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Assembleias de classe e a autoética pela perspectiva de Edgar Morin 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho - https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah – leda.farah@terra.com.br. 3 3 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Bolsa Produtividade em Pesquisa nº 305416/2020-0.

Asamblea de clase y auto ética desde la perspectiva de Edgar Morin

Resumo

O artigo trata das assembleias de classe em uma escola na perspectiva ética de Edgar Morin. Como as assembleias de classe se constituem em Escolas Municipais de Ensino Fundamental I de Campinas, SP e em que medida podem favorecer a compreensão da ética no espaço escolar? O método de pesquisa qualitativa incluiu os instrumentos entrevista e observação. Como resultados, percebeu-se que atividades introdutórias às assembleias de classe – como leituras, músicas e toque corporal – auxiliam no autoconhecimento, minimizam a hostilidade e despertam o reconhecimento do outro. A contribuição do estudo reside na compreensão da necessidade de reflexão sobre resolução de conflitos no âmbito escolar e do conflito como oportunidade para um amadurecimento nas relações sociais.

Palavras-chave
assembleia de classe; ética; Edgar Morin

Resumen

El artículo trata sobre las asambleas de clase en una escuela desde la perspectiva ética de Edgar Morin. ¿Cómo se constituyen las asambleas de clase de las Escuelas Municipales de Educación Fundamental en Campinas / SP y en qué medida pueden favorecer la comprensión de la ética en el espacio escolar? El método de investigación es cualitativo, incluyó los instrumentos de entrevista y observación. Como resultados identificamos que las actividades introductorias a las asambleas de clase, como la lectura, la música y el contacto corporal, ayudan en el autoconocimiento, minimizan la hostilidad y despiertan el reconocimiento del otro. El aporte del estudio reside en la necesidad de reflexionar sobre la resolución de conflictos en el contexto escolar y la comprensión de que el conflicto puede ser una oportunidad para madurar en las relaciones sociales.

Palabras clave
asamblea de clase; principio moral; Edgar Morin

Abstract

This article analyzed a school's class assemblies from Edgar Morin's ethics perspective. How are class assemblies organized at Municipal Secondary Schools in Campinas/SP? How can they contribute to the understanding of ethics in the school environment? This research employed qualitative methods of interviews and observation. The results show that introductory activities to class assemblies - such as reading, music, and physical contact - develop self-knowledge, reduce hostilities and awaken recognition of the other. The study contributes to the reflection on conflict resolution in the school environment. It also contributes to understanding how conflict can be an opportunity for more mature social relations.

Keywords
class assemblies; ethic; Edgar Morin

Introdução4 4 A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Refletir sobre o conflito foi um aspecto primordial para a construção deste artigo. Presente em qualquer relacionamento humano, o conflito pode ser compreendido como uma divergência de opiniões. Entretanto, no âmbito escolar, dialogar sobre um conflito, negligenciá-lo ou reprimi-lo, pode determinar consequências futuras de naturezas diversas, tais como evoluir para situações mais violentas e de expressão da agressividade ou para o aprendizado e o amadurecimento das relações humanas, por exemplo. Entende-se que proporcionar condições para esse amadurecimento é um aspecto fundamental de uma educação voltada para um ensinar a viver: que estimule um olhar para si mesmo e para o outro, para a compreensão, para o autoconhecimento capaz de superar uma incivilidade.

Nesse sentido, as assembleias de classe – concebidas como práticas pedagógicas constituídas por momentos de diálogo organizado entre o educador e todos os estudantes de uma turma, amplamente discutidas no campo educacional, quando se trata de resolução de conflitos, construção de regras e gestão democrática de sala de aula – podem ser questionadas em sua aplicabilidade, no que concerne à maneira como está construída e presente em cada contexto escolar, nas interações e intervenções do educador e dos estudantes e em seus desfechos em todos os outros momentos pedagógicos. O desenvolvimento do trabalho pedagógico por meio das assembleias de classe tem por finalidade, em primeiro lugar, proporcionar aos discentes e aos docentes a construção de um ambiente escolar dialógico e democrático; em segundo, promover um olhar para si mesmo e para o outro; e, em terceiro, fortalecer as relações entre os sujeitos no âmbito escolar, refletindo sobre as tomadas de decisão em situações de conflito. Dessa forma, as assembleias de classe seriam possibilidades para despertar a autoética?

Considerando esse aspecto, investigou-se como algumas escolas lidam com conflitos em seus contextos. A pergunta de pesquisa consistia em saber como se constituem as assembleias de classe em Escolas Municipais de Ensino Fundamental I de Campinas, SP e em que medida podem favorecer a compreensão da ética no espaço escolar? Para essa pesquisa qualitativa, selecionou-se, por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), dez escolas municipais de Ensino Fundamental I: duas de cada região do município de Campinas, SP – de maior e de menor Ideb por região. Para a construção dos dados, optou-se pela entrevista semiestruturada, a fim de ouvir cada participante no tocante às suas concepções sobre as temáticas: conflito e sua mediação, ética, relações humanas e assembleias de classe. Com isso, entrou-se em contato com o ponto de vista de educadores envolvidos com turmas de quinto ano, orientadores pedagógicos e diretores das unidades educacionais. Nas escolas em que havia um trabalho sistematizado com assembleias de classe foi feita a observação dessa prática pedagógica, para perceber o que existe de peculiar em cada espaço escolar e compreender a maneira com que os assuntos e os conflitos discutidos nas assembleias eram desenvolvidos entre os estudantes e os educadores. As entrevistas e as observações foram fundamentais para a pesquisa, pois, em se tratando de um estudo que descreveu um fenômeno educacional, os sujeitos são únicos e singulares, e a fala e as atitudes de cada um trazem sua individualidade e sua apreensão daquela realidade.

Neste artigo discute-se a concepção de ética complexa de Edgar Morin e apresentam-se resultados e discussões obtidos por meio de observações de assembleias de classe de uma das escolas participantes da pesquisa.

Ética Complexa

Pode-se observar uma tendência a discussões acerca da temática ética, que tem se acentuado, principalmente a partir do final do século XX, oriunda da Segunda Grande Guerra. O teor dessas discussões é reflexivo, para compreender os rumos da vida humana na sociedade ocidental, das relações sociais com os grupos diversos e com o meio ambiente (Brochado, 2010Brochado, M. (2010, julho-dezembro). Ética e as relações entre Estado, Política e Cidadania. Cadernos da Escola do Legislativo. 12(19), 57-82.). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997Brasil (1997). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais – ética. MEC/SEF.), ressaltam a necessidade de desenvolver essa temática no âmbito escolar por meio de temas transversais.

