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A obra Antimoderne de Jacques Maritain e suas representações sobre o pensamento moderno (1922) 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) - comercial@tikinet.com.br

Resumo

Este artigo procura apresentar as representações sobre o pensamento moderno, elaboradas por Jacques Maritain (1882-1973) e publicadas na sua obra Antimoderne, de 1922. Considera-se que essa obra assinala uma mudança no pensamento de Maritain, isto é, a sua adesão ao neotomismo e o seu engajamento entre os intelectuais católicos na França. A compreensão da apropriação e da interpretação do neotomismo por Maritain constitui um elemento fundamental no entendimento de sua crítica ao pensamento moderno. Com base na história intelectual e em diálogo com algumas contribuições da história cultural, busca-se realizar a conexão entre vida e obra na trajetória de Maritain. Desse modo, a obra em questão situa-se como um fator explicativo de um período da trajetória de vida do intelectual.

Palavras-chave
Intelectuais católicos; Neotomismo; Antimoderno; Jacques Maritain

Abstract

This article seeks to present the representations of modern thought, elaborated by Jacques Maritain (1882-1973) and published in his book Antimoderne, at 1922. It is considered that this work marks a change in Maritain's thought, that is, his adherence to neotomism and his engagement among Catholic intellectuals, in France. The comprehension of Maritain's appropriation and interpretation on neotomism is a fundamental element in understanding his critique of modern thought. Based on intellectual history and in dialogue with some contributions of cultural history, we seek to make the connection between life and work in Maritain's trajectory. Thus, the work in question is an explanatory factor for a period of the intellectual's life trajectory.

Keywords
Catholic intellectuals; Neotomism; Antimoderne; Jacques Maritain

Introdução

“En particulier, la manière de philosopher des modernes, parce qu’elle implique dès le principe mépris de la pensée de générations precedentes, doit être appelée barbarie intellectuelle.”3 3 "Em particular, a maneira de filosofar dos modernos, uma vez que ela implica no princípio de desprezo do pensamento das gerações passadas, deve ser chamada barbárie intelectual".

Jacques Maritain, Antimoderne, 1922, p. 19

A obra Antimoderne (1922), de Jacques Maritain4 4 Maritain nasceu numa família republicana e antiliberal. Não teve formação religiosa e nem recebeu o batismo. Converteu-se ao catolicismo já adulto, ao lado de sua esposa Raïssa. Seu padrinho de batismo foi o escritor Léon Bloy. Maiores informações em: http://maritain.org.br/ (1882-1973), apresenta uma crítica aguda ao pensamento moderno. Por isso, possui uma importância fundamental no entendimento da crítica à modernidade realizada pelos filósofos neotomistas, no contexto do século XX. Foi justamente por meio dessa obra5 5 Os capítulos da obra estão dispostos da seguinte forma: Avant-Propos; La Science Moderne Et La Raison; La Liberté Intellectualle; De Quelques Conditions De La Renaissance Thomiste; Connaissance De L’Être; Réflexions Sur Le Temps Présent; Ernest Psichari. que Maritain iniciou o processo de apropriação e interpretação do neotomismo. Assim, a publicação assinala a transição de suas ideias do bergsonismo para o neotomismo, além disso, indicia o seu engajamento entre os intelectuais católicos na França. Outro relevante aspecto não pode ser ignorado: ao longo desse livro, Maritain lançou as bases do “antimodernismo” católico no seu tempo, sendo elevado, anos depois, à condição de líder dos intelectuais católicos (neotomistas) em âmbito mundial. Segundo Gomes e Hansen (2016)Gomes, A. C. G. & Hansen, P. S. (2016). Intelectuais, mediação cultural e projetos políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política (pp. 7-37). Civilização Brasileira, pp. 7-37., as práticas culturais dos intelectuais são uma forma de ação política. Os intelectuais, como ensinaram Gramsci (2006)Gramsci, A. (2006). Cadernos do cárcere (vol. 2). Civilização Brasileira., Bourdieu (2009)Bourdieu, P. (2009). Coisas ditas. Brasiliense. e Said (2005)Said, E.W. (2005). Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. Companhia das Letras. não são indivíduos desinteressados e desligados de grupos sociais. As críticas ao pensamento moderno de Maritain foram difundidas por outros pensadores em muitos países de tradição católica, inclusive no Brasil. Disso resulta a proeminência de um estudo sobre o livro, sem o qual será difícil compreender a crítica dos intelectuais católicos ao pensamento moderno.

De acordo com Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., os estudos publicados no livro foram produzidos “em um espaço de uma dúzia de anos” e em “tom oratório, senão mesmo um pouco declamatório” (p. 13). Luigi Castiglione (1979)Castiglione, L. (1979). Premessa. In Jacques Maritain. Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale (pp. 4-17). Logos. pp.4-17. completou essa informação ao sustentar que a obra foi escrita “entre 1910 e 1921” (p. 5), e insere-se como uma publicação posterior a La philosophie bergsonienne (1913), Art et scolastique (1920) e Théonas (1921). O livro mostrava, na interpretação de Castiglione, “uma nova alma mariteniana”, que foi descrita por León Bloy (1846-1917) no seu diário Le pèlerin de l'absolu (1914). Maritain foi apresentado como um filósofo surgido do bergsonismo. O seu livro “provocador” seria um exemplo da sua “nova riqueza espiritual”, “germinada da luz de Cristo” e de “toda a sua ‘nova primavera filosófica’ que se abre ao ensinamento do tomismo” (p. 6). Ainda, Antimoderne indicava o “novo ardor de pensamento” de Maritain, no qual defendia “o primado do espiritual”, argumentação que seria completada posteriormente pela obra Humanisme intégral (1936)Maritain, J. (1936). Humanisme intégral: Problèmes temporels et spirituels d'une nouvelle chrétienté. Fernand Aubier; Éditions Montaigne. (p.6).

O intento desse estudo é compreender um momento da trajetória de Maritain por meio de sua obra. Sugere François Dosse (2009)Dosse, F. (2009). O desafio biográfico: Escrever uma vida. EDUSP, 2009., que a trajetória intelectual e a biografia apresentam muitas questões ao trabalho historiográfico, tais como problematizar: “a vida e a época” (p. 55); “a vida e a obra” (p. 80); “a vida e o pensamento” (p. 361). Nesse campo insere-se o nosso trabalho, na busca de superar a dicotomia, tantas vezes presente no discurso historiográfico, entre a vida e a obra do intelectual. A obra produzida por Maritain pode ser indício do seu engajamento político e social. Isso ajuda-nos a entender a sua trajetória de vida. Trata-se de compreender a vida pela obra. Igualmente, a obra construiu representações e interpretações que foram “consagradas” no campo intelectual (Bourdieu, 2009Bourdieu, P. (2009). Coisas ditas. Brasiliense.). Disso resulta, a necessidade premente de crítica dessas representações e interpretações “cristalizadas”, marcadamente presentes no discurso dos intelectuais. Torna-se, assim, possível a aproximação desejada por Robert Darnton (1990)Darnton, R. (1990). O beijo de Lamourette. Companhia das Letras., entre a história intelectual e a história cultural. Por isso, recorremos à noção de representação formulada por Roger Chartier (1990)Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações. DIFEL. e consideramos que ela é útil na análise dos problemas da história intelectual.

Procuramos, também, investigar os fundamentos do antimodernismo dos intelectuais católicos, no século XX. Sob a liderança inconteste de Maritain, é necessário delimitar o percurso realizado pelos intelectuais católicos na transição do antirracionalismo (tendência filosófica representada por pensadores como Blaise Pascal (1623-1662) e Henri Bergson (1859-1941), entre outros, para o neotomismo. Segundo Campos (1968)Campos, F. A. (1968). Tomismo e neotomismo no Brasil. Grijalbo., o neotomismo será, em grande medida, responsável pela renovação do pensamento católico desse período. Somam-se a essa tarefa o personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e o existencialismo, filtrado pela vertente cristã de Gabriel Marcel (1889-1973). Mas o processo de leitura, interpretação e apropriação da obra e do pensamento de Tomás de Aquino (1225-1274) não foi simples e tampouco uniforme. Antes, foi marcado por tensões e contradições.

Um aspecto bastante problemático é avaliar os possíveis vínculos de Maritain (1979)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos. e sua obra com o catolicismo integral, da Action Française, de Charles Maurras (1868-1952). Maurras foi citado por Maritain para justificar a ideia de “civilidade” (p. 16). Conjecturamos que o início da interpretação de Tomás de Aquino por Maritain tem por base elementos do integrismo francês, isto é, do pensamento conservador, contrarrevolucionário e antimoderno. Evocando suas “memórias pessoais”, argumentou: “três ou quatro anos após a minha entrada na Igreja, jamais havia encontrado na Action Française, nenhum livro aberto de Maurras” e criticava o desconhecimento do autor por parte dos seus integrantes, concluiu que ele mesmo “deveria examinar a obra política de Maurras, à luz dos princípios de Santo Tomás” (Maritain, 1984Maritain, J. (1984). Primauté du spirituel. In J. Maritain & R. Maritain, Œuvres Complètes (vol. III, pp. 783-988). Éditions Universitaires; Éditions Saint-Paul., p. 759). Tal conjectura fundamenta-se em uma aliança tácita entre os católicos e os positivistas. Ambos defenderiam um princípio em comum: a ordem (Dias, 1996Dias, R. (1996). Imagens de ordem: A doutrina católica sobre autoridade no Brasil 1922-1933. Editora UNESP.) e (Farias, 1998Farias, D. D. (1998). Em defesa da ordem: Aspectos da práxis conservadora católica no meio operário em São Paulo (1930-1945). Hucitec.); contra a revolução e a anarquia do pensamento moderno. Uma tarefa importante é precisar o que os católicos entendiam por revolução. Maritain sentenciou que a revolução é “anticristã” (Maritain, 1979Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos., p. 17). Trata-se de um problema difícil. Citando Joseph de Maistre (1753-1821), Maritain qualificou a Revolução Francesa de “Révolution satanique”6 6 Revolução satânica. (Maritain, 1984Maritain, J. (1984). Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques. In J. Maritain & R. Maritain, Œuvres Complètes (vol. III, pp. 741-780). Éditions Universitaires; Éditions Saint-Paul., p. 760, grifo do autor). A revolução é a Reforma Protestante (séc. XVI), a Revolução Francesa (1789) e, sobretudo, a Revolução Russa (1917). Mas, por exemplo, para Maritain havia uma “revolução kantiana” que consumava “a revolução cartesiana” (p. 116). Immanuel Kant (1724-1804) e René Descartes (1596-1650) são apresentados como pensadores revolucionários e que, portanto, deveriam ser evitados pelos católicos. Ou seja, o laicismo é revolucionário. Por isso, os católicos fizeram muito esforço para tentar refutar o pensamento laico, uma vez que ele rejeitava a metafísica da Igreja. É preciso oferecer atenção à interpretação da tradição cristã (católica) realizada pelos filósofos neotomistas nesse contexto.

São fontes históricas importantes para esse estudo as seguintes obras de Maritain: Antimoderne7 7 Esta é a obra sobre a qual se fundamenta o estudo. Porém, um diálogo com outras obras de Maritain (que julgamos importantes na compreensão do tema) será estabelecido ao longo do texto. (1922), Trois Réformateurs: Luther – Descartes – Rousseau (1925), Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques (1926), Primauté du Spirituel (1927) e Humanisme intégral (1936). Não procuramos realizar uma análise pormenorizada dessas obras, mas apenas estabelecer uma interlocução com intuito de compreender as representações construídas por Maritain sobre o pensamento moderno.

Maritain e o renascimento do tomismo no século XX

Com a publicação da obra Antimoderne, Maritain pretendia fomentar o renascimento do tomismo no século XX. Apresentaremos algumas características do contexto histórico desse livro. É preciso mostrar os vínculos de Maritain com o magistério da Igreja, sobretudo com os documentos dos papas. Esse exercício nos permitirá perceber como Maritain se apropriou da crítica ao pensamento moderno que foi realizada pelos pontífices.

No que concerne à história do livro (Chartier, 1998Chartier, R. (1998). A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Editora UNB. e Darnton, 2010Darnton, R. (2010). A questão dos livros: Passado, presente e futuro. Companhia das Letras.) de Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., alguns dados são importantes, tais como a publicação pela Éditions de la Revue des Jeunes, em 1922. A obra foi dedicada a Vladimir Ghika (1873-1954)8 8 Vladimir Ghika era um príncipe, diplomata, ensaísta e mártir da fé romeno. Foi perseguido pelo nazismo e pelo comunismo. Estudou a obra de Tomás de Aquino com os dominicanos na França e em Roma. Tornou-se padre e morreu como prisioneiro do regime comunista da Romênia, em 1956, aos 80 anos. , descrito como “príncipe dos séculos e por vocação mais alta padre da Igreja de Jesus Cristo”. O livro veio repleto de propagandas de publicações dos intelectuais católicos (neotomistas) da época, como a revista La vie intellectuelle e a Somme Theologique de Saint Thomas D’Aquin, ambas oriundas da mesma editora. Autores como G.K. Chesterton (1874-1936), por exemplo, tiveram seus trabalhos divulgados no livro.

A respeito dos vínculos do pensamento de Maritain com os documentos papais é preciso demarcar alguns textos importantes, por exemplo: a encíclica Fausto appetente die (1921), de Bento XV (1914-1922).9 9 O recorte temporal se refere ao período do pontificado e não ao tempo de vida. Essa regra será adotada ao longo do estudo toda vez que nos referirmos aos papas. Essa encíclica tinha o teor comemorativo do sétimo centenário da morte de Domingos de Gusmão (1170-1221), fundador da Ordem Dominicana, à qual pertenceu Tomás de Aquino. Maritain citou a frase do papa que afirmava: “a Igreja fez sua a doutrina de Santo Tomás” e indicou que “esse Doutor foi enaltecido com os mais insignes elogios dos pontífices” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 18). Além de ser destacado como “mestre e padroeiro das escolas católicas” (Bento XV, 1921Benedetto XV. (1921). Fausto appetente die. Libreria Editrice Vaticana. https://w2.vatican.va/content/benedict-xv/it/encyclicals/documents/hf_ben-xv_enc_29061921_fausto-appetente-die.html
https://w2.vatican.va/content/benedict-x...
). Desse modo, de alguma forma, a obra se insere no contexto das comemorações do sétimo centenário da morte de Domingos de Gusmão.

Os fundamentos do neotomismo podem ser encontrados no século XIX, na encíclica Aeterni Patris (1879), de Leão XIII (1878-1903). Esse documento ordenava a retomada da obra de Tomás de Aquino pelos católicos e defendia a sua renovação no contexto da modernidade. Leão XIII foi um papa muito importante na história da Igreja, não só por fomentar o neotomismo mas principalmente por inaugurar a doutrina social da Igreja com a sua famosa encíclica Rerum Novarum (1891), sobre a questão operária. Nessa publicação, o papa mostrava uma combinação de princípios do liberalismo10 10 Para Pellicciari (2011, p. 11), Pio IX defendeu que “o catolicismo não é conciliável com o liberalismo”. Contudo, “a combinação do liberalismo e do comunismo é por outro lado recorrente no profético magistério de Pio IX” (Ibid.). Assim, a controvérsia sobre o antiliberalismo católico (Lamounier, 2014) e catolicismo liberal (Azzi, 1994) remonta ao pontificado de Pio IX. com o socialismo, indicando o catolicismo como uma espécie de terceira via entre essas duas doutrinas. Contudo, não se trata de um pensamento original, mas de um arranjo sob o fundamento da doutrina católica, de princípios liberais e socialistas. A encíclica geralmente é utilizada para mostrar a solidariedade da Igreja com os operários e justificar a defesa dos direitos trabalhistas pelo papa. Mas, é preciso afirmar, esse mesmo documento defendeu o direito de propriedade privada como algo sagrado e querido por Deus. Assim, a encíclica apresentava-se como uma solução conservadora da chamada questão operária, uma tentativa de conciliação das classes sociais, sobretudo entre patrões e empregados. Foi uma forma de a Igreja tentar conter o avanço do socialismo entre os católicos.

