Acessibilidade / Reportar erro

ENTREVISTA COM A PROFESSORA DRA. MARILDA GONÇALVES DIAS FACCI

Entrevista con la profesora Dra. Marilda Gonçalves Dias Facci

RESUMO

A entrevista realizada com a presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE, Profa. Dra. Marilda Gonçalves Dias Facci, teve como objetivo a compreensão da trajetória trilhada pela professora na área da Psicologia Escolar, bem como as perspectivas deste campo da Psicologia, diante da Lei 13. 935/2019, que insere psicólogas e assistentes sociais na Educação. As questões foram formuladas contemplando o histórico de sua atuação; as conquistas e desafios impostos ao campo da Psicologia Educacional; os diversos âmbitos da atuação profissional nessa área; os impasses para a regulamentação da Lei 13.935/2019; a concepção sobre avaliação psicológica, considerando a teoria Histórico-Cultural e os projetos da atual gestão para o futuro da ABRAPEE. Dra. Marilda tem tido atuação marcante na Coordenação Nacional visando a regulamentação da Lei 13.935/2019 para a efetivação da atuação dos e das profissionais da Psicologia e Serviço Social na educação, em todos os municípios dos estados brasileiros.

Palavras-chave:
entrevista; psicologia escolar e educacional

RESUMEN

En la entrevista realizada con la presidente de la Asociación Brasileña de Psicología Escolar y Educacional - ABRAPEE, Profa. Dra. Marilda Gonçalves Dias Facci, se tuvo el objetivo la comprensión de la trayectoria recorrida por la profesora en el área de la Psicología Escolar, así como las perspectivas de este campo de la psicología, delante de la Ley 13. 935/2019, que introduce psicólogas y asistentes sociales en la educación. Las cuestiones se formularon contemplando el histórico de su actuación; las conquistas y desafíos impuestos al campo de la Psicología Educacional; los distintos ámbitos de la actuación profesional en esa área; los impases para la reglamentación de la Ley 13.935/2019; la concepción sobre evaluación psicológica, considerando la teoría Histórico-Cultural y los proyectos de la actual gestión para el futuro de la ABRAPEE. Dra. Marilda ha tenido actuación destacada en la Coordinación Nacional con la finalidad de lograr la reglamentación de la Ley 13.935/2019 para la efectividad de la actuación de los y de las profesionales de la Psicología y Servicio Social en la educación, en todos los municipios de los estados brasileños.

Palabras clave:
entrevista; psicología escolar y educacional

ABSTRACT

The interview carried out with the Brazilian Association of School and Educational Psychology - ABRAPEE president, PhD. Marilda Gonçalves Dias Facci, aimed to understand the path taken by the teacher in the School Psychology area, as well as the perspectives of this Psychology field, in light of Law 13. 935/2019, which includes psychologists and social workers in Education. The questions were formulated considering her history work; the achievements and challenges imposed on the field of Educational Psychology; the different areas of professional activity in this area; the challenges in regulating Law 13,935/2019; the psychological assessment conception, considering the Historical-Cultural theory and the current management’s projects for the future of ABRAPEE. The PhD. Marilda Gonçalves Dias Facci has had a notable role in the National Coordination aimed at regulating Law 13,935/2019 to implement the work of Psychology and Social Service professionals in Education, in all municipalities in the Brazilian states.

Keywords:
interview; school and educational psychology; professional activity; history of psychology

Entrevistadora: Profa. Dra. Roseli Fernandes Lins Caldas

Roseli: Quando e como foi sua escolha pela área da Psicologia Escolar e Educacional?

Marilda: Durante a graduação a minha área de interesse estava voltada, em primeiro lugar, para a área da Psicologia do Trabalho e, em segundo, para a área escolar. Iniciei a profissão trabalhando em uma empresa. Neste início de carreira a Prefeitura Municipal de Maringá abriu um teste seletivo para psicóloga/o escolar. Participei da seleção, fui aprovada e contratada. É importante destacar que durante a graduação sempre trabalhei em um Colégio Privado, em atividades burocráticas. Vivenciei o espaço da escola por muito tempo. Fui me fazendo psicóloga escolar a partir dessa minha inserção na secretaria municipal de Maringá.

Roseli: Relate sobre sua trajetória educacional e profissional?

Marilda: Trabalhei como psicóloga escolar e educacional, na secretaria de educação de Maringá, por um período de 10 anos, de 1988-1998. Depois disso, comecei a trabalhar na UEM. Fiz concurso para a disciplina de estágio supervisionado em Psicologia Escolar e Educacional e sempre ministrei disciplina desta área. A experiencia prática e a formação teórica contribuíram para que eu fosse, cada vez mais, me identificando com a área escolar. Fiz especialização na UEM, estudando o fracasso escolar e depois fiz mestrado e doutorado em educação, estas duas pós-graduações com a orientação do Prof. Newton Duarte, da UNESP-Araraquara. No mestrado pesquisei sobre a atuação da Psicologia Escolar e Educacional na rede municipal de ensino de Maringá; no doutorado pesquisei sobre o trabalho do/a professor/a, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, fazendo uma análise crítica da Teoria do Professor Reflexivo e do Construtivismo, que na minha análise esvaziam a atividade docente. Também fiz dois pós-doutorados: um na USP estudando sobre a avaliação psicológica das queixas escolares, com a supervisão da professora Marilene Proença Rebello de Souza e o outro na UFMS, pesquisando sobre o adoecimento do/a professor/a da Educação Básica, com a supervisão da professora Sonia da Cunha Urt. A possibilidade de ver as/os alunas/os se desenvolvendo, conforme vão se apropriando do conhecimento, sempre me encantou. Concordo com a Marisa Meira (2000Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. In: Tanamachi, E. de R., Rocha, M. L., & Souza, M. P. R. de (Eds.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos (pp. 35-72). São Paulo: Casa do Psicólogo. ) quando esta afirma que na escola ocorre o encontro entre a subjetividade e a educação. Partindo da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural, compreendo que a escola é responsável pela formação humana. Ela possibilita o processo de humanização, uma vez que tem como finalidade levar as/os estudantes a se apropriarem dos conhecimentos científicos e dos conteúdos curriculares produzidos nas várias ciências. A beleza desta área é ver as pessoas se desenvolvendo, ampliando a compreensão da realidade, tomando consciência de como a sociedade está constituída, criando possibilidades, na coletividade, de buscar transformação da sociedade. Na minha trajetória profissional me encontrei com a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, mas nossas/os colegas de profissão podem ter se deparado com outras importantes concepções teóricas da Psicologia e da Educação que possibilitam novas visões sobre o desenvolvimento humano e a aprendizagem, que as/os levaram a uma concepção crítica da Psicologia Escolar e Educacional.

Roseli: Em sua opinião quais os desafios e quais as conquistas da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil?