A ética pode ser definida como reflexão sobre a moral, mas há também a dimensão etimológica: a ética tem raiz grega, ethos, e a moral, por sua vez, raiz latina, morales (Abbagnano, 2007Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia (2.ª ed.). Martins Fontes.). De certo modo, para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., os termos recebem tratamento equivalente. Compreende-se a moral como um conjunto de regras, de normas e de leis que orientam a vida das pessoas no âmbito coletivo, com um caráter normativo fundamentado nos costumes de cada sociedade. Por outro lado, a ética possui um caráter reflexivo sobre o bem coletivo de todas as sociedades e está fundamentada nos princípios do respeito, da justiça e da solidariedade. Respeito é entendido como a tomada de consciência de que todos os indivíduos constituem uma sociedade, e por meio da relação respeitosa com o outro é que poderemos construir a própria identidade e existência. O princípio de justiça compreende que todos os indivíduos possuem igualdade em direitos, e a solidariedade consiste em pensar no outro, independentemente de uma consequência como um castigo ou uma recompensa (Rios, 2011Rios, R. A. (2011). Ética e competência (20.ª ed.). Cortez.). Assim, tanto para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. quanto para Rios (2011)Rios, R. A. (2011). Ética e competência (20.ª ed.). Cortez., não há separação entre ética e moral. Há apenas uma distinção, de forma que a ética designa um ponto de vista supraindividual e a moral situa-se nos níveis da decisão e da ação dos indivíduos. Portanto, “ a moral individual depende implícita ou explicitamente de uma ética. Esta se resseca e esvazia sem as morais individuais. Os dois termos são inseparáveis e, às vezes, recobrem-se; em tais casos, usaremos indiferentemente um ou outro” (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., p. 15).

A ética complexa é concebida como um metaponto de vista que comporta uma reflexão sobre os fundamentos e princípios da moral (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.); manifesta-se para o ser humano de forma imperativa, como uma exigência moral; e a ética tem três fontes originárias: individual, exterior, anterior. A primeira corresponde à fonte interior ao indivíduo como uma imposição de um dever. A fonte exterior tem relação com a cultura, os credos e as normas de uma comunidade. A terceira é compreendida como uma fonte anterior ao indivíduo, de origem genética. Assim, podem-se distinguir as fontes biológica, individual e social que constituem uma fundamentação ética, porém sem isolar uma das outras. Estas três fontes estão presentes no indivíduo e interferem em sua própria qualidade de sujeito. Para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. “ser sujeito é se autoafirmar situando-se no centro de seu mundo, o que é literalmente expresso pela noção de egocentrismo” (p. 19).

Essa autoafirmação exposta pelo autor fundamenta-se em dois princípios: um de exclusão e um de inclusão. O princípio de exclusão significa que não existe possibilidade de outra pessoa ocupar o espaço egocêntrico onde se expressa o Eu. Dessa maneira, o princípio da exclusão é uma fonte do egocentrismo, “capaz de exigir o sacrifício de tudo, da honra, da pátria, da família” (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., p. 20). Entretanto, ao mesmo tempo, o sujeito traz também o princípio da inclusão, capaz de incluir ao seu Eu um Nós. O elemento Nós pode ser entendido como casal, família, pátria, partido, por exemplo. De acordo com Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., o princípio de inclusão manifesta-se desde o nascimento, observado pela pulsão de apego à pessoa próxima. Assim, “o princípio de inclusão é instintivo, como no passarinho que sai do ovo e segue a mãe” (p. 20), já o princípio de exclusão pode ser entendido como uma necessidade vital interna. Dessa maneira, o princípio da inclusão conduz ao altruísmo, possibilitando a manifestação da fraternidade, enquanto o princípio de exclusão conduz ao egocentrismo, que estimula o egoísmo, de forma que esse fechamento egocêntrico faz com que o outro seja um estranho. Assim, compreende-se que os dois princípios interagem de forma antagônica e complementar, de maneira que se observam alguns indivíduos mais egoístas, outros mais altruístas e, em geral, os que oscilam entre esses princípios de acordo com as situações. Pode-se dizer que “ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo” (p. 21).

Diante do exposto, em situações de conflito no âmbito escolar é possível discutir sobre o posicionamento ético perante determinada situação, retratar os momentos a partir do ponto de vista de cada sujeito, considerando o aspecto egocêntrico, e expandir para uma compreensão da situação que associe aspectos altruístas. Ressalta-se que, para Morin (2002)Morin, E. (2002). Os sete saberes necessários para a educação do futuro (6.ª ed.). Cortez., a educação tem a finalidade de ensinar a compreensão. Compreender é apreender em conjunto, abraçar junto e “inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção” (p. 95). O autor exemplifica este conceito, ao mencionar que, quando vemos uma criança chorar, a compreensão não está nas lágrimas em si, mas, sim, nas próprias aflições infantis. Assim, para a mediação efetiva de um conflito, é necessário despertar a empatia, para que, ao colocar-se no lugar do outro, se inicie um processo de compreensão. A partir do ensinar a compreensão, pode-se refletir sobre a ética da compreensão exposta pelo autor como uma arte de viver que demanda compreender de modo desinteressado, ou seja, sem esperar reciprocidade; e de maneira que se possa argumentar ou refutar, em vez de excomungar e anatematizar.

Assim, as resoluções de conflito no âmbito escolar, baseadas na compreensão, mitigariam algumas ações, como a punição ou a conivência com determinadas atitudes. É necessário que haja abertura para a reflexão e o diálogo nas tomadas de decisões das situações vivenciadas no cotidiano escolar, abrindo espaço para o exercício da compreensão e para o fortalecimento das relações entre os sujeitos. De acordo com Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., “o trabalho de compreensão tem algo de terrível, pois quem compreende está em dissimetria total com quem não pode ou não quer compreender” (p. 121). O fanatismo pode exemplificar o trabalho de compreensão, já que o fanático não quer compreender outras perspectivas porque está totalmente fechado em suas convicções e, ao mesmo tempo, não pode entender que um outro o compreenda (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.).

Essa forma de compreensão é complexa, já que evita diluir a responsabilidade num determinismo que dissolve toda a autonomia do sujeito e evita condenar pura e simplesmente o sujeito considerado responsável e consciente de todos os seus atos” (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., p. 122). Essa reflexão minimiza um reducionismo sociológico e um moralismo porque parte de uma compreensão de si mesmo, reconhecendo as próprias limitações, carências e angústias. Assim, a compreensão fundamenta-se na conciliação entre racionalidade e afetividade, afastando-se, portanto, da barbárie. Dessa maneira, exercitar essa compreensão significa civilizar profundamente. Para Morin (2017, p. 124)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., “deveria ser possível ensinar a compreensão na escola primária e continuar na secundária e na universidade. ...tiraria lições de compreensão da literatura, da poesia, do cinema”. O que o autor expõe é a necessidade de tratar de ética e de compreensão no âmbito escolar, para superar uma visão unilateral das situações, discutindo os diversos pontos de vista que a temática instiga, de forma que o debate não busque obter um consenso, um moralismo ou reducionismo sociológico e sim, auxiliar os estudantes numa reflexão interna, de caráter de autoconhecimento, fundamental para uma compreensão autoética, que consiste na consciência e na decisão pessoal. De acordo com Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. “o problema ético central, para cada indivíduo, é o da sua barbárie interior. Para superar essa barbárie, a autoética constitui uma verdadeira cultura psíquica” (p. 93). Dessa forma, a autoética é uma ética de si para si, que culmina em uma ética para o outro (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.).

A autoética comporta: autoanálise, autocrítica, honra, tolerância, prática da recursão ética, luta contra a moralina, resistência à lei de Talião e ao sacrifício do outro e tomada de responsabilidade. Comporta ainda a ética da compreensão, a ética da cordialidade e a ética da amizade. Sobre a autoanálise, Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. ressalta que o exercício da auto-observação nos permite reconhecer o próprio egocentrismo e a medida de nossas carências.

Dessa maneira, o sujeito, sem excluir sua fonte egocêntrica, pode construir um outro ponto de vista sobre si mesmo, o que exige um trabalho de reflexão e de introspecção. De acordo com o autor, um trabalho introspectivo possui diversos obstáculos, pois há complexidade interior que comporta multipersonalidades em cada indivíduo; há cegueiras frente à própria carência que permitem indulgências com os próprios erros e severidade com erros alheios; há a memória e o esquecimento seletivo; há tendência a transferir o erro e a culpa para o outro, além de ressentimentos capazes de cegar o indivíduo. O exercício da autoanálise somente ocorre por meio da autocrítica, que consiste em contrariar uma ilusão egocêntrica e ser receptivo ao outro. A ética da honra transcende o entendimento de uma honra subjugada à normas da sociedade.

Esse conceito está relacionado à construção da própria identidade: “exige que sejamos, em nossas ações, dignos da imagem que desejamos ter de nós mesmos ... sem trair nossas verdades, amizades, regras de vida” (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., p. 99). A prática da recursão consiste em rever as próprias avaliações, julgamentos e críticas. Esse tipo de exercício permite um controle de si mesmo frente a sinais de irritação, por exemplo, e a tomada de atitude de recuo perante agressões alheias, como um controle si mesmo. Dessa maneira a prática da recursão contrapõe-se à tendência de culpabilizar o outro pelo próprio erro. A resistência à moralina busca evitar a transformação do erro do outro em um ato imoral. Com isso, a autoética impede a condenação incisiva do outro por seus erros e falhas. A ética de responsabilidade, para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., concilia uma responsabilidade por si, pela própria vida, assim como uma responsabilidade pelo outro. Dessa maneira, ela necessita de uma autonomia do sujeito e, também, de um sentimento de solidariedade e pertencimento a uma comunidade.

A construção das relações sociais e o desenvolvimento do caráter e da personalidade do estudante, elementos essenciais para a formação do ser humano, muitas vezes, são tratados em algumas escolas de maneira indireta. O resultado dessa situação é percebido por meio da dificuldade atual de estabelecer relações de respeito, de tolerância, de empatia, de sinceridade, o que causa situações de isolamento social, valorização da competição e relações vazias de sentimentos. Sem a capacidade de olhar para o outro, é comum observar em números crescentes, os casos de violência, de banalização das relações humanas, de preconceitos étnicos, entre outras situações que demonstram o caminho que a humanidade está seguindo e as dificuldades em reverter esse quadro.

No intuito de desenvolver as competências existenciais – que podem ser compreendidas como o que é essencial para se viver: “errar e se iludir o menos possível, reconhecer fontes e causas de nossos erros e ilusões, procurar em qualquer ocasião um conhecimento o mais pertinente possível” (Morin , 2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina., p. 23) –, cabe à educação e à organização curricular de algumas escolas brasileiras ampliar espaços e tempos pedagógicos para reflexões no campo da ética da compreensão, aproximando-se assim, da ideia do ensinar a viver, proposto por Morin (2015)Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina.. A ética da compreensão pode tornar-se um ponto de ligação entre as disciplinas e minimizar a fragmentação do conhecimento, trazendo problemas fundamentais da realidade do estudante como conteúdo a ser tratado no âmbito escolar. Por meio deste eixo norteador, é possível desenvolver um conhecimento pertinente, favorecendo ao estudante enxergar caminhos que possam solucionar os questionamentos infantis e juvenis.

Descrevem-se abaixo observações de assembleias de classe, realizadas em uma das escolas participantes da pesquisa. Por meio dessa descrição, procura-se mostrar uma possibilidade, um caminho para despertar a autoética.

Observação de Assembleia de Classe

No dia trinta de agosto de 2019, acompanharam-se as assembleias de classe com as turmas 3 e 4, na UE45 5 A sigla UE4 refere-se à unidade educacional na qual a observação foi realizada. Assim também as siglas E4a e E4b preservam as identidades das educadoras que atuavam em turmas de quinto ano na referida escola. . As aulas começavam às sete da manhã nessa unidade educacional. A turma 3 iniciava as atividades da sexta-feira com a assembleia de classe. As carteiras estavam arrumadas em formato da letra U. E4b e alguns estudantes que já estavam na sala organizavam o espaço. A distribuição das carteiras demonstrava a preocupação com que todos os presentes pudessem entreolhar-se. De acordo com Araújo (2015)Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus., o formato de roda estabelece uma postura de igualdade entre todos os participantes – estudantes e educador – o que favorece a percepção de uma simetria democrática (Puig et al., 2000Puig, J. M., Martín, X., Escardíbul, S., & Novella, A. M. (2000). Democracia e participação escolar: propostas de atividades (Maria C. de Oliveira: Trad.). Moderna.). Quando entravam na sala de aula, alguns estudantes caminhavam até a E4b e a cumprimentavam com beijos, com abraço ou com apertos de mãos. Para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., “As saudações “bom dia”, “boa noite”, apertos de mão, abraços, beijos e as fórmulas de cortesia têm uma virtude civilizadora corretamente designada civilidade. ...cortesia e civilidade... são signos de reconhecimento do outro como pessoa” (p. 105).

Estimular um ambiente de sala de aula capaz de estabelecer uma relação de confiança e de afeto entre estudantes e educador e entre os próprios estudantes, cria-se uma percepção de pertencimento daquele contexto onde o estudante sente-se acolhido, respeitado e reconhecido. Auxilia a transformar o clima escolar (Morin, 2013Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil.) e pode ser entendido como um princípio para atenuar a incivilidade (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.). Para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. a incivilidade – evidente em grandes aglomerações – pode ser percebida em atitudes tais como: ignorar o outro, desrespeitar as prioridades, ser incapaz de assistir a um desconhecido em dificuldade, e tais atitudes “são avanços da barbárie interior” (p. 105). Entende-se que estimular a cordialidade seja um passo para um despertar da autoética (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.).

