexual, considerando sua virgindade uma virtude a ser protegida e vigiada. O que foi verificado por Medeiros et al. (2016Medeiros, T. F. R., dos Santos, S. M. P., Xavier, A. G., Gonçalves, R. L., Mariz, S. R., & de Sousa, F. L. P. (2016). Vivência de mulheres sobre contracepção na perspectiva de gênero.Revista Gaúcha de Enfermagem,37(2). doi: 10.1590/1983-1447.2016.02.57350
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.0...
), na pesquisa qualitativa realizada em três unidades básicas de saúde, em Pernambuco, com 15 mulheres entrevistadas, ao analisarem que as adolescentes adquirem informações acerca dos modos de evitar uma gestação através de amigos(as) ou em outras fontes que não no espaço familiar, devido à falta de diálogo presente neste meio. No entanto, recusam-se a utilizar os métodos de contracepção devido a implicar em assumir que apresentam uma vida sexual ativa (Medeiros et al., 2016Medeiros, T. F. R., dos Santos, S. M. P., Xavier, A. G., Gonçalves, R. L., Mariz, S. R., & de Sousa, F. L. P. (2016). Vivência de mulheres sobre contracepção na perspectiva de gênero.Revista Gaúcha de Enfermagem,37(2). doi: 10.1590/1983-1447.2016.02.57350
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).

De forma mais específica, assumir uma vida sexual, por mais que não seja publicamente, pode representar uma série de conflitos tanto subjetivos (relacionados à própria sexualidade) quanto sociais (como, por exemplo, julgamentos preconceituosos), visto que, por mais que seja algo natural e compreensível do ser humano, como ser vivo, envolver-se numa relação sexual com outra pessoa, ainda é esperado culturalmente que a mulher “se preserve” até o casamento e não se envolva com outro homem que não o marido (Parker, 1991Parker, R. (1991). Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. Editora Best Seller. ISBN. 978-8571232525). Isso ocorre devido ao modo como a sexualidade humana é vivenciada, por ser sempre mediada por sistemas que integram significados culturais historicamente estabelecidos (Paula, Holanda, Barreto, & Madureira, 2018Paula, L. D.; Holanda, J. M. G. B.; Barreto, A. L. C. S.; Madureira, A. F. A. (2018). Sexuality, Gender and Diversity in Schools: Different Voices. In: O. Enok, & J. Rolf (Eds.), Understanding Sexuality: Perspectives and Challenges of the 21st Century (pp. 105-124). Nova Science Publishers. ISBN. 978-1-53613-037-9).

Ao engravidar e/ou ter filhos(as) na adolescência, muitas jovens abandonam os estudos, sendo recorrente a evasão escolar neste grupo. De acordo com a reportagem de Zinet (2016Zinet, C. (2016). Gravidez é responsável por 18% da evasão escolar entre meninas. Recuperado de:http://educacaointegral.org.br/reportagens/gravidez-e-responsavel-por-18-da-evasao-escolas-entre-meninas/
http://educacaointegral.org.br/reportage...
)1 1 Gravidez é responsável por 18% da evasão escolar entre meninas, disponível em: http://educacaointegral.org.br/reportagens/gravidez-e-responsavel-por-18-da-evasao-escolas-entre-meninas/ , o Ministério da Educação (MEC) divulgou dados de que a gravidez precoce é responsável por 18% da evasão escolar entre estudantes do gênero feminino no Brasil. O que acaba por refletir negativamente na qualificação profissional e na inserção no mercado de trabalho, devido à “limitação” de seu progresso escolar.

Por outro lado, a evasão escolar não é uma realidade exclusiva de adolescentes que engravidam durante os estudos no âmbito da Educação Básica. Ela é também uma realidade vivenciada por jovens adultas em seu percurso acadêmico nas instituições de Ensino Superior públicas e particulares do Brasil. Segundo o Ministério da Educação - MEC (2015Ministério da Educação - MEC(2015). Dia internacional da mulher: Maioria é feminina em ingresso e conclusão nas universidades. Recuperado de:http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/212-educacao-superior-1690610854/21140-maioria-e-feminina-em-ingresso-e-conclusao-nas-universidades
http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticia...
)2 2 Maioria é feminina em ingresso e conclusão em universidades, disponível em: http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/212-educacao-superior-1690610854/21140-maioria-e-feminina-em-ingresso-e-conclusao-nas-universidades , dos(as) estudantes que ingressaram em universidades, 55% são mulheres e a respeito dos(as) concluintes, as mulheres representam 60% das pessoas graduadas. No entanto, quantas dessas mulheres estão grávidas ou se tornam mães? Que barreiras ou dificuldades enfrentam para se manterem nos cursos de graduação?