Marilda: São muitas as conquistas, e, juntamente com elas, muitos desafios. Uma conquista, e, ao mesmo tempo um desafio, é superar a visão individualizante e naturalizante do desenvolvimento humano, é não reproduzir a ideologia posta na nossa sociedade. Desde a década de 1980, com a publicação da obra de Maria Helena Souza Patto (1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, ), Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar, estamos buscando imprimir na área de Psicologia Escolar e Educacional uma visão crítica. A possibilidade de crítica foi ampliada com a entrada no Brasil, na década de 1980, da Psicologia Histórico-Cultural, que trouxe elementos acerca do desenvolvimento do psiquismo que considera a totalidade, que analisa que esse psiquismo é desenvolvido a partir de condições histórico-socais, considerando o homem como síntese das relações sociais. Essa teoria, a partir dos estudos de Vigotski (2000Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.), expõe que a aprendizagem promove desenvolvimento psicológico e enfatiza o fato de que todos os indivíduos podem aprender e se desenvolver, por meio da apropriação da cultura. Ela amplia o olhar sobre a compreensão do desenvolvimento humano, sobre a importância do processo educativo no processo de humanização, trazendo subsídios para uma prática profissional que vai muito além de visão particularizada dos fatos que permeiam o processo de ensinar e de aprender. Nessa década de 1980 também tivemos, no âmbito da educação, a elaboração, pelo Professor Dermeval Saviani (2003Saviani, D. (2003). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados.), da Pedagogia histórico-crítica, que nos mostra que a função da escola é a socialização dos conhecimentos produzidos historicamente. Essas perspectivas teóricas, fundamentadas no materialismo histórico e dialético, no caso da minha trajetória como psicóloga, professora e pesquisadora, me levou a ter uma nova visão de homem, de sociedade, de aprendizagem, do trabalho docente, entre tantos outros temas/conceitos, me instigando a pensar e propor alternativas de trabalho que consideram a vinculação entre individualidade, particularidade e universalidade. Outras reflexões, mesmo não partindo dessas teorias, foram sendo gestadas e fortalecidas em direção a uma Psicologia Escolar crítica, que trouxe avanços para a área de Psicologia Escolar e Educacional, contribuindo para a superação de um modelo clínico, tradicional de intervenção. O grande desafio, ainda, é socializar essa visão tanto entre profissionais da área como com aqueles que compõem a comunidade escolar: professoras/es, alunas/os, pais e mães, funcionárias/os. Sintetizando: a conquista é ampliar a compreensão dos indivíduos na relação com o processo educativo; o desafio é a Psicologia estar presente na escola, principalmente após a aprovação da Lei 13.935/2019 (Brasil, 2019Brasil. (2019). Lei nº 13.935, de 11 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2019/lei-13935-11-dezembro-2019-789559-publicacaooriginal-159616-pl.html . Acesso em: 10 jul. 2022.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei...
) e fazer um trabalho na coletividade da escola, em direção à emancipação humana. São as contradições que movem a sociedade e a atuação da Psicologia Escolar e Educacional, permeada por avanços e recuos. Concordo com Vigotski (1996/1927), ao discorrer sobre a crise da Psicologia, em 1927, que a grande questão da prática remete ao método de análise do homem e da sociedade. Como o autor comenta, o método é o alfa e o ômega da Psicologia; portanto, se a Psicologia Escolar e Educacional partir de um método de análise dos fatos humanos guiada por uma visão da totalidade que compõe o psiquismo e o processo educativo, esse será um grande avanço para a área, superando uma visão estigmatizante, patologizante, individualizante dos problemas que ocorrem na escola, como por exemplo dificuldades no processo de escolarização, fracasso escolar, violência na escola, desvalorização do trabalho do/a professor/a, preconceitos em relação a pessoas com deficiência, questões de gênero, racismo, entre tantos outros aspectos que têm trazido muita preocupação para aquelas/es que lidam com a educação.

Roseli: Como você vê a importância da Educação na formação de um/a psicólogo/a, independentemente da intenção de atuar na área da Psicologia Escolar e Educacional?

Marilda: O processo educativo permeia a formação humana, conforme comentei anteriormente. É por meio da educação, como afirma Leontiev (1978Leontiev, A. N. (1978). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.), que ocorre o processo de humanização. A educação é muito importante para a tomada de consciência sobre a realidade. A ciência, como propõe Vigotski (1996Vigotski, L. S. (1996). Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1960)./1960), baseado no marxismo, possibilita aos indivíduos compreender a essência dos fatos, compreender aquilo que não é apresentado explicitamente. Assim, considero que a Psicologia, independentemente da área de atuação, deve conhecer sobre educação, deve analisar as implicações do processo educativo para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, características dos seres humanos. Ao trabalhar com o ser humano, não podemos desconsiderar que os indivíduos - crianças, adolescentes e adultos -, podem estar estudando ou já passaram pelo processo de escolarização. Essa passagem traz marcas para a constituição da personalidade, pois esta é um sistema aberto, como propõe Leontiev (1978); ela vai trazer implicações na forma como o indivíduo se relaciona com as outras pessoas e consigo mesmo. A educação faz parte da constituição do homem. Analisar como o sujeito vai se constituindo, a partir da apropriação da cultura, nos coloca diante do entendimento das condições histórico-sociais que formam o homem. Ao trabalhar na clínica, na área do trabalho, na assistência social, por exemplo, não podemos deixar de compreender que muitas das pessoas que atendemos, vivenciam ou vivenciaram o processo educativo, que tem implicações na formação da subjetividade. Conhecer sobre a educação, do meu ponto de vista, é conhecer a essência humana. Por outro lado, considero que cabe à Psicologia defender os direitos humanos, entre eles o direito à educação. Nós psicólogas/os necessitamos lutar, independentemente da área em que atuamos, para que todas as pessoas tenham a garantia desse direito ao acesso aos bens culturais produzidos na história dos homens.