A partir do tema cordialidade, amplia-se a discussão para o ato de tocar e para o contato da pele, estabelecendo sua relação com aspectos éticos6 6 Destacamos que essas propostas eram sugeridas antes da pandemia ocasionada pela COVID-19. . Para isso, destaca-se a entrevista com E4a, que é a educadora responsável pela turma 4. Apesar de o tema cordialidade emergir da turma 3, buscam-se na fala de E4a elementos para ampliar essa discussão. Algumas atitudes cordiais, como abraçar, beijar, apertar as mãos, produzem o contato na pele por meio do toque. E o significado basal do toque, que é a troca de experiências, afeição e “calor humano” são imprescindíveis para o desenvolvimento sincero de um relacionamento (Montagu, 1988Montagu, A. (1988). Tocar: o significado humano da pele. Summus.). Nessa condição de afastamento e de superficialidade, o espaço para o toque é negligenciado e, quando praticado, é tido como sinônimo de busca por relações libidinosas. Acredita-se ser tempo de ressignificar a relação com o próprio corpo, para que haja também uma ressignificação na relação com o outro. Entende-se que é por meio do corpo que podemos estabelecer contato e comunicação com o mundo, expressar os sentimentos e as ideias (Montagu, 1988Montagu, A. (1988). Tocar: o significado humano da pele. Summus.).

Nesse sentido, desenvolver atividades que promovam uma consciência corporal oferece possibilidades para o autoconhecimento, de forma que, a partir de um estado mais consciente de si mesmo, percebendo os próprios sentimentos, pode-se estar mais preparado para uma interação social capaz de compreender o outro em sua singularidade. Exemplos de trabalho que estimulem a consciência corporal são os que envolvem estímulos na pele, que é “o mais antigo e sensível de nossos órgãos, nosso primeiro meio de comunicação, nosso mais eficiente protetor” (Montagu, 1988Montagu, A. (1988). Tocar: o significado humano da pele. Summus., p. 22). Entende-se que o significado do toque corporal consiste nas percepções táteis investidas durante uma experiência, ou seja:

experiências táteis inadequadas resultarão numa falta dessas associações e numa consequente incapacidade de criar relacionamentos fundamentais com outras pessoas. Quando o afeto e o envolvimento são transmitidos pelo tato, são com estes significados, além dos de provimento de segurança através de satisfações, que o tato passará a estar associado. Este é, portanto, o significado humano de tocar.

(Montagu, 1988Montagu, A. (1988). Tocar: o significado humano da pele. Summus., p. 379)

Conflitos no âmbito escolar que culminam em manifestações violentas, tais como agressões físicas, colaboram para experiências táteis inadequadas e, consequentemente, para o afastamento e a desconfiança nas relações com o outro. Por outro lado, desenvolver atividades que ressignifiquem o toque – com caráter respeitoso – podem favorecer o amadurecimento nas relações sociais fundamentadas no afeto. E4a, educadora da turma 4, ressalta em sua entrevista que inicia algumas assembleias de classe com uma leitura, com uma música ou com atividades de relaxamento.

Nas assembleias de classe observadas não houve esse tipo de trabalho introdutório. Mas, por meio de conversas com os estudantes, ouviram-se relatos sobre a

a gente faz atividades de relaxamento, atividades emocionais... por exemplo, eu trago, como já foi feito, atividades deles se olharem no espelho, para entender qual a troca de emoção, como eles trabalham com a emoção, se é a mesma coisa uma expressão facial da raiva ou do medo, da angústia. Ouvir músicas, músicas de relaxamento. Então, essa turma eu sentia que eles tinham muita dificuldade com a questão do toque, entre outros. Então, tocar no menino, menino tocar em outro menino era ser “veadinho”, e isso e aquilo... Então, a gente trabalhou a questão do toque, um virando para o outro, fazendo massagem no colega, o que que sentiu.

“massaginha” e o quanto gostavam dessa atividade. A percepção da E4a sobre a dificuldade dos estudantes em lidar com o ato de tocar colaborou para refletir sobre preconceitos que ainda estão presentes em nossa sociedade, como foi salientado aqui anteriormente – por exemplo, associar o toque apenas a condições libidinosas. Porém, estimular o ato de tocar pode modificar as relações sociais, se realizado de maneira consciente do objetivo que se pretende atingir no âmbito escolar. Assim ocorreu com E4a, que, ao direcionar a atividade, estimulou a reflexão sobre aquela situação, chamando a atenção do estudante para perceber os próprios sentimentos – o que sentiu ao tocar e ao ser tocado. Entende-se que os estímulos do toque e da cordialidade no âmbito escolar criam possibilidades de reflexão sobre a barbárie interior, pois comportam a percepção sobre si mesmo e a introspecção, necessárias para um exercício de autoanálise (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.).

Na parede do fundo da sala de aula da turma 3 existia uma cartolina organizada para receber os bilhetes escritos pelos estudantes durante a semana. Os papéis em branco para a escrita dos bilhetes ficavam à disposição dos estudantes, abaixo dessa cartolina denominada “Jornal de Parede”, que possui a mesma intenção de formação de pauta de assembleia de classe na perspectiva de Araújo (2015)Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus., mas o jornal de parede estava fundamentado na concepção pedagógica de Célestin Freinet. De acordo com Araújo (2015)Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus., é importante que uma cartolina fique fixada no interior da sala de aula para que estudantes e profissionais expressem suas opiniões. Sua proposta inclui duas colunas, referentes às críticas e às felicitações, respectivamente. Porém, o modelo apresentado pelos quintos anos da UE4 sugeria outras duas colunas, ampliando as possibilidades de comunicação e escuta, pois englobava propostas e curiosidades.

No livro Célestin Freinet, de Louis Legrand (2010)Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana., buscaram-se elementos para discutir algumas propostas pedagógicas presentes nas turmas 3 e 4. De acordo com Legrand, existem algumas atividades pedagógicas características da pedagogia proposta por Freinet, tais como o jornal de parede, o texto livre, a aula-passeio, o livro da vida e a correspondência interescolar. O jornal de parede fica exposto na sala de aula, assim como na proposta de assembleia de classe de Araújo (2015)Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus. e, à medida que os estudantes sentem necessidade de escrever algum bilhete, colocam a mensagem no envelope correspondente. Às sextas-feiras, o jornal de parede era aberto, e os estudantes seguiam uma ordem para assumirem algumas funções de leitura da pauta, de organização das inscrições das pessoas que queriam falar sobre o tema, de escrita da ata (registro feito no “Livro da Vida”). Os estudantes revezavam-se nessas funções, que também são descritas e explicadas na proposta de Araújo.

