Acessibilidade / Reportar erro

Thea Dorn e a arte de morrer

[Thea Dorn and the Art of Dying]

Dorn, Thea. Die Unglückseligen. München: Knaus, 2016. 3813505987

Thea Dorn é uma escritora que domina os mais variados gêneros e diferentes vozes literárias. Nascida em 1970, estreou e desenvolveu-se como autora dentro da indústria cultural da Alemanha contemporânea pós-reunificação. Elaborou não só roteiros de filmes policiais e romances do mesmo gênero, como também peças de teatro, e tem atuado na TV como apresentadora de programas culturais. Não escreve para almas sensíveis, pois gosta da linguagem direta e de cenas impactantes, as quais sabe combinar com o refinamento da alusão erudita.

Seu mais novo romance, Die Unglückseligen (2016), título que pode ser traduzido como "Os mal-aventurados", também oferece uma estrutura básica conflituosa que salta à vista. No centro da narração desenvolve-se o enfrentamento entre as duas figuras principais: uma contemporânea nossa, pesquisadora em biologia molecular extremamente ambiciosa, e um cientista da época áurea do romantismo alemão, por volta de 1800, que, para os tempos atuais, não passa de um pobre-diabo fracassado. Essa combinação interessante dá espaço a diálogos que são verdadeiros duelos retóricos e fazem lembrar a arte do drama. Além disso, a autora lança mão de uma gama de outros gêneros, estilos e linguagens mais ou menos literários, fazendo uso soberano tanto da poesia romântica quanta da onomatopeia dos gibis, do protocolo científico e do faz-de-conta infantil, da canção religiosa e do relato exorcista, da erudição e da irreverência.

A protagonista feminina do romance, a alemã Johanna Mawet, trabalha, no início da trama, em um laboratório de ponta nos EUA, onde tem à sua disposição toda nanotecnologia avançada que a segunda década do século XXI pode oferecer. É uma "Immortalistin" convicta. Em português, o substantivo "imortalismo" designa a crença na perenidade da alma, uma ideia que não faria o menor sentido para Johanna que, ao pesquisar a imortalidade, combina o racionalismo das ciências modernas com um materialismo estrito. A missão pouco modesta de Johanna é livrar a humanidade dos seus três maiores inimigos: a doença, o envelhecimento e, principalmente, a morte (como repete várias vezes no transcorrer da narrativa). Nesse caminho tem sucesso e ganha até o Methuselah Mouse Price, o prêmio da Fundação Matusalém, instituição americana que pesquisa e pretende reverter os processos de senescência celular.

Quem considera tudo isso tão irracional como a velha busca pela pedra filosofal não está bem informado e provavelmente não faz ideia do que significa Telomerase ou o que é a Methuselah Foundation. Para as ciências contemporâneas da vida, os fatores fisiológicos básicos que determinam o processo da senescência já são bem conhecidos; acredita-se que seja possível reverter o envelhecimento celular fazendo uso de certas enzimas.

No romance, os trechos descritivos sobre pesquisas em bioquímica e genética baseiam-se nas investigações da autora, que visitou laboratórios dessas áreas e contatou especialistas, o que explica a impressionante verossimilhança dos fatos narrados. Não existe dúvida de que atualmente milhares de pesquisadores no mundo inteiro estão atribuindo a si e a outros colegas cientistas o poder de submeter a biologia à vontade humana, de modificar a base genética de suas cobaias e, assim, as linhas fronteiriças entre vida e morte.

Tudo isso lembra bastante Frankenstein, o famoso "Prometeu cientista" criado por Mary Shelley. Não por acaso o protagonista masculino no romance de Thea Dorn é a encarnação literária de uma figura real dessa época, a do físico e filósofo natural Johann Wilhelm Ritter, bastante apreciado por Goethe, Alexander von Humboldt, Clemens Brentano, entre outros. Ritter fundou a teoria eletroquímica, criou a primeira pilha recarregável e descobriu também a radiação ultravioleta. Morreu cedo, aos 34 anos, provavelmente em consequência de suas pesquisas, pois costumava sujeitar o próprio corpo a altas voltagens durante suas experiências eletrofisiológicas. Na ficção literária do romance em questão, Ritter somente fingiu a própria morte, em 1810.1 1 A ficção do romance se baseia, de certa forma, na ficção literária que o próprio cientista criou. Para seu último livro Fragmente aus dem Nachlasse eines jungen Physikers, inventou um editor fictício que supostamente reuniu os aforismos ritterianos e esboços científico-filosóficos póstumos. Ritter faleceu logo depois da estreia do seu livro (cf. Gamper, Michael. Elektropoetologie: Fiktionen der Elektrizität 1740 - 1870. Göttingen: Wallstein 2009: 192). Desde então tem vagado pelo mundo, dotado de uma inexplicável e incrível capacidade de cicatrização - até membros cortados do seu corpo podem crescer novamente. Mas a experiência da imortalidade deixou-o depressivo, desafortunado mesmo. Quando a protagonista, nas primeiras páginas do romance, por acaso, depara-se com Ritter nos Estados Unidos, onde tem vivido durante boa parte dos últimos dois séculos como John Knight, obviamente não consegue acreditar na sua história. Johanna necessita de um tempo para perceber que esse homem apresenta aquilo que ela procura descobrir há tanto tempo: a regeneração celular ilimitada. Porém, mesmo com toda tecnologia de ponta, a pesquisadora não consegue entender a variação genética de Ritter.

A autora tira o máximo de proveito da combinação entre Johanna e Johann - entre a especialista em biologia molecular e o cientista romântico. Ritter representa a época da última flor da filosofia natural na Alemanha, o pensamento romântico das ciências naturais por volta de 1800, antes da estrita divisão moderna entre, de um lado, discursos científicos (tanto práticos como teóricos) baseados na função lógica da linguagem e, de outro, discursos artísticos de função estética que utilizam meios narrativos e figurativos. Enquanto para Johanna tudo que é vivo se baseia em informação bioquímica, e que, portanto, pode ser lido e manipulado de forma racional, para seu bicentenário colega a ciência está ligada ao pensamento metafórico-estético e, ao mesmo tempo, holístico:

O ja, ich habe es bewiesen[...]. Dass es sie wirklich gibt und wahrhaftig gibt - die eine Kraft, die alles durchglüht: die Vulkane entzündet und Berge erschüttert; die die atmende Brust hebt und senkt; die den Embryo des Frosches wie den der Mimose ins leben ruft - das große Band, das Körper und Seele und All einigt. [...] Weltseele hat Schelling es genannt. [...] Aber den Gedanken hatte er von mir! (Dorn 2016: 75).

A força vital que une corpo, alma e cosmo, é capaz de reunir o homem novamente com a natureza. Diante da tecnociência moderna que transformou a natureza em dados quantitativos a partir de um processo de fracionamento da totalidade cósmica, o tratamento estético dos pensadores românticos busca recuperar os aspectos sensíveis e integrais dos fenômenos naturais. O laço abrangente ("das große Band"), de que Ritter fala, é o galvanismo, palavra que por volta de 1800 é sinônimo de eletricidade. Trata-se de um fenômeno ainda pouco compreendido nas ciências exatas da época. O protagonista literário, sósia ficcional do cientista histórico, é fascinado por um universo ativo marcado pela lei básica de atração e repulsão, da polaridade de tudo. Outros românticos como o inglês Samuel Taylor Coleridge eram adeptos e propagandistas da mesma ideia.

Após fracassar em seus métodos avançados de pesquisa em biologia molecular, o destino de Johanna ganha fortes traços tragicômicos. Ela abandona cada vez mais a racionalidade das ciências exatas e tenta descobrir o segredo da longevidade a partir de práticas pré-modernas e arcaicas, como a invocação do diabo em frente a uma gruta antiga. É uma cena um tanto "grutesca" como grotesca, interceptada por trechos em formato de uma história infantil. Finalmente, a tragédia da cientista torna-se tragédia de amor. Muitas críticas alemãs por ocasião da estreia do romance não perceberam, mas o fim da trama faz alusão a uma das ocorrências mais famosas na Alemanha romântica, à morte de Heinrich von Kleist e Henriette Vogel, que cometeram suicídio em novembro de 1811 às margens de uma lagoa berlinense. No romance, a protagonista tem a mesma doença fatal e faz uso da mesma retórica amorosa da famosa Liebeslitanei de Henriette Vogel, embora a própria morte aconteça de forma diferente.