Mas o conservadorismo de Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. nesse período não ficou tão evidente nos documentos papais citados nesse livro. É preciso avançar mais quatro anos e chegar à obra Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques (1926). Nessa publicação, posterior à condenação da Action Française, por Pio XI (1922-1939), ocorrida também nesse mesmo ano, o filósofo francês identificou sua proximidade com os pontífices, e seus respectivos documentos mais antimodernistas. Uma questão importante é analisar o posicionamento de Maritain frente à condenação feita por Pio XI a Maurras e sua Action Française. A nota dez desse livro é muito esclarecedora. Maritain se referiu às seguintes encíclicas: Mirari Vos (1832), de Gregório XVI; Quanta Cura (Syllabus § X) (1864), de Pio IX; Immortale Dei (1885), de Leão XIII; Pascendi Dominici Gregis11 11 As encíclicas Pascendi Domini Grecis e E Supremi Apostolatus, de Pio X e o Syllabus, de Pio IX, são os documentos papais mais incisivos da época na condenação do pensamento moderno. Tais textos também foram citados no capítulo 5 da obra Antimoderne, intitulado Réflexions sur le temps présent. Maritain viu na encíclica Pascendi uma atualização do Syllabus (Maritain, 1922, p. 200). (1907), de Pio X; Ubi Arcano Dei (1922), de Pio XI. Esses documentos representam o cerne do antimodernismo católico. Integram os documentos papais definidos como “encíclicas contra o pensamento moderno” (Gramsci, 2011Gramsci, A. (2011) Il Vaticano e l’Italia. Editori Internazionali Riuniti., p. 119). A luta contra as ideias modernas, nesse contexto, era o antiliberalismo católico, herdeiro do ultramontanismo (Lamounier, 2014Lamonunier, B. (2014). Tribunos, profetas e sacerdotes: Intelectuais e ideologias do século XX. Companhia das Letras., p. 19). Destacam-se, no conjunto de documentos, as encíclicas Quanta Cura (Syllabus § X), Immortale Dei e Pascendi Dominici Gregis, como provas contundentes do antimodernismo dos papas desse período (Maritain, 1984Maritain, J. (1984). Primauté du spirituel. In J. Maritain & R. Maritain, Œuvres Complètes (vol. III, pp. 783-988). Éditions Universitaires; Éditions Saint-Paul., p. 761).

A encíclica Quanta Cura (Syllabus § X), de Pio IX, foi a conhecida condenação dos erros da modernidade. O trecho supracitado, escolhido por Maritain, era justamente o erro “do filósofo e da filosofia” (na modernidade) que evitavam “submeterem-se a alguma autoridade” (a Igreja). No caso, essa afirmação seria completada pelo parágrafo onze, que condenava a filosofia que não aceitasse a correção da Igreja e que insistisse em seus supostos erros (Pio IX, 1864Pio IX. (1864). Quanta cura. Libreria Editrice Vaticana. https://w2.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/encyclica-quanta-cura-8-decembris-1864.html
https://w2.vatican.va/content/pius-ix/it...
). Dito de outro modo, o líder neotomista procurava restaurar o princípio da autoridade (sobretudo do papa), caro aos católicos, e submeter a filosofia ao seu domínio. Ou seja, a filosofia não poderia ser emancipada da autoridade eclesial. Era uma tentativa de refutação da filosofia laica e secularizada. Lustosa (1980)Lustosa, O. F. (1980). Pio IX e o catolicismo no Brasil. Revista Eclesiástica Brasileira, 40(158), 270-285. caracterizou o longo pontificado de Pio IX (1846-1878) como um período de “revitalização ultramontana” (p. 273) do catolicismo no Brasil e também em âmbito mundial. Para suprir a ameaça ao poder do papa, com a unificação italiana e a perda dos estados pontifícios, Pio IX criou a “devoção ao papa” (p. 280). Por isso, o papa perdia o poder temporal (os estados pontifícios incorporados ao Estado italiano), mas reforçava o seu poder espiritual (o domínio da consciência dos católicos). Isso consistia na chamada reforma ultramontana do catolicismo, ocorrida durante o século XIX. A devoção ao papa, criada nesse período, serviu para reforçar o seu poder, sobretudo para garantir os privilégios da Igreja com a secularização e a laicidade do Estado moderno.

Quanto à concepção de Estado moderno, a encíclica Immortale Dei (1885), de Leão XIII, mostrava certa nostalgia dos reinos católicos da Idade Média. Esses reinos, com a junção dos poderes espiritual (da Igreja e do papa) e temporal (do rei católico), eram o estereótipo do chamado Estado cristão. Leão XIII, ao longo desse texto, elogiava a união entre o altar e o trono; ou, entre o papa e o monarca. Era a defesa da proximidade da teologia católica e da política, baseada na teologia da cristandade (Azzi, 2005Azzi, R. (2005). A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Vozes.). Uma forma de combater a laicidade do Estado moderno (Lenharo, 1986Lenharo, A. (1986). Sacralização da política (2 ed.). Papirus; Editora UNICAMP.), que era independente da Igreja, sobretudo em países de antiga tradição católica como a França ou a Itália.

Maritain (1922, p. 18-19)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. defendia, ainda que com certa dúvida, o valor da civilização tal como tinha sido posto por Charles Maurras. Encontramos a sua crítica ao que chamou de “o cisma moderno”, que teria advindo do “Renascimento” e da “Reforma”. A maior expressão desse pensamento seria Descartes, cujas ideias poderiam ser qualificadas, para o filósofo, em “uma reivindicação pura e simples de barbárie”. Assim, o pensamento moderno era considerado um “adultério espiritual”, algo que “não pode ser perdoado”, porque ao romper com a tradição clássica, principalmente medieval, “tudo isso anula da raiz os seus melhores resultados”. Dessa maneira, Maritain realizou uma interpretação moralista do pensamento moderno, buscando negar o seu potencial valor heurístico e, ao mesmo tempo, repropor ideias medievais (de Tomás de Aquino) no contexto do século XX.

Insistiu Maritain (1979, p. 19-20)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos. que “os juízos negativos que se podem e se devem dar sobre o mundo e o pensamento modernos considerados no espírito que os anima, são um indispensável ponto de partida” e completou, “porém, para ir mais longe”. É importante destacar aqui que não apenas o pensamento é passível de crítica, mas o próprio mundo moderno, isto é, o comportamento social, político, moral e cultural. Seria preciso partir desses “juízos negativos” sobre o moderno (pensamento e mundo) para reapresentar o tomismo. E novamente voltou-se aos papas expoentes do pensamento antimodernista na época moderna: Pio IX e Pio X. Argumentou: “Qualquer um deseja saber quais são os princípios espirituais do mundo moderno? O reenvio ao Syllabus e à encíclica Pascendi que, juntos, em um impressionante compêndio, nos mostram aqui os supremos resultados”. Lutero, Rousseau e Kant são apresentados como filósofos orientadores do pensamento moderno ao lançarem as bases da mentalidade imanentista e transcendentalista, as quais precisariam ser refutadas, em vista da recuperação da “autonomia espiritual”.

O neotomismo foi apresentado por Maritain (1979)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos. como resultado de uma “angústia do presente”, por isso, dizia que a sua filosofia era “antimoderna contra os erros do presente” e “ultramoderna por toda a verdade envolta no futuro” (grifos do autor, p.14). A crítica da modernidade não era, para Maritain, um retornar ao Medievo. Argumentou: “Se muito admiramos o século de São Luís, não queremos por isso retornar ao Medievo” e terminou sustentando que esse seria “o absurdo desejo que certos críticos perspicazes nos atribuem generosamente” (grifo do autor, p. 18). O grande ideal do filósofo era “ver restaurado em um mundo novo, e para informar uma matéria nova, os princípios espirituais e as normas eternas das quais a civilização medieval, nas suas melhores épocas, nos apresenta só uma particular realização histórica” (Ibid.). Aqui temos uma ideia importante: a restauração. Essa ideia representa bem o catolicismo da época de Maritain. Restaurar significa dar uma feição nova (porém, fiel às características originais), a uma obra antiga. Trata-se de um procedimento comum com obras antigas de inestimável valor histórico e artístico. Esse era o lema de Pio X, o papa mais antimodernista do século XX, “restaurar todas as coisas em Cristo” (Azzi, 1994Azzi, R. (1994). A neocristandade: Um projeto restaurador. Paulus.). Assim, pode-se entender a restauração do catolicismo na modernidade. Esse processo de reorganização da Igreja iniciou no século XIX, com o ultramontanismo, e chegou ao século XX com a mentalidade da neocristandade. Por isso, a neocristandade é uma evolução da concepção eclesiológica ultramontana, mas com novas nuances e peculiaridades, entre elas, o protagonismo do leigo e a formação de um laicato católico militante, engajado nos quadros da Ação Católica. A época medieval foi descrita por Maritain como “qualitativamente superior, não obstante as suas enormes deficiências”, porém, deveria ser considerada como “definitivamente superada” (Ibid.). A Idade Média já estava superada, contudo, deveria receber uma nova feição para reapresentar-se ao mundo moderno. O antimodernismo de Maritain possuía algum elemento de novo, não era um simples medievalismo, não obstante essa possa ser uma crítica a ele impingida.

Representações sobre o pensamento moderno

As representações sobre o moderno elaboradas por Jacques Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. não se restringem apenas à esfera do pensamento, como já tivemos a oportunidade de afirmar. Mas, antes, abrangem também o mundo, isto é, as formas culturais e sociais da modernidade. A obra Antimoderne apresentava juízos negativos sobre o moderno. Segundo Maritain, era preciso partir dessa premissa. Apresentar o moderno como algo prejudicial, qualificado numa crítica de fundo moral como: barbárie intelectual, adultério espiritual e desprezo da tradição. Aqui, seguindo a indicação de Ginzburg (2007)Ginzburg, C. (2007). O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício. Companhia das Letras., que recomenda atenção aos vestígios e rastros na história, encontramos um indício do tradicionalismo. Romano (1979)Romano, R. (1979). Brasil: igreja contra o estado (crítica ao populismo católico). Kairós. indica que o pensamento tradicionalista é moderno. Esse argumento pode ser confirmado, por exemplo, pelas ideias de Mannheim (1986)Mannheim, K. (1986). O pensamento conservador. In J. S. Martins (Org.). Introdução crítica à sociologia rural (pp. 77-131). Hucitec. e outros pensadores que se ocuparam do chamado modernismo conservador. Ou seja, o tradicionalismo12 12 Maritain (1922, p. 192), citou autores como Joseph de Maistre, Donoso Cortès e Vladimir Soloviov. (a defesa da tradição cristã na sociedade secularizada) também pode ser qualificado de modernismo conservador (Löwy, 1989Löwy, M. (1989). O catolicismo latino-americano radicalizado. Estudos Avançados, 3(5), 50-59.). No plano político, isso significava combater o Estado moderno, laico, republicano e democrático. Considere-se, por exemplo, a crítica veemente de Pio XI ao laicismo moderno e o seu desprezo pela democracia liberal. O intento era recristianizar o Estado, reaproximando-o da Igreja, que visava a recuperação de sua hegemonia no controle da vida social.

O pensamento moderno, para Maritain (1979)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos., era passível de crítica por seu racionalismo. O filósofo notou que “a razão do racionalismo deve fatalmente reduzir-se à razão puramente discursiva” (p. 60). A única argumentação aceita pela ciência moderna seria “que Deus não existe; que é real só isso que o homem sabe ou crê de saber explicar”, assim, “a ciência moderna depende exatamente da pseudo-razão do racionalismo” (Ibid.). Segundo Maritain, a modernidade confundia “essa pseudo-razão com a razão, como a pseudociência com a ciência, e se tenta agora ao separar a razão da fé, e ao declarar que, para ser cristão precisa abandonar a razão; erro verdadeiramente detestável” (Ibid.). Tudo isso seria consequência da ciência moderna, “quando não é nutrida e protegida da doutrina teológica” (Ibid.). Ele entendia que, ao negar o valor da fé e da metafísica, o pensamento moderno encontrava-se em um “incomparável círculo vicioso” (p. 62). Tal crítica era dirigida, de modo particular, a “Descartes, ‘o pai da filosofia moderna’” (p. 47). Sua afirmação foi completada: “não se podem ler as obras de todos aqueles que fundaram a nossa arrogante ciência, sem permanecer golpeado [...] para revelar qual vantagem a ciência teria em si com sua aproximação com a religião” (Ibid.). Os fundadores da ciência moderna “foram contagiados de erros” (Ibid.). Na sua crítica a Descartes, como era comum a outros intelectuais conservadores, recorria às ideias de Pascal13 13 Pascal foi um pensador antirracionalista francês adepto do jansenismo, uma heresia católica que defendia que a salvação era para poucos e obtida somente após grande ascetismo. (p. 60), para justificar seu posicionamento.

Nas representações construídas sobre o pensamento moderno, Maritain (1979)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos. admitiu a “desordem da razão” (p. 69), como uma de suas características. A filosofia moderna padeceria de um “defeito de método” (p. 70), segundo o qual “o espírito pretende explicar tudo com aquilo que já conhece e fazer o mundo de acordo com o seu prazer” (Ibid.). Seria preciso “purificar dos piores erros o edifício da filosofia, para alcançar essa bonita unidade, de colhê-la junto das verdades metafísicas e morais” (Ibid.). Nesse intuito, a filosofia apresenta-se ligada a uma visão metafísica, moralista e religiosa. Ela poderia abrir-se à “revelação divina”, aos “fins sobrenaturais” e deixaria de ser uma “mescla de erros” (p. 71). Muitas vezes, Maritain referiu-se às expressões “cisma” e “apostasia” para avaliar a filosofia moderna, como no exemplo a seguir: “o caso da filosofia moderna é muito diverso. Aqui não se trata mais da razão abandonada só às suas forças naturais. Se trata de uma razão deixada à baila da apostasia” (p. 72). A época moderna seria marcada por “dois pecados intelectuais” (Ibid.). O primeiro deles “a ambição de adquirir, com somente as forças naturais, uma ciência (prevalentemente matemática até agora) perfeita e exaustiva” e o outro pecado seria “o preconceito de modelar o real segundo os desígnios do espírito humano, que é o princípio secreto dessa separação entre a razão e a ordem verdadeira” (Ibid.). O espírito humano estava em situação de “escravidão” e vinculado aos “erros” de uma espécie de “contrato” (p. 73). Essa situação era advinda seja do “logicismo hegeliano”, “que afirma que ser e nada são a mesma coisa” ou do “anti-intelectualismo de Bergson”, “o qual afirma que a mutação é a substância mesma das coisas” (Ibid.). O pensamento moderno teria como consequência “o enfraquecimento da razão, que perde a luz dos primeiros princípios” (Ibid.). Ainda, poderia ser chamado de “pane da inteligência” ou “tirania do cientificismo” (Ibid.).