Além dos registros das atas de assembleias de classe e do jornal de parede, o livro da vida trazia registros de outras atividades realizadas pela turma, também fundamentadas na proposta de Freinet, como as aulas-passeio. As aulas-passeio deveriam fomentar os verdadeiros interesses da criança e uma reflexão sobre o entorno, no sentido de transformar essa realidade (Legrand, 2010Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana.). E4b explicou o projeto da aula-passeio:

a gente tem um trabalho no entorno da escola, no bairro ali da nossa escola ... que é o da horta ... a gente fez uma hortinha na escola ... orientado pelo Sr. Luiz, que é uma pessoa do bairro e ... uma aluna da sala, que tem uma casa com alguns animais e a gente visitou essa casa no começo do ano e transcorreram vários trabalhos por conta dessa aula-passeio e agora a gente vai para lá de novo porque nasceram alguns filhotinhos e a gente vai levar os alunos para ver.

A aula-passeio pensada por Freinet (Legrand, 2010Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana.), além de ter uma proposta de refletir e transformar o entorno, oferece subsídio para duas outras dimensões de propostas complementares: o texto livre – uma forma de compartilhar com os colegas os testemunhos individuais – e a correspondência interescolar, “pela qual uma escola comunica a outras o essencial desses testemunhos individuais, escolhidos de forma democrática em sala e editados coletivamente para sua comunicação” (Legrand, 2010Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana., p. 16). O texto de Legrand traz o termo “editar”, que se refere a uma proposta de jornal escolar, formulada por Freinet: uma forma de comunicação e de divulgação de conhecimentos para as famílias. Essa proposta de jornal escolar ainda não foi organizada na UE4. Considerando os relatos de entrevistas com D4, a unidade educacional estava caminhando em busca de uma linguagem comum e de uma articulação entre os trabalhos dos diferentes anos. Compreende-se que, para editar um jornal escolar, existe a demanda de uma nova proposta pedagógica da unidade educacional, envolvendo outras turmas e uma organização financeira para sua efetivação. A aula-passeio comentada por E4b mostrou uma aproximação com a comunidade e a valorização de saberes populares – “conhecimentos rurais herdados de experiências seculares” (Morin, 2013Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil., p. 286) – por um senhor da própria comunidade. Além de ensinar aos estudantes os cuidados, a conexão e o respeito com as plantas, mostrou as possibilidades de se plantar em casa – em vasos, por exemplo – alguns alimentos, observar o entorno da escola e visualizar possíveis problemas (entulhos, proliferação de doenças, estética), assim como medidas para uma transformação – como destacava Freinet (Legrand, 2010Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana.). Essa temática pode ser uma abertura para tratar de questões mais amplas, como agricultura familiar, agronegócio, degradação ambiental, agrotóxicos – temas emergentes no cenário brasileiro atual. Para Morin (2013, p. 269)Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil., “o problema da agricultura é de âmbito planetário, indissociável do problema da água, da demografia, da urbanização, da ecologia (mudanças climáticas), bem como, sem dúvida, o da alimentação, eles mesmos problemas interdependentes uns dos outros”. Essa temática é complexa e é um problema fundamental que deve ser discutido amplamente com os estudantes, ultrapassando o ensino de uma ecologia rasa – por exemplo, ensinar o estudante a separar o lixo reciclável, sendo que não há um ensino que o faça refletir sobre um consumismo exacerbado que colabora, consideravelmente, para a problemática do lixo –, que mostra os problemas de maneira superficial, expostos por meio de pensamentos simplificadores (Morin, 2016Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.).

Foi perceptível que as correções ortográficas sugeridas para os bilhetes da assembleia de classe, realizadas em sala de aula pela E4b, apontavam a importância de possibilitar uma comunicação mais clara entre as pessoas. Mesmo durante a leitura dos bilhetes que compuseram as pautas para a assembleia de classe, quando houve erros ortográficos, a educadora retomou a importância de manter o bilhete comunicável para os outros (leitores), mesmo que houvesse sido escrito em um momento difícil, em que o estudante estivesse nervoso com alguma situação. Ela reforçou a importância de manter uma carteira e uma cadeira em um espaço específico, no fundo da sala, para que o estudante se sentasse e se acalmasse para escrever os bilhetes e, dessa forma, pudesse repensar na escrita. Também conversou com os estudantes sobre as atitudes de sarcasmo com relação aos bilhetes que continham erros ortográficos, ressaltando que todos podem cometer erros. Essas ações contextualizaram a função da escrita e fizeram sentido para o estudante, porque ele se sentiu acolhido e capaz de comunicar a situação ocorrida e seus sentimentos. Assim, essa escrita tem uma simbologia bem distinta das longas cópias de textos na lousa, por exemplo. Dessa maneira, “as falhas não são mais aqueles erros que apenas o professor detectou, são obstáculos à comunicação pública” (Legrand, 2010Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana., p. 20). Geralmente, antes de colar os bilhetes do jornal de parede (assembleia de classe) no livro da vida, a E4b realizava as correções com os estudantes. Se houvesse o caso de colar os bilhetes com os erros ortográficos, em seus horários de Trabalho Docente Individual (TDI), promovia as correções com os estudantes atendidos nesse horário diferenciado. De acordo com Legrand (2010)Legrand, L. (2010). Célestin Freinet. (José Gabriel Perissé: Trad. e Org.). Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana., para Freinet, o estudo do entorno, da imprensa, do jornal e da correspondência escolares seriam instrumentos primordiais para uma revolução pedagógica e uma forma concreta de aprendizagem da escrita, da criação e da edição de textos. Para Morin (2013)Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil. “a educação deveria inspirar-se nas experiências de Montessori, Freinet, nas ideias pedagógicas de um Paulo Freire ou da Green School” (p. 201).

Essas experiências pedagógicas citadas por Morin (2013)Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil. apresentam características peculiares, foram sistematizadas por pensadores diversificados e em tempos distintos. Embora se busquem evitar anacronismos, entende-se que, para o autor, é por meio de experiências-piloto no âmbito educacional que se pode repensar a educação e enfrentar os problemas fundamentais e globais. Acredita-se que uma tomada de atitude determinante para asseverar uma experiência-piloto no campo educacional, como ressalta Morin (2013)Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil., está intrinsecamente atrelada à formação do profissional.

Na assembleia de classe do dia trinta de agosto de 2019, na turma 3, surgiram vários bilhetes direcionados ao campo de críticas. Destacam-se aqui as duas pautas que demandaram maior tempo de discussão: desentendimentos entre alunos com agressões físicas e participação de meninas e meninos no momento de brincar. A escrita dos bilhetes no campo “Eu Critico” levava o nome do aluno que estava envolvido na situação. E4b ressaltou que antigamente os bilhetes não eram nominais, assim como sugere Araújo (2015)Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus., para que a crítica fosse feita para a situação, não diretamente para a pessoa, o que evitaria julgamentos pessoais. Porém, E4b ressaltou que os estudantes sempre sabiam a quem a crítica estava direcionada e que, trazendo o nome pessoal do estudante, poderiam tratar da questão diretamente com os envolvidos.