Roseli: Quais os âmbitos de intervenção da/o profissional de Psicologia na Educação?

Marilda: Considero que a/o profissional pode atuar com a totalidade que permeia o processo de escolarização. Uma das primeiras frentes de trabalho remete a trabalhar em prol dos direitos humanos, como comentei na questão anterior, entre eles a educação, atuando tanto na elaboração de políticas públicas como na sua efetivação. No âmbito do cotidiano da escola, a intervenção deve contemplar ações que envolvam professoras/es, estudantes, mães, pais, funcionárias/os e comunidade. Todas as ações devem estar direcionadas para a garantia de que a escola possa socializar os conhecimentos, deve ter como meta a apropriação dos conhecimentos. As Referências Técnicas para a atuação das(dos) psicólogas(os) na Educação Básica (CFP, 2019), assim como documentos relacionados à implantação da Lei 13.935/2019 - que propõe a inserção de psicólogas/os e assistentes sociais na educação - explicitam várias possibilidades de intervenção. A/O psicóloga/o deve analisar a totalidade que envolve o processo ensino e aprendizagem. Deve analisar as condições histórico-sociais que permeiam o processo de transmissão e apropriação dos conhecimentos. Parte desta totalidade, mas não deve deixar de olhar para o indivíduo, pois essa visão necessita se dar considerando a base material. É necessário analisar o sofrimento de professoras/es, famílias, equipe pedagógica e estudantes quando o processo ensino-aprendizagem não se efetiva, mas não partindo somente do indivíduo. Leontiev, ao falar da formação da consciência nos apresenta que o homem se apropria da realidade, percebe a realidade, mas que a formação desta consciência está ligada aos significados - dados socialmente - e aos sentidos, que remete à forma como a pessoa se apropria da realidade. Portanto, cabe às/aos profissionais não se aterem somente à compreensão da realidade externa, mas analisar como o indivíduo se apropria desta realidade, constituindo a sua personalidade. Não se trata aqui de compreender o sujeito partindo somente de questões externas ou internas, mas sim observando a dialética que existe entre indivíduo e sociedade, levando em conta as relações de produção. Tendo essa forma de análise como fundamento, partindo deste método de compreensão da relação indivíduo e sociedade, é possível realizar atividades com estudantes, tanto no processo de avaliação como proposição de formas de superação das dificuldades enfrentadas no processo de escolarização. A/O profissional necessita trabalhar na formação de professoras/es, levando em conta que a atividade pedagógica é fundamental para que as/os alunas/os se apropriem dos conhecimentos e se desenvolvam, valorizando o trabalho docente - uma atividade profissional que sofre precarização, como ocorre com o/a trabalhador/a na sociedade capitalista, que produz sofrimento. Outra forma de intervenção remete às mães, pais ou responsáveis pelas/os estudantes, trazendo-as/os para acompanhar o processo de ensino e aprendizagem, fazendo orientações, fornecendo subsídios para a compreensão do desenvolvimento psicológico e o processo de escolarização. Além disso, a intervenção com as/os funcionárias/os também é fundamental, pois toda a comunidade escolar deve ter um objetivo comum, direcionada ao processo de escolarização.

Roseli: Um dos seus temas de estudo é a Avaliação Psicológica na Educação. Muita/os psicólogas/os educacionais entendem que avaliação psicológica deve se dar apenas na intervenção clínica, não na educacional. Como você compreende esta concepção?

Marilda: Como falei anteriormente, a partir da década de 1980, teve início a denúncia ao caráter elitista da Psicologia, que individualizava os problemas, que patologizava as crianças, que utilizava os testes psicométricos para avaliar a inteligência, trazendo com isso classificações sem considerar o contexto em que o indivíduo vivia. Muitas/os estudiosas/os e profissionais do país construíram uma Psicologia Escolar crítica, trazendo avanços para a compreensão do processo de avaliação das dificuldades no processo de escolarização. No entanto, essa crítica, levou a uma compreensão, para muitas/os profissionais, de que a/o psicóloga/o não deveria mais fazer avaliações individuais, pois esta era uma característica da Psicologia Escolar e Educacional tradicional. Psicólogas/os passaram a negar a importância da avaliação das/os estudantes, considerando que se fizessem esta atividade estariam na contramão de uma visão crítica. De avaliador/a, psicometrista, a/o psicóloga/o passou a negar a importância da avaliação. Também sou contrária à avaliação que classifica, que discrimina, mas a partir dos pressupostos vigotskianos, podemos considerar que esse processo pode ser realizado de forma mais ampla, compreendendo as condições histórico-sociais que produzem o fracasso escolar. Para Vygotski (1996aVygotski, L. S. Obras escogidas IV. Madrid: Visor, 1996a.), a/o psicóloga/o, ao avaliar o desenvolvimento dos indivíduos, deve considerar tanto aquilo que se encontra no nível de desenvolvimento real da/o estudante - tarefas/atividades que o indivíduo realiza sozinho - como também o que se encontra em nível de desenvolvimento próximo - tarefas/atividades que a criança realiza com ajuda, com mediações. Vygotski (1996bVygotski, L. S. Obras escogidas IV. Madrid: Visor Distribuciones, 1996b.) parte do pressuposto de que todos os indivíduos podem aprender, se recursos mediadores adequados forem utilizados. Ele propõe alguns pontos que devem embasar a avaliação psicológica: fazer a análise do processo e não dos resultados; explicar e não somente descrever o comportamento; analisar a origem do comportamento e não considerar natural aquilo que está cristalizado no comportamento; fazer um diagnóstico acompanhado de sugestões de superação das dificuldades e não somente classificando os indivíduos. No processo de avaliação psicológica das dificuldades no processo de escolarização temos que envolver professoras/es, pais, mães, equipe pedagógica e a/o estudante. Considero que temos que compreender como está o desenvolvimento cognitivo e afetivo da/o estudante para, junto com professoras/es, familiares e equipe pedagógica, buscar alternativas para que o processo ensino-aprendizagem atinja seu objetivo de levar a criança a se apropriar dos conteúdos curriculares. Partimos da queixa, para compreender o que está ocorrendo com a/o estudante, mas ampliamos esse olhar analisando a forma como está estruturada a sociedade que não possibilita que todas/os tenham acesso à cultura e bens materiais de forma igualitária. De uma visão mais ampla, passamos para a análise do processo ensino-aprendizagem, buscando informações com as/os professoras/es sobre as dificuldades e potencialidades da/o estudante, identificando as atividades que a escola já realizou para auxiliar professor/a e aluna/o no enfrentamento dessas dificuldades. Além das/os professoras/es, envolvemos os pais e responsáveis pelo estudante na avaliação: realizamos entrevista com eles tendo como foco compreender o desenvolvimento afetivo e cognitivo da/o estudante, o que ele realiza com êxito e as dificuldades que encontra na escolarização e na vida cotidiana, observando a concepção que a família e responsáveis têm acerca da aprendizagem e dificuldades escolares. Por fim, fazemos várias atividades com a/o estudante, na busca de analisar como está se processando o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, tais como atenção, memória, abstração, criatividade, entre outras funções, com foco na observação dos recursos mediadores que a criança utiliza para resolver as tarefas propostas. Avaliamos, também, no contato com as/os estudantes, o vínculo e o sentido que a escola tem para elas/es. Nesse processo de avaliação é fundamental, ainda, a parceria com o/a professor/a ou pedagoga/o da escola, que fará a avaliação pedagógica e será parceira/o no fechamento do diagnóstico.

Defendo a ideia de que o processo de avaliação deve ser um processo de intervenção. A partir do momento em que iniciamos o processo de avaliação, professoras/es, mães, pais, equipes pedagógicas, começam a ter uma nova relação com a/o estudante, mudando a forma de interação e intervenção com ela/e. Em cada encontro com as/os envolvidas/os na queixa escolar, a psicóloga pode aproveitar esses momentos para fornecer subsídios teórico-práticos sobre a compreensão e encaminhamento de ações direcionadas à superação das dificuldades escolares. Na avaliação, compreendemos que é fundamental considerar o processo afetivo-cognitivo como unidade e levar em conta, sempre, que as/os envolvidas/os no processo de avaliação psicológica das queixas escolares podem estar em sofrimento psíquico e isto não pode ser banalizado. Além de a/o aluna/o sofrer, pois não está atendendo às expectativas depositadas sobre ela/e em relação à atividade de estudo, professoras/es e famílias também sofrem por não compreender o que está ocorrendo com a/o estudante e por ter dúvidas sobre a forma de proceder diante de tal problemática. Como é possível perceber, esta proposta de avaliação não tem nada de uma atuação clínica, individualizante. Ela envolve todos aquelas/es têm contato com a criança, buscando atividades/ações na escola que promovam o sucesso escolar. A/O psicóloga/o precisa compreender o que está ocorrendo com a/o estudante para auxiliar a escola na superação das dificuldades no processo de escolarização. No entanto, essa superação exige ações objetivas, definidas coletivamente na escola, para que o processo ensino-aprendizagem se efetive.

Roseli: Você tem participado intensamente na coordenação para a regulamentação da Lei 13.935, que insere psicólogas(os) e assistentes sociais na Educação. Como se deu a aprovação dessa lei? Quais os avanços já obtidos no processo rumo à sua regulamentação e quais os desafios que ainda precisam ser enfrentados para que isto se concretize?

Marilda: Foram 19 anos de tramitação do projeto até a sua aprovação. Muitas ações foram realizadas com o apoio da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE, Conselho Federal de Psicologia - CFPConselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP., Conselho Federal de Serviço Social - CFESS, Conselhos Regionais de Psicologia, Associação Brasileira de Ensino de Psicologia - ABEP, Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS e Federação Nacional de Psicólogos - FENAPSI. Representantes destas entidades compõem o grupo de Coordenação Nacional para a implantação da Lei 13.935/2019. O avanço obtido foi a própria aprovação da lei, que cria possibilidades de contratação de psicólogas/os e assistentes sociais para trabalharem na educação, em secretarias de educação, núcleos regionais de ensino e outras formas de organização das escolas em nível municipal, estadual e federal. Tenho afirmado sempre que nossa ciência já produziu subsídios teóricos e práticos que dão conta de mostrar a importância da Psicologia na Educação, realizando trabalhos coletivos em defesa do direito à educação.

