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IDENTIDADE E SUSTENTABILIDADE: OS CAMINHOS DO HOMEM-FRONTEIRA NA ATUALIDADE

IDENTIDAD Y SUSTENTABILIDAD: LOS CAMIÑOS DEL HOMBRE-FRONTERA EM LA ATUALIDAD

IDENTITY AND SUSTAINABILITY: THE NOWADAYS PATHS OF THE FRONTIER-MAN

Resumo

A partir da tríade identidade-metamorfose-emancipação (Ciampa, 1987), este artigo se propõe a examinar a busca pela sustentabilidade como agir intrinsecamente ligado à autodeterminação e autonomia dos sujeitos. Examina o conceito de identidade em sua polissemia confrontando três grandes narrativas: Mead, Ciampa e Ricoeur. Em seguida concentra seu foco na questão da construção das identidades dentro de uma sociedade que limita o agir humano pela ambiguidade do homem-fronteira e, por consequência, coloca em risco a sustentabilidade de sua emancipação. Conclui com a análise do fortalecimento das identidades sociais dos homens onde encontram, na construção das próprias trajetórias, a potencialidade de mudar a si e o mundo.

Palavras-chave:
identidade; sustentabilidade; emancipação; homem-fronteira

Resumen

A partir de la tríada Identidad-Metamorfosis-Emancipación (Ciampa, 1987), este artículo tiene como objetivo examinar la búsqueda de la sostenibilidad como un acto intrínsecamente ligado a la libre determinación y la autonomía de los individuos. Examina el concepto de identidad en su polisemia a partir de tres grandes narrativas: Mead, Ciampa y Ricoeur. Se discute el tema de la construcción de las identidades dentro de una sociedad que limita el acto humano por la ambigüedad del hombre-frontera, poniendo en peligro la sostenibilidad de su emancipación. Finalmente, se concluye reflejando sobre el fortalecimiento de las identidades sociales de los hombres, que tienen en la construcción de sus propias trayectorias el potencial de cambiar a ellos mismos y al mundo.

Palabras clave:
identidad; sustentabilidad; emancipación; hombre-frontera

Abstract

From the identity-metamorphosis-emancipation triad (Ciampa, 1987), this article aims to examine the search for sustainability as an intrinsic condition related to self-determination and the autonomy of subjects. It examines the concept of identity in its polysemy by confronting three great narratives: Mead, Ciampa and Ricoeur. This article then focuses on the question of the construction of identities within a society that limits human action by the ambiguity of the frontier man and therefore jeopardizes the sustainability of his emancipation. It finishes with the analysis of the strengthening of social identities where man has, in the construction of his own trajectories, the potentiality of changing himself and the world.

Keywords:
identity; sustainability; emancipation; frontier-man

Introdução

O uso banalizado e os diversos sentidos da palavra identidade, e ainda, o debate sobre sua compreensão como conceito expõem sua complexidade e autoridade diante do entendimento das muitas questões que impactam o homem e a sociedade moderna. Questões relacionadas à família, ao trabalho, à vida comunitária, à violência, ao bem-estar, à sustentabilidadeHeller, A. (1982). Para mudar a vida: felicidade, liberdade e democracia. São Paulo: Brasiliense ., entre outras, são compreendidas sob a égide da identidade. Mais do que características próprias, a identidade é um recurso para a compreensão da interação e da interlocução do homem consigo mesmo e com o mundo. Pelo recurso da identidade, ao mesmo tempo o homem se aproxima e se distancia, se assemelha e se diferencia do outro, mostrando nesses movimentos os desafios implicados na compreensão de sua existência e sua condição de ser social. Discutir a questão da identidade implica adentrar a dialética entre o igual e o distinto na articulação das esferas individual e social. Na busca da compreensão do que é a identidade, descobre-se que o homem é singular ao mesmo tempo em que é plural, igual e diferente, uma vez que sua condição não está exclusivamente atrelada a eventos físicos e, portanto, estáticos, mas também à sua construção a partir da relação com o outro.