De acordo com Hoga et al. (2010Hoga, L. A. K., Borges, A. L. V., & Reberte, L. M. (2010). Razões e reflexos da gravidez na adolescência: narrativas dos membros da família.Esc Anna Nery Rev Enferm, 14(1), 151-7.), as mulheres são consideradas, muitas vezes, como as únicas responsáveis por suas gestações (o que também é observado no caso das adolescentes) e, com isso, as únicas que devem “pagar pelo preço de suas escolhas”. No caso, a “escolha” de ser mãe e cuidadora, em que o(a) filho(a) e a família devem estar em primeiro lugar nos planos e obrigações das mulheres e, consequentemente, em segundo lugar, sua dedicação aos estudos e ao trabalho.

A pesquisa foi realizada a partir da perspectiva teórica da psicologia cultural. Em linhas gerais, a psicologia cultural está situada entre as correntes teóricas sociogenéticas, que apresentam como um dos seus pressupostos centrais a consideração da gênese social do desenvolvimento psicológico individual, destacando o papel constitutivo da cultura em relação ao psiquismo humano (Madureira, 2018Madureira, A. F. A. (2018). Social Identities, Gender, and Self: Cultural Canalization in Imagery Societies. In A. Rosa & J. Valsiner (Eds.), The Cambridge Handbook of SocioculturalPsychology (2a ed., pp. 597-614). Cambridge University Press. ISBN. 9781316662229; Valsiner, 2012Valsiner, J. (2012). Introduction: Culture in Psychology: A Renewed Encounter of Inquisitive Minds. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford Handbook of Culture and Psychology (pp. 3-24). Oxford University Press. ISBN. 978-0199366200).

Dessa forma, a partir do referencial teórico da psicologia cultural, a pesquisa focalizada no presente artigo teve como objetivo geral analisar os mecanismos que as instituições de ensino utilizam para apoiar ou dificultar os estudos de adolescentes e jovens gestantes e mães a partir da perspectiva de alunas e ex-alunas adolescentes e jovens adultas do Distrito Federal.

MÉTODO

A pesquisa realizada utilizou uma metodologia qualitativa de investigação. De acordo com Minayo (2016Minayo, M. C. S. (2016). O desafio da pesquisa social. In M. C. S. Minayo(Ed.), Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade (pp. 21-29). Editora Vozes. ISBN. 978-8532652027), “A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se ocupa, dentro das Ciências Sociais, com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (p. 20). Em outras palavras, a pesquisa qualitativa se refere à uma proposta metodológica que busca a compreensão, de modo aprofundado, dos significados atribuídos pelos(as) participantes às temáticas investigadas (Madureira & Branco, 2001Madureira, A. F. A., & Branco, A. U. (2001). A pesquisa qualitativa em psicologia do desenvolvimento: questões epistemológicas e implicações metodológicas. Temas em Psicologia, 9(1), 63-75. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v9n1/v9n1a07.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v9n1/v9...
).

De forma mais específica, após a aprovação do projeto de pesquisa por parte do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de Brasília - CEUB, foram realizadas as entrevistas previstas no projeto. Participaram da pesquisa seis mulheres, entre 17 e 30 anos, que vivenciaram/vivenciam a maternidade ou gravidez durante os estudos, seja no ambiente escolar ou no Ensino Superior no Distrito Federal.

Para a realização da pesquisa, foram utilizadas entrevistas individuais semiestruturadas, de forma integrada à apresentação de imagens previamente selecionadas. Os materiais utilizados foram: um celular para a gravação das entrevistas, com o consentimento das participantes, e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, impresso. Como instrumentos foram utilizados: um roteiro de entrevista individual semiestruturada com perguntas norteadoras, bem como imagens significativas previamente selecionadas, enquanto ferramentas metodológicas (Madureira, 2016Madureira, A. F. A. (2016). Diálogos entre a Psicologia e as Artes Visuais: as Imagens enquanto Artefatos Culturais. Em J. L. Freitas & E. P. Flores(Eds.), Arte e Psicologia: Fundamentos e Práticas (pp. 57- 82). Editora Juruá.).

Na Tabela 1, a seguir, são apresentados dados sociodemográficos das participantes, considerando suas idades, estado civil e se, durante o período em que ocorreram as entrevistas, estavam frequentando alguma instituição de ensino. Por questão de sigilo em relação às identidades pessoais das participantes, foram utilizados nomes fictícios.

Tabela 1
Dados Sociodemográficos das Participantes.

