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“Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência”: Walter Benjamin e a paixão pela cidade e pela história “porosas”

“Living in a glass house is a revolutionary virtue par excellence”: Walter Benjamin and the passion for the “porous” city and history

Resumo

Walter Benjamin escreveu muito sobre cidades e arquitetura ao longo de sua obra. Seja em jornais de viagens, em ensaios dedicados a determinadas formações urbanas, em textos autobiográficos, na sua teoria do flâneur, ou em sua teoria estética, as cidades sempre estiveram em um local central. A cidade ideal de Benjamin não é clássica, “bela”, mas, antes, marcada pela circulação de pessoas, pela “interpenetração” (Durchdringung) e pela “porosidade”. Essa cidade perfurada se metamorfoseia em sua própria filosofia da história, já que pare ele também o tempo é poroso.

Palavras-chave:
Walter Benjamin; cidade porosa; interpenetração

Abstract

Walter Benjamin wrote a lot about cities and architecture as we can see in his lifework. We find then in the canter of his thoughts in his travel diaries, in essays dedicated to some specific urban formations, in autobiographical texts, in his flâneur and in his esthetical theory. His ideal city was not classical and “beautiful” but rather characterized by the people circulation, by “interpenetration” (Durchdringung) and “porosity”. This pierced city is metamorphosed inside his history philosophy where he imagines a porous time.

Keywords:
Walter Benjamin; porous city; interpenetration

Encontrar palavras para o que temos diante dos olhos - como isso pode ser difícil. Mas quando elas aparecem, batem com pequenos martelos contra o real, até extraírem dele a imagem como se de uma placa de cobre.

(Benjamin 1972bBenjamin, W. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972b. v. IV.: 364, tradução nossa)

Quem não tem pátria sente-se em casa em toda parte. O exilado, no entanto, oscila inicialmente entre o luto melancólico de sua origem e a busca de uma nova casa. Conquistar a apatricidade como um trunfo é feito de poucos. Benjamin e sua paixão pelas cidades dá testemunho disso. Ele amou sua cidade natal, Berlim, e dedicou a ela textos que se tornaram marcos na construção literária dessa capital. Por outro lado, ao longo de sua vida ele teve que se mover constantemente, ir de cidade em cidade em um misto de paixão pelo diferente e de necessidade de buscar locais onde poderia sobreviver. Foi primeiro um exilado econômico e, depois de 1933, com a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha, um banido político.

As cidades aparecem sob sua pena na forma de diários de viagem, de reflexões autobiográficas acerca de sua infância e sua cidade natal, em imagens de cidade (Städtebilder) e como parte de uma potente sociologia e filosofia da cidade. Ele comungou da paixão das vanguardas da primeira metade do século XX pelas cidades. Seu volume de fragmentos sobre a vida moderna, programaticamente batizado de Rua de mão única (Einbahnstraße), é prova disso. Sua admiração pelos surrealistas franceses, como por Louis Aragon (autor de Le paysan de Paris), alimentou essa paixão. Entre os alemães, além de Siegfried Kracauer, autor das “Observações de Paris” (“Pariser Beobachtungen”, 1927), que Benjamin reconheceu como tendo influenciado diretamente seu texto sobre Moscou (Cf. Benjamin 1997Benjamin, W. Gesammelte Briefe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997. v. 3.: 235), foi também amigo de Franz Hessel, o grande difusor e propagandeador da flânerie na Alemanha do entre-guerras. Hessel traduziu com Benjamin parte da obra de Proust Em busca do tempo perdido e essa veneração pela poética de Proust contaminou o modo de Benjamin se relacionar com a sua própria cidade. Além disso, o grande projeto de Benjamin, que o acompanhou de 1926 até a sua morte, o seu projeto sobre as passagens de Paris, visava fazer uma arqueologia do século XX, de seus fantasmas e mitos, a partir de um mergulho na cidade de Paris no século XIX. Naquele fenômeno urbano único, Benjamin pretendeu conjurar aqueles fantasmas. A morada predileta deles seria, antes de mais nada, as passagens comerciais, assombradas pelo fetiche da mercadoria, mas que servia também de passarela para o irreverente flâneur, que em seu deambular ocioso e profanador ia contra a lógica do sistema com seu mote “tempo é dinheiro”.

Para se falar de algo é preciso existir distância. Benjamin, em seus textos sobre a cidade, não foge a essa regra. Como ele mesmo anotou na resenha ao volume de Franz Hessel, Spazieren in Berlin (Caminhar em Berlim), com relação ao local de nascimento do autor, existem dois tipos de aproximação da cidade: a feita pelos que lhe são nativos e pelos de fora. Os nativos são minoria dentre os autores de descrições de cidade, justamente porque não conseguem a distância necessária para escrever sobre a sua cidade. Essa distância é, no entanto, conquistada pela via do tempo, ou seja, através do mergulho na infância do autor. A viagem pelos labirintos da cidade transforma-se em um errar (proustiano) pelos descaminhos da rememoração. A cidade é vista como um “dispositivo mnemotécnico” (“mnemotechnischer Behelf”) (Benjamin 1972b: 194), que revela sua superfície como estando envolta pelas nuvens da memória. Mas Benjamin manteve sua distância também com relação a Proust. Ele procurou acrescentar ao elemento subjetivo de sua viagem na memória o elemento objetivo, da descrição sócio-psicológica. E mais, como Peter Szondi (1978Szondi, P. Benjamins Städtebilder [1972]. In: Szondi, P. Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1978, p. 295-309.: 297, tradução nossa) destacou em um posfácio ao livro Städtebilder de Benjamin, “o ‘tempo perdido’ de Benjamin não é o passado, mas sim o futuro”. Ele busca no passado não apenas a origem dos mitos do presente (para desconstruí-los), mas também as “centelhas da esperança”, os sonhos não realizados. Como Benjamin (2012a: 243-244, grifo do autor) escreveu nas suas teses “Sobre o conceito da história”:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo. […] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer.

O universo da cidade em Benjamin se revela também como um cosmos gramatológico. Ele vê na cidade um livro e um mundo a ser lido.2 2 Conferir, por exemplo, nos fragmentos de Rua de mão única, “Arquitetura de interiores” e “Mercadoria: expedição e empacotamento” (1972a: 111, 133) e no fragmento “Paris, a cidade no espelho”, de suas Imagens do pensamento (1972a: 356-359). Uma das formulações mais eloquentes de Benjamin (2012b: 26) nesse sentido está em Rua de mão única no fragmento “Guarda-livros juramentado”: “A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma”. Sobre o tema da leitura do mundo em Benjamin, remeto a Seligmann-Silva (1999). Também Hessel (1999Hessel, F. Die Kunst spazieren zu gehn. In: Hessel, F. Ermunterungen zum Genuss, Teigwaren leicht gefärbt, Nachfeier. Die “kleine Prosa” 1926-1933. Berlin: Das Arsenal, 1999, p. 337-341.: 340) encarou a cidade como um livro, como lemos em seu delicioso texto “A arte de caminhar” (“Die Kunst spazieren zu gehn”): “O verdadeiro caminhante é um leitor, que lê apenas como passatempo […] A rua, portanto, é um tipo de leitura. Leia-a. Não julgue”. Mas esse mundo semiótico que é lido e interpretado por Benjamin, vale dizer, ainda é traduzido para uma linguagem cheia de imagens, que não deixa cair no plano do puramente conceitual o complexo volume multianguloso do fenômeno urbano, que ele sempre via do ponto de vista tanto do urbanismo, da arquitetura, como também de sua ocupação humana. A cidade para ele, afinal, é um palco político e uma superfície viva, construída por desejos, lutas, sexo, poder e sofrimento. Suas descrições da cidade, seja nas suas imagens de cidade, seja nas recordações de Berlim, tendem o tempo todo para as metáforas e alegorias. O texto da cidade é traduzido em imagens que, por sua vez, conclamam o leitor a fazer a sua própria leitura, a realizar a sua interpretação da cidade transformada em enigma imagético. A nossa epígrafe é justamente extraída da imagem da cidade de San Gimignano e expressa essa preocupação de Benjamin em buscar moldar com as palavras o real: calcar o real nas palavras. E das palavras deve nascer, transformada, a realidade como composto dialético de palavras e imagens.

