Acessibilidade / Reportar erro

UMA ALEGORIA KAFKIANA PARA PENSAR O ENCONTRO ENTRE PSICODRAMA E CIÊNCIA

A KAFKIAN ALLEGORY TO THINK ABOUT THE ENCOUNTER BETWEEN PSYCHODRAMA AND SCIENCE

UNA ALEGORIA KAFKIANA PARA PENSAR EN EL ENCUENTRO ENTRE PSICODRAMA Y CIENCIA

Ao buscarmos as palavras-chave psicodrama e ciência no WorldWideScience, um site internacional de busca para trabalhos científicos composto de bases de dados e de uma série de portais científicos nacionais e internacionais, encontramos, nos últimos dez anos, mais de 300 artigos completos sobre a temática, todos publicados em periódicos reconhecidos em seus territórios acadêmicos. Talvez tal fato fosse suficiente para aceitarmos a condição de que o Psicodrama1 1 Ao citarmos a palavra Psicodrama com a inicial maiúscula e como sinônimo da socionomia, pode-se correr o risco de tomar o psicodrama enquanto uma unidade epistemológica. Tendo em vista que este editorial tem a proposta de romper com a lógica reducionista, seguiremos tomando o termo em maiúsculo até transformá-lo em práticas plurais e minoritárias, em toda a fortaleza que incide nas minúcias das ações. Também, a narrativa percorre o lugar da primeira pessoa do plural, por entender que toda escrita se produz no encontro com diversas vozes (colegas psicodramatistas, pesquisadoras/es, autoras/es, entre tantos outros). é ciência e ponto-final. A questão, porém, permanece aberta quando a tensionamos, e lançamos o seguinte problema: que tipo de ciência?

Para abrir essa questão, cabe destrincharmos a história ocidental da lógica cientificista. Para tal, tomaremos um conto kafkiano para pensarmos essa relação entre Psicodrama e ciência. Por entender que as formas pelas quais produzimos questões consideradas científicas legitimam verdades, torna-se importante localizar os caminhos que formalizam um saber sobre a vida e os sujeitos e como eles se tornam objetos de interesse e intervenção da ciência. Há, nesta escrita, a aposta em uma mirada genealógica, um exercício que se volta para a análise de práticas e relações de poder, entendendo a ciência como um campo atravessado por disputas e contradições no estabelecimento de metodologias, postulados teóricos, objetos e histórias. Donna Haraway (1995)Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773/1828
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
afirma que a objetividade se constitui enquanto um projeto de fronteiras. Dito de outra forma, a autora compreende que os objetos não existem em si mesmos, prontos para serem descobertos em uma realidade à espera de alguém que a leia e a interprete. A objetividade é, antes de tudo, uma questão política, envolvendo uma série de práticas. E a ciência, é uma prática. Ou melhor, é um jogo de práticas, retóricas, atores e agentes de conhecimento fabricados, “um caminho para uma forma desejada de poder bem objetivo” (Haraway, 1995Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773/1828
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 10).

É assim que, para pensar a constituição dessas práticas, nos interessaria pensar em três viradas ontoepistêmicas que marcam a emergência de diferentes referenciais teórico-metodológicos que orientam o fazer científico, entendendo que cada um diz de um projeto de ciência e tem um ideal de sociedade e diferentes concepções de sujeito. Reúnem-se nessa compreensão, primeiramente, a ontologia e a epistemologia, pois se trata de pensar as ontologias de existência, como aquilo que possibilita reflexões sobre o ser; e epistemologias, porque convocam aos modos de produção de sentidos e saberes sobre o mundo. Importante ressaltar que essas três viradas não devem ser pensadas em termos evolutivos, ou ainda atreladas cronologicamente como se, para o aparecimento de uma, a outra fosse desaparecer ou ficar para trás. Além disso, é preciso colocar que cada movimento ontoepistêmico carrega diferentes modos éticos, estéticos e metodológicos na relação com o mundo. Isso significa dizer que as viradas ontoepistêmicas dizem respeito à emergência de determinados modos de olharmos, sentirmos e vivermos a relação com a ciência, e todas coexistem na sociedade ocidental contemporânea.

Pensando nisso, o conto “Na colônia penal”, de Franz Kafka (1998)Kafka, F. (1998). O veredicto / Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras., servirá aqui como alegoria para pensar três viradas ontoepistêmicas no que tange ao modo como produzimos conhecimento em Psicodrama e, por sua vez, as diferentes concepções de ciência que a história ocidental colonial nos ensina sobre o fazer científico.