Além disso, explicitar o nome dos envolvidos nesse campo foi uma resolução coletiva. Mesmo a literatura apontando para a importância de zelar pelo nome dos estudantes no campo da crítica, entende-se que, a partir da compreensão de que a assembleia não é um momento de julgar uma pessoa, mas de se refletir sobre os problemas, não parece haver impedimento para explicitar os envolvidos, mesmo porque direcionar o olhar propositadamente e comentar frases de forma indireta aos colegas não parece uma postura justa e sincera.

Ademais, os desentendimentos entre alunos destacados nessa assembleia de classe não foram encaminhados para a direção porque a educadora, segundo relatou, buscava uma resolução coletiva com o grupo no momento de assembleia. Dependendo da gravidade do acontecimento, é extremamente importante que a assembleia delibere sobre as situações ocorridas, promovendo uma autogestão na sala de aula (Araújo, 2015Araújo, U. F. (2015). Autogestão na sala de aula: as assembleias escolares. Summus.), reestabelecendo os combinados e as regras (Vinha & Tognetta, 2007Vinha, T. & Tognetta, L. R. P. (2008). Quando a escola é democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembléias na escola. Mercado de Letras.).

Porém, percebe-se que, após as discussões e as exposições de ideias de outros estudantes, os envolvidos no conflito pediam desculpas “da boca para fora”, como que para encerrar o assunto. Entende-se que o papel das assembleias é de promover reflexão sobre as atitudes, mas é importante destacar que essas atitudes não mudam rapidamente. Dessa maneira, faz parte do amadurecimento emocional dos estudantes compreender suas próprias atitudes e respeitar o outro. Portanto, ressalta-se que as atividades introdutórias às assembleias destacadas anteriormente, assim como a compreensão de princípios éticos por meio da literatura (Morin, 2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina., 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.) são fundamentais para o desenvolvimento desses aspectos com os estudantes.

Ao tratar da pauta sobre os conflitos no momento de brincar, a pesquisadora resolveu expor algumas ideias para a reflexão com o grupo e com a E4b. As turmas 3 e 4 tinham um momento de brincar juntos, que acontecia às quintas-feiras. O problema exposto na pauta envolvia a atitude de alguns meninos ao excluir do futebol outros estudantes. Pela maneira com que o grupo reagiu com a leitura da pauta, percebeu-se que essa era uma pauta recorrente. O estudante que escreveu o bilhete no campo das críticas alegou que outros não passavam a bola para ele durante o jogo e diziam que ele não jogava bem.

Algumas meninas fizeram a inscrição para o debate. Uma delas disse que nunca tinha a oportunidade de participar e, mesmo quando estava em uma equipe, no campo de jogo, se sentia invisível, porque nunca recebia a bola. Durante o debate entre os estudantes, percebeu-se uma postura defensiva por parte dos meninos que acreditavam jogar melhor, relatando que deixavam as meninas participarem, sim – na condição “invisível”, como uma das meninas se referiu – e que não passavam a bola para os outros meninos porque eles não sabiam jogar. Ou seja, pelos argumentos dos meninos que receberam as críticas, o problema não estava na atitude excludente deles e sim, nos outros, que, do ponto de vista deles, não teriam habilidades motoras suficientes para jogarem juntos. E4b, que também havia feito sua inscrição para falar, sugeriu que dividissem o tempo de brincar, de maneira que metade do tempo apenas as meninas jogariam o futebol e, na outra parte do tempo, somente os meninos. Para fundamentar essa ideia, E4b relembrou os estudantes que nos Jogos Escolares Municipais de Campinas, SP (JEM – competição esportiva entre as escolas municipais), assim como em outros campeonatos nacionais e internacionais, existe uma separação entre modalidades femininas e modalidades masculinas.

Nesse momento, a pesquisadora fez a inscrição para falar na assembleia, estabelecendo um diálogo com o grupo por meio de questionamentos. A partir das respostas, seguiram-se outras perguntas, no sentido de fazê-los refletir sobre a situação, como por exemplo: quando vocês jogam, qual o objetivo do jogo? Se o objetivo mais importante é vencer, quem eu vou querer no meu time? Se sempre os “melhores” jogarem mais e tiverem mais oportunidades, aquele colega ou aquela colega que está aprendendo a jogar terá chance para desenvolver suas habilidades? Então, quem vai jogar melhor? Quem tiver mais ou menos oportunidades? Qual a função das atividades físicas, dos jogos na escola? Se quiser jogar somente com os melhores, não seria legal procurar um centro de treinamento, uma escolinha? Se você, que já sabe jogar, ajudar seu colega e sua colega que estão começando a aprender, eles também não irão melhorar? E por que sempre futebol? Após essa conversa com o grupo, E4b retomou a própria fala e perguntou sobre a sugestão de separar meninos e meninas. A pesquisadora explicou que separá-los evitaria o conflito por conta desse motivo apenas – porque o conflito poderia continuar acontecendo por outras razões, como querer diminuir o tempo de jogo das meninas ou continuar excluindo os meninos considerados menos habilidosos, por exemplo –, mas seria interessante ver o conflito como uma situação positiva, para fazer o grupo amadurecer em situações de vitória e derrota, compreender que é um direito de todos a utilização dos espaços da escola e as vivências que acontecem neles e que a colaboração, a cooperação poderiam auxiliar no aprendizado do grupo todo.

Ressalta-se também que separá-los poderia acontecer para uma vivência, para eles sentirem como seria essa situação. Ou experimentar outras possibilidades – por exemplo, deixar os “melhores” jogadores participando por meio de outras funções, como a de técnico ou a de árbitro. Assim, a E4b repensou a situação e ressaltou que, quando os estudantes jogam juntos, os que não sabem podem aprender com os que sabem, e o mais importante seria que eles se ajudassem.