1 Rua de mão única

O volume Rua de mão única já no nome indica tanto um fenômeno do tráfico moderno, como também sugere um enigma, como uma inscrição em um emblema barroco. E a imagem da capa original do livro, uma típica fotomontagem ao modo vanguardista da época, de autoria de Sasha Stone, reforça essa ideia de uma obra que quer traduzir o espaço urbano em uma obra literária e imagética: plena de imagens do pensamento. É fácil identificar o quanto essas imagens foram também decantadas a partir de um filtro bastante emotivo e muitas vezes sexualizado. A cidade ora é uma mulher sedutora, ora o local onde se esconde a mulher desejada. Cidade e sexo são inseparáveis e é conhecido que a deambulação pelas ruas muitas vezes aparece na literatura como Ersatz do ato sexual. Outros fragmentos mostram a preocupação política crescente de Benjamin, que a partir de 1925 se viu como um desempregado obrigado a escrever (inclusive as suas imagens de cidade) para poder sobreviver. A cidade surge como um campo minado em cujo seio gesta-se uma revolução. O obelisco da Place de la Concorde, em Paris, dá ensejo para uma reflexão sobre o “trânsito espiritual” que ocorre na cidade. Alguns fragmentos desenvolvem o importante tema da dialética da proximidade/distância na visão da cidade: “O que torna tão incomparável e tão irrecuperável a primeiríssima visão de uma aldeia, de uma cidade na paisagem, é que nela a distância vibra na mais rigorosa ligação com a proximidade. O hábito ainda não fez sua obra” (Benjamin 2012b: 44). Essa formulação dá a chave para entendermos um pouco da atividade do Benjamin escritor sobre as cidades: ele busca em seu andar/escrever reconquistar essa força do primeiro olhar, ainda não embaçado pelo musgo do hábito ou costume, que nos torna cegos para o nosso meio.

Por outro lado, é importante lembrar como essa teoria vai se transformar nos anos 1930, quando Benjamin escreve o ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Aqui o hábito ou costume é posto ao lado de uma teoria tátil da recepção da arquitetura. Essa recepção tátil nos esclareceria muito sobre a forma de recepção das massas diante das obras de arte. Elas querem se aproximar dela e não permanecer distantes e contemplativas, como na recepção aurática e burguesa. Mais ainda, para Benjamin é esse tipo de recepção que serve de escola para as massas se prepararem para novas transformações históricas. Trata-se de uma escola tátil, que passa pela aístesis, a percepção corpórea, típica da recepção da arquitetura, via imersão:

Construções são recebidas duplamente: pelo uso e pela percepção. Ou melhor: tátil e opticamente. É impossível compreender tal recepção representando-a sob a forma da concentração, como ocorre p. ex. com viajantes diante de uma construção famosa. Pois não há, do lado tátil, nenhum correlato para aquilo que do lado óptico é a contemplação. A recepção tátil ocorre mais por meio do costume do que pela atenção. No caso da arquitetura, o costume determina até mesmo a recepção óptica. Ela ocorre, a princípio, muito menos em uma atenção fixa do que em uma percepção incidental. Essa recepção associada à arquitetura tem, porém, sob certas circunstâncias, um valor canônico. Pois: as tarefas que são apresentadas ao aparato perceptivo humano em momentos de transformação histórica não podem de modo algum ser resolvidas por meio da mera óptica, isto é, da contemplação. Guiadas pela recepção tátil, elas são paulatinamente dominadas pelo costume. (Benjamin 2013Benjamin, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e apresentação de M. Seligmann-Silva, tradução de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013.: 90, grifo do autor)

A “desorientação” é o fim, o objetivo do deambular errante: só assim o olhar se deixa ferir pelo real que viceja na cidade. Benjamin elogia também o cenário do teatro como um espaço que não se deixa reduzir à proximidade: sua aura resiste, a distância não é abalada, seu encanto não se esvai. E justamente a teatralidade arquitetônica de Versalhes faz Benjamin lembrar do elemento teatral do jogo político da era do absolutismo, enterrado hoje na era do turismo, e transformado em imagem de segunda ordem de si mesmo. Benjamin manteria uma postura ambígua diante dessa resistência da aura: ora, romanticamente, a defende, como no texto “Haxixe em Marselha”, ora, e sobretudo no contexto das Passagens e da sua teoria da fotografia e da paixão da multidão pela proximidade, comemora o seu fim. Essa ambiguidade de Benjamin também se reflete em sua relação com a cidade, que oscila entre a busca da proximidade ou da sua reauratização. Ela desaguara na teoria da “imagem dialética”, que é apresentada justamente na figura da passagem comercial, que é ao mesmo tempo abrigo e desabrigo, casa e espaço de culto da mercadoria.

Um belo exemplo de como Benjamin passa da descrição (ekphrasis, gênero de escrita específico e codificado, que teve seu auge no século XVIII e foi então elevado a método historiográfico por Winckelmann) para a alegoria é a peça “Castelo de Heidelberg”: “Ruínas, cujos destroços ressaltam contra o céu, aparecem às vezes duplamente belas em dias claros, quando o olhar encontra em suas janelas ou à cabeceira as nuvens que passam. A destruição fortalece, pelo espetáculo fugaz que abre no céu, a eternidade desses destroços” (Benjamin 2012b: 47). O fragmento lembra um soneto, com a reviravolta realizada na segunda frase na qual se dá um quiasma, reversão, do fugaz das nuvens com a eternidade conquistada pela destruição. Esse método de pensar por fragmentos metafóricos também não deixa de recordar os microtextos de Kafka. Já o fragmento sobre a catedral de Marselha transforma aquela igreja monumental, típica do historismo do século XIX, em “uma estação gigantesca de trem, que nunca pôde ser entregue ao trânsito” e da qual “Trens com vagões-dormitórios com destino à eternidade são, na hora da missa, expedidos” (Benjamin 2012b: 48). Ocorre aqui uma sobreposição de dois conceitos, igreja e estação de trem, que assim são transformados e criam uma outra ideia, ou revelam aspectos de ambos conceitos através dessa sobreposição inusitada.

2 A porosidade de Nápoles

Em 16 de setembro de 1924 Benjamin, que morou então por muitos meses em Capri, escreveu a seu amigo Gershom Scholem: “No mesmo dia vi Salerno. Pela segunda vez Pompéia e, talvez pela vigésima vez, Nápoles, sobre a qual recolhi muito material, observações importantes e raras, as quais talvez elaborarei” (Benjamin 1972a: 987, tradução nossa). Benjamin afirma que escreveu seu texto sobre Nápoles junto com sua então namorada Asja Lacis. Adorno acreditou que esse texto seria apenas de Lacis, mas ela mesma confirmou em sua autobiografia que o texto foi escrito pelos dois (Benjamin 1972a: 987). Esse texto é da maior importância dentre os retratos de cidade de Benjamin. Ele realiza aqui ao mesmo tempo um mergulho na cidade e um planar na sua superfície. Nesse último sentido ele estava apenas sendo fiel a sua máxima segundo a qual o retratista estrangeiro da cidade fica preso a seus aspectos superficiais. Essa “superficialidade” era valorizada por ele. Como escreveu em uma resenha sobre a ficção de Paul Scheerbart, autor de ficções científicas que reencontraremos mais adiante: “A verdadeira interpretação abarca a superfície mais exterior das coisas, a sua pura sensualidade; interpretação é superação do sentido” (Benjamin 1977: 618, tradução nossa). Na verdade, esse observador vê na cidade estranha/estrangeira aquilo que reflete ou nega a sua própria cidade de origem. Benjamin vê Nápoles como um europeu do norte. Ele, ao destacar que “se escalonam os prédios, uns por cima dos outros”, fica fascinado pelo que denomina de “porosidade” desse espaço urbano: “A arquitetura é porosa como essas rochas” (Benjamin 2012b: 149). A seus olhos, na cidade tudo está em movimento e se interpenetra. A improvisação e não a organização típica do norte dá o tom à cena: “Civilizada, privada e ordenada apenas nos grandes hotéis e nos armazéns do cais - anárquica emaranhada e rústica no centro da cidade, onde só há quarenta anos se abriram a picareta grandes arruamentos” (Benjamin 2012b: 150). Nem a numeração das casas faz sentido ali. Tudo é tátil. A existência privada ainda não foi separada por muros da vida pública. As ruas adentram as casas e essas parecem ser não o local onde se entra para viver a vida privada, mas apenas o local de onde se sai, para a rua. A alegria também é destacada que, com a música, se espalha pelas ruas, fazendo os dias de feriado também interpenetrarem os dias de trabalho: “A porosidade é a lei inesgotável dessa vida, a ser redescoberta. Um grão do domingo se esconde em todo dia de semana, e quantos dias de semana nesse domingo!” (Benjamin 2012b: 152). Além disso, o dia interpenetra a noite, o ruído o silêncio, a luz as sombras e mesmo as famílias têm uma estrutura aberta que se distancia dos hábitos dos habitantes educados sob os mores do norte. E se em Nápoles também “os cafés são verdadeiros laboratórios desse grande processo de interpenetração [Durchdringungsprozess]” (Benjamin 1977: 316, 2012b: 156) o mesmo podemos dizer desse texto que põe em ação o modo benjaminiano de encadear descrições, alegorias e conceitos. O próprio ensaio tem uma arquitetura rara e como que contaminada pela prodigalidade que ele vê na cidade.