Os desafios são enormes; vou mencionar apenas três: 1) compreender as especificidades do trabalho da/o psicóloga/o na educação; 2) obter recursos para o pagamento das/os profissionais e 3) criar condições dignas de trabalho para as/os profissionais. Ainda falta maior compreensão por parte de dirigentes na área da educação, professoras/es e, em algumas situações, de psicólogas/os, de que nossa ação está ligada à educação e não à saúde e assistência social. A tramitação realizada para a aprovação da lei, e mesmo agora com as ações ligadas à implantação do serviço na educação, tem mostrado o quanto que as pessoas ainda têm dificuldade de compreender que nosso trabalho não é clínico e que a Psicologia está na escola atrelada ao desenvolvimento de ações vinculadas ao processo ensino-aprendizagem. Um desafio, portanto, é mostrar para as/os educadoras/es, para as/os gestoras/es, para a sociedade, de forma ampla, o que compete à área de Psicologia Escolar e Educacional. Quanto ao financiamento, inicialmente, em 2020, após várias ações destas entidades anteriormente mencionadas, conseguimos a inclusão da Lei nº 13.935, de 2019, no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, por meio da Lei nº 14.113, de 2020, que passa ser sua principal fonte de custeio. No entanto, houve alteração do Fundeb e, em 2021, ficou definido que o financiamento da educação para o pagamento de psicólogos e assistentes sociais poderá ser feito, conforme o disposto no art. 26, Inciso II, da Lei nº 14.276, de 27 de dezembro de 2021, com a parcela dos 30%. No momento atual, nossas ações estão direcionadas para que as/os psicólogas/os sejam consideradas/os profissionais da educação, voltando a ter o pagamento das/os profissionais nos 70% do FUNDEB destinado às/aos profissionais da educação. Outro desafio refere-se à forma de contratação das psicólogas e assistentes sociais para atuarem na educação. Atualmente alguns estados e municípios estão começando a contratação, alguns por meio de concursos, outros por serviços terceirizados ou contratação de profissionais como autônomos. Nossa defesa é contratação por meio de concurso público, com posicionamento contrário à precarização do trabalho das/os profissionais. Compreendemos que psicólogas/os e assistentes sociais necessitam ter garantia para usufruir dos direitos trabalhistas adquiridos por meio de muitas lutas realizadas historicamente. Estes três desafios são os que mais se destacam, mas muitos outros se impõem, e a ABRAPEE tem buscado contribuir para que eles sejam superados. A diretoria da Associação e as oito representações estaduais têm realizado várias ações em direção ao esclarecimento à comunidade e às/aos profissionais de Psicologia, sobre as especificidades da atuação profissional na área de Psicologia Escolar e Educacional, sobre os recursos disponíveis para a remuneração das/os psicólogas/os e sobre forma de contratação e realização dos serviços. As demais entidades, parceiras nas ações realizadas pela aprovação da Lei 13.935/2019, também estão engajadas na busca de retirada de obstáculos que estão se apresentando para a implantação da Lei.

Roseli: Que orientações você daria a um/a psicóloga/o recém-formada/o que tenha interesse em atuar na área educacional?

Marilda: Primeiramente, que dê continuidade à sua formação profissional, fortalecendo a compreensão da educação escolar, da história da educação, das propostas políticas pedagógicas das escolas brasileiras e dos conhecimentos oriundos da Psicologia que vão subsidiar a atuação. É necessário compreender que a escola reflete a forma como a sociedade está organizada, que ela não é um apêndice da sociedade e que a expectativa, em uma sociedade de classes, é que ela perpetue a ideologia dominante. Sem essa compreensão, fica muito difícil pensar em ações que vão em direção à transformação dessa sociedade desigual, excludente. Fundamental, também, ter uma perspectiva teórica que forneça subsídios para compreender o desenvolvimento humano e o processo de escolarização. Fundamentos teóricos consistentes podem promover uma atuação consistente. Eu trabalho com a Psicologia Histórico-Cultural, mas outras perspectivas teóricas também podem auxiliar, fundamentar o trabalho da/o profissional. A/O profissional pode não ter consciência de qual teoria que orienta sua prática, mas por trás de sua ação tem uma visão de homem, de sociedade, de aprendizagem, de ensino, que está direcionando a intervenção. Um segundo ponto é que tenha compreensão sobre qual é o seu compromisso político. Não estou dizendo de compromisso partidário, mas compromisso com uma classe e, no caso da Psicologia Escolar e Educacional em uma visão crítica, o compromisso remete à classe trabalhadora. Nossa defesa é que a escola possa cumprir com a emancipação humana. A/O profissional precisa ter uma instrumentalização teórico-prática para desenvolver uma prática que leve em conta a potencialidade de toda a comunidade escolar. Desta forma, é imprescindível que a formação inicial e a formação continuada tenham como foco conhecimentos teóricos sobre a educação e os meandros que envolvem o cotidiano da escola, possibilitando que práticas sejam desenvolvidas que promovam o desenvolvimento de todos os envolvidos no processo de escolarização.

Roseli: Quais os seus projetos para a ABRAPEE, em sua gestão como presidente dessa tão relevante associação?