Nesse aspecto do cientificismo moderno, Maritain (1979)Maritain, J. (1979). Antimoderno: Rinascità del tomismo e libertà intellettuale. Logos. fez a crítica da “ciência assim chamada positiva” (p. 74), que reduziria a filosofia “a puro cientificismo mecanicista” (Ibid.). Mas, de acordo com sua análise, esse cientificismo “assujeita a filosofia e cada disciplina superior, à quantidade dimensional e às matemáticas” (Ibid.). Além disso, “o cientificismo assujeita demais o espírito à imaginação e à sensibilidade, ao impressionismo, como é fácil de constatá-lo nos procedimentos da história pseudocientífica e na nova filosofia que, não obstante certas aparências é só um sintoma mais profundo do espírito científico” (p. 78). Tal crítica também era endereçada ao evolucionismo. Essas críticas eram exemplos da refutação do naturalismo, promovida pelos papas e propagada pelos intelectuais católicos. Sob o nome de naturalismo, podemos encontrar doutrinas filosóficas distintas, tais como: positivismo, evolucionismo, pragmatismo e materialismo histórico.

Mas a crítica ao positivismo também não deve levar à equivocada ideia de que havia uma oposição radical entre positivistas e católicos. Assim como o catolicismo, a doutrina fundada por Comte tinha várias correntes e tendências no seu interior. Entre elas, é possível identificar aquela que defendia uma aproximação com a Igreja, como o positivismo de Charles Maurras e da Action Française, por exemplo. Para Gramsci, “a neoescolástica permitiu a aliança do catolicismo com o positivismo (Comte, do qual veio Maurras)” (Gramsci, 2011Gramsci, A. (2011) Il Vaticano e l’Italia. Editori Internazionali Riuniti., p. 123). Esses positivistas, majoritariamente ateus, viam no catolicismo um elemento garantidor da ordem e da moral na vida social. Isso indica que a crítica filosófica não significava ausência de colaboração política. Logo após a condenação de Pio XI à Action Française, Jacques Maritain fez um grande esforço na obra Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques (1926) para tentar mostrar que tal reprovação dizia respeito somente às ideias filosóficas e religiosas de Maurras. Assim, o seu pensamento e método políticos continuariam úteis aos católicos. Como citado anteriormente, para corrigir os erros bastava “ler a obra política de Maurras à luz da filosofia de Santo Tomás” (Maritain, 1984Maritain, J. (1984). Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques. In J. Maritain & R. Maritain, Œuvres Complètes (vol. III, pp. 741-780). Éditions Universitaires; Éditions Saint-Paul., p. 759). Esse é um tema importante no debate historiográfico francês do século XX, discutir o sentido da condenação das ideias de Maurras por Pio XI, isto é, se isso consistia numa rejeição filosófica ou política (Fattorini, 2007Fattorini, E. (2007). Pio XI, Hitler e Mussolini: La solitudine di un papa. Einaudi.), além disso, o que Maritain pensava a esse respeito, tal como foi apresentado na sua obra Primauté du Spirituel (1927).

Embora a obra Antimoderne apresente muitas críticas ao pensamento moderno, ela também representa um esforço do importante pensador francês para tentar conciliar o catolicismo com algumas ideias modernas. Esse esforço é marcado por algumas contradições, entre elas, certa leitura anacrônica do pensamento de Tomás de Aquino. Um trabalho necessário é analisar o modo como os intelectuais neotomistas do século XX se apropriaram do tomismo. Ou, dito de outro modo, como uma filosofia surgida no século XIII se apresentou com feições “atuais” no contexto contemporâneo. É preciso investigar “as condições do renascimento tomista” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes.). Não consideramos adequada uma leitura que considere apenas o aspecto de crítica ao pensamento moderno presente na obra. Uma análise mais cuidadosa do livro será capaz de notar nele também indícios de um “modernismo católico”, isto é, o aggiornamento (atualização) da doutrina católica.

Do bergsonismo ao neotomismo

No capítulo De quelques conditions de la renaissance thomiste14 14 Algumas condições do renascimento tomista. , resultado de uma conferência pronunciada no Instituto Superior de Filosofia de Louvain, em 26 de janeiro de 1920, Maritain mostrou que o bergsonismo havia fornecido os fundamentos para uma possibilidade de renascimento do tomismo. Mas argumentou: “o bergsonismo está entrando no museu dos sistemas” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 113). O intelectual Ernest Psichari15 15 O capítulo 6 da obra Antimoderne é dedicado a Ernest Psichari, que foi neto do pensador liberal e anticlerical Ernest Renan (1823-1892). (1883-1914) foi apontado pelo filósofo como seu predecessor na discussão sobre o neotomismo na Bélgica. O bergsonismo estava ultrapassado, já que “um novo mundo surgirá diante de nós, que por uma parte será nossa obra, e que será outra coisa, nós queremos pelo menos, que o estúpido caos sem DEUS e sem amor esteja no caminho da cristandade” (Ibid., grifo do autor.). Entre os juízos negativos apresentados sobre o mundo moderno está o “estúpido caos sem Deus e sem amor”, com o qual seria possível caracterizá-lo. Há o intuito de Maritain de conferir um protagonismo aos neotomistas nesse novo mundo que se apresentaria. Na elaboração desse “novo mundo” teria “a imensa importância os fatores econômicos sobre a ordem da causalidade material, o papel capital e formalmente decisivo será dado pelas ideias” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 114). Segundo a observação do filósofo francês, o “novo mundo” exigiria o deslocamento das questões metafísicas e espirituais (bergsonismo) para os problemas econômicos e sociais (neotomismo) (Lima, 1973Lima, A. A. (1973). Memórias improvisadas: Diálogos com Medeiros Lima. Vozes. e 2001Lima, A. A. (2001). Notas para a história do Centro Dom Vital. Paulinas/EDUCAM.). Nesse sentido, não caberia à filosofia ficar indagando sobre o “valor do bergsonismo” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 114), uma vez que existiriam “questões muito mais importantes” (Ibid.) para preocupar-se. Maritain deixou claro que a obra de renascimento do tomismo já vinha sendo empreendida pela Universidade de Louvain, uma vez que nela se encontravam os seus grandes expoentes. De fato, o movimento de renovação do tomismo (Comblin, 1974Comblin, J. (1974). A atualidade de S. Tomás de Aquino. Revista Eclesiástica Brasileira, 34 (135), 600-620.) havia iniciado, em grande medida, na Bélgica graças ao trabalho do cardeal Désiré-Joseph Mercier (1851-1926).

Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. pretendeu ocupar-se da história da filosofia moderna para examinar “as causas no fim da Idade Média e no começo dos tempos modernos, pelas quais perdeu a escolástica o império que ela teve sobre as inteligências e assegurou o triunfo da nova filosofia (nouvelle philosophie), mais especialmente da reforma cartesiana” (p. 114). Dito de outro modo, o filósofo procurou as causas da decadência da escolástica em dois períodos precisos: o fim da Idade Média e o começo da Modernidade. Além disso, procurou inquirir as causas do “triunfo” da nova filosofia e especialmente do cartesianismo. O intuito de Maritain era “limpar os ensinamentos desse grande drama intelectual e precisar por oposição entre um e outro as condições requeridas para o sucesso do renascimento da escolástica” (Ibid.). A situação da época foi descrita como “grande drama intelectual” e o trabalho do filósofo era o de “limpar os ensinamentos” advindos da nova filosofia para tentar garantir o sucesso do tomismo.