Cabe mencionar que as entrevistas foram gravadas, com o consentimento das participantes, a fim de possibilitar o posterior trabalho de transcrição e de análise das informações construídas. Para tanto, foi utilizado o método de análise de conteúdo em sua vertente temática (Gomes, 2016Gomes, R. (2016). Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In M.C. S. Minayo (Ed.), Pesquisa social: teoria, método e criatividade(79-108). Editora Vozes. ISBN. 978-8532652027). Após a transcrição das entrevistas, foram construídas as seguintes categorias analíticas temáticas para nortear o trabalho interpretativo: (a) Maternidade, questões de gênero e evasão escolar em discussão; (b) A importância da rede social de apoio no prosseguimento aos estudos; (c) Mecanismos utilizados pelas instituições de ensino para apoiar ou dificultar os estudos das participantes. No presente artigo, será focalizada a primeira categoria analítica, anteriormente mencionada.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com o objetivo de apresentar e discutir os resultados mais significativos obtidos na pesquisa realizada, a presente seção focalizará a primeira categoria analítica temática mencionada anteriormente. Cabe enfatizar que os nomes das participantes foram substituídos por nomes fictícios, a fim de preservar o sigilo em relação às suas identidades pessoais.

Maternidade, questões de gênero e evasão escolar em discussão

Mais do que palavras e frases, o encontro e o contato direto com as participantes, ou melhor, com as protagonistas deste estudo, por meio de suas histórias, experiências e concepções de mundo, se revelou como, provavelmente, a mais rica contribuição à presente pesquisa.Em diversos momentos durante a realização das entrevistas, foi possível sentir as vivências e emoções, por vezes ambíguas, que as participantes almejavam transmitir a respeito da maternidade de cada uma. Sim, de cada uma. Porque por mais que ser mãe seja uma experiência considerada “universal”, cada mãe é única e vivencia o “ser mãe” de um modo único.

Entretanto, embora tenhamos em mente a singularidade presente em cada experiência humana e em cada encontro, socialmente e moralmente são esperados determinados padrões no modo de maternar e “ser” mulher. Nesse sentido, diversos(as) autores(as) - como, por exemplo, Almeida (2014Almeida, T. M. C. (2014). Corpo feminino e violência de gênero: fenômeno persistente e atualizado em escala mundial. Revista Sociedade e Estado, 29(2), 329-340.), Del Priore (2014Del Priore, M. (2014). Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. Editora Planeta.), Donath (2017Donath, O. (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Civilização Brasileira Editora(2a ed.). ‎ISBN. 978-8520013502), Madureira (2010Madureira, A. F. A. (2010). Gênero, sexualidade e processos identitários na sociedade brasileira: tradição e modernidade em conflito. In A. L. Galinkin, & C. Santos (Eds.), Gênero e Psicologia Social: interfaces(pp. 31-63). Tecnopolik Editora. ISBN. 978-8562313035, 2018) e Parker (1991Parker, R. (1991). Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. Editora Best Seller. ISBN. 978-8571232525) - discutem que as práticas das mulheres, tanto acerca da sexualidade, quanto nas demais esferas da vida são controladas e vigiadas pela comunidade. Os comportamentos considerados “errados” e/ou “indecentes”, frequentemente, são reprimidos, o que, normalmente, gera vergonha e culpa nas mulheres que não correspondem às expectativas sociais; isso favorece, lamentavelmente, o silenciamento delas.

Concomitante à vigilância das mulheres, é possível perceber, cada vez mais, cobranças excessivas e desgastantes acerca dos deveres e papéis das mulheres-mães, que, por sua vez, não são reconhecidos, na medida em que, em virtude de as pessoas acreditarem em um suposto “instinto materno”, não reconhecem a dedicação, o tempo gasto e o trabalho das mães (Badinter, 2011Badinter, E. (2011). O conflito: a mulher e a mãe (2a ed.). Editora: Record. ISBN. 978-8501091994.). Tais cobranças surgiram nos discursos das participantes como um ideal romantizado da maternidade, que se difere da maternidade “real e pura” que vivenciam, conforme relatado nos trechos a seguir das entrevistas realizadas com as participantes Yara e Juliana:

“(...) Uma garota me mandou uma mensagem falando que eu realmente precisava parar de reclamar porque parecia que eu estava me queixando da minha filha. As pessoas não têm noção do quanto isso faz uma mãe se sentir culpada” (Yara).

Tem vários ideais sobre ser mãe e a maioria se contradiz. Acho que o mais forte é aquele que diz que “mãe tem de dar conta”. Todo mundo quer dar pitaco no que você está fazendo. Se você não está em casa cuidando do filho, alguns vão te chamar de vagabunda. Se deixar o filho na creche para trabalhar, vão te chamar de negligente (...) a mãe nunca mais deve priorizar nada na vida que não o filho” (Juliana).