Tudo começa com a figura do explorador, protagonista kafkiano. Explorador, intelectual, pesquisador, estrangeiro, trata-se de uma personagem que carrega todos esses desdobramentos e que inicia o conto ao se introduzir como convidado para testemunhar uma execução em uma colônia penal. A primeira virada que ele nos apresenta é aquela da primazia do indivíduo sobre o social. Ao chegar à colônia e ser convidado a assistir à condenação de um soldado, mesmo que surpreendido com a violência do processo condenatório, o explorador continuamente defende o posicionamento de observador, mantendo sua neutralidade, buscando não intervir em assuntos que não lhe dizem respeito, sendo um estrangeiro. Tal proposição, marcada pela aproximação com as ciências da natureza, lembra o projeto de buscar no homem o prolongamento das leis que regem a natureza. Katia Aguiar e Marisa Rocha (2007) afirmam que esse primeiro momento epistemológico diz de um plano de representações, em que pensar, nessa perspectiva, se coloca como “o exercício inato de uma faculdade, o que significa que existe uma relação dicotomizada entre a realidade, considerada externa, e o homem que a re(apresenta)” (Aguiar & Rocha, 2007Aguiar, K., & Rocha, M. L. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia, Ciência e Profissão, 27(4), 648-663. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/v27n4a07.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/...
, p. 653).

É nesse ponto que, ao retomarmos a história de reconhecimento da abordagem psicodramática como ciência, encontramos na sociometria o primeiro método cientificamente comprovado. Era, como recorda Deniz Altinay (2023)Altinay, D. (2023). Sociatry of Moreno: online sociodrama and sociatry for social crises. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, 1-9. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.580
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.5...
, uma sociatria aplicada que conseguia produzir evidências para a medição social, estabelecendo assim “a primeira ponte sólida entre psiquiatria e sociologia” (Altinay, 2023Altinay, D. (2023). Sociatry of Moreno: online sociodrama and sociatry for social crises. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, 1-9. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.580
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.5...
, p. 5). Foi necessária a extensa e precisa pesquisa social publicada na trilogia Quem sobreviverá para que Jacob Levy Moreno sustentasse o caráter científico em solo norte-americano. Como o explorador kafkiano, a sociometria buscava um lugar que atentava para as leis da adaptação, dos regramentos e das racionalidades postos como científicos em uma sociedade na qual imperava o behaviorismo como proposição terapêutica dominante.

Na primeira década dos anos 2000, essa preocupação foi tomada por David Kipper e Timothy Ritchie (2003)Kipper, D. A., & Ritchie, T. D. (2003). The effectiveness of psychodramatic techniques: A meta-analysis. Group Dynamics: Theory, Research, and Practice, 7(1), 13-25. https://doi.org/10.1037/1089-2699.7.1.13
https://doi.org/10.1037/1089-2699.7.1.13...
, que buscaram responder à questão sobre a validação científica do Psicodrama na Europa ocidental. Mediante o levantamento realizado e tendo em vista critérios estipulados pelo conselho de psicoterapia da região neste início do século XXI, os autores responderam a uma série de critérios que buscavam localizar o Psicodrama como ciência, entre os quais: a nítida definição de áreas de investigação, aplicação, pesquisa e prática; a consistência teórica e metodológica; a abertura ao diálogo com outras modalidades de práticas psicológicas sobre seu campo de teoria e prática; a reprodutibilidade e aplicabilidade dos seus métodos; e a relação explícita entre métodos de tratamento e intervenção e a efetividade de seus resultados. Considerando tais critérios, temos a proposição de uma ciência que se sustenta em uma racionalidade cartesiana, a-histórica.

Com a segunda virada, a dimensão positivista sofreu algumas rupturas, havendo o interesse em metodologias que pudessem aproximar-se da realidade das pessoas, porém o interesse adaptacionista das práticas cientificistas permaneceu, ainda prevalecendo a preocupação em adaptar os anormais e identificar os desajustes no sujeito, não levando em conta as localidades nem singularidades que habitam as diferentes existências. Esse momento ontoepistêmico teve como posicionamento a diminuição do distanciamento entre pesquisa e intervenção, mas a ciência ainda era tomada como algo dicotômico. Ou seja, o cientista até podia influenciar o campo, mas considerando-o como uma realidade separada a ser pinçada e analisada: a emergência do cientista intérprete e inventor de soluções. Embora seja possível identificar práticas mais amplas e novas especificidades de atuação, como intervenções na educação, saúde, comunidades periféricas, população LGBTQIAPN+2 2 Da importância de reconhecermos os direitos de todas as existências: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexos, assexuais, pansexuais e não binários. , entre outras, a ciência toma determinados grupos populacionais como objetos de análise, e não como sujeitos de saberes.