O ponto de partida para as condições de renascimento do tomismo, de acordo com Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., estava no século XVII. Citando o historiador alemão Leopoldo Von Ranke (1794-1886), o filósofo sustentou que era preciso compreender “o grande movimento clássico do século XVII francês, surgido a partir de um tipo de reação da França contra a Europa” (p. 115). Esse movimento de reação era contrário aos “ventos da Revolução europeia, que começam no Renascimento e na Reforma, e que não terminaram, os primeiros sopros do espírito de independência passavam depois de um ou dois séculos como um vento de devastação sobre a face da terra” (Ibid.). Há alguns termos importantes aqui, tais como: movimento de reação, Revolução europeia e Renascimento e Reforma. Maritain notou nesse movimento clássico do século XVII francês o surgimento de uma reação contrária ao espírito revolucionário europeu. Mais ainda: apontou para o aparecimento de uma oposição entre a França e a Europa. O ocaso da Idade Média levou:

O Homem, que tendo feito, como disse M. Höffding, a descoberta do humano, tendo desviado seus olhos dos objetos da contemplação que os haviam absorvidos antigamente – da resplandecente e sempre tranquila Trindade, do drama sempre atual da Redenção, de um universo doce e terrível feito à imagem do Pai – e tendo virado seu olhar sobre ele mesmo, sobre o sujeito, sobre o Eu, como Adão quando ele viu que estava nu, o Homem se percebe que ele era qualquer coisa de infinitamente interessante e de infinitamente amável, começando a mudar todos os valores e a quebrar todas as ordens estabelecidas, para se fazer um mundo digno dele

(Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 115-116, tradução e grifo nossos).

O filósofo francês identificou o antropocentrismo como principal característica do pensamento filosófico após a decadência da escolástica. Essa autonomia do sujeito voltado sobre si mesmo implicou uma mudança de valores e na quebra de todas as ordens estabelecidas. Era preciso criar um mundo novo, baseado em uma nova ordem, que fosse digno desse sujeito autônomo emergente.

O século XVII teria permitido, segundo Maritain (1922, p. 116)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., uma “restauração nacional” da França, que era “monarquista e católica, a parar, ou retardar, o trabalho revolucionário, ao ponto de escondê-lo completamente pelo menos por um olhar superficial, sob o esplendor da floração clássica”. Assim, de acordo com pensador, “a ordem e a disciplina do século XVII francês aparecem como uma reação vigorosa contra a barbárie humanitária já em marcha” (Ibid., grifo nosso). Essa reação foi descrita como “efêmera” e “não tinha conseguido salvar a civilização” (Ibid.). A morte do rei Luís XIV, “sem energia e esgotado” (Ibid.), teria contribuído para frustrar as expectativas desse movimento de reação e restauração. Além da morte do rei, o “esforço de restauração” sofreu com “muitos defeitos e muitos pontos fracos”, entre os quais se destacariam o galicanismo e o jansenismo, descritos como “os mais visíveis desses defeitos” (Ibid.). Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. recorreu ao padre Georges de Pascal (1839-1917), em sua obra Lettres sur l’histoire de France16 16 Cartas sobre a história da França. , no tomo II, para justificar que o século XVII era marcado por um “espírito pagão e um esquecimento mais acentuado das velhas tradições nacionais” (Ibid.). A citação, feita ao pé da página, ainda afirmava que a característica do “espírito pagão” sobre a “ordem política é o culto, a adoração do homem deificado sobre uma pessoa ou sobre uma coletividade” (Ibid.). A crítica consistia na conjectura de que a nova filosofia conduziria à “adoração do homem deificado”. Embora, em seu entendimento, “a renovação católica deu sobre uma elite magníficos frutos de santidade, penitência e de vida interior” (Maritain, 1992Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 117). Portanto, esse movimento não teria sido capaz de deter o “espírito pagão” dos tempos vindouros.

No contexto europeu, para Maritain, “os tratados de Westphália consagraram o desaparecimento da cristandade – da sociedade cristã das nações – para substituí-lo pelo sistema de equilíbrio europeu, e ele consagrou assim de uma maneira oficial a existência política e os direitos da heresia, com que com os reis da França tiveram de qualquer maneira feito aliança” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 117). Com base nessas ideias, o surgimento do Estado moderno, independente do domínio da Igreja, era a “existência política e dos direitos da heresia” e decretava o “fim da cristandade”.

Depois dessa caracterização histórica, Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. apresentou o seu segundo argumento, mais de cunho especulativo. Ele consistia, não obstante as fraquezas e deficiências do movimento de “restauração cristã”, em “algum esforço para restaurar sobre o domínio da especulação racional a philosophia perennis que é a filosofia da Igreja, porque ela é resultado das evidências naturais da razão” (p. 118). Essa filosofia da Igreja era o pensamento de Tomás de Aquino. O século XVII foi um “teste de renovação tomista” (Ibid.). Foi o movimento clássico surgido nesse século que “ofereceu um exemplo notável de uma tentativa de retornar à ordem intelectual e moral sem Santo Tomás, ou, como nós diríamos, com a privação da formalidade tomista” (Ibid., grifo do autor). Podemos depreender da argumentação do filósofo que a Igreja necessitava de uma filosofia com suficiente vigor intelectual que pudesse fazer frente à nova filosofia e/ou cartesianismo. Essa filosofia seria o tomismo, porém, imbuído de certa renovação. Havia um grande trabalho a ser feito para conter “a longa decadência da filosofia cristã, o demônio da mediocridade parece ter múltiplos autores dela” (p. 119). Esse esforço exigiria da inteligência um esforço de “renovação contínua” (Ibid.). De certo modo, no século XVII a filosofia cristã pretendia-se “menos discursiva e menos argumentativa, mais intuitiva e mais afetiva também, mais simples, em uma palavra mais fácil” (p. 120, grifo do autor). Ela estava submetida à “moda platônica” (Ibid.). Tal moda seria incapaz, na visão de Maritain, de permitir a renovação da filosofia cristã.

Sentenciou Maritain (1922, p. 121)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., que “uma moda platônica não constitui uma filosofia”. E prosseguiu sustentando que “o grande organismo das ciências e das artes em progresso no século XVII permaneceu privado de uma metafísica, de scientia rectrix, seria ela um corpo sem cabeça?” (Ibid.). O grande esforço dos intelectuais católicos desse período foi tentar dar ao neotomismo essa condição de scientia rectrix para as ciências e as artes, isto é, a doutrina de Tomás de Aquino seria o grande fundamento metafísico do conhecimento. Será, segundo seu entendimento, da “imensa deficiência criada pela ausência de Santo Tomás é que Descartes lucrará” (Ibid.), retornando à oposição entre Tomás de Aquino e Descartes. O pensamento tomista seria uma espécie de antídoto ao cartesianismo. Maritain entendeu que “Descartes consegue introduzir na França clássica uma filosofia nova que, por uma parte faz frente contra a impiedade dos libertinos e se apresenta como um espiritualismo ‘envolvente e arrojado’” (Ibid.). As críticas dirigidas a Descartes consideram que “a filosofia cartesiana é uma filosofia mascarada [...] que avança mascarada sobre o teatro do mundo” (Ibid.). Essa filosofia foi uma “ilusão” e “inspirou muitos espíritos análogos àqueles que servem de fundamento recentemente ao bergsonismo” (p. 122). Desenvolveu a ideia de que “o bergsonismo é o cartesianismo” (Ibid.). Ambas as filosofias “fingem concordar com a ciência positiva” e teriam contribuído para “renovar o espiritualismo” por uma doutrina “conformada ao tom mental e moral da sociedade de um tempo dado”, e permitiriam “contato original com o platonismo, com Platão e com Plotino” (Ibid.). A crítica prossegue demonstrando a reprovação da filosofia de Descartes por parte da Igreja.