A partir dos relatos apresentados, podemos perceber como as expectativas sociais canalizam as ações femininas, fazendo-as se sentirem mal ou “péssimas mães” ao não alcançarem o ideal esperado em termos de maternidade. O que ocorre é que devido à cultura apresentar um papel constitutivo em relação ao psiquismo humano, ela canaliza de diferentes formas o agir, o pensar e o sentir das pessoas (Madureira, 2016Madureira, A. F. A. (2016). Diálogos entre a Psicologia e as Artes Visuais: as Imagens enquanto Artefatos Culturais. Em J. L. Freitas & E. P. Flores(Eds.), Arte e Psicologia: Fundamentos e Práticas (pp. 57- 82). Editora Juruá., 2018Madureira, A. F. A. (2018). Social Identities, Gender, and Self: Cultural Canalization in Imagery Societies. In A. Rosa & J. Valsiner (Eds.), The Cambridge Handbook of SocioculturalPsychology (2a ed., pp. 597-614). Cambridge University Press. ISBN. 9781316662229; Valsiner, 2012Valsiner, J. (2012). Introduction: Culture in Psychology: A Renewed Encounter of Inquisitive Minds. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford Handbook of Culture and Psychology (pp. 3-24). Oxford University Press. ISBN. 978-0199366200).

O conceito de canalização cultural é, inclusive, um conceito importante na perspectiva teórica adotada na pesquisa, a psicologia cultural. Tal conceito destaca, por um lado, como mencionado anteriormente, o papel constitutivo da cultura em relação ao psiquismo humano e, por outro lado, o papel ativo das pessoas em relação ao seu desenvolvimento psicológico, bem como em relação aos contextos em que se encontram inseridas (Madureira, 2016Madureira, A. F. A. (2016). Diálogos entre a Psicologia e as Artes Visuais: as Imagens enquanto Artefatos Culturais. Em J. L. Freitas & E. P. Flores(Eds.), Arte e Psicologia: Fundamentos e Práticas (pp. 57- 82). Editora Juruá., 2018; Valsiner, 2012Valsiner, J. (2012). Introduction: Culture in Psychology: A Renewed Encounter of Inquisitive Minds. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford Handbook of Culture and Psychology (pp. 3-24). Oxford University Press. ISBN. 978-0199366200).

Tais expectativas sociais, que funcionam como mecanismos de canalização cultural, contemplam o que poderia ser denominado como uma espécie de “manual sagrado da maternidade”, que norteia o que uma mulher deve fazer e como deve fazer. Tal questão é analisada por Badinter (2011Badinter, E. (2011). O conflito: a mulher e a mãe (2a ed.). Editora: Record. ISBN. 978-8501091994.) e Neder (2016Neder, M. (2016). Os filhos da mãe: como viver a maternidade sem culpa e sem o mito da perfeição. Casa da Palavra Editora. ISBN. 978-8577346257), ao ressaltarem que a crença de que uma “boa mãe” seria aquela que se entrega totalmente aos(às) filhos(as) e o faz com louvor foi construída culturalmente. Ou seja, que as mães devem estar disponíveis de maneira integral às crianças, as colocando sempre em posição de prioridade frente a seus demais compromissos, sem expor sentimentos e afetos “negativos” que tais experiências podem trazer.

Dessa forma, quando uma mulher não corresponde a esses “princípios” considerados “sagrados”, está frequentemente sob o julgamento moral da sociedade e o sentimento de culpa que surge. Nesse sentido, ao não se enquadrar no que é socialmente esperado, é um sinal de como o ideal de maternidade e o ideal de feminilidade foram internalizados. De forma mais específica, não podemos separar efetivamente a maternidade da feminilidade, tendo em vista que, culturalmente, há a concepção de que “ser mãe” é uma “parte essencial” do que é “ser mulher”, sendo um elemento estruturante do que é socialmente compreendido como feminilidade (Badinter, 2011Badinter, E. (2011). O conflito: a mulher e a mãe (2a ed.). Editora: Record. ISBN. 978-8501091994.).

Assim, por vezes, de modo mais comum do que se imagina, a maternidade se torna o principal elemento estruturante da identidade das mulheres, reduzindo, desse modo, as múltiplas identidades possíveis (como filha, estudante, brasileira, esposa etc.) à uma única identidade: mãe (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Appris Editora. ISBN. 978-8547310288). Isso pode ser exemplificado nos seguintes relatos: “Ser mãe é entender que o primeiro lugar é sempre o filho. Não pode fazer nada, mas colocá-lo sempre em primeiro lugar em tudo” (Wanda). “Ser mãe é contradição. Acho que quando uma mulher se torna mãe, ela morre e vira outra” (Juliana).