Esse conceito de porosidade logo chamou a atenção de seu amigo Ernst Bloch que, ainda em 1925, esteve também em Nápoles e procurou escrever um outro texto, “Italien und die Porosität” (“Itália e a porosidade”), no qual se contrapõe explicitamente a Benjamin (e a Lacis). É verdade que Bloch (1985Benjamin, W. Gesammelte Schriften: Fragmente Autobiographische Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. v. VI.: 508, tradução nossa) equivocadamente afirma que “Benjamin nomeou a Itália de algo ‘poroso’”, quando na verdade Benjamin estava tratando de Nápoles. De qualquer modo, Bloch fornece mais uma série de interessantíssimos exemplos, desta feita, para boa parte da Itália, dessa porosidade e da inexistência de uma fronteira clara entre o público e o privado, extraindo exemplos das cidades, casas, hábitos e também de escritores como Pirandello e de um artista como de Chirico. Ele conclui sua vertiginosa enumeração de interpenetrações afirmando que aquele que vem do norte não quer ver esse tipo de confusão obscura. Ele busca os traços do Renascimento, que teriam deixado suas marcas apenas no norte da Itália, enquanto o sul seria ainda barroco e espanhol com elementos orientais.3 3 Mas deve-se lembrar que Benjamin vê também em San Gimignano, na Toscana, fenômenos de interpenetração onde o “fora” tende ao “interior”: “Quando se atravessa a Porta San Giovanni, sente-se num pátio e não na rua. Mesmo as praças são pátios e em todas parecemos abrigados” (Benjamin 2012b: 208). Ele conclui diagnosticando esse diferencial do sul com uma análise de cunho econômico-cultural que não encontrara em Benjamin:

qual é então a exata contraparte da porosidade? É o trabalho por partes ao invés do todo unitário, portanto, a divisão capitalista de trabalho e o seu pensamento matemático organizador e divisor correspondente, ao invés do sentido para a forma pregnante que se desenvolve com vida; em suma: a burguesia e sua cultura, em oposição à porosidade, que se encontra como tal e se sente em casa no Renascimento da Europa do norte. (Bloch 1985Bloch, E. Italien und die Porosität. In: Gesamtausgabe in 16 Bänden: Literarische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 508-516. v. 9.: 513-514, tradução nossa)

O Renascimento do sul teria sido logo barrado pela contrarreforma e pela espanização, tendo, por via de uma orientalização, triunfado em um modelo mais barroco e pleno de porosidade. Vale lembrar que Bloch já em sua obra prima, O espírito da utopia, elogiava o Barroco como uma forma expressiva prototípica (Cf. Ujma 2008Ujma, C. Zweierlei Porosität, Walter Benjamin und Ernst Bloch beschreiben italienische Städte. Links: rivista di letteratura e cultura tedesca [Zeitschrift für deutsche Literatur und Kulturwissenschaft], Roma, 2008, p. 57-64.). Em Bloch esse conceito de porosidade permaneceu central, mas Benjamin não voltou a ele. No entanto, ele logo encontrou na nova arquitetura do norte um autêntico discípulo para esse sonho de interpenetração: a transparência.

3 Moscou: interpenetrações espaço-temporais

Mas antes de tratar dela, lembremos de Moscou. O texto sobre Moscou foi decantado a partir do Diário de Moscou4 4 Esses diários nasceram da estadia de Benjamin em Moscou no inverno de 1926-1927 (Cf. Benjamin 1989). de Benjamin, como que deixando de fora as passagens mais íntimas e subjetivas. Aqui também ele procura penetrar na cidade pela porta da descrição que logo se transforma em imagem e em mise en action. É como se o eu-narrador, mais claro e ostensivo no texto do diário, permanecesse em ação nessa versão mais enxuta e “objetiva”. Sentimo-nos guiados pelo narrador e descritor Benjamin. Essa ação torna o texto mais vivo, atingindo a vivacidade que a descrição ekphrastica tradicional visa - cujo termo técnico é enárgeia (com “a” e não energeia) - com a diferença que essa vivacidade, colocar o descrito diante dos olhos do leitor, em Benjamin é a um só tempo fruto de uma montagem literária, imagética e conceitual. Ele não retira da cidade o seu encanto ao jogar luz sobre ela. Suas metáforas e alegorias preservam o claro-escuro do “original”. De resto, em uma carta a Martin Buber, que foi quem publicou o artigo “Moscou” na revista que editava, Die Kreatur (em 1927), Benjamin deixou clara essa intenção programática de fazer teoria sem abdicar da imagem a favor do conceito:

toda teoria ficará de fora de minha apresentação. […] Eu pretendo fazer uma apresentação da cidade de Moscou no momento em que ‘todo factual já é teoria’,5 5 Nos fragmentos das Passagens lemos: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (Benjamin 1982: 574, tradução nossa). e assim se abstenha de toda abstração dedutiva, de todos prognósticos, sim, em certa medida, também de todo julgamento. (Benjamin 1978Benjamin, W. Briefe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.: 442-443, tradução nossa)

Sim, como em Franz Hessel: ler o livro sem precisar julgá-lo.6 6 Mas é interessante notar que Benjamin abre esse texto sobre Moscou afirmando que “Por meio de Moscou se aprende a ver Berlim mais rapidamente que a própria Moscou”. Ou seja, novamente, no exterior vemos ainda a partir da perspectiva de nossa casa. Em seguida ele deduz dessa ideia a necessidade de se julgar (Beurteilen) o resto da Europa a partir da Rússia. Ou seja: não julgar Moscou, mas sim o resto da Europa a partir da Rússia: “Não importa que ainda se conheça muito pouco da Rússia - o que se aprende é a observar e a julgar a Europa com o saber consciente do que sucede na Rússia” (Benjamin 2012b: 157). Esse apego ao visual também tinha a ver com um dado concreto: Benjamin não sabia russo. Ele precisava se apegar tanto ao elemento visual, quanto à sua recepção corpórea da cidade. Sua imersão nas ruas e na rítmica da multidão imprimem a marca em seu texto. Daí ele escrever a seu amigo Hugo von Hofmannsthal sobre esse texto, em uma carta de junho de 1927: “Naturalmente o desconhecimento da língua não me permitiu ir além de uma camada estreita. Mas eu me fixei então mais do que no ótico, em uma experiência rítmica, no tempo no qual as pessoas de lá vivem e onde um duto russo originário interpenetra com a nova Revolução formando um todo, que eu achei ainda mais incomensurável para padrões europeus ocidentais do que eu esperava”7 7 Quanto a esse tema da concretude das observações de Benjamin sobre Moscou em seu diário, conferir Seligmann-Silva (2009). (Benjamin 1978: 444). É interessante notar que Benjamin empregando o conceito de interpenetração destaca a construção de um novo modo de vida na Rússia pós Revolução, caracterizado pela interpenetração de um duto russo originário (ursprünglich, conceito chave na teoria cultural de Benjamin) que adentra a Revolução. Como vimos, na sua técnica de leitura da cidade natal propunha uma interpenetração do tempo da infância com o tempo da narrativa. Já aqui outra interpenetração temporal é destacada e se dá em termos de uma longa temporalidade da nação russa. Essa relação da Revolução com uma noção forte de curto-circuito temporal, como veremos, será desenvolvida por Benjamin nos anos seguintes. Em Moscou ele se depara também com a interpenetração da política em todos recantos da vida privada, produzindo uma total politização da vida. Benjamin ainda vê com fascínio esse laboratório político e só em alguns momentos expressa ironia ou crítica velada a esse traço que, hoje, vemos como totalitário e fruto de uma biopolítica que procurava fazer uma gestão total da vida.