Sim, mas em 20 de novembro de 1663, a Igreja inseriu o cartesianismo no índex; e com a reforma cartesiana – que é na história da inteligência, o pecado propriamente francês, como a reforma luterana é o grande pecado alemão e a alma pagã do Renascimento o grande pecado italiano – foram introduzidas na ordem racional e filosófica todas as doenças do pensamento moderno: naturalismo, individualismo, subjetivismo, cientismo, egocentrismo

(Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 123, tradução nossa).

A consequência do cartesianismo, de acordo com Maritain, foi a Aufklärung (esclarecimento), que “proclamou a independência absoluta do espírito humano” (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 124). Essa história mostraria a importância de “toda tentativa de restauração da ordem cristã, e a pôr na primeira linha a restauração da filosofia que se funda sobre as evidências primeiras da inteligência e sobre as evidências primeiras da experiência sensível, e que se mostra por toda parte e sempre dócil à realidade, eu quero dizer da filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás” (Ibid.). A nova filosofia de Descartes e de Bacon “triunfaram facilmente” e precisavam encontrar um “adversário qualificado” (Ibid.). Havia uma “carência total dos representantes da filosofia escolástica”, considerados “defensores de Santo Tomás” e “representantes da verdade filosófica” (Ibid.). Por meio de sua obra, Maritain realizou um apelo ao desenvolvimento de uma filosofia tomista renovada. Tal filosofia seria capaz, segundo a sua compreensão, de restaurar a ordem cristã.

Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. identificou que há três séculos estava a “escolástica degenerada” (p. 126). Operou, por conseguinte, uma crítica também do sistema filosófico ao qual se filiara. Depois de mostrar as “riquezas intelectuais” e a “qualidade da doutrina e do espírito escolásticos” (Ibid., grifos do autor) realizou uma incursão na história do tomismo, no século XIV. Ou seja, quis demonstrar o processo histórico que permitiu ao tomismo tornar-se a “a filosofia oficial da Igreja” (p. 127). Na análise do pensador francês, a modernidade teria sido obrigada pelos papas a retornar a Tomás de Aquino:

Os atos quase incontáveis pelos quais Leão XIII, Pio X e Bento XV obrigaram os tempos modernos a retornar a Santo Tomás como a única saúde da razão, de certa razão viajante e pródiga que, após ter parado cinco ou seis séculos espalhou sua substância aos quatro ventos do espírito até ser reduzida a manter o rebanho sem as honras das ilusões materialistas e cientistas, e a nutrir as vagens vãs do kantismo, suspirando enfim após a ordem pacífica da casa do Pai

(Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 129, tradução e grifo nossos).

Após percorrer minuciosamente a história da filosofia medieval, em particular da escolástica, Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., apresentou os limites dos “naturalistas” e “da nova ciência dos fenômenos no processo de se formar os mais rudimentares metafísicos materialistas, hilozoístas, panteístas, cabalistas, e antes de qualquer coisa a metafísica mecanicista” (p. 139). Tudo isso foi formado tendo por base “um imenso e inextricável mal-entendido” (Ibid.). No seu entendimento, era “fatal” uma “contaminação da ciência moderna com os postulados da metafísica mecanicista” (p. 140). A esse “fenômeno histórico” [da ciência moderna “naturalista” e “mecanicista”], “não deveríamos retornar” (Ibid.). Na visão de Maritain, caberia aos “escolásticos” o “dever de purificação intelectual” (p. 140), da ciência moderna. Isso seria possível porque os neotomistas eram, de acordo com sua percepção, “os detentores da sabedoria, aquela retirada da ciência suprema, juíza de seus próprios princípios e dos princípios das outras ciências” (Ibid.). O neotomismo também serviria para evitar e rejeitar o “naturalismo” da ciência moderna.

Outro aspecto importante acentuado por Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. é que essa “filosofia tomista tem a vantagem de irradiar amplamente sobre os círculos leigos e de ser ativamente representada por ele [o leigo], já que no mundo moderno a ciência e a filosofia não são mais compartilhadas exclusivamente pelos clérigos” (p. 144). Por isso, é necessário destacar o protagonismo alcançado pelos leigos católicos no seio do movimento neotomista. Esse é um ponto de extrema relevância, uma vez que o chamado laicato católico organizar-se-ia buscando recuperar a hegemonia social, política e cultural da Igreja em muitos países. Era uma espécie de reconquista do Estado, laico e moderno, dentro do projeto político da neocristandade capitaneado por Pio XI. Por meio da formação dos leigos, com base no neotomismo, a Igreja pretendia ter um laicato militante (formado por intelectuais, bacharéis e homens de ciência e de letras) que recuperasse seu espaço na formação da visão de mundo das elites dirigentes. Tais elites seriam formadas dentro dos princípios católicos e representariam os interesses da Igreja nas diferentes esferas do Estado e da sociedade.

Outro tema premente sublinhado por Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes. foi a recuperação da metafísica escolástica como forma de superação da metafísica mecanicista de Descartes. Tal tema foi visto como “a mais importante condição do renascimento tomista” (p. 145). A metafísica “não é uma coisa da qual fazemos uso para um propósito prático” (Ibid.). Para Maritain, “sua nobreza é ser precisamente, conforme a palavra de Aristóteles, que ela não serve para nada” (Ibid.). Prosseguiu: “entendemos que ela [a metafísica] não é, de acordo com sua essência, ordenada a outra coisa que não a contemplação da verdade: é porque ela é sim necessária aos homens, ao homem que é um animal que se alimenta de transcendência” (Ibid.). Apresentou qual seria a missão dos filósofos escolásticos “contemplar sempre mais profundamente e mais veementemente, profundis e vehementius, as verdades da metafísica e fazer progredir essa ciência” (Ibid., grifo do autor). Por isso, o filósofo neotomista deveria estar comprometido com a metafísica e o seu progresso. É uma fase bastante metafísica do pensamento de Maritain.

Os escolásticos não deveriam, sustentou Maritain (1922)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., “simpatizar com o pensamento moderno” e muito menos “aparar os ângulos da escolástica para se adaptarem a esses sistemas [modernos], e repensar o tomismo à moda de Kant ou de M. Bergson, mas sim à maneira de Santo Tomás” (p. 147). Insistiu na recolocação dos problemas da ontologia e da cientificidade própria da filosofia. Definiu que “a filosofia é uma ciência, ela é a medida sobre o ser” (Ibid.). Evitou, entretanto, reduzir a cientificidade da filosofia ao “matematismo e ao fenomenismo modernos” (Ibid.). Ademais, os neotomistas tinham diante de si o desafio de “compreender a fundo a filosofia moderna, de compreendê-la muito melhor que os modernos mesmos (porque eles possuem uma luz discriminativa superior, e os princípios da verdadeira compreensão)” (Ibid.). O trabalho dos escolásticos era “salvar aquilo que a filosofia moderna continha no seu ser de bom” (Ibid., grifo do autor). Aqui há uma abertura ao pensamento moderno e mesmo uma possibilidade reconhecer nele algo de bom. Não se trata apenas da condenação da filosofia moderna, mas da possibilidade de reconhecimento do seu valor.

É possível encontrar também na obra Antimoderne, como já tivemos oportunidade de sustentar, uma crítica do próprio pensamento tomista, ao qual Maritain se filiara. Anos depois, apontou a “crise do espírito católico”, em Primauté du spirituel (1927). Por isso, não é adequado ler essas obras apenas como catálogos de condenação do pensamento moderno. Encontramos nelas, além disso, um interessante exercício de autocrítica do tomismo e próprio “espírito católico”.