Percebe-se que essa intenção colaborativa entre os estudantes foi muito estimulada durante os ateliês, porque, nos agrupamentos, os estudantes se ajudavam bastante. Mas naquele momento esse paralelo não havia sido estabelecido e foi percebido pela última fala da E4b. O termo “naquele momento” fez menção ao que foi discutido na assembleia do dia trinta de agosto, porém, por ser um tema recorrente, talvez seja provável que E4b tivesse sugerido outras possibilidades e instigado outras reflexões para tentar mediar essas situações. Assim, como relatado anteriormente, com as possibilidades de temáticas que poderiam ser discutidas a partir da aula-passeio, entende-se que essas situações de conflitos – de temáticas recorrentes, ou não – seriam oportunidades para trabalhar temas muito pertinentes, como por exemplo, a identidade e o gênero. Para Knijnik (2006)Knijnik, J. D. (2006). Femininos e masculinos no futebol brasileiro. [Tese de Doutorado em Psicologia: Psicologia Social e do Trabalho.,

mesmo o desvelamento da história feminina no esporte em geral, e no futebol em particular, somada às boas atuações dos selecionados femininos brasileiros de futebol em competições internacionais ... nada disso foi suficiente para alçar as mulheres a uma posição de destaque maior no cenário futebolístico. (p. 9)

Infelizmente essa condição social que a mulher experimenta ultrapassa o campo esportivo, pois está presente em todas as esferas que compõem sua condição humana ainda nos dias atuais. O que Knijnik (2006)Knijnik, J. D. (2006). Femininos e masculinos no futebol brasileiro. [Tese de Doutorado em Psicologia: Psicologia Social e do Trabalho. relata como crenças pertencentes ao imaginário social, Tiburi (2018)Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos. esclarece como um sistema dogmático de crenças que situam as pessoas no mundo – o patriarcado:

Em sua base está a ideia sempre repetida de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas que ainda são seguidos por muita gente. (p. 26)

A autora ressalta que nesse sistema patriarcal, “o destino das mulheres é a violência” (Tiburi, 2018Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos., p. 32). Essa violência se refere à privação em “exercer o poder político, econômico e o do conhecimento” (p. 96) – sem olvidar de muitos preconceitos machistas que persistem “nas mentes e nas ações. ... muitas mulheres ainda são espancadas e escravizadas” (Morin, 2013Morin, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Bertrand Brasil., p. 366). O discurso do feminismo empregado por Tiburi (2018)Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos. evidencia uma luta por direitos de todos que sofrem as injustiças provenientes do patriarcado. Nesse sentido, é por meio da dialogicidade – capacidade de falar e de escutar – e da valorização do dissenso que o feminismo interliga política e ética “em defesa da singularidade das pessoas” (Tiburi, 2018Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos., p. 45). Em um sistema patriarcal, quem tem o poder de fala? Quem escuta? E, como escuta? É nessa perspectiva que existe uma luta pela fala – sinônimo de poder nesse contexto – associada à “solidariedade entre os discursos que exigem direitos” (p. 54). Acredita-se que seja papel da escola desmistificar crenças tão arraigadas – como o patriarcado – para restituir os lugares de fala e de escuta. A escuta é essencial na dialogicidade. Para a autora, “é incrível como as pessoas não se escutam” (p. 57) e, consequentemente, não se compreendem. Com isso, entende-se que é essencial para a formação ética ensinar a compreensão (Morin, 2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina.), ressignificar e assegurar os lugares de fala e de escuta (Tiburi, 2018Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos.), fundamentados em uma comunicação não violenta.

Nesse sentido, as assembleias de classe são atividades pedagógicas de grande potencial para abranger e estimular a compreensão, a dialogicidade, a comunicação não violenta e a autoética – tanto para os estudantes quanto para os educadores. Porém, para estimular esses aspectos é necessário interconectar a proposta pedagógica, o trabalho coletivo e a formação do educador. A maneira com que E4b mediou a assembleia de classe do dia trinta de agosto – assim como em outros momentos observados no decorrer da pesquisa – e a proposta pedagógica fundamentada em Freinet, que apoiou as ações das turmas de quinto ano da UE4, mostraram muitas possibilidades de construção de assembleias de classe que apresentam uma perspectiva de reflexão ética. Nessa assembleia, surgiram alguns bilhetes de felicitações, que fizeram referências a ajudas prestadas entre os estudantes. E4b perguntou se os estudantes que escreveram os bilhetes gostariam de falar mais sobre a situação, e a maioria descreveu os detalhes. Ao finalizar a assembleia de classe, alguns estudantes da turma 3 falaram sobre um campeonato interno de futebol, que estava acontecendo nos momentos do intervalo, organizado por alunos do ensino fundamental II. Naquele dia, disputaram a semifinal com a turma 4. Ressaltaram que seria difícil vencer a turma 4, porque geralmente perdiam os jogos de futebol às quintas-feiras para essa turma. Porém, a turma 3 venceu aquele jogo e disputou a final com o sexto ano. Houve premiação com medalhas.

As carteiras foram mantidas em formato de letra U e os estudantes fizeram uma avaliação individual. No momento do intervalo, as educadoras acompanharam a refeição e o momento de brincar dos estudantes. Os estudantes da turma 3 participaram da semifinal do campeonato interno, porém, nenhuma menina dessa turma jogou. Na turma 4 havia uma menina jogando. Era perceptível o motivo que lhe possibilitou participar de campeonato interno de futebol naquele contexto: exímia jogadora. A turma 3 venceu o primeiro jogo, mas perdeu o segundo. Percebe-se que existe um esforço das educadoras de quinto ano em trazer experiências de cooperação, de sensibilidade, de percepção do mundo. Entretanto, a organização externa à sala de aula incentiva práticas opostas. Por propiciar experiências distintas e reflexões sobre as competições esportivas e as relações sociais, é um exemplo de contradição, mas também necessário para a formação dos estudantes.

Apesar de competições estarem, geralmente, atreladas aos aspectos excludentes, existe uma cooperação entre os jogadores da mesma equipe – para alcançar um objetivo comum, por exemplo – e entre os jogadores adversários, pois sem um adversário não há competição. Além disso, as partidas poderiam possibilitar destacar a importância de princípios éticos como o respeito e a solidariedade (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.). Essa proposta de competição interna também poderia ser questionada quanto ao número obrigatório de meninas participando para a formação de equipes mistas.

No retorno do intervalo, acompanhou-se a assembleia de classe da turma 4, porém, o encontro baseou-se em consolar os colegas da turma que haviam perdido o jogo. Os estudantes da turma 4 que participaram do jogo choraram muito. Alguns meninos da turma 3, estimulados por E4b, foram até a sala da turma 4 e cumprimentaram todos os estudantes com toque de mãos, agradecendo a participação deles e reforçando, por meio de algumas falas, que eles jogam muito bem, independente da derrota daquele dia. Essa atitude, porém, aumentou a sensação de raiva que alguns estudantes estavam sentindo por terem perdido o jogo. A ação de incentivo de E4b reflete-se em uma ética de responsabilidade que concilia uma responsabilidade por si e pelo outro, além de um sentimento de solidariedade e pertencimento a uma comunidade (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.). Porém, a aspereza, a vergonha, a raiva ou o ressentimento gerados na turma 4 após o movimento da turma 3 mostrou que existe uma incerteza quanto ao resultado de uma ação entendida como ética em determinado contexto – compreendida pelo conceito de ecologia da ação7 7 O conceito de ecologia da ação parte de dois princípios: um deles consiste na compreensão de que “as consequências das ações históricas são frequentemente contrárias às intenções daqueles que as decidem” (Morin, 2014, p. 12); o outro é a retroação do presente sobre o conhecimento do passado, que aponta para a necessidade de se contextualizar o conhecimento, pois para o autor não há um ponto de vista absoluto para a observação. A ação de E4b ao enviar os estudantes para cumprimentar a turma 4 trouxe consequências contrárias às inicialmente pensadas pela educadora. (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.). Em virtude de todos esses acontecimentos e das críticas geradas entre as turmas, E4a ressaltou que essa seria uma temática para “Assembleião” – assembleia de classe que reunia as turmas 3 e 4 para discutir conflitos que permeavam entre esses grupos.