Esse movimento pode ser encontrado em uma série de publicações. Entre elas, destacam-se nos indexadores os estudos de Hod Orkibi e Rinat Feniger-Schaal (2019)Orkibi, H., & Feniger-Schaal, R. (2019). Integrative systematic review of psychodrama psychotherapy research: Trends and methodological implications. PLoS One, 14(2), e0212575. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0212575
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021...
e de Sarah-Jane Lennie et al. (2021)Lennie, S., Sutton, A., & Crozier, S. (2021). Psychodrama and emotional labour in the police: A mutually beneficial methodology for researchers and participants. Methods in Psychology, 5, 100066. https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100066
https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100...
. O primeiro artigo apresenta uma revisão sistemática de pesquisas em psicoterapia focando na abordagem psicodramática, enquanto o segundo trata dos benefícios do Psicodrama para pesquisadores e participantes quanto à carga emocional no trabalho policial. Ambas as publicações científicas são na língua inglesa e não têm recorte territorial, atentando para tendências e implicações metodológicas.

A dupla de autores encontrou uma série de estudos publicados em inglês, entre os quais 20 quantitativos, quatro qualitativos e sete de métodos mistos, preocupando-se com a importância dos princípios de transparência nas pesquisas não apenas para fins científicos, mas também para a qualificação de profissionais que trabalham na área e na qualidade e ampliação de técnicas de cuidados em psicoterapia psicodramática, reconhecendo a universalidade e aplicabilidade do Psicodrama (Orkibi & Feniger-Schaal, 2019Orkibi, H., & Feniger-Schaal, R. (2019). Integrative systematic review of psychodrama psychotherapy research: Trends and methodological implications. PLoS One, 14(2), e0212575. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0212575
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021...
). Já o trio de autoras sustenta o quanto a metodologia psicodramática possibilita pesquisas sobre assuntos sensíveis e emocionalmente carregados, permitindo a implementação de uma verdadeira metodologia de ação crítica (Lennie et al., 2021Lennie, S., Sutton, A., & Crozier, S. (2021). Psychodrama and emotional labour in the police: A mutually beneficial methodology for researchers and participants. Methods in Psychology, 5, 100066. https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100066
https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100...
).

No conto kafkiano, essa virada ocorre quando enxergamos o explorador tornar-se um intelectual que toma forças e diz o que pensa sobre a máquina penal. Ainda assim, ele é tomado pelo pensamento de que é sempre problemático intervir em assuntos estrangeiros. Sem questionar sua implicação com o que testemunha, quando o próprio oficial que lhe dirige a palavra afirma que sua influência não pode ser estimada suficientemente, as elucidações do protagonista trazem as marcas da hegemonia intelectual. Marilena Chauí (1999)Chauí, M. (1999). Universidade operacional. Revista da Avaliação da Educação Superior 4(3), 3-8. Recuperado de https://periodicos.uniso.br/avaliacao/article/view/1063
https://periodicos.uniso.br/avaliacao/ar...
chamaria a iconografia desse momento de universidade operacional, em que a ciência é tomada da posse de instrumentos com o intuito de controlar algo, enclausurando o sujeito em hipóteses universalistas.

Já a terceira virada ontoepistêmica apresenta a aproximação do intelectual kafkiano com o dispositivo penal. Vemos os princípios de neutralidade científica sendo rompidos; há uma leitura sobre a sua própria prática, sobre seu silenciamento diante do processo condenatório. Nesse momento, a destreza da narrativa kafkiana traz uma sutil e grandiosa diferença na própria postura do protagonista: é a primeira vez no conto em que o personagem tira as mãos do bolso. Durante toda a narrativa, ele fica com as mãos protegidas e envelopadas em sua jaqueta. Somente ao desnudar suas mãos, entra em contato com a experiência da máquina condenatória. Descrita por Kafka como um dispositivo colossal que vai rasgando a pele do condenado com a sentença até que nada lhe reste, essa máquina e seus dentes de ferro se tornam aquilo que também condenam o explorador: é passado o ponto de não retorno, e a ele cabe uma ação. Nesse momento do conto (alerta de spoiler) a máquina toma força própria e, em sua considerável falha, brutalmente assassina o próprio algoz. Enfim, ela provoca o explorador a colocar-se e, principalmente, toma-o de assalto para que ele saia diferente dali. O cientista-intelectual é convocado ao não esquecimento sobre o que viveu.