Esse sentimento de perda da identidade, ou de sua redução à maternidade, é consideravelmente legitimado nas práticas culturais cotidianas, ao compreender as relações de gênero sob uma ótica essencialmente biológica. Ou seja, entende-se, muitas vezes, que a mulher, ao contrário do homem, possui um suposto “instinto materno”, o que a torna uma “mãe-nata” e reforça não apenas o ideal de como uma mãe deve se portar, como também a coloca em posição de cuidadora “natural”, ao se naturalizarem as “qualidades maternas”, como tipicamente femininas, incluindo sua capacidade de cuidar dos outros, o afeto, o zelo, a atenção e a paciência (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A dominação masculina. Bertrand Brasil Editora.; Donath, 2017Donath, O. (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Civilização Brasileira Editora(2a ed.). ‎ISBN. 978-8520013502; Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Appris Editora. ISBN. 978-8547310288).

Desse modo, as atividades socialmente consideradas femininas são dirigidas à esfera privada (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A dominação masculina. Bertrand Brasil Editora.; Madureira, 2010Madureira, A. F. A. (2010). Gênero, sexualidade e processos identitários na sociedade brasileira: tradição e modernidade em conflito. In A. L. Galinkin, & C. Santos (Eds.), Gênero e Psicologia Social: interfaces(pp. 31-63). Tecnopolik Editora. ISBN. 978-8562313035, 2018; Parker, 1991Parker, R. (1991). Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. Editora Best Seller. ISBN. 978-8571232525), como as concentradas no universo doméstico que inclui o cuidado da família; compreende-se que o suposto “instinto materno” se sobrepõe às outras vontades da mulher e, com isso, “ser mãe” se torna mais forte que as demais expectativas e “obrigações” do “ser mulher”. Logo, as mulheres pensarem em si mesmas e em suas vontades antes dos(as) filhos(as), além de não ser esperado socialmente, é visto como uma atitude egoísta eum alerta de uma maternidade “questionável” (Neder, 2016Neder, M. (2016). Os filhos da mãe: como viver a maternidade sem culpa e sem o mito da perfeição. Casa da Palavra Editora. ISBN. 978-8577346257).

Com isso, podemos perceber como a descoberta da gravidez ou o nascimento de um(a) filho(a) tem papel transformador na vida das mulheres em suas diversas facetas e esferas. O que é alterado não é apenas o modo como ela se enxerga, mas também como os outros (instituições, família, amigos(as) etc.) a veem e o que consideram ser suas novas obrigações, deveres e papéis frente a essa nova identidade. Tais questões são ilustradas no trecho a seguir:

Depois que ela nasceu, minha rotina, simplesmente, mudou toda. É aquele negócio, parece que não temos nossa existência. Parece que vivemos em função deles (...). Que esse era o meu papel e todos os deveres e obrigações de uma mãe” (Brenda).

Conforme discutido por Parker (1991Parker, R. (1991). Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. Editora Best Seller. ISBN. 978-8571232525), os conceitos de masculinidade e feminilidade foram definidos tendo como base o sistema binário de gênero, em que a mulher, não apenas foi caracterizada, de forma estereotipada, por sua “inferioridade”, mas por sua suposta “natureza” delicada e atenciosa, em oposição às características associadas ao masculino, em que o homem foi caracterizado, de forma estereotipada, por atributos como força, virilidade e poder.

Assim, em relação às mulheres, foram exaltadas suas potencialidades maternas na criação dos(as) filhos(as). Por outro lado, no que tange aos homens, suas potencialidades se concentrariam na esfera pública, o que veio a se tornar uma justificativa acerca das atividades direcionadas à mulher, como o zelo em relação ao lar e aos (às) filhos(as), não serem as mesmas exigidas do homem, as quais se concentram no trabalho remunerado fora de casa.

Dessa forma, é através da crença de que a maternidade se constitui culturalmente como uma dimensão estruturante da identidade feminina, conforme discutido no presente artigo, influenciando muitas mulheres a não se sentirem “completas” na ausência da maternidade ou de uma união estável, ou seja, que acreditem que lhe faltam algo ou que há algo de errado consigo mesmas.

Como é discutido por Zanello (2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Appris Editora. ISBN. 978-8547310288) e Badinter (2017), apesar de muitas mulheres alcançarem o sucesso em diferentes instâncias da vida, como em termos financeiros e profissionais, é comum que se sintam inferiores e tristes por não cumprirem com os papéis que lhe são socialmente designados de forma naturalizada, como o de exercer o seu papel de cuidadora. Dessa forma, a maternidade surge, muitas vezes, como uma oportunidade de “ser uma mulher completa”, criando um contexto favorável para o sentimento de pertencimento em relação a uma posição social específica. Nesse sentido, como é destacado pela participante Brenda:

“Ser mãe foi tudo para mim. Me deu um lugar. Ser mãe dá um lugar para a mulher. O que é infeliz porque já deveríamos ter o nosso lugar independentemente disso. Mas vejo que isso mudou a minha vida (...). É claro que muita coisa muda, como as responsabilidades, mas agora as pessoas legitimam isso, por eu ser mãe”.

Neste trecho, fica evidente como as identidades são articuladas e legitimadas por meio das práticas cotidianas que envolvem o contato com outras pessoas e com a comunidade em que a pessoa está inserida. Assim, é necessário ter em mente o caráter relacional das identidades, que se constituem por meio das interações entre sujeitos e grupos em diferentes contextos sociais, envolvendo a marcação simbólica das diferenças (Galinkin & Zauli, 2011Galinkin, A. L., & Zauli, A. (2011). Identidade social e alteridade. In C. V. Torres & E. R Neiva (Eds.), Psicologia Social: principais temas e vertentes(253-261). Artmed Editora. ISBN. 978-8536325514; Madureira, 2018Madureira, A. F. A. (2018). Social Identities, Gender, and Self: Cultural Canalization in Imagery Societies. In A. Rosa & J. Valsiner (Eds.), The Cambridge Handbook of SocioculturalPsychology (2a ed., pp. 597-614). Cambridge University Press. ISBN. 9781316662229; Woodward, 2000Woodward, K. (2000). Identidade e diferença: uma introdução conceitual. In T. T. Silva (Ed.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (pp. 7-72). Editora Vozes.).

Em específico quanto à identidade feminina, podemos dizer que foi historicamente construída voltada para o outro, voltada para o olhar do outro. As mulheres, nas palavras de Donath (2017Donath, O. (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Civilização Brasileira Editora(2a ed.). ‎ISBN. 978-8520013502), normalmente são consideradas como “objetos”, sendo que o propósito da sua existência é servir (de diversas maneiras) ao outro. Nesse sentido, cabe mencionar que Berger (1980Berger, J. (1980). Modos de ver. Martins Fontes Editora.) ao discutir sobre a feminilidade e sua orientação voltada ao olhar do outro, destaca que:

Nascer mulher é vir ao mundo dentro de um espaço definido e confinado, à guarda do homem (...) Tem de se vigiar tudo o que é e tudo o que faz, pois a sua aparência, e, em primeiro lugar, a sua aparência perante os homens, é de importância decisiva para o que poderá ser geralmente considerado o seu êxito na vida. O seu próprio sentido daquilo que é, é suplantado pelo sentido de ser apreciada como tal por outrem (...). Assim, a mulher transforma-se a si própria em objeto (pp. 50-51).

Tendo isso em vista, poderíamos afirmar que, na tradição das artes visuais nos países ocidentais, a mulher e, mais precisamente, o corpo feminino, foi transformado em um objeto visual voltado para o olhar masculino, conforme é analisado por Berger (1980Berger, J. (1980). Modos de ver. Martins Fontes Editora.) e por Loponte (2002Loponte, L. G. (2002). Sexualidades, artes visuais e poder: pedagogias visuais do feminino. Estudos Feministas, 10(2), 283-300. Recuperado de:http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n2/14958.pdf
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).

Em um sentido mais amplo, a mulher, ao ser tradicionalmente tratada como objeto, muitas vezes, acaba por internalizar essa concepção acerca de sua imagem nas relações de gênero, o que possui impactos significativos no campo de sua sexualidade. Afinal, objetos, enquanto seres inanimados, não têm desejos e nem vontades, mas possuem como finalidade “servir” ao outro, ao seu “dono”. Podendo-se atribuir que seu “dono”, no caso de mulheres-mães, não se restringiria ao marido (nas relações heterossexuais), mas incluiria também o(a) filho(a), ao notarmos a concepção de que uma “boa mãe” seria aquela disponível de modo integral ao(a) filho(a) e às suas vontades.