Assim, referindo-se à ausência de fronteiras claras entre o dentro e o fora, Benjamin destaca por exemplo que “em Moscou, as mercadorias aparecem em todos os lugares fora das casas, elas estão penduradas em cercas, apoiadas em gradis, dispostas sobre o asfalto”. Ou ainda, em uma comparação direta com Nápoles:

Sob as árvores despidas dos bulevares se acham quebra-ventos com palmeiras, escadas de mármores e mares meridionais. E mais uma coisa aqui recorda o Sul. É a desordenada variedade do comércio ambulante. Graxa de sapato, tinteiro e penas, toalhas, trenós de bonecos, balanços de criança, roupa feminina, pássaros empalhados, cabides - tudo isso se acumula em plena rua como se a temperatura não fosse de 25° abaixo de zero, mas de pleno verão napolitano. (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 161)

Mas, se a mendicância também o lembrou de Nápoles, sendo que os mendigos transformam a rua em lar, logo o silêncio (para além do frio) lembra a Benjamin que ele está em outra latitude. Ele vê no mercado de rua a função arquitetônica das mercadorias, que também transformam o exterior em interior:

Nesse mercado, a função arquitetônica das mercadorias se deixa reconhecer: panos e fazendas constroem pilastras e colunas; sapatos, valinki [bota de feltro] que pendem ordenados de cordões por sobre os balcões tornam-se tetos das barracas; grandes garmochkas (acordeões) formam paredes ressonantes e, portanto, de certo modo, paredes de Mêmnon. (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 162)

A sociedade está em movimento e, com ela, move-se a cidade. Benjamin testemunhou uma cidade transformando-se, plástica, como só uma revolução pode criar:

Os empregados nos serviços, as repartições nos prédios, os móveis nas casas são reagrupados, transferidos e deslocados para lá e para cá. Novas cerimônias para a escolha de nomes e para o casamento são demonstradas nos clubes como se fossem institutos experimentais. (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 166)

É interessante que Benjamin (2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 168) estabelece uma relação entre o fim da esfera privada e a transformação das casas:

O bolchevismo aboliu a vida privada. A natureza dos serviços públicos, a atividade política e a imprensa são tão poderosas que não sobra tempo para interesses que não confluam com elas. Tampouco sobra espaço. Casas que, em seus cinco até oito cômodos, acolhiam outrora uma única família abrigam hoje, às vezes, até oito. Atravessando a porta do corredor, penetramos uma pequena cidade.

Andando de bonde ele destaca a percepção tátil da cidade. Ele sente a “interpenetração” do passado tradicional com a nova forma técnica de transporte. Do mesmo modo ele sente também na metrópole a presença da aldeia. Poeticamente ele formula: “Há uma relação especial com as ruas de Moscou: o vilarejo russo brinca de se esconder nelas” (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 184). Como em Nápoles, Benjamin (2012b: 184) percebe aqui uma antítese à simetria das cidades europeias do norte: “Não existe cidade no Ocidente que se estenda em suas praças gigantescas tão amorfa [gestaltlos] como uma aldeia”. Esse conceito de amorfo pode ser posto ao lado de porosidade, como dois desafios à cidade Renascentista planificada. Por fim, o leitor verá que sobretudo ao tratar da interpenetração ou, talvez, seria melhor dizer, do deslocamento, do culto religioso aos ícones tradicionais da igreja ortodoxa russa, em direção ao culto da imagem de Lênin, Benjamin deixa claro a sua distância com relação àquele laboratório social que foi a revolução soviética.

Já “Mar do Norte” (“Nordische See”, publicado no Frankfurter Zeitung em 1930) é um texto extremamente poético que abre com uma impactante reflexão sobre o tempo: ele se torna não uma casa, mas um palácio para aquele que viaja e não tem uma moradia. No norte, diferentemente de Nápoles, tudo é claro, limpo e idêntico a si mesmo. Ao invés do ócio: o trabalho. A casa não entra na rua: ela tem limites sólidos. O fragmento “Gaivotas”, desse mesmo texto, é uma alegoria lírica e melancólica. Em um barco, navegando em direção ao sul, ele descreve duas formações de gaivotas, uma a leste (na sua esquerda) e outra a oeste (na direita): ou seja, tudo está invertido. O sol se põe à direita e ele arremata:

Os pássaros da esquerda conservavam contra o fundo do céu extinto algo de sua claridade, reluziam a cada curva em cima e em baixo, se ajuntavam ou se esquivavam e pareciam não cessar de tecer à minha frente uma sequência ininterrupta, interminável de sinais, um entrelaçamento total, indescritivelmente cambiante, fugaz e, contudo, legível. Só que eu deslizava a fim de continuamente me reencontrar de novo com as outras. […] À esquerda tudo ainda estava por ser decifrado, e o meu destino pendia de cada sinal; à direita já havia sido outrora, e um único sinal tranquilo. Por muito tempo durou esse contraste até que eu me tornasse o umbral, por cima do qual os mensageiros inomináveis cambiavam, nos ares, pretos e brancos. (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 230-231)

Bem, esse jogo entre a direita e a esquerda, essa expectativa (esperança?) com relação à esquerda (à leste) constroem de fato uma escrita, preto no branco, “legível”. Mas como esgotar o seu significado? E por que essa alegoria em pleno Mar do Norte? Devido à “proximidade” com a Rússia, o contraste entre a Escandinávia e aquela nova sociedade? A posição de “soleira” que Benjamin se atribui talvez seja o dado (autobiográfico) mais importante desse fragmento.

4 Da aura à transparência do vidro

“Haxixe em Marselha” (publicado também no Frankfurter Zeitung em 1932) é uma tentativa de reauratizar a cidade por meio do uso do haxixe. Ele é derivado de um dos protocolos de uso de haxixe que Benjamin redigira em 1928. A cidade, para o caminhante inebriado, devolve o olhar - mas sem quebrar a distância. No ensaio sobre o surrealismo, Benjamin anotou: “O homem que lê, que pensa, que espera, o flâneur, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos” (Benjamin 2012a: 33). Ele vai encontrar na superfície urbana e antropológica (com o desfile das faces dos transeuntes) um amplo campo para descobrir, projetar, mas sobretudo criar semelhanças. O flâneur se torna um fisiognomista. Essas experiências são justamente antecâmaras para os textos futuros de Benjamin sobre “A doutrina das semelhanças”.8 8 Conferir “Doutrina das semelhanças” (Benjamin 2012a: 117-122). Benjamin (2012b: 262) anotou em meio ao passeio: “Como as coisas resistem aos olhares!”. Ele vê aí uma prova de que a afirmação de Karl Kraus que ele cita, “Quanto mais de perto se observa uma palavra, tanto mais de longe ela nos retoma o olhar”, pode ser estendida para o campo ótico. Sem dúvida, sobretudo quando se trata de estendê-lo às cidades, superfície que, como vimos, Benjamin comparava a um livro. Lembremos que o conceito de “aura” foi desenvolvido por Benjamin sobretudo no seu famoso ensaio sobre a obra de arte. Lá lemos que a aura é a marca de uma distância insuperável, ela é definida como: “Uma trama peculiar de espaço e tempo: a aparência única de uma distância, por mais próxima que esteja”. (Benjamin 2013: 57). Em Parque central (1938/1939) ele também escreve sobre a aura em termos que recordam sua descrição da cidade sob os efeitos do haxixe: “Derivação da aura como projeção de uma experiência social entre pessoas na natureza: o olhar é devolvido” (Benjamin 1974: 670, tradução nossa). A cidade que é olhada nos olha de volta. Essa ideia, que pode ter um lado romântico e poético, seria superada na teoria benjaminiana da transparência do vidro. Isso ocorreu no contexto de seu trabalho sobre as passagens. Nesse trabalho ele se entrega à sua crítica da aura e à sua convicção, segundo a qual (como lemos no ensaio sobre a obra de arte): “‘Aproximar as coisas de si’ é uma preocupação tão apaixonada das massas de hoje quanto apresenta a sua tendência a uma superação da unicidade de cada coisa dada por meio da gravação de sua reprodução” (Benjamin 2013: 57).

5 S. Giedion: das construções de ferro ao triunfo do vidro em Le Corbusier

Em “Paris, capital do século XIX”, apresentação do projeto das passagens, feita em 1935, Benjamin descreve em grandes linhas as preocupações mestras que guiam essa pesquisa sem-fim sobre as passagens, que acabou se transformando em um work in progress fadado a nunca se concluir. Mesmo para um pesquisador poderoso como Benjamin, o desafio de retratar todo um século a partir da Paris do século XIX pareceu um desafio impossível. Mas eram justamente esses os desafios que interessavam àquele que foi o teórico da tarefa impossível: a tarefa (Aufgabe) da tradução também era vista dessa forma por ele, ou seja, como um problema ao mesmo tempo necessário e impossível de solução. Nessa apresentação Benjamin, logo no início, destaca tanto os aspectos econômicos, que possibilitaram o surgimento das passagens comerciais, como os técnicos: “A segunda condição para o surgimento das passagens advém dos primórdios das construções em ferro” (Benjamin 2006: 40). Nesse ponto, ele introduz uma linha de raciocínio que deve muito à sua leitura do precioso livro do historiador da arquitetura Sigfried Giedion, Bauen in Frankreich (Construção na França), de 1928.9 9 Em 15 de fevereiro de 1929, tendo recebido um exemplar de cortesia desse volume, enviado por Giedion, Benjamin escreve uma carta de agradecimento na qual não deixa dúvidas do seu entusiasmo quanto a essa publicação e sobre quanto ela o abalou - positivamente: “Quando recebi seu livro, as poucas passagens que eu li eletrificaram-me a tal ponto que eu decidi não continuar a leitura antes de ter mais contato com minhas próprias pesquisas a respeito, o que, devido a circunstâncias externas, não pude fazer naquele momento. Já há alguns dias as coisas se organizaram por aqui e eu passo horas com seu livro, em admiração. […] o senhor consegue iluminar ou, melhor, descobrir, a tradição a partir do presente. Daí a nobreza do seu trabalho, que eu mais admiro, ao lado do seu radicalismo” (Benjamin 1997: 443-444, tradução nossa). Giedion, nesse belíssimo livro, marcadamente vanguardista e com desenho de autoria do grande László Moholy-Nagy, professor da Bauhaus, faz uma espécie de trabalho de arqueólogo da arquitetura modernista (seu ícone era Le Corbusier) a partir das construções em ferro e em concreto armado do século XIX. Ele faz uma crítica da produção arquitetônica daquele período, mas nota que ela gestou, de modo “subconsciente”, as bases da moderna arquitetura. Benjamin (2006: 40) toma essa ideia de Giedion e acrescenta a ela uma teoria política:

Assim como Napoleão não percebeu a natureza funcional do Estado como instrumento de dominação da classe burguesa, tampouco os arquitetos de seu tempo reconheceram a natureza funcional do ferro, com o qual o princípio construtivo inicia sua dominação na arquitetura. Nas vigas de sustentação esses arquitetos imitam as colunas pompeanas e suas fábricas parecem moradias, assim como mais tarde as primeiras estações ferroviárias imitavam chalés. “A construção desempenha o papel do subconsciente”.

Essa última citação Benjamin extrai justamente dessa obra de Giedion. E boa parte das ideias dessa apresentação de 1935 e dos fragmentos que tratam das construções em ferro do volume Passagens são desdobramentos, estão em diálogo ou simplesmente tomam de empréstimos ideias de Giedion, que, de resto, é vastamente citado por Benjamin.

Ainda na introdução, Benjamin apresenta o tema do vidro, outra paixão temática do historiador da arquitetura Giedion. Benjamin (2006: 40) escreve:

Pela primeira vez na história da arquitetura, surge com o ferro um material de construção artificial. Ele vai passar por uma evolução, cujo ritmo se acelera ao longo do século. […] Evita-se o ferro em construções residenciais, mas é utilizado em passagens, pavilhões de exposições, estações de trem - construções que serviam para fins transitórios. Simultaneamente, amplia-se o campo arquitetônico de aplicação do vidro. As condições sociais de sua utilização em larga escala como material de construção, porém, só surgirão apenas um século mais tarde. Ainda na Glasarchitektur [Arquitetura de vidro] (1914), de Scheerbart, o vidro aparece em um quadro utópico.10 10 Benjamin tomou conhecimento da obra de Scheerbart a partir do livro de ficção científica deste ator Lesabéndio, que ganhou de presente de casamento, em 1917, da parte de seu melhor amigo, Gershom Scholem, ele mesmo um admirador de Scheerbart. Scholem conta que Benjamin escreveu um texto em 1920 sob o impacto da leitura das obras de Scheerbart intitulado “Der wahre Politiker” (O verdadeiro político), que infelizmente se perdeu (Cf. Scholem 1981: 38).

Ou seja, no início do século XX o vidro ainda estava enredado no sonho, na utopia: sua concretização, dirão Giedion e Benjamin, virá com a arquitetura moderna que, por sua vez, foi preparada pelas grandes construções de ferro e vidro do século anterior. Ambos tinham como método buscar no passado as “centelhas do futuro”. Giedion fala muito em “antecipação” para se referir a esse fenômeno de sobreposição temporal: o futuro já sendo gestado/lido no passado: “Só hoje finalmente o passado pode ser posto de lado, pois um novo modo de vida [Lebensform] bate às portas. Esse novo modo de vida é em grande parte equivalente à expressão antecipada e latente dentro das construções do século XIX” (Giedion 1995: 153, tradução nossa). Como Benjamin, que proclamou uma nova era pós-tradição, nietzschianamente, livre de toda monumentalidade, também Giedion (1995: 168-169, grifo no original, tradução nossa) pregava esse novo mundo que, para ambos, deveria ser transparente:

Graças à possibilidade de apoiar todo o peso do prédio em poucos pilares de concreto, de omitir as paredes conforme o desejo, Corbusier criou a casa eternamente aberta. […] Por que a casa deve ser suspensa e feita do modo mais leve possível? Só assim podemos pôr um ponto final ao legado fatídico da monumentalidade.

No século XIX, os palácios de vidro (construções provisórias, como as das Exposições Universais, ou locais de passagem, como pontes e as estações de trem) apenas anunciavam a revolução moderna. Mas lá, o vidro, o ferro e o concreto permitiam já a realização de uma nova interpenetração e de uma nova transparência. A ponte Transbordeur (1905) de Marselha, Giedion a descreve afirmando que sua construção produz “relações flutuantes e interpenetrações. As fronteiras da arquitetura são embaçadas” (Giedion 1995: 90, tradução nossa, grifo no original). Ou seja, os limites são tênues: tudo se interpenetra. Ao passar o saber da construção do século XIX para as moradias do século XX, para Giedion (e Benjamin concordou com essa ideia) forjou-se na nova arquitetura de um Le Corbusier um novo modelo: “só existe um único e indivisível espaço no qual reinam relações e interpolações e não fronteiras” (Giedion 1995: 93, tradução nossa). Em um trecho de Giedion que Benjamin cita, lemos:

As casas de Corbusier não são espaciais nem plásticas: o ar sopra através delas! O ar se torna fator constituinte! Nesse sentido, não valem forma espacial ou plástica, apenas relação e entrecruzamento! Há apenas um espaço indivisível. Entre o dentro e o fora não há cascas.11 11 Giedion desenvolveu essa teoria da transparência e interpenetração, típicas da arquitetura moderna no seu livro monumental Space, Time and Architecture (1941). Aí ele desenvolve um paralelo entre a interpenetração arquitetural e o que se passou no cubismo, cujas obras seriam marcadas também pela transparência, suspensão e interpenetração: nesses quadros, interior e exterior podem ser vistos simultaneamente, como em uma casa de Le Corbusier, ou como na Torre Eiffel. A partir de 1945, no entanto, Giedion abandona muitas de suas ideias anteriores e passa a defender, por exemplo, a necessidade de uma nova monumentalidade, autêntica, oposta à pseudo-monumentalidade de sua época. (Cf. Giedion [1955?]). (Giedion 1995Giedion, S. Building in France, Building in Iron, Building in Ferroconcrete. Tradução de J. Duncan Berry. Santa Monica: The Getty Center for the History of Art and the Humanities, 1995.: 169, tradução nossa)

6 Passagens como campo de interpenetração: entre “imagens de desejo” e o controle

As passagens comerciais do século XIX são lidas por Benjamin dialeticamente como vitrines marcadas pelo fetiche da mercadoria e comandadas pelo seu culto, mas também como um local de concretização de um sonho utópico. A teoria benjaminiana das “imagens do desejo”, que ele desenvolve aqui nesse texto de 1935 e em vários fragmentos do volume Passagens, tem na passagem comercial sua representação mais clara. As galerias são vistas como um local onírico de interpenetração e porosidade espaço-temporal:

No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu deposito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras. (Benjamin 2006Benjamin, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. São Paulo: Ed. UFMG, 2006.: 41)

As passagens são postas ao lado das modas - cuja teoria Benjamin desenvolve em alguns fragmentos do livro Passagens - e também ao lado dos falanstérios. Essas eram formas urbanas imaginadas pelo utopista Charles Fourier no início do século XIX, como cidades de vidro, nas quais poder-se-ia viver sob um abrigo total: uma promessa de acolhimento e de proteção em meio ao século XIX que transformou rapidamente a população em um exército de trabalhadores com uma vida marcada pelo desabrigo (Unbehagen, na expressão de Freud, mal-estar) e pelo sofrimento. Essa promesse du bonheur, estaria in nuce nas passagens: “Nas passagens, Fourier viu o cânone arquitetônico do falanstério” (Benjamin 2006: 41)12 12 Conferir o fragmento A3a,5 de Benjamin (2006: 85).

É digno de nota que Benjamin novamente não percebe o potencial totalitário, desta feita, desse sonho de Fourier.13 13 O mesmo vale para a leitura entusiasta e acrítica que Benjamin fez da obra de Le Corbusier. Xavier de Jarcy, em um livro polêmico sobre o fascismo de Le Corbusier, afirma uma série de ideias que vão ao encontro da minha leitura. Cito uma passagem: “Frequentemente aproximou-se a cidade corbusiana das cidades utopistas, como do falanstério de Charles Fourier, precursor do socialismo. Segundo os desenhos, esse prédio pareceria com o castelo de Versalhes. Mas Le Corbusier pouco se interessou por essa interpretação e ela acabou atrasando por décadas a compreensão da sua obra. Inseriu-se menos esses projetos no contexto de uma linha de arquitetura coletiva racionalista que vai da escola ao convento, da oficina ao hospital, da prisão ao campo de concentração. Células de habitação monásticas, grade de ruas e simetria perfeita, a Cidade contemporânea, o Plan Voisin, a Ville radieuse que Le Corbusier elabora no início dos anos 1930, não estão distantes, em uma escala gigantesca, dessas instituições austeras das quais nos fala Foucault em Surveiller et punir” (Jarcy 2015: 80, tradução nossa). O falanstério não apenas pode ser pensado a partir das galerias comerciais, mas também do panóptico, idealizado por Jeremy Bentham em um livro de 1791, como uma construção marcada por um controle visual total. Os panópticos são instituições de controle total, como prisões, fábricas, escolas e hospícios. Essa construção, idealizada por Bentham, remontava às “cidades utópicas” feitas para abrigar leprosos, em isolamento, controlando a doença, criando, como escreveu Foucault, “uma comunidade pura”. Bentham se referia ao panóptico como uma construção calcada em um sistema arquitetural puramente óptico.14 14 Conferir Foucault (2009: 186-214). Foucault escreve sobre o panóptico ideias que, se transpostas para a arquitetura de vidro, revelam o elemento distópico desta: “A máquina de ver é uma espécie de câmara escura em que se espionam os indivíduos; ela torna-se um edifício transparente onde o exercício do poder é controlável pela sociedade inteira” (Foucault 2009: 196). A transparência do vidro é encarada por Giedion e Benjamin como o fim e superação da interioridade burguesa, mas pode ser descrita também como o triunfo da sociedade disciplinar com uma “vigilância generalizada”. O irônico é notar que, hoje, essa transparência independe do vidro: ela foi conquistada pela internet e pelos gadjets, que derrubaram as paredes das casa e expõem nossas vidas e intimidade para todos, através da nervura eletrônica das redes. O próprio Foucault (2009: 211) aproxima Bentham de Fourier o chamando de “Fourier de uma sociedade policial, cujo Falanstério houvesse tido a forma do Panóptico”.15 15 Conferir também, nesse sentido: Jean-Claude Perrot (1985: 353). Bentham também chamou seu panóptico de “minha própria utopia” e afirmou que ele deveria ser feito com ferro e não com madeira (Cf. Bentham 2005: 21, 74).

Para Fourier, o falanstério seria uma cidade de passagens e a arquitetura moderna de vidro, para Benjamin, o seu sucedâneo. Em 1929, ano da publicação do referido livro de Giedion, Benjamin, no seu apanhado extremamente positivo dos surrealistas (“O surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia”) também nota, a partir do romance de Breton, Nadja, uma relação entre o surrealismo e a nova transparência. Ele recorda que no hotel que ficara em Moscou, um grupo de monges nunca fechava as portas por conta de um voto de nunca ficar em espaços fechados, e arremata com uma crítica do pudor pequeno-burguês:

Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência. Também isso é embriaguez, um exibicionismo moral, que nos é extremamente necessário. A discrição no que diz respeito à própria existência, antes uma virtude aristocrática, transforma-se cada vez mais num oportunismo de pequeno-burgueses arrivistas. (Benjamin 2012aBenjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. rev. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012a.: 24)

7 Paul Scheerbart e a nova cultura do vidro

O mencionado autor de ficções científicas, venerado por Benjamin, Paul Scheerbart, também teria, como Fourier, percebido o elemento utópico da arquitetura de vidro. Para Benjamin, Scheerbart seria “irmão gêmeo de Fourier”.16 16 Trata-se de um pequeno texto em francês de Benjamin sobre o escritor. Benjamin nota que é improvável que Scheerbart tenha lido Fourier. Os dois são tratados como utopistas por ele (Benjamin 1977: 632). Como lemos no pequeno livro de Scheerbart de 1914, Glasarchitektur, dedicado ao artista Bruno Taut, arquiteto expressionista e também entusiasta da arquitetura de vidro:17 17 Scheerbart e Taut conheceram-se pouco antes de empreenderem o projeto de realizar uma casa de vidro no contexto da exposição da Werkbund alemã em Colônia, em 1914. Taut dedicou essa construção a Scheerbart (Cf. Stuart 1999: 61). Stuart destaca que também Walter Gropius foi um leitor entusiasta de Scheerbart, que marcou a visão de vários outros arquitetos.

Vivemos a maior parte do tempo em espaços fechados. Eles comprometem o meio, do qual cresce a nossa cultura. Nossa cultura é, de certo modo, um produto de nossa arquitetura. Se quisermos elevar a nossa cultura a um nível mais alto, então somos obrigados, para bem ou para o mal, a transformar a nossa arquitetura. E isso só nos será possível se retirarmos o elemento fechado dos espaços nos quais vivemos. Isso, no entanto, só poderemos realizar pela introdução da arquitetura de vidro, que permite a entrada da luz do sol e da lua no espaço não apenas através de um par de janelas - mas, antes, ao mesmo tempo, através do maior número de paredes possível, totalmente de vidro - de vidro colorido. O novo meio, que criaremos para nós assim, deve nos aportar uma nova cultura.18 18 Como Bentham, Scheerbart (2011: 9) também desaconselha o emprego da madeira e indica o ferro. Apesar de afirmar que a Terra será um paraíso com a introdução dessa arquitetura transparente (que, para ele, teria o acréscimo das cores nos vidros) ele condena chamá-la (como o faz Benjamin) de utópica: “Arquitetura de vidro nunca deveria ser chamada de utópica” (Scheerbart 2011: 17). Sobre o tema da relação com Giedion, da transparência e da porosidade em Benjamin, conferir também Déotte (2013). (Scheerbart 2011Scheerbart, Paul. Glasarchitektur. Berlin: Tredition, 2011.: 5-6)

Essa arquitetura iria exorcizar “as fantasmagorias do intérieur [interior]” (Benjamin 2006Benjamin, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. São Paulo: Ed. UFMG, 2006.: 45), como escreve Benjamin no mesmo texto de 1935, referindo-se ao interior burguês, que aprisiona o homem moderno. Nesse interior, o burguês procura deixar rastros, como que lançando âncoras em um mundo no qual se sente inútil. Ele tem o impulso de prender tudo em estojos e interiores que, no fim, o sufocam e aprisionam. Daí o fascínio de Benjamin e de alguns de seus contemporâneos pela porosidade e pela transparência. Como ele escreveu em um fragmento das Passagens:

Não existiria um só objeto para o qual o século XIX não tenha inventado um estojo. Para relógio de bolso, chinelos, porta-ovos, termômetros, baralhos - e, na falta de estojos: capas protetoras, passadeiras, cobertas e guarda-pós. O século XX, com sua porosidade e transparência, seu gosto pela vida em plena luz e ao ar livre, pôs um fim à maneira antiga de habitar.19 19 Conferir também esse outro fragmento bem à la Giedion, Scheerbart e Le Corbusier: “É próprio das formas técnicas de construção (em oposição às formas artísticas) que seu progresso e seu êxito sejam proporcionais à transparência de seu conteúdo social. (Daí a arquitetura em vidro.)” (Benjamin 2006: 507, grifo no original). (Benjamin 2006Benjamin, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. São Paulo: Ed. UFMG, 2006.: 255)

No texto curto “Habitar sem vestígios” (um fragmento das “Imagens do Pensamento”), Benjamin encadeou a uma crítica ao interior burguês - “não há canto no qual o morador já não tenha deixado seu vestígio” (Benjamin 2012b: 274) - um elogio ao verso de Brecht “Apague os vestígios”. Brecht dera um tom crítico a essa ideia em seu poema “Caderno de leituras para moradores da cidade”, citado nos fragmentos das Passagens (fragmento M16,2). Mas Benjamin faz uma leitura positiva dessa ideia e diz que a nova arquitetura realiza isso: “Pois os novos arquitetos obtiveram isso com o seu aço e vidro: criaram espaços onde não é fácil deixar vestígios”. E conclui citando uma passagem do Glasarchitektur de Scheerbart:

“Depois do que foi dito” - escreveu Scheerbart já há vinte anos - “pode-se muito bem falar de uma ‘cultura de vidro”. O novo ambiente de vidro transformará completamente o ser humano. E agora só resta desejar que a nova cultura de vidro não encontre oponentes em demasia. (Benjamin 2012bBenjamin, W. Rua de mão única. 6. ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012b.: 274)

Esse fragmento também faz parte do ensaio de 1933, “Experiência e pobreza”, no qual Benjamin estende seu elogio a Scheerbart e desdobra a sua crítica mais radical à aura. Nesse ensaio lemos essa preciosa formulação:

Scheerbart, […] atribui a maior importância à tarefa de hospedar sua “gente” […] em acomodações adequadas à sua categoria: em casas de vidro, ajustáveis e móveis, tais como as construídas, nesse meio tempo, por Loos e Le Corbusier. Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade.20 20 Essa passagem permite estabelecer uma relação entre a teoria freudiana do Unheimlich (o conceito de estranho que guarda em si a ideia de “lar”, “Heim”) com o mistério, que Benjamin associa à propriedade. É como se a sociedade em que tudo gira em torno da mercadoria e de seu culto fosse o palco para o indivíduo psicanalítico refém do mistério, ou seja, do Unheimlich, de sua alienação. A transparência significaria o fim do mistério e desse indivíduo psicanalisável. […] Será que homens como Scheerbart sonham com construções de vidro porque professam uma nova pobreza?21 21 Xavier de Jarcy, em seu mencionado livro sobre Le Corbusier, recorda um artigo de P. Winter, amigo de Le Corbusier, sobre o bairro operário de Pessac, construído pelo arquiteto. Ele nota que para Le Corbusier, uma casa é como um organismo, “os dejetos desaparecem e não deixam nenhum traço” (Jarcy 2015: 33, tradução nossa). Também o largo elogio de Le Corbusier à pintura branca das casas, internamente e no seu exterior, que, para ele, levaria a uma limpeza moral e transformação da vida, pode ser posto ao lado da doutrina benjaminiana do apagamento positivo dos traços (Cf. Jarcy 2015: 77). (Benjamin 2012aBenjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. rev. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012a.: 126)

Sem dúvidas Benjamin também cerra fileiras como um adepto dessa “nova pobreza” ao tecer seu elogio ao vidro e à transparência. Sendo que esse seria o típico caso do menos que é mais. Pois essa defesa da “nova barbárie” prega uma saudável tabula rasa, uma aniquilação produtiva, uma verdadeira redenção daí advinda:

Barbárie? Sim, de fato. Dizemo-lo para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.22 22 Sobre a arquitetura de vidro e Benjamin, conferir ainda o capítulo “A arquitetura de vidro”, do livro de Pierre Missac (1998). (Benjamin 2012aBenjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. rev. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012a.: 127)

8 A Revolução como porosidade, interpenetração e tempo do agora

Baudelaire, por sua vez, foi o poeta da cidade e das ruas de Paris. Ele recriou a lírica para tratar poeticamente do belo horror da prosa da modernidade. Ele encarna o olhar não do poeta que tece loas à sua cidade natal, mas, antes, daquele que se sente um estranho nela: como um flâneur. Como escreve Benjamin (2006Benjamin, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. São Paulo: Ed. UFMG, 2006.: 47) no artigo de 1935:

Ele busca um asilo na multidão. […] A multidão é o véu através do qual a cidade familiar acena para o flâneur como fantasmagoria. Nela, a cidade é ora paisagem, ora sala acolhedora. Ambas são aproveitadas na configuração das lojas de departamentos, que tornam o próprio flanar proveitoso para a circulação das mercadorias. A loja de departamentos é a última passarela do flâneur.

Ou seja, sob o olhar do flâneur, o exterior se torna interior: ele só se sente em casa na rua e as passagens fazem essa sobreposição do exterior com o interior, construindo uma autêntica “imagem dialética”. No mundo do flâneur, o tempo também sofre um achatamento: é como se a metamorfose do espaço, derivada do deambular nas ruas, levasse a uma nova experiência temporal, na qual o progresso e a sucessão estão excluídos. Também o tempo se torna poroso, transparente e interpenetrado:

O coletivo que sonha ignora a história. Para ele, os acontecimentos se desenrolam segundo um curso sempre idêntico e sempre novo. Com efeito, a sensação do mais novo, do mais moderno, é tanto uma forma onírica dos acontecimentos quanto o eterno retorno do sempre igual. A percepção do espaço que corresponde a esta percepção do tempo é a transparência da interpenetração e superposição do mundo do flâneur. (Benjamin 2006Benjamin, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. São Paulo: Ed. UFMG, 2006.: 588)

Como vimos anteriormente, Benjamin vislumbrou na Moscou de 1927, pós-revolução, estilhaços da velha Rússia ressignificados em um novo contexto. Sua teoria do conhecimento histórico e da ação política caminhou no sentido de estabelecer os tempos do conhecimento e da ruptura histórica como coincidindo com um curto-circuito espaço-temporal, o qual ele definiu com o conceito de tempo-de-agora, Jetztzeit. O tempo da Revolução é o tempo de citação redefinidora do passado. Esse momento coincide com um acesso a uma memória coletiva recalcada, que seria também liberta no evento da Revolução. A história como fruto de uma construção se dá no tempo-de-agora que, como um acelerador temporal, concentra em si a história da humanidade redimida. A transparência, a porosidade e a interpenetração culminam, portanto, nas teses “Sobre o conceito da história”, último trabalho de Benjamin, em uma estrutura tanto do conhecimento como da ação revolucionária. Aqui Benjamin descreve a Revolução como um salto tigrino no céu da história que explode a continuidade do acúmulo de catástrofes que, para ele, era o significado do “progresso”:

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de “tempo de agora” (Jetztzeit). Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “tempo de agora”, que ele fez explodir para fora do continuum da história. A Revolução Francesa via-se como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário do passado. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele se oculte na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Ele se dá, porém, numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o céu aberto da história, é o salto dialético da Revolução, como a concebeu Marx. (Benjamin 2012aBenjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. rev. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, revisão técnica de M. Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012a.: 249)

É importante lembrar que essa macro doutrina da construção do histórico (em termos epistemológicos e em termos revolucionários) a partir desse modelo da interpenetração, já havia sido desenvolvida em termos micrológicos nos textos de caráter autobiográfico de Benjamin. Afinal, interpenetração e porosidade temporal são transformadas em método nos dois textos de Benjamin sobre Berlim e sua infância. “Crônica berlinense” tem, logo no início, uma descrição de um mapa afetivo que Benjamin sempre teria pensado em desenhar sobre a sua cidade. De certo modo, esse texto é a concretização narrativa desse mapa: uma tradução literária de seu mapa. Proust, como vimos, é em boa parte um exemplo para Benjamin nessa viagem da escrita de si:

O que Proust iniciou de modo tão lúdico, tornou-se de uma seriedade de roubar o fôlego. Quem uma vez iniciou a desdobrar os compartimentos da recordação, ele encontra sempre novos membros, novas varas, nenhuma imagem lhe satisfaz, pois ele reconheceu: ela deixa-se desdobrar, nas dobras antes de mais nada localiza-se o próprio: aquela imagem, aquele gosto, aquele tatear a partir do qual nós iniciamos a separar e desdobrar tudo; e então a recordação vai do pequeno ao menor, do menor ao minúsculo e sempre se torna mais poderoso e avassalador o que encontramos nesses microcosmos. (Benjamin 1985Benjamin, W. Gesammelte Schriften: Fragmente Autobiographische Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. v. VI.: 467-468, tradução nossa)

Essas dobras, essa intensificação do tempo no trabalho de recordação, sobrepõem passado e presente perfurando a temporalidade, costurando-a com novas imagens, na busca de correspondências entre o ocorrido e a linguagem do agora. Nesses textos eu, cidade e tempo se fundem. Muitas vezes a cidade, erotizada, é palco das (primeiras) experiências sexuais e de profanação da antiga imagem idílica da criança educada na casa burguesa. Noutras, Benjamin nos conduz aos antigos cafés de Berlim e faz uma verdadeira sociologia da noite urbana.

Para concluir lembro novamente da bela resenha do livro de Franz Hessel, que apresenta uma pequena teoria do flâneur e da escrita sobre as cidades. Esse texto conciso funde a teoria do flanar com a da transparência, de Giedion e Le Corbusier. Ao juntar a teoria da cidade com a da arquitetura, ele também recorre à antiga teoria da mnemotécnica e passa a ver na cidade um espaço encantado por imagens da memória e por espíritos, genus loci, que guardam as recordações. Como vimos, a cidade se abre ao flâneur como um espaço ambíguo, que é ora casa, ora exterior. Na verdade ela seria um espaço onírico, que, sob o sopro quente das palavras, de Franz Hessel ou de Benjamin, desperta para uma nova vida.