Após as tentativas de consolo pela derrota e da exposição dos sentimentos e das percepções do que era perder um jogo, E4a retomou as pautas da assembleia. Os estudantes que participaram do jogo estavam muito apáticos e pouco participaram, mesmo com os incentivos da educadora. A sensação de derrota não era coletiva, estava mais restrita a quem jogou. Percebeu-se que alguns estudantes nem compreendiam por que tanta tristeza “só por causa de um jogo”. Nesse dia, a própria E4a foi responsável por fazer as inscrições para os debates. As pautas discutidas circulavam em torno de desentendimentos, que gerou pedidos de desculpas espontâneos, mas em um sentido de querer encerrar o assunto. Havia bilhetes de felicitações e, após a conversa, os estudantes bateram palmas. Uma felicitação mais comentada foi o caso de uma estudante que geralmente ficava muito nervosa com algumas situações e que estava conseguindo se controlar mais. E4a a fez refletir sobre o recebimento de uma felicitação, pois a estudante sempre reclamava que não tinha amigos, e naquele momento estava recebendo um elogio deles, o que demonstrava sua importância para o grupo – sentimento de pertencimento (Morin, 2017Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina.). Na assembleia com a turma 4, a pesquisadora não expôs nenhuma fala.

Devido ao limite de páginas do presente artigo, apresentou-se um exemplo de um dia de observação das turmas de quinto ano da UE4, articulando a construção de dados do material empírico juntamente com os pressupostos de Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., no sentido de refletir sobre as possibilidades de despertar a autoética em assembleias de classe.

Considerações Finais

Nessas assembleias, destacam-se algumas situações que possuíam uma relação direta com elementos da autoética: o estímulo à cordialidade, ao toque corporal respeitoso e à percepção e expressão dos próprios sentimentos, capazes de ressignificar a relação consigo mesmo e com o outro, promovendo um autoconhecimento por meio de exercícios de reflexão e introspecção, ligados, por sua vez, à autoanálise e à autocrítica. Na discussão sobre um julgamento exacerbado de uma estudante da turma 4, fundamentado por crenças paradigmáticas advindas do patriarcado (Tiburi, 2018Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: para todas, todes e todos (6.ª ed.). Rosa dos Tempos.), discutiu-se a resistência à moralina, a prática da recursão e o sacrifício do outro. Nas pautas que tratavam sobre o futebol – tanto na turma 3, quanto na turma 4 – percebe-se a autojustificação, nas falas dos estudantes que não assumiram as consequências das próprias atitudes e acabaram justificando os próprios erros e culpabilizando outros colegas; e a lei de Talião, na busca de fazer o outro sentir as mesmas situações e sentimentos desagradáveis que causavam nos colegas. Por fim, foi importante destacar que as observações nas turmas 3 e 4 mostraram uma organização de trabalho pedagógico – ainda que desconectado e à parte do todo coletivo da escola – fundamentado na proposta de Freinet, que demonstrou, pelas atividades acompanhadas após a finalização das assembleias, a minimização da fragmentação do conhecimento, a consideração e a valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes, o destaque de problemas fundamentais da realidade dos estudantes, uma possibilidade de ressignificar os conteúdos tratados pela escola, como, por exemplo, os exercícios de correção ortográfica, tratando essa temática como forma fundamental de possibilitar uma comunicação que seja compreensiva. E, para Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., compreender e ser compreendido é fundamental no ensinar a viver. Percebeu-se que as educadoras – E4a e E4b – promoveram atividades que se aproximaram de uma perspectiva da autoética e do ensinar a viver propostas por Morin (2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina., 2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina. e acredita-se que essa aproximação ocorreu devido à proposta pedagógica que fundamenta o trabalho das educadoras. As atitudes das educadoras durante as aulas reverberaram na própria proposta pedagógica, porque incentivaram os estudantes a refletirem sobre si mesmos, sobre o conhecimento, sobre as atividades, sobre os relacionamentos; a cooperarem entre si para pensarem soluções para os problemas. Promoveram o diálogo em todos os momentos e incentivaram que a mediação dos conflitos fosse feita com a colaboração deles. Entende-se que a formação do educador seja essencial para estruturar assembleias de classe, para que essa prática pedagógica favoreça a construção de uma democracia escolar e a prática de exercícios que despertem a autoética e a compreensão, na perspectiva de Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina..

Portanto, considera-se que a assembleia de classe é uma prática pedagógica que possui um imenso potencial para favorecer a compreensão da ética complexa, pela perspectiva de Morin (2017)Morin, E. (2017). O método 6: ética (5.ª ed.). Sulina., se houver uma organização pedagógica que favoreça a prática de reflexões e de exercícios de autoconhecimento, assim como a aproximação com a literatura, no sentido de compreender as atitudes provenientes da condição humana.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah – leda.farah@terra.com.br.
  • 3
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Bolsa Produtividade em Pesquisa nº 305416/2020-0.
  • 4
    A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa.
  • 5
    A sigla UE4 refere-se à unidade educacional na qual a observação foi realizada. Assim também as siglas E4a e E4b preservam as identidades das educadoras que atuavam em turmas de quinto ano na referida escola.
  • 6
    Destacamos que essas propostas eram sugeridas antes da pandemia ocasionada pela COVID-19.
  • 7
    O conceito de ecologia da ação parte de dois princípios: um deles consiste na compreensão de que “as consequências das ações históricas são frequentemente contrárias às intenções daqueles que as decidem” (Morin, 2014Morin, E. (2014). Meus filósofos (2.ª ed.). Sulina., p. 12); o outro é a retroação do presente sobre o conhecimento do passado, que aponta para a necessidade de se contextualizar o conhecimento, pois para o autor não há um ponto de vista absoluto para a observação. A ação de E4b ao enviar os estudantes para cumprimentar a turma 4 trouxe consequências contrárias às inicialmente pensadas pela educadora.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho - https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2021
  • Aceito
    07 Abr 2021
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