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Sobre a obra de Manoel Bomfim: Um estudo sobre lições de pedagogia: theoria e pratica da educação

About the work of Manoel Bomfim: A study of teaching lessons: theory and practice of education

Sobre la obra de Manoel Bomfim: Un estudio sobre lecciones de pedagogia: teoria y práctica de la educación

Algumas palavras sobre o autor e sua obra

Manoel José do Bomfim (1868-1932)Bomfim, M. (1932). Cultura e Educação do povo brasileiro. Rio de janeiro, Pongetti.sergipano, formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1890, mas dedicou-se fundamentalmente à educação, ao ensino e à escrita de um significativo cabedal de obras, entre livros e artigos para jornais. Catedrático de Pedagogia e Psicologia da Escola Normal do Rio de Janeiro, diretor do Laboratório de Psicologia Pedagógica do Pedagogium1 1 Primeiro laboratório de Psicologia no Brasil. Em 1902, Manoel Bomfim foi para Paris, tendo lá estudado com Georges Dumas e Alfred Binet, frequentando o laboratório anexo à Clínica Joufroy; com Binet, planejou a organização desse laboratório, que foi inaugurado em 1906, no Pedagogium. , Bomfim foi veemente defensor da democratização da educação como condição fundamental para a superação da herança colonial, fundada na exploração do homem e na espoliação das riquezas da terra. No campo da Educação e da Psicologia produziu uma vasta obra, além de livros didáticos de Língua Portuguesa, em coautoria com Olavo Bilac. Dentre eles, os seguintes livros: O facto psichico (1904); Lições de Pedagogia (1915); Noções de Psychologia (1916); Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem (1923) e O methodo dos tests (1928); postumamente foi publicado o livro Cultura e Educação do povo brasileiro (1932), premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1933.

Mais conhecidas, porém, são suas obras sobre o Brasil e a América Latina, consideradas hoje como clássicos do pensamento radical brasileiro, como A América Latina: males de origem (1905/1993), entre outras. Nessas obras, de caráter bastante crítico e fundamentadas em ampla literatura científica e filosófica, explicita-se uma visão contraposta ao ideário hegemônico brasileiro da época (que, em certa medida, perdurou por longo tempo e continua presente em muitas análises e projetos para o país), colocando-se o autor numa posição bastante crítica e muito bem fundamentada em relação ao processo de constituição histórica da nação brasileira e suas consequências para a sociedade como um todo e especificamente para as classes populares. Posicionou-se como crítico radical contra o ideário racista, levando-o a duros embates com intelectuais eminentes da época, como Silvio Romero, entre outros. Sua defesa do direito de todos à educação situava-se no bojo dessa análise, pois considerava que a democracia deveria ser alicerçada na liberdade e na justiça, o que só poderia ser conquistado por uma formação social na qual todos tivessem acesso à educação, condição para a apropriação da herança produzida pela humanidade ao longo da história.

Sua obra sobre educação é extensa, podendo ser dividida entre obras que expunham sua defesa da educação para todos como condição para o rompimento com a herança colonial e a construção de uma nova sociedade (incluindo muitos artigos escritos nos jornais da época) e obras relacionadas ao ensino de Pedagogia e Psicologia na Escola Normal. Destas últimas destacam-se pela organização em livro e pela sistematização cuidadosa: Lições de Pedagogia (1915), Noções de Psychologia (1916), Pensar e Dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem (1923) e O methodo dos Tests (1928). As duas primeiras obras constituem-se em compêndios escritos para dar suporte teórico às aulas para as normalistas; a terceira é eminentemente teórica, na qual o autor expõe o tema com profundidade, com base numa ampla e atualizada bibliografia da época e estabelecendo mediações com a prática pedagógica desenvolvida na Escola de Aplicação com as alunas normalistas. A quarta obra tem caráter mais prático e expõe as experiências práticas e de pesquisa desenvolvidas na já referida Escola de Aplicação a respeito dos testes pedagógicos (os testes "mentais" são citados, mas o foco está no processo de avaliação da aprendizagem, como instrumento para a promoção das atividades de ensino-aprendizagem).