Referências bibliográficas

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  • 2
    Conferir, por exemplo, nos fragmentos de Rua de mão única, “Arquitetura de interiores” e “Mercadoria: expedição e empacotamento” (1972a: 111, 133) e no fragmento “Paris, a cidade no espelho”, de suas Imagens do pensamento (1972a: 356-359). Uma das formulações mais eloquentes de Benjamin (2012b: 26) nesse sentido está em Rua de mão única no fragmento “Guarda-livros juramentado”: “A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma”. Sobre o tema da leitura do mundo em Benjamin, remeto a Seligmann-Silva (1999).
  • 3
    Mas deve-se lembrar que Benjamin vê também em San Gimignano, na Toscana, fenômenos de interpenetração onde o “fora” tende ao “interior”: “Quando se atravessa a Porta San Giovanni, sente-se num pátio e não na rua. Mesmo as praças são pátios e em todas parecemos abrigados” (Benjamin 2012b: 208).
  • 4
    Esses diários nasceram da estadia de Benjamin em Moscou no inverno de 1926-1927 (Cf. Benjamin 1989).
  • 5
    Nos fragmentos das Passagens lemos: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (Benjamin 1982: 574, tradução nossa).
  • 6
    Mas é interessante notar que Benjamin abre esse texto sobre Moscou afirmando que “Por meio de Moscou se aprende a ver Berlim mais rapidamente que a própria Moscou”. Ou seja, novamente, no exterior vemos ainda a partir da perspectiva de nossa casa. Em seguida ele deduz dessa ideia a necessidade de se julgar (Beurteilen) o resto da Europa a partir da Rússia. Ou seja: não julgar Moscou, mas sim o resto da Europa a partir da Rússia: “Não importa que ainda se conheça muito pouco da Rússia - o que se aprende é a observar e a julgar a Europa com o saber consciente do que sucede na Rússia” (Benjamin 2012b: 157).
  • 7
    Quanto a esse tema da concretude das observações de Benjamin sobre Moscou em seu diário, conferir Seligmann-Silva (2009).
  • 8
    Conferir “Doutrina das semelhanças” (Benjamin 2012a: 117-122).
  • 9
    Em 15 de fevereiro de 1929, tendo recebido um exemplar de cortesia desse volume, enviado por Giedion, Benjamin escreve uma carta de agradecimento na qual não deixa dúvidas do seu entusiasmo quanto a essa publicação e sobre quanto ela o abalou - positivamente: “Quando recebi seu livro, as poucas passagens que eu li eletrificaram-me a tal ponto que eu decidi não continuar a leitura antes de ter mais contato com minhas próprias pesquisas a respeito, o que, devido a circunstâncias externas, não pude fazer naquele momento. Já há alguns dias as coisas se organizaram por aqui e eu passo horas com seu livro, em admiração. […] o senhor consegue iluminar ou, melhor, descobrir, a tradição a partir do presente. Daí a nobreza do seu trabalho, que eu mais admiro, ao lado do seu radicalismo” (Benjamin 1997: 443-444, tradução nossa).
  • 10
    Benjamin tomou conhecimento da obra de Scheerbart a partir do livro de ficção científica deste ator Lesabéndio, que ganhou de presente de casamento, em 1917, da parte de seu melhor amigo, Gershom Scholem, ele mesmo um admirador de Scheerbart. Scholem conta que Benjamin escreveu um texto em 1920 sob o impacto da leitura das obras de Scheerbart intitulado “Der wahre Politiker” (O verdadeiro político), que infelizmente se perdeu (Cf. Scholem 1981: 38).
  • 11
    Giedion desenvolveu essa teoria da transparência e interpenetração, típicas da arquitetura moderna no seu livro monumental Space, Time and Architecture (1941). Aí ele desenvolve um paralelo entre a interpenetração arquitetural e o que se passou no cubismo, cujas obras seriam marcadas também pela transparência, suspensão e interpenetração: nesses quadros, interior e exterior podem ser vistos simultaneamente, como em uma casa de Le Corbusier, ou como na Torre Eiffel. A partir de 1945, no entanto, Giedion abandona muitas de suas ideias anteriores e passa a defender, por exemplo, a necessidade de uma nova monumentalidade, autêntica, oposta à pseudo-monumentalidade de sua época. (Cf. Giedion [1955?]).
  • 12
    Conferir o fragmento A3a,5 de Benjamin (2006: 85).
  • 13
    O mesmo vale para a leitura entusiasta e acrítica que Benjamin fez da obra de Le Corbusier. Xavier de Jarcy, em um livro polêmico sobre o fascismo de Le Corbusier, afirma uma série de ideias que vão ao encontro da minha leitura. Cito uma passagem: “Frequentemente aproximou-se a cidade corbusiana das cidades utopistas, como do falanstério de Charles Fourier, precursor do socialismo. Segundo os desenhos, esse prédio pareceria com o castelo de Versalhes. Mas Le Corbusier pouco se interessou por essa interpretação e ela acabou atrasando por décadas a compreensão da sua obra. Inseriu-se menos esses projetos no contexto de uma linha de arquitetura coletiva racionalista que vai da escola ao convento, da oficina ao hospital, da prisão ao campo de concentração. Células de habitação monásticas, grade de ruas e simetria perfeita, a Cidade contemporânea, o Plan Voisin, a Ville radieuse que Le Corbusier elabora no início dos anos 1930, não estão distantes, em uma escala gigantesca, dessas instituições austeras das quais nos fala Foucault em Surveiller et punir” (Jarcy 2015: 80, tradução nossa).
  • 14
    Conferir Foucault (2009: 186-214).
  • 15
    Conferir também, nesse sentido: Jean-Claude Perrot (1985: 353). Bentham também chamou seu panóptico de “minha própria utopia” e afirmou que ele deveria ser feito com ferro e não com madeira (Cf. Bentham 2005: 21, 74).
  • 16
    Trata-se de um pequeno texto em francês de Benjamin sobre o escritor. Benjamin nota que é improvável que Scheerbart tenha lido Fourier. Os dois são tratados como utopistas por ele (Benjamin 1977: 632).
  • 17
    Scheerbart e Taut conheceram-se pouco antes de empreenderem o projeto de realizar uma casa de vidro no contexto da exposição da Werkbund alemã em Colônia, em 1914. Taut dedicou essa construção a Scheerbart (Cf. Stuart 1999: 61). Stuart destaca que também Walter Gropius foi um leitor entusiasta de Scheerbart, que marcou a visão de vários outros arquitetos.
  • 18
    Como Bentham, Scheerbart (2011: 9) também desaconselha o emprego da madeira e indica o ferro. Apesar de afirmar que a Terra será um paraíso com a introdução dessa arquitetura transparente (que, para ele, teria o acréscimo das cores nos vidros) ele condena chamá-la (como o faz Benjamin) de utópica: “Arquitetura de vidro nunca deveria ser chamada de utópica” (Scheerbart 2011: 17). Sobre o tema da relação com Giedion, da transparência e da porosidade em Benjamin, conferir também Déotte (2013).
  • 19
    Conferir também esse outro fragmento bem à la Giedion, Scheerbart e Le Corbusier: “É próprio das formas técnicas de construção (em oposição às formas artísticas) que seu progresso e seu êxito sejam proporcionais à transparência de seu conteúdo social. (Daí a arquitetura em vidro.)” (Benjamin 2006: 507, grifo no original).
  • 20
    Essa passagem permite estabelecer uma relação entre a teoria freudiana do Unheimlich (o conceito de estranho que guarda em si a ideia de “lar”, “Heim”) com o mistério, que Benjamin associa à propriedade. É como se a sociedade em que tudo gira em torno da mercadoria e de seu culto fosse o palco para o indivíduo psicanalítico refém do mistério, ou seja, do Unheimlich, de sua alienação. A transparência significaria o fim do mistério e desse indivíduo psicanalisável.
  • 21
    Xavier de Jarcy, em seu mencionado livro sobre Le Corbusier, recorda um artigo de P. Winter, amigo de Le Corbusier, sobre o bairro operário de Pessac, construído pelo arquiteto. Ele nota que para Le Corbusier, uma casa é como um organismo, “os dejetos desaparecem e não deixam nenhum traço” (Jarcy 2015: 33, tradução nossa). Também o largo elogio de Le Corbusier à pintura branca das casas, internamente e no seu exterior, que, para ele, levaria a uma limpeza moral e transformação da vida, pode ser posto ao lado da doutrina benjaminiana do apagamento positivo dos traços (Cf. Jarcy 2015: 77).
  • 22
    Sobre a arquitetura de vidro e Benjamin, conferir ainda o capítulo “A arquitetura de vidro”, do livro de Pierre Missac (1998).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2019
  • Aceito
    09 Dez 2019
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