Considerações finais

A obra Antimoderne (1922) permite compreender um momento decisivo da trajetória intelectual de Jacques Maritain. Ela, igualmente, marcou uma nova tomada de posição de seu autor e sua instituição e consagração no campo intelectual católico e, em particular, no campo filosófico neotomista. Tal processo iniciou-se com a aproximação do filósofo francês do catolicismo, ainda na década de 1910, resultando na sua conversão e batismo, mas também permitindo uma mutação no plano das ideias e um novo engajamento social e político. Esta foi a sua transição do bergsonismo para o neotomismo.

Desse modo, por meio da obra em questão, Maritain engajou-se decisivamente na luta antimodernista da Igreja Católica, tal como estava representada na encíclica Pascendi, de Pio X. Entretanto, essa luta teve suas peculiaridades. As representações construídas por Maritain na obra ajudam a compreender as características do antimodernismo católico e suas contradições. A intenção era elaborar uma filosofia escolástica renovada que fizesse frente à filosofia nova (nouvelle philosophie). Tal filosofia, ao menos nessa fase do pensamento de Maritain, era antiliberal e contrarrevolucionária. Tratava-se de realizar o confronto do pensamento de Descartes com o de Tomás de Aquino. Reapresentar a metafísica escolástica contra a metafísica mecanicista. Um trabalho necessário é problematizar os diferentes modos de apropriação e interpretação das ideias de Tomás de Aquino no interior do movimento neotomista.

A Igreja necessitava de uma filosofia pujante que fizesse frente ao cartesianismo e ela seria o neotomismo. Buscava-se que essa filosofia pudesse atualizar o pensamento católico às exigências da vida moderna sem, contudo, ceder ao modernismo. Evitava-se qualquer combinação com uma filosofia acatólica. Era um retornar ao tomismo das origens, que se pretendia puro. Outro aspecto importante é que o protagonismo no movimento neoescolástico seria dado aos leigos e não aos clérigos, como outrora. Formava-se assim um vigoroso laicato católico militante, formado principalmente de intelectuais “convertidos”, que representavam os interesses da Igreja na sociedade laica e secularizada. Disso resulta que o combate ao “laicismo” era também parte dessa luta antimodernista dos católicos.

Iniciava-se uma nova fase para o pensamento católico. A luta contra o liberalismo convertera-se em luta contra o modernismo, que havia mesmo penetrado no interior da Igreja e na atividade científica católica. Isso permitiu o surgimento de uma filosofia exclusivista e intransigente, da qual essa obra de Maritain é um exemplar. Tal filosofia, apesar de afirmar-se como um tomismo puro, construiu uma colaboração com o positivismo de Charles Maurras, da Action Française, fomentando o catolicismo integral. É possível questionar se uma filosofia passiva e contemplativa, como o neotomismo, que, segundo Maritain deveria estimular uma metafísica que levasse à contemplação da “verdade”, seria capaz de permitir o progresso científico e tecnológico da modernidade. Sabemos que, mais tarde, sobretudo após as obras Humanisme intégral (1936) e, especialmente Christianisme et démocratie (1943), uma nova direção guiará o pensamento de Maritain, direcionando-o para o catolicismo liberal e a democracia cristã.

As representações sobre pensamento moderno presentes na obra analisada, apesar de imbuídas de grande erudição, são críticas filosóficas moralizantes que visavam depreciar as ideias modernas contrárias aos ensinamentos católicos e negar-lhes o seu potencial heurístico. Outrossim, formam um interessante e pouco explorado exercício de autocrítica do “espírito católico” e da “escolástica degenerada” com o intento de reorganizá-los em face da modernidade. A Igreja, por meio de suas grandes forças intelectuais, intentava conseguir o monopólio no mundo da cultura oficial e escolar. Resultou disso o esforço de dar ao neotomismo a condição de scientia rectrix para as ciências e a cultura. Produziu-se grande número de obras filosóficas e pedagógicas baseadas no neotomismo visando formar as elites dirigentes dentro dos princípios do catolicismo e conter o avanço do laicismo, visto como revolucionário. Isso era parte de um projeto de poder que procurava conquistar o mercado cultural para o catolicismo, assegurando a hegemonia de seus interesses sobre a sociedade e o Estado.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) - comercial@tikinet.com.br
  • 3
    "Em particular, a maneira de filosofar dos modernos, uma vez que ela implica no princípio de desprezo do pensamento das gerações passadas, deve ser chamada barbárie intelectual".
  • 4
    Maritain nasceu numa família republicana e antiliberal. Não teve formação religiosa e nem recebeu o batismo. Converteu-se ao catolicismo já adulto, ao lado de sua esposa Raïssa. Seu padrinho de batismo foi o escritor Léon Bloy. Maiores informações em: http://maritain.org.br/
  • 5
    Os capítulos da obra estão dispostos da seguinte forma: Avant-Propos; La Science Moderne Et La Raison; La Liberté Intellectualle; De Quelques Conditions De La Renaissance Thomiste; Connaissance De L’Être; Réflexions Sur Le Temps Présent; Ernest Psichari.
  • 6
    Revolução satânica.
  • 7
    Esta é a obra sobre a qual se fundamenta o estudo. Porém, um diálogo com outras obras de Maritain (que julgamos importantes na compreensão do tema) será estabelecido ao longo do texto.
  • 8
    Vladimir Ghika era um príncipe, diplomata, ensaísta e mártir da fé romeno. Foi perseguido pelo nazismo e pelo comunismo. Estudou a obra de Tomás de Aquino com os dominicanos na França e em Roma. Tornou-se padre e morreu como prisioneiro do regime comunista da Romênia, em 1956, aos 80 anos.
  • 9
    O recorte temporal se refere ao período do pontificado e não ao tempo de vida. Essa regra será adotada ao longo do estudo toda vez que nos referirmos aos papas.
  • 10
    Para Pellicciari (2011, p. 11)Pellicciari, A. (2011). Risorgimento anticattolico: la persecuzione della chiesa nelle Memorie di Giacomo Margotti. Fede & Cultura., Pio IX defendeu que “o catolicismo não é conciliável com o liberalismo”. Contudo, “a combinação do liberalismo e do comunismo é por outro lado recorrente no profético magistério de Pio IX” (Ibid.). Assim, a controvérsia sobre o antiliberalismo católico (Lamounier, 2014Lamonunier, B. (2014). Tribunos, profetas e sacerdotes: Intelectuais e ideologias do século XX. Companhia das Letras.) e catolicismo liberal (Azzi, 1994Azzi, R. (1994). A neocristandade: Um projeto restaurador. Paulus.) remonta ao pontificado de Pio IX.
  • 11
    As encíclicas Pascendi Domini Grecis e E Supremi Apostolatus, de Pio X e o Syllabus, de Pio IX, são os documentos papais mais incisivos da época na condenação do pensamento moderno. Tais textos também foram citados no capítulo 5 da obra Antimoderne, intitulado Réflexions sur le temps présent. Maritain viu na encíclica Pascendi uma atualização do Syllabus (Maritain, 1922Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., p. 200).
  • 12
    Maritain (1922, p. 192)Maritain, J. (1922). Antimoderne. Éditions de Revue des Jeunes., citou autores como Joseph de Maistre, Donoso Cortès e Vladimir Soloviov.
  • 13
    Pascal foi um pensador antirracionalista francês adepto do jansenismo, uma heresia católica que defendia que a salvação era para poucos e obtida somente após grande ascetismo.
  • 14
    Algumas condições do renascimento tomista.
  • 15
    O capítulo 6 da obra Antimoderne é dedicado a Ernest Psichari, que foi neto do pensador liberal e anticlerical Ernest Renan (1823-1892).
  • 16
    Cartas sobre a história da França.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2019
  • Aceito
    25 Jul 2020
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