Tal movimento, na constituição do próprio Psicodrama enquanto ciência, diz respeito ao processo da própria revolução criadora moreniana. Contemporaneamente, podemos dizer que, ao deixar-se atravessar pelos movimentos sociais, luta pelos direitos humanos, estudos contracoloniais, o binarismo indivíduo-social sofre rupturas, e os princípios de neutralidade científica são questionados.

A nomenclatura adotada aqui sobre o pensamento contracolonial faz referência aos trabalhos do pensador quilombola, poeta e escritor Antonio Bispo dos Santos (2015)Santos, A. B. (2015). Colonização, quilombos: modos e significados. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa., o Nêgo Bispo, que conceitua contracolonial como uma postura crítica, mais do que uma teoria, centrada em práticas e vivências baseadas em cosmovisões afropindorâmicas, ou seja, saberes da diáspora africana e da ancestralidade dos povos indígenas e originários. O encontro com esses saberes provoca um movimento de ocupar-se com ações transformadoras e de reconhecimento de todos os agentes que compõem o cenário da produção de conhecimento, bem como com os modos como o contemporâneo produz as formas de ser sujeito. Esse movimento carrega a emergência de um compromisso social ético-político e a luta contra artificialismos teóricos, “ligada ao primado das práticas e das relações produtoras de um cotidiano que emerge na tensão de forças, movendo o presente” (Aguiar e Rocha, 2007Aguiar, K., & Rocha, M. L. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia, Ciência e Profissão, 27(4), 648-663. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/v27n4a07.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/...
, p. 653).

Como lembra Daniela Ribeiro (2023, p. 6)Ribeiro, D. F. (2023). A decolonialidade na pesquisa e prática psicodramáticas: pela superação de epistemicídios históricos. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, 1-12. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.596
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.5...
, é no aspecto de superação da dicotomia entre pesquisa e prática, ao transcender o eixo nosológico sobre determinados afetos e existências, apostando em propostas terapêuticas que foquem em toda a humanidade, que há na constituição do Psicodrama um desejo para a “desobediência epistêmica”. Nesse sentido, o próprio antropocentrismo que sustenta essa ideia poderia ser questionado, possibilitando a abertura para outras perspectivas que consigam pensar nos saberes que surjam deslocados da centralidade no sujeito homem.

Nesse cenário, quando temos o posicionamento de André Dedomenico e Devanir Merengué (2020)Dedomenico, A. M., & Merengué, D. (Eds.) (2020). Por uma vida espontânea e criadora: psicodrama e política. Ágora. sobre a dimensão política da prática psicodramática, há a ruptura com a perspectiva positivista supostamente neutra. Um processo de encontro com outros saberes, deixando-se atravessar por outros domínios de linguagem, trocas e câmbios fronteiriços, sabendo que, conforme Luiz Contro (2011)Contro, L. (2011). Diálogos entre campos disciplinares: psicodrama e análise institucional. In J. M. C. Motta & L. F. Alvez (Eds.) (2011). Psicodrama: Ciência e Arte (pp. 46-55). Ágora., para toda aproximação ontoepistêmica e articulações teórico-metodológicas há a necessidade de precisões e aprofundamentos para que tangenciamentos interdisciplinares se tornem possíveis.

Ciência, segundo tal ótica, é inevitavelmente intervenção em mundo. Nesse aspecto, seguimos o explorador kafkiano negociando uma travessia, e é assim que Kafka termina seu conto: com o pesquisador partindo mar adentro, em uma embarcação privada, impedindo os sobreviventes da colônia de seguirem com ele. Interessante que, mesmo após sua experiência vivida, o intelectual prioriza a sua retirada (individual) do local, sustentando uma superioridade em relação às pessoas que estavam na colônia penal, como se aquele fosse um ambiente de selvageria antimoderno. Quanto a este aspecto, René Lourau (2004, p. 89)Lourau, R. (2004). Estudos históricos sobre a contrapedagogia. In S. Altoè (Ed.), Renè Lourau: analista institucional em tempo integral (pp. 87-121). Hucitec. fala do efeito Lukács: “À medida que progride, a ciência tem tendência a esquecer as condições de seu aparecimento”.

Portanto, talvez o convite deste editorial esteja em uma busca por possíveis entrelugares, lugares de memória e ocupação, em que a ciência deixe de ser um território exclusivo de verdades objetivas, abrindo espaço para a multiplicidade de vozes e experiências. Na fissura com seu lugar até então seguro, o explorador encontra sua limitação, mas, acima de tudo, passa a carregar consigo tudo o que viveu, como tatuagem que o rastelo lhe imprimiu. Sem esquecer.