Consequentemente, com a constante pressão para que as mulheres correspondam aos padrões socialmente difundidos de como uma mãe “deve se portar”, muitas acabam por se sentirem sobrecarregadas com as novas obrigações, o que dificulta a continuidade nos estudos ou o exercício de outras atividades, como a atuação profissional. Dessa maneira, como mencionado por Boris e Cesídio (2007Boris, G. D. J. B., & Cesídio, M. D. H. (2007). Mulher, corpo e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade. Revista Mal Estar e Subjetividade 2, 451-478.), o abandono e o adiamento dos estudos podem estar relacionados às expectativas sociais de uma posição feminina historicamente constituída em função de atribuições domésticas, dentre elas, a maternidade.

Nesse sentido, cabe destacar os seguintes trechos das entrevistas com as participantes Verônica e Martha. Segundo Verônica: “Minha filha é prioridade na minha vida. Então se eu posso estudar, estudo. Se eu não consigo porque estou com ela, não faço. Eu não tenho aquele tempo para fazer o que eu fazia, tudo é interrompido, picado”. Na mesma direção, Martha comentou que:

Se ser mãe afetou meus estudos de alguma forma? Com certeza! Eu tranquei o curso duas vezes. Para mim, foi muito difícil (...). Eu voltei a fumar quando voltei a estudar, e fumava no caminho de vir para a faculdade porque era a ansiedade”.

A partir dos exemplos mencionados, percebemos como a chegada de um bebê, juntamente com a “chegada da maternidade”, trazem novas demandas à mulher, as quais podem desencadear sofrimentos psíquicos relacionados à culpa em relação a uma prática materna que não é socialmente considerada ideal ou adequada, como ter de realizar atividades que diferem das direcionadas aos(às) filhos(as) e ter de “entregar” os cuidados destes(as) para outra pessoa.

Além disso, entre as seis participantes da pesquisa realizada, cinco afirmaram, durante as entrevistas, que o nascimento de seus(suas) filhos(as) não acarretou mudanças quanto ao cotidiano do pai da criança. Em outras palavras, relataram que enquanto suas rotinas mudaram “indiscutivelmente”, necessitando realizar a difícil conciliação entre diversas atividades e tarefas, a rotina dos seus companheiros/pais de seus(as) filhos(as), manteve-se praticamente igual, sem acréscimo ou decréscimo em relação às obrigações que exerciam antes do nascimento do(a) bebê.

Orlandi e Toneli (2008Orlandi, R., & Filgueiras Toneli, M. J. (2008). Adolescência e paternidade: sobre os direitos de criar projetos e procriar. Psicologia em Estudo,13(2), 317-326 https://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722008000200014
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) contribuem para a presente discussão ao exporem que, no que tange aos homens, o nascimento de uma(a) filho(a) não estabelece uma ligação direta com a evasão escolar, sendo a interrupção ou atraso nos estudos, comumente associados a outros fatores como, por exemplo, a falta de interesse. Nesse sentido, é válido mencionar que dos seis pais dos(as) filhos(as) das participantes, quatro estudavam durante a gestação e permaneceram estudando com o nascimento e crescimento das crianças, e cinco trabalhavam.

A relação da interrupção ou dificuldade de conciliar estudos com a maternagem se relaciona diretamente com uma maior demanda por cuidados e criação dos(as) filhos(as) em relação às mulheres em comparação com os homens. Desse modo, a mãe se vê pressionada e sobrecarregada em relação a estes cuidados, dificultando e criando barreiras no que se refere à continuidade de seus estudos.

Nesse sentido, é importante mencionar que, como é discutido por Zanello (2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Appris Editora. ISBN. 978-8547310288), apesar de atualmente a mulher estar inserida no mercado de trabalho, como em outros ambientes, ainda prevalece a concepção que é seu dever exclusivo frente à sociedade ser mãe e educar os(as) filhos(as). Por outro lado, o trabalho remunerado e fora de casa não surge como uma expectativa associada à feminilidade, mas trata-se de uma possibilidade de atuação que não exclui sua principal responsabilidade que seria, de acordo com as expectativas sociais, com o lar e a família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Martha, ao fazer o teste de gravidez e descobrir em 2005 que seria mãe de primeira viagem, pouco sabia que naquele momento se veria em uma nova fase de sua vida, que acarretaria a interrupção de seus estudos e um atraso de mais de 10 anos para a conclusão de sua formação profissional. Juliana, que há pouco havia realizado o sonho de entrar no curso de Psicologia, logo nos primeiros semestres teve que abandonar seus estudos para buscar um lar e sustento para a vida que estava gestando, passando por momentos de solidão ao ser expulsa de casa por seu próprio pai e, mais tarde, também pelo pai de sua filha.