"Without love no happiness" diz o Arcanjo Rafael para Adão no oitavo livro do Paraíso perdido de John Milton (São Paulo, Editora 34, 2015: 574), o que já foi traduzido para o alemão como "ohne Lieb' ist keine Seligkeit". O casal unglückselig acha sua felicidade final na água fria de uma lagoa nos Alpes. Assim, Johanna, militante contra o pior inimigo da humanidade, e Johann, cansado de precisar viver aparentemente para sempre, aprenderam a importância da boa morte na natureza, que se realiza em conjunto com a utopia do amor, motivo espiritual e poético da Idade Média até os pós-românticos. Com esse desfecho da trama, o amor como religião não supera a morte, mas possibilita uma ars moriendi, leva à aceitação do fim da vida, o que a protagonista rejeitou durante todo o romance com veemência. Mawet, aliás, é a palavra hebraica מוות que significa "morte".

No entanto, o romance não termina com o casal, como também não começa com ele. As primeiras e as últimas páginas são do domínio de uma voz narrativa que também toma a palavra durante toda a trama: é a voz do diabo que comenta o percurso dos dois personagens, seus pensamentos e aspirações, mas não tem poder nenhum para interferir. Lembremos que no Fausto de Goethe já aparece a figura literária do diabo moderno como parte da energia "que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria". O diabo no romance de Thea Dorn, mais secularizado ainda, não ganha nem o status de uma figura literária. Ele é simplesmente uma voz comentadora, mesmo sendo uma voz potente que emprega o verso branco com maestria ao tecer suas observações mais ou menos maliciosas. Na segunda parte do livro recebe a possibilidade de contar sua própria versão da Genesis, na tradição de Satanás, o anjo rebelde caído do já citado épico miltoniano. Nessa versão, contada na linguagem de tradutores oitocentistas de Milton - como Bodmer ou, no século XIX, Adolf Böttger -, o diabo é uma espécie de Prometeu, advogado da vida humana desde suas origens, que ajuda na construção da civilização, dando língua, fogo e roupa aos humanos.

Assim, a autora combina de forma convincente a herança do mito fáustico - das narrativas em torno do pacto entre Fausto e o diabo -, com a tradição do mito do cientista sem escrúpulos, personificado em Frankenstein. Trata-se de dois mitos literários modernos, visto que tanto no Fausto goethiano como no Frankenstein de Mary Shelley, o mal de que a humanidade é capaz é sua própria obra e não tem mais explicação teológica. Numa cena que reúne professores e estudantes do laboratório americano bebendo cerveja em um pub em volta da mesa do "LabRat-Pack-Stammtisch", Johann é estimulado a cantar uma canção alemã. Sem pensar muito, entona a mais importante e ao mesmo tempo militante canção luterana contra o diabo, Ein feste Burg ist unser Gott, "Castelo Forte é o Nosso Deus." A turma de cientistas internacionais fica incomodada e se desfaz. Por um momento, Johann venceu a luta, mas as pesquisas do laboratório certamente continuarão no dia seguinte. Contra a humanidade decidida a não parar nunca, nem a militância cristã acorre. Do diabo desarmado do romance ninguém precisa ter medo, mas desses pesquisadores desenfreados, sim.

  • 1
    A ficção do romance se baseia, de certa forma, na ficção literária que o próprio cientista criou. Para seu último livro Fragmente aus dem Nachlasse eines jungen Physikers, inventou um editor fictício que supostamente reuniu os aforismos ritterianos e esboços científico-filosóficos póstumos. Ritter faleceu logo depois da estreia do seu livro (cf. Gamper, Michael. Elektropoetologie: Fiktionen der Elektrizität 1740 - 1870. Göttingen: Wallstein 2009: 192).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2016
  • Aceito
    05 Jan 2017
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium@usp.br