Neste texto será analisada especificamente a obra Lições de Pedagogia, a primeira, em ordem cronológica, publicada pelo autor, dentre as que ele trata das relações entre Educação, Pedagogia e Psicologia.

A obra Lições de Pedagogia

O prefácio da primeira edição é datado de 1915 (o prefácio da segunda edição é de 1917, havendo edições também datadas de 1920 e 1926); a obra aqui em análise foi publicada em 1926. A data da primeira edição deste livro tem particular importância para análise, sobretudo por sua originalidade e contemporaneidade, próprias da produção do autor.

O primeiro contato com Lições de Pedagogia ocorreu por ocasião do estudo das obras sobre Educação e Psicologia produzidas no Brasil nas primeiras décadas do século XX (Antunes, 1991Antunes, M. A. M. (1991). O processo de autonomização da Psicologia no Brasil (1890-1930): uma contribuição aos estudos em História da Psicologia. São Paulo, tese de doutorado, PEPG em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Até esse momento, as referências historiográficas sobre o autor limitavam-se ao fato de ter sido ele professor de Pedagogia e Psicologia na Escola Normal do Rio de Janeiro e diretor do primeiro laboratório de Psicologia no Brasil; poucas e vagas eram as referências a suas ideias e, portanto, nada indicava a possibilidade de serem elas substancialmente diferentes do que se produzia na época. Desse modo, a leitura de suas obras fazia parte de um cronograma de trabalho que deveria obedecer a uma sequência previamente estabelecida. Outras obras, de outros autores, já haviam sido lidas, sistematizadas e analisadas quando este livro foi analisado, o primeiro de Manoel Bomfim que seria analisado, por ser cronologicamente o mais antigo dentre os identificados em sua produção bibliográfica nas áreas de Educação e Psicologia. Logo no início da leitura, surpreendeu a data do prefácio da primeira edição, 1915, pois as ideias ali desenvolvidas eram muito distintas daquelas desenvolvidas em outras obras contemporâneas já analisadas. A outra hipótese era de que uma leitura errônea estaria sendo feita, provavelmente introduzindo ideias de outros autores que estavam sendo também estudados à época e que não faziam parte da pesquisa em foco; mais precisamente as ideias de Vigotski, autor adotado no ensino de Psicologia da Educação naquele momento. A hipótese, porém, não se confirmou; de fato a obra de Bomfim era diferente de todas as outras analisadas para aquela pesquisa até então e continha muitas semelhanças com o autor russo adotado nas atividades de ensino, com a ressalva de que este só começaria a produzir seus escritos cerca de dez anos depois. Naquele momento despontava o mais importante achado daquela pesquisa, a tal ponto que até hoje, passados mais de 20 anos, há ainda muito a estudar desse fecundo e original pensador brasileiro.

É importante sublinhar que em sua obra também aparecem concepções próprias de sua época e que já foram criticadas e há muito superadas, assim como ideias que embora ainda permaneçam nos campos pedagógico e psicológico não deixam também de ser criticáveis. Contudo, isso não invalida o conjunto de sua produção e, no caso deste texto, de Lições de Pedagogia, pois muitas de suas ideias e sua contribuição à compreensão dos fenômenos educacionais em geral e, em particular, de sua dimensão psicológica são, além de contemporaneamente aceitas, reveladoras de uma concepção histórico-social de psiquismo.

O livro Lições de Pedagogia é apresentado como um resumo das aulas ministradas pelo autor na Escola Normal do Rio de Janeiro, na cadeira de Pedagogia e Psicologia. Mais precisamente, esta obra era utilizada no ensino de Pedagogia, pois Bomfim preferia separar os dois conteúdos, adotando Noções de Psychologia para o ensino de Psicologia. Entretanto, este livro constitui-se num verdadeiro tratado de Psicologia da Educação, pois o próprio autor a considera como uma obra de "psicologia formal", que se complementa com a outra. Embora Bomfim a considere como um "resumo", trata-se de um trabalho de 440 páginas, abordando os assuntos por meio de longas e profundas análises sobre os elementos fundamentais da Pedagogia e especialmente suas relações com a Psicologia.

O autor define, na introdução, Pedagogia como sistematização teórica e corpo de doutrinas que têm como finalidade subsidiar a educação (seu objeto), cujo caráter é fundamentalmente prático. Não considera a Pedagogia uma ciência, pois não haveria uma ciência da educação, mas ciência na educação. A Pedagogia é antes a sistematização científica dos processos educativos, existindo como esforço de tornar a educação uma prática metódica e fundamentada nos conhecimentos científicos.

A educação, por sua vez, constitui-se, para ele, numa prática que se aplica à formação da personalidade, buscando prepará-la e adaptá-la às condições da vida humana. A adaptação é vista como capacidade que revela a superioridade do ser humano, pois é ele dotado de potenciais adaptativos extremamente desenvolvidos, de natureza psíquica consciente, determinados fundamentalmente por fatores de ordem social. Percebe-se aqui, como em outras obras do autor e de seus contemporâneos, a presença marcante da escola funcionalista em Psicologia, que afirma a função adaptativa das funções psicológicas. Entretanto, para ele, o processo adaptativo, embora tenha também determinações hereditárias, é concebido como determinado fundamentalmente pelas relações sociais. Diz o autor (1915, p. 13): "Toda superioridade da espécie humana está, pois, nesse psychismo socialisado, que permite condensar em cada individualidade, em cada consciência, a experiência de todas as outras: e a educação vem a ser a forma de transmissão psychica dos processos e capacidades adaptativas".

Para se realizar os fins da educação, é necessário conhecer os processos psíquicos envolvidos nesse processo, assim como subsidiar tal conhecimento na ciência. Justifica-se dessa maneira a importância da Psicologia. Afirma Bomfim: "(...) a pedagogia se deve inspirar em todas as sciencias - phisicas, naturaes, historicas e sociaes. Destas, porém, há uma que lhe dá os principais subsidios. É a Psychologia" (Bomfim, 1915Bomfim, M. (1932). Cultura e Educação do povo brasileiro. Rio de janeiro, Pongetti., p. 14).

A finalidade precípua do processo educativo é a formação da personalidade. Esta é concebida como harmonia e síntese da vida consciente, em constante mudança e eminentemente social. Afirma, ainda, o autor:

Por outras palavras, a personalidade é uma synthese psychica, autonoma e completa, ao mesmo tempo que é a individualidade consciente, associada e relacionada na harmonia do viver social, e inteiramente dependente delle. A formação da personalidade corresponde, justamente, à incorporação do individuo no conjunto das relações que constituem a organização social. (Bomfim, 1915Bomfim, M. (1915/1926). Lições de Pedagogia, 3ª. ed. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves., p. 15).

Cabe à Educação contribuir, portanto, para a concretização do processo denominado pelo autor como formação da personalidade. O desenvolvimento da personalidade implica, pois, o processo educativo, que é o trabalho de formação psíquica do indivíduo, articulado com os processos e recursos adaptativos de natureza consciente. É a adaptação que permite ao homem o domínio sobre a natureza, realizando-se conscientemente pela inteligência, entendida esta como processo de base psicossocial. O psiquismo se concretiza pela consciência e é socializado, constituído por representações. Diz Bomfim: "(...) em todos os actos conscientes se reflecte o viver social, porque a nossa consciência se forma por uma espécie de absorpções e assimilação da experiência geral" (1915, p. 23).

Para o autor, o desenvolvimento da personalidade implica a passagem por diferentes fases. As primeiras reações da criança são mecânicas e reflexas, manifestando-se por exercícios sensoriais e motores. Segue-se a isso a aquisição de reações e seu desdobramento em novas formas reativas, normalização e correção. O desenvolvimento da personalidade é visto como processo contínuo de normalização, baseado na substituição de reações. Também são associados a essa discussão fatores como: hábitos, imitação, invenção, sugestão, fantasia e, com destaque, a concepção de que o brinquedo é uma expressão do mundo psíquico da criança e um ensaio da vida real. A educação é concebida como processo que produz o desenvolvimento da criança, que, para cumprir tais finalidades, deve abranger três instâncias: a Educação Física, a Educação da Inteligência e a Educação Moral.

A Educação Física deve promover a cultura física, inseparável das condições de sociabilidade, porque é nesse nível que se situam as dimensões humanas de trabalho e produção. Estabelece relação também entre educação e saúde. A Educação Física deve atuar como profilaxia da saúde e como reforço e apuro das energias, relacionadas ambas com a Higiene e a Ginástica. É importante ressaltar que Bomfim, nesse aspecto, fazia eco às concepções correntes na época, em que a Higiene Escolar ocupava significativa presença no debate educacional, tratando de especificações ambientais e arquitetônicas necessárias para a preservação da saúde da criança; no entanto, não se pode generalizar essa ideia, confundindo-a com o higienismo, cujo caráter é essencialmente distinto. Trata-se, em Bomfim, de considerar a saúde como um direito e como condição para o desenvolvimento. A preocupação dele vai além, concebendo esse tipo de educação numa perspectiva materialista e, sobretudo, articulada à questão específica do trabalho. Não há referência a Marx, embora em muitos momentos apareçam formulações que muito se aproximam de suas ideias, sobretudo se se considerar a importância dada à consciência e sua constituição eminentemente social e, nesse caso específico, sua base material, representada pelo trabalho2 2 Em entrevista com Luís Paulino Bomfim, seu neto, soube-se que as obras de Marx foram estudadas sistematicamente por Manoel Bomfim. .

Sobre a Educação da Inteligência, entende Bomfim que é esta a dimensão mais propriamente educável do ser humano e constitui-se como principal finalidade do processo educativo. A inteligência é caracterizada como um modo superior de apreensão, conhecimento e apreciação do mundo externo; concebida como processo ativo e articulado, é vista como uma função sintética, que se realiza pelas representações e pela organização destas em busca de elaborações ulteriores.

A Educação da Inteligência tem como finalidade a multiplicação e a elevação desta função psicológica, devendo levar o aprendiz a atingir o conhecimento de maneira sistematizada, apurada e metódica. A criança precisa superar o senso-comum e ascender a uma compreensão fundamentada do mundo. O autor elege dois fatores básicos nesse tipo de educação: conteúdo (material aproveitável e aplicável) e método (orientação da atividade mental propriamente dita). O método deve recapitular abreviadamente o processo científico, sendo este um recurso para a apropriação do saber. O conhecimento e sua aquisição são a base da educação da inteligência, sendo esta considerada como função representativa, isto é, como conteúdos da consciência, dependente da lógica própria da criança, produto de seu processo de socialização.

Com base nesses pressupostos, o autor aponta para as funções psicológicas envolvidas no processo educativo. Aborda o desenvolvimento sensorial e perceptivo e seu correlato educativo que é a "cultura das sensações", especificando a educação de cada um dos sentidos. Enfatiza a necessidade do desenvolvimento do pensamento abstrato, partindo de elementos concretos, relacionados às questões de juízo e verdade, cuja base é o raciocínio, em relação ao qual aborda especificamente o papel da indução e da dedução. Trabalha também com a imaginação, entendida esta como capacidade de construção e concepção mental, de natureza abstrata ou concreta, demonstrando sua aplicação ao ensino de diferentes disciplinas, especialmente História e Geografia, além de dar sugestões práticas para sua efetivação.

Também é tratado outro conjunto de funções psicológicas, denominadas "condições da vida mental", que se referem à memória, à associação de ideias e à atenção, todas elas de natureza representativa. Destas, particularmente é interessante a maneira como ele articula a atenção à aprendizagem; a atenção pode ser ativa ou passiva, tendo direta relação com o interesse; afirma que a educação deve cultivar a atenção ativa, interessada e refletida, característica dos estudiosos. Daí, conclui pela necessidade de se promover o "ensino interessante"; para isso, sugere despertar a curiosidade da criança pelo estímulo da própria lição, por assuntos compreensíveis, relacionados à vida da criança e aqueles que são interessantes por si próprios. A isso, acrescenta a análise sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento infantil.

Um capítulo inteiro é dedicado à linguagem3 3 Bomfim desenvolve esse tema em outras obras, dentre elas Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem (1923). , considerada concomitantemente como objeto da Educação e instrumento do ensino. À escola cabe criar condições para que a criança se expresse fácil e corretamente e, ao mesmo tempo, instruí-la nas regras da gramática. Desnecessário é dizer que a análise que o autor faz da linguagem é calcada em seu fundamento eminentemente social; diz ele que a linguagem é: "(...) o instrumento principal da communicação das consciencias, e tem função nimiamente social" (Bomfim, 1915Bomfim, M. (1915/1926). Lições de Pedagogia, 3ª. ed. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves., p. 169).

A linguagem é considerada como forma de expressão e de elaboração do pensamento, necessária para a aquisição da abstração, baseada essencialmente na simbolização. Para o autor, a linguagem extrapola a questão meramente gramatical, devendo tornar-se instrumento de verificação e correção de toda a educação intelectual.

Bomfim aborda vários problemas relativos à linguagem, relacionando-os ao ensino. Dedica especial atenção ao ensino e à aprendizagem da leitura e da escrita, considerando-as diferentes, em natureza, da linguagem falada, pois aquelas constituem-se em associações de sons e articulações com signos específicos e não meramente expressão de nomes e de ideias, sendo na verdade "figuras de sons"; devem ser ensinadas de maneira sistemática, não podendo ser um processo mecânico e desprovido de significado para a criança.

Sua concepção de linguagem aproxima-se da de Vigotski, especialmente no que diz respeito à gênese histórico-social, à relação com a consciência e à mediação com a função simbólica, entre outros elementos. Esta obra de Bomfim é anterior às de Vigotski, o que mostra que suas ideias não sofreram influência direta do autor russo, mas provavelmente ambos partiram de elementos comuns, sendo suas análises e interpretações baseadas em princípios e fundamentos semelhantes. Vale lembrar que Vigotski fundamentou seu trabalho no Materialismo Histórico-dialético, do qual encontram-se traços sugestivos também em Bomfim.

São tratadas questões específicas sobre o ensino de determinadas disciplinas e os problemas a elas relacionados. Dedica um capítulo a cada disciplina, abordando: Matemática, Geografia, História e Ciências Físicas e Naturais, além da Lição de Coisas. Preocupa-se em definir o objeto de cada disciplina e o objetivo de seu ensino, assim como seus problemas e alguns indicativos para sua superação. Essa discussão realiza-se por meio da articulação entre as especificidades de cada disciplina e as funções psicológicas nelas envolvidas.

O autor trata também do ensino dos Trabalhos Manuais, que teriam a função, dentre outras, de subsidiar a Educação Moral. Diz ele, sobre isso:

São varios e muito importantes os effeitos da pratica dos Trabalhos Manuaes sobre a educação moral. (...) devemos assignalar a reação concreta e positiva que, deste modo, se faz contra o preconceito que despreza, por aviltante e inferior, toda occupação manual, toda profissão que se caracteriza pelo trabalho phisico." (p. 313)

Afirma ele que o trabalho manual mostra à criança o produto de seu trabalho de maneira concreta, sendo esta uma maneira de estimular o "amor ao trabalho" e canalizar as energias da criança para o prazer da ação e da realização. Pode-se dizer que, nesse ponto, Bomfim sugere a dimensão transformadora da realidade pelo trabalho.

A Educação Moral é vista como síntese de fatores histórico-sociais e psíquicos, sendo esta a condição essencial da vida humana; a inteligência é apenas um instrumento, que deve ser provido pela moralidade, formando o sujeito para solucionar as questões da vida, questões estas que se constituem nas mais importantes e nas mais difíceis. Para ele, esse nível da educação cabe antes à família e sua complementação à escola.

Nesse plano, são também discutidas as questões relativas à vida afetiva, sobretudo a formação e o desenvolvimento dos sentimentos. São estes divididos em três categorias: egoístas, simpáticos e estéticos e desinteressados, estes últimos responsáveis pela harmonia moral, cuja finalidade seria cultivar o sentimento de justiça, a atração pela verdade, a busca do conhecimento etc.

Finalmente, Bomfim relaciona a Educação com a função "vontade", articulada com a formação do caráter. Nesse ponto, aparecem na obra do autor alguns fundamentos inatistas e essencialistas, bem próprios da época, em relação aos quais a educação deveria agir como corretivo de tendências próprias da criança.

À Educação cabe, pois, o apuro do caráter, baseado na vontade da criança, na qual se inclui a obediência e a disciplina. Considera ele que a obediência é um traço natural na criança pequena, cuja função é adaptativa e provisória, cabendo ao educador transformá-la em autonomia e sentimento de responsabilidade. A disciplina, por sua vez, deve ser ativa, resultante da regularidade do trabalho e da racionalidade do método empregado no ensino, tendo ela como base a liberdade. Vê-se nessas elaborações a incorporação de ideias bem próprias da época, particularmente na Pedagogia, que admitiam um caráter "natural" e, portanto, inato de algumas condições psicológicas. Nesse ponto, as ideias de Bomfim se assemelham às de Maria Montessori, particularmente no que diz respeito à concepção de disciplina e sua relação com o desenvolvimento da autonomia, devendo ser adequadamente trabalhada na escola para que possa cumprir essa finalidade.

A questão da Educação Moral é tema recorrente entre os autores da época, porém, em Manoel Bomfim, encontram-se semelhanças e diferenças em relação aos demais. Assemelha-se no que diz respeito à ideia de que a Educação Moral ocorre no indivíduo, tem caráter fundamentalmente psicológico e como finalidade última a formação do caráter. Mas, por outro lado, vai além, pois dá à Educação uma finalidade mais ampla, eminentemente social, baseada na liberdade e na responsabilidade. Esse traço o diferencia de outros autores da época; a obediência, por exemplo, é, para Bomfim, o meio para que o sujeito assuma sua autonomia e, para outros autores, a base da harmonia social, manifestada pelo respeito e conformação às leis estabelecidas.

Manoel Bomfim conclui a obra procurando demonstrar que o homem está em busca constante da felicidade, expressa na criança pela busca do prazer imediato e no adulto pela consciência de que o prazer imediato é passageiro (ideia esta que se aproxima dos conceitos referentes aos princípios de prazer e de realidade elaborados por Freud). Para ele, há três formas de prazer que asseguram a felicidade humana e que estão sustentados na atividade, afastando os desejos egoístas e proporcionando o prazer de agir e produzir uma obra; são eles: os prazeres estéticos, os intelectuais e os simpáticos.

Finalmente, é preciso acrescentar que Bomfim aborda neste livro questões especificamente relacionadas à prática pedagógica, sendo a obra um exercício analítico do processo educativo, que poderia ser considerado como conteúdo próprio daquilo que mais tarde viria a ser denominado de Psicologia da Educação. Entretanto, o autor não se omite de explicitar seu posicionamento sobre a função social da escola, particularmente no que se refere à instrução primária, para a qual defende a obrigatoriedade, a gratuidade, a laicidade e o dever do estado de provê-la para todos; defende, sobretudo, a necessidade de criação de escolas em número suficiente para atender a toda a população.

Lições de Pedagogia é qualitativamente distinta de outras obras produzidas na época, não apenas no que diz respeito à visão de Psicologia e de Educação, mas às concepções de homem, mundo e sociedade que lhes dão base. Bomfim desenvolve, como outros autores, temas tratados pela Psicologia Geral, articulando-os às finalidades educativas e aos processos pedagógicos, porém, suas concepções distanciam-se do reducionismo e da biologização próprios da época, assim como das perspectivas funcionalistas da ciência psicológica, que embora tenha sobre ele significativa influência, não se pode dizer que suas concepções permaneçam em seu âmbito restrito e a elas se reduzam. A concepção de Bomfim sobre o fenômeno psíquico é mais ampla, tendendo para a apreensão de sua complexidade, totalidade e multideterminação. Esta obra revela um alto grau de aprofundamento e um efetivo exercício de análise; suas concepções e posições sobre as relações entre Educação e Psicologia guardam indiscutível contemporaneidade, especialmente no que diz respeito à determinação histórico-social do fenômeno psicológico, além de apontar com clareza as articulações entre teorias pedagógicas, ciência psicológica e prática educativa, sem cair no psicologismo ou outras formas de reducionismo. Entretanto, deve-se prevenir o leitor que esta obra deve ser lida como produção datada, ainda que antecipe posições que só posteriormente viriam a ser desenvolvidas, que traga ideias bastante contemporâneas, que seja muito diferente do que se produziu na época, pois sem esse cuidado pode-se correr o risco de cobrar do autor muito além do que o muito que ele produziu.

Embora o título da obra remeta especificamente à Pedagogia e tenha sido ela escrita para utilização dos alunos na disciplina de mesmo nome, é possível considerá-la como obra de Psicologia e, mais especificamente, de Psicologia da Educação. Seu conteúdo, como se espera ter demonstrado nas linhas acima, trata de maneira exaustiva a prática pedagógica, tendo como base a relação que se estabelece entre ensino e aprendizagem, abordando os fundamentos dessa relação a partir de um exercício analítico, que tem no fenômeno psicológico a base na qual o processo educativo se processa e se concretiza.

O conteúdo deste livro difere muito da abordagem sobre o tema em outras obras da época, também escritas como compêndios de Pedagogia para uso nas Escolas Normais e que têm a Psicologia como ciência base da ação pedagógica, como a obra de Sampaio Dória, Principios de Peddagogia: ensáios, de 1914Dória, A. de S. (1914). Principios de pedagogia: ensáios São Paulo, Pocai-Weiss e C. Editores., tanto pela concepção de Educação, Pedagogia e Psicologia, como pelas concepções de homem e sociedade. Sampaio Dória (1914) adota uma concepção evolucionista spenceriana, que afirma que desenvolvimento do psiquismo se baseia na teoria da recapitulação abreviada e a educação deve se fundamentar nesse princípio para determinar as práticas pedagógicas; em outras palavras, uma visão biologizada de psiquismo e sociedade.

Entretanto, deve-se considerar que esta obra constitui-se, cronologicamente, no primeiro livro do autor, sistematizado e organizado, sobre Educação, Pedagogia e Psicologia. Uma compreensão mais sintética do pensamento de Bomfim exige que suas outras obras sejam analisadas e cotejadas, para que se tenha ideia do aprofundamento de determinados temas empreendido pelo autor e das mudanças ocorridas em seu modo de pensar.

Referências

  • Antunes, M. A. M. (1991). O processo de autonomização da Psicologia no Brasil (1890-1930): uma contribuição aos estudos em História da Psicologia. São Paulo, tese de doutorado, PEPG em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
  • Bomfim, M. (1904). O facto pschico Rio de Janeiro, Tipografia Espíndola.
  • Bomfim, M. (1905/1993). A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro, A Noite (ed.) e Topbooks.
  • Bomfim, M. (1915/1926). Lições de Pedagogia, 3ª. ed. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves.
  • Bomfim, M. (1916). Noções de Psychologia Rio de Janeiro, Livraria Escolar.
  • Bomfim, M. (1923/2006). Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem. Rio de Janeiro, Casa Electros; Brasília, Conselho Federal de Psicologia e São Paulo, Casa do Psicólogo.
  • Bomfim, M. (1928). O methodo dos Tests: com applicações à linguagem do ensino primário. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
  • Bomfim, M. (1932). Cultura e Educação do povo brasileiro. Rio de janeiro, Pongetti.
  • Dória, A. de S. (1914). Principios de pedagogia: ensáios São Paulo, Pocai-Weiss e C. Editores.
  • Ribeiro, D. (1993). Manoel Bomfim, antropólogo. Em: M., Bomfim. A América Latina: males de origem Rio de Janeiro, Topbooks.
  • 1
    Primeiro laboratório de Psicologia no Brasil. Em 1902, Manoel Bomfim foi para Paris, tendo lá estudado com Georges Dumas e Alfred Binet, frequentando o laboratório anexo à Clínica Joufroy; com Binet, planejou a organização desse laboratório, que foi inaugurado em 1906, no Pedagogium.
  • 2
    Em entrevista com Luís Paulino Bomfim, seu neto, soube-se que as obras de Marx foram estudadas sistematicamente por Manoel Bomfim.
  • 3
    Bomfim desenvolve esse tema em outras obras, dentre elas Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem (1923).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2016
  • Aceito
    15 Ago 2016
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