Wanda, que em uma consulta ginecológica foi informada erroneamente sobre a sua impossibilidade de engravidar, se viu “sem chão” ao receber a notícia de que estava grávida aos 17 anos de idade, nos últimos anos do Ensino Médio. Ela teve que enfrentar julgamentos e discriminações por parte de seus(suas) colegas e professores(as), mesmo assim tentou frequentar as aulas ainda em gestação.

Dentre as seis participantes da pesquisa, cinco afirmaram durante as entrevistas que o nascimento de seus(suas) filhos(as) não acarretou mudanças quanto ao cotidiano do pai da criança. Não somente isso; entre as seis participantes, três recebiam apoio de parentes exclusivamente do gênero feminino, enquanto apenas uma participante declarou que o marido, pai de sua filha, correspondia a sua rede de apoio. Além disso, na pesquisa realizada, duas participantes abandonaram os estudos para se dedicar aos cuidados dos(as) filhos(as) e três tiveram de interrompê-los, durante sua trajetória escolar, por um intervalo de tempo (que variou de meses a anos).

As autoras do presente artigo se entristecem ao constatarem a forma como se naturalizaram as experiências vivenciadas pelas participantes da pesquisa, que envolvem a exclusão e o abandono do estudo por parte de jovens mães nas instituições de ensino. Não foram questionadas as possíveis motivações ou influências por trás de tais ações.

A partir da discussão desenvolvida no presente artigo, bem como as articulações teóricas realizadas, os objetivos da pesquisa e as informações construídas na pesquisa de campo, é possível concluir que o fenômeno da evasão escolar e/ou a interrupção dos estudos por parte de jovens mães se vincula aos estereótipos de gênero que apresentam profundas raízes históricas na sociedade brasileira.

Como base histórica e social, podemos considerar a prevalência de ideais patriarcais e da norma binária de gênero como os principais empecilhos para o prosseguimento e a conciliação dos estudos por parte de mulheres-mães, ao formarem a base das expectativas sociais tradicionalmente voltadas às atividades consideradas “femininas”, as quais se restringem ao campo doméstico e familiar (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A dominação masculina. Bertrand Brasil Editora.; Madureira, 2010Madureira, A. F. A. (2010). Gênero, sexualidade e processos identitários na sociedade brasileira: tradição e modernidade em conflito. In A. L. Galinkin, & C. Santos (Eds.), Gênero e Psicologia Social: interfaces(pp. 31-63). Tecnopolik Editora. ISBN. 978-8562313035, 2018; Parker, 1991Parker, R. (1991). Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. Editora Best Seller. ISBN. 978-8571232525). O que reflete, desse modo, a dificuldade em conciliar os estudos com a maternagem, em vista da maior demanda por cuidados dos(as) filhos(as) em relação às mulheres do que em relação aos homens (Boris & Cesídio, 2007Boris, G. D. J. B., & Cesídio, M. D. H. (2007). Mulher, corpo e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade. Revista Mal Estar e Subjetividade 2, 451-478.).

As participantes da pesquisa expressaram, inclusive, o desejo do retorno aos estudos e a compreensão da importância que a educação possui em suas vidas, seja em termos de qualidade de vida, seja em termos identitários, ao “tomarem de volta” um papel até então esquecido com o exercício da maternidade. Essa perspectiva refuta, dessa forma, o entendimento de que sua saída das escolas e universidades ocorreu por motivos meramente pessoais, como a falta de interesse próprio ou de esforço, mas sim por estar relacionada a questões sociais, históricas e culturais mais amplas. Indicando, nesse sentido, que tal cenário envolve outros fatores, como, por exemplo, fatores relacionados à rede de apoio e à divisão desigual das tarefas parentais.

Tendo em vista que o desenvolvimento de um olhar crítico e reflexivo sobre as normas sociais é de fundamental importância na práxis dos(as) psicólogos(as), que deve expressar o compromisso ético e social com a promoção da saúde e do bem-estar das pessoas, recomenda-se a realização de pesquisas futuras nesse campo, considerando-se relevante diversificar o grupo de participantes. De forma mais específica, sugere-se a realização de pesquisas futuras com a participação de uma maior diversidade de mulheres em termos de idade, escolaridade, estado civil, bem como em termos de pertencimento étnico-racial e classe social.

Além disso, considerando a escassez de pesquisas que contemplem as questões de gênero, maternidade e evasão escolar, de forma articulada à análise crítica sobre os estereótipos de gênero, torna-se necessário evidenciar a relevância da realização de novas pesquisas no campo da Psicologia, enquanto ciência e campo de atuação profissional, com o intuito de contribuir com a desconstrução cotidiana das discriminações sexistas que perpassam diferentes instâncias da nossa sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    18 Jan 2023
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