Marilda: Os projetos da ABRAPEE, do meu ponto de vista, estão amparados nos seguintes princípios: defesa da educação pública e gratuita, com acesso de todas/os à educação; defesa das políticas de ação afirmativa, políticas de inclusão, de direitos humanos e de redução das desigualdades e injustiças sociais; defesa de políticas de formação e valorização das/os professoras/es, de reconhecimento social do magistério, da profissão de professor/a; defesa de salários dignos para as/os profissionais da educação; defesa da democracia de forma ampla e defesa da compreensão do homem concreto - síntese das relações sociais. Nosso projeto principal neste momento histórico, junto com os demais membros da Diretoria da ABRAPEE, é empreender ações para que a regulamentação da Lei 13.935/2019 seja efetuada em estados e municípios. Ações políticas, elaboração de documentos, contato com educadoras/es são necessários para colaborar com a implantação do serviço de psicólogas/os e assistentes sociais. A participação das entidades já mencionadas nesta entrevista é fundamental para a implantação do serviço de Psicologia e Serviço Social na educação. Temos realizado cursos de formação de psicólogas/os tanto na ABRAPEE nacional como nas representações da Associação. Agora vamos propor cursos também para gestoras/es, educadoras/es, trabalhando com temáticas que permeiam o processo ensino-aprendizagem e mostrando como a Psicologia pode colaborar com o enfrentamento das dificuldades que se interpõem entre o ensino e a aprendizagem.Nossa proposta é, também, garantir que a Revista Psicologia Escolar e Educacional continue sendo um periódico qualificado, que veicula pesquisas e práticas desenvolvidas na área de Psicologia e áreas afins. Nossa revista é avaliada pelo Qualis Capes como A2, e a equipe de editoras e editores não mede esforços para que continue sendo um periódico na área de Psicologia Escolar e Educacional e sua vinculação com a educação. Neste ano fizemos eventos regionais nas representações estaduais e no próximo ano, em 2024, faremos o Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional, o CONPE, em São Paulo. Esse evento é muito importante para divulgarmos o que tem sido produzido e pesquisado na Psicologia e áreas afins. Além dessas ações, muitas outras atividades estão sendo realizadas pela Diretoria da ABRAPEE, pelas psicólogas que compõem as várias representações, levando informações e provocando discussões acerca dos assuntos pertinentes à educação e desenvolvimento humano. Assim como Vigotski (2001Vigotski, L. S. (2001). Psicología pedagógica: un curso breve. Buenos Aires: AIQUE ) analisa que afeto e cognição estão presentes no processo ensino-aprendizagem, essa unidade também está presente nas ações realizadas pela ABRAPEE. A cada encontro realizado nas atividades propostas pela associação vejo o quanto precisamos ser afetados por aquilo que estamos realizando em nossas vidas pessoais e profissionais. Sou imensamente grata pelos encontros que estou tendo com tantas pessoas que compõem a associação, que participam dos debates, dos eventos propostos. Participar da diretoria da Associação abriu novos horizontes para mim, possibilitou novos encontros com estudantes, pesquisadoras/es e profissionais que lutam pela educação de qualidade para todas as pessoas.

REFERÊNCIAS

  • Brasil. (2019). Lei nº 13.935, de 11 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2019/lei-13935-11-dezembro-2019-789559-publicacaooriginal-159616-pl.html Acesso em: 10 jul. 2022.
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2019/lei-13935-11-dezembro-2019-789559-publicacaooriginal-159616-pl.html
  • Conselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP.
  • Leontiev, A. N. (1978). O desenvolvimento do psiquismo Lisboa: Livros Horizonte.
  • Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. In: Tanamachi, E. de R., Rocha, M. L., & Souza, M. P. R. de (Eds.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos (pp. 35-72). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar São Paulo: T.A. Queiroz,
  • Saviani, D. (2003). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações 8. ed. Campinas: Autores Associados.
  • Vigotski, L. S. (1996). Teoria e método em psicologia São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1960).
  • Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem São Paulo: Martins Fontes.
  • Vigotski, L. S. (2001). Psicología pedagógica: un curso breve Buenos Aires: AIQUE
  • Vygotski, L. S. Obras escogidas IV Madrid: Visor, 1996a.
  • Vygotski, L. S. Obras escogidas IV Madrid: Visor Distribuciones, 1996b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Rua Mirassol, 46 - Vila Mariana , CEP 04044-010 São Paulo - SP - Brasil , Fone/Fax (11) 96900-6678 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@abrapee.psc.br