É assim que esta escrita busca tornar o assombro do protagonista kafkiano como força contra os riscos de apagamento das condições pelas quais o Psicodrama produz ciência, para que possamos encarar o falso problema colocado que incide não em localizar que tipo de ciência é o Psicodrama, mas sim qual ciência (re)produzimos com nossas práticas psicodramáticas.

  • 1
    Ao citarmos a palavra Psicodrama com a inicial maiúscula e como sinônimo da socionomia, pode-se correr o risco de tomar o psicodrama enquanto uma unidade epistemológica. Tendo em vista que este editorial tem a proposta de romper com a lógica reducionista, seguiremos tomando o termo em maiúsculo até transformá-lo em práticas plurais e minoritárias, em toda a fortaleza que incide nas minúcias das ações. Também, a narrativa percorre o lugar da primeira pessoa do plural, por entender que toda escrita se produz no encontro com diversas vozes (colegas psicodramatistas, pesquisadoras/es, autoras/es, entre tantos outros).
  • 2
    Da importância de reconhecermos os direitos de todas as existências: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexos, assexuais, pansexuais e não binários.

AGRADECIMIENTOS

Às colegas psicodramatistas Heloísa Fleury e Marília Meneghetti Bruhn, pelas trocas e olhar atento olhar atento àquilo que Kafka possibilita transbordar.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDAD DE LOS DATOS DE LA INVESTIGACIÓN

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • Aguiar, K., & Rocha, M. L. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia, Ciência e Profissão, 27(4), 648-663. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/v27n4a07.pdf
    » http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v27n4/v27n4a07.pdf
  • Altinay, D. (2023). Sociatry of Moreno: online sociodrama and sociatry for social crises. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, 1-9. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.580
    » https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.580
  • Chauí, M. (1999). Universidade operacional. Revista da Avaliação da Educação Superior 4(3), 3-8. Recuperado de https://periodicos.uniso.br/avaliacao/article/view/1063
    » https://periodicos.uniso.br/avaliacao/article/view/1063
  • Contro, L. (2011). Diálogos entre campos disciplinares: psicodrama e análise institucional. In J. M. C. Motta & L. F. Alvez (Eds.) (2011). Psicodrama: Ciência e Arte (pp. 46-55). Ágora.
  • Dedomenico, A. M., & Merengué, D. (Eds.) (2020). Por uma vida espontânea e criadora: psicodrama e política Ágora.
  • Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773/1828
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773/1828
  • Kafka, F. (1998). O veredicto / Na colônia penal São Paulo: Companhia das Letras.
  • Kipper, D. A., & Ritchie, T. D. (2003). The effectiveness of psychodramatic techniques: A meta-analysis. Group Dynamics: Theory, Research, and Practice, 7(1), 13-25. https://doi.org/10.1037/1089-2699.7.1.13
    » https://doi.org/10.1037/1089-2699.7.1.13
  • Lennie, S., Sutton, A., & Crozier, S. (2021). Psychodrama and emotional labour in the police: A mutually beneficial methodology for researchers and participants. Methods in Psychology, 5, 100066. https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100066
    » https://doi.org/10.1016/j.metip.2021.100066
  • Lourau, R. (2004). Estudos históricos sobre a contrapedagogia. In S. Altoè (Ed.), Renè Lourau: analista institucional em tempo integral (pp. 87-121). Hucitec.
  • Orkibi, H., & Feniger-Schaal, R. (2019). Integrative systematic review of psychodrama psychotherapy research: Trends and methodological implications. PLoS One, 14(2), e0212575. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0212575
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0212575
  • Ribeiro, D. F. (2023). A decolonialidade na pesquisa e prática psicodramáticas: pela superação de epistemicídios históricos. Revista Brasileira de Psicodrama, 31, 1-12. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.596
    » https://doi.org/10.1590/psicodrama.v31.596
  • Santos, A. B. (2015). Colonização, quilombos: modos e significados Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa.

Editado por

Editora de seção: Marília Meneghetti Bruhn https://orcid.org/0000-0002-7078-1530

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2024
  • Aceito
    02 Fev 2024
Federação Brasileira de Psicodrama Rua Barão de Itapetininga, 37 conj. 402 , cep: 01042-001 - São Paulo - SP / Brasil, tel: +55 (11) 3673 3674 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbp@febrap.org.br