Seus movimentos, na interlocução com o mundo, podem aproximá-lo ou distanciá-lo como autor de sua existência enquanto vida humana, cuja ação não está limitada ao ato consigo mesmo, mas às relações de complementaridade e dever para com os demais, de forma a manter suas potencialidades. Desta forma, o movimento de construção da identidade é também de sustentabilidade uma vez que, como metamorfose, garante as possibilidades que o mundo oferece para que o homem realize sua humanidade e a própria continuidade da natureza.

A condição da identidade, de ser construída, marca desta forma o compromisso com a sustentabilidade por uma nova ética, que articula para um “sim ao Ser”, cuja ação coletiva se tornou um dever humano (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.). Seus movimentos indicam que, no processo contínuo de construção da identidade pessoal, o homem tem a oportunidade de se assumir enquanto sujeito capaz de transformar-se e transformar o mundo e portanto de sustentar seu próprio desenvolvimento e o do mundo. Essa transformação, direcionada à emancipação, passa pelo reconhecimento de si mesmo e do outro a partir das possibilidades que o indivíduo tem, de sua ontologia. Diferenciando três níveis de consciência, Hegel coloca o espírito no grau mais elevado desses níveis, entendendo-o como a instância em que o indivíduo se reconhece como sujeito (consciência) a partir do ser-outro, ou seja, do reconhecimento do outro como sujeito, onde “essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição - a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes - é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu” (Hegel, 1988, p. 125Hegel, G. (1988). Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.). É a partir da experiência de reconhecimento (“nós que é eu”) e da relação consigo próprio (“eu, que é nós”) que se estrutura a identidade pessoal: o homem depende do outro, seu interlocutor, para confirmar-se como homem. Assim, na perspectiva hegeliana, a sustentabilidade aparece apoiada no reconhecimento e oposição frente ao outro, cujas diferenças permitem o reconhecimento de igualdades.

A dependência da relação com o outro fica exposta e ganha novos desafios diante da ação do homem no mundo tornando o outro, em especial suas possibilidades, igualmente objeto da responsabilidade humana, uma vez que sua ação deve também afirmar-se na moralidade enquanto alma da existência humana (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.). Tal responsabilidade requer “procurar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de ‘fins em si’ para além da esfera do humano e incluir o cuidado com este no conceito de bem humano” (p. 41). Tal entendimento de dependência, da presença da alteridade seja ela humana ou da própria natureza, que a questão da sustentabilidade coloca, levanta a questão do ecologismo, enquanto manejo do diferente, que implica desde a preocupação com a vida selvagem, ao manejo sustentável da produção ou mesmo da gestão, até o controle de conflitos e da desigualdade social (Martinéz-Alier, 2011Martinéz-Alier, J. (2011). O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto.). A sustentabilidade e a natureza implicam a alteridade, que viabiliza ao homem e aos seus semelhantes a construção de identidades pessoais e certifica a manutenção da vida. Decorrente desse reconhecimento, “a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional à amplitude do nosso poder, ela então exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade” (Jonas, 2011, p. 63Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.). Esse reconhecimento corresponde à força dos desdobramentos do agir humano na natureza e também, por que não dizer, à força do agir humano para com seus semelhantes.

Tratar da questão da sustentabilidade passa necessariamente pelo reconhecimento das redes de causalidade que coexistem entre o homem, a sociedade e a natureza, nas quais a construção de identidades pessoais que possibilitem a criação “de espaços que ajudem o ser humano a ganhar consciência de si, do outro, do nós e, como resultado, a consciência do mundo” (Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac., p. 97) torna-se um elemento crucial. Essas redes constituem um amálgama que tem potencialidade para cristalizar ações transformadoras do homem, da sociedade e da natureza.

Para tanto, as discussões que cercam a busca da sustentabilidade têm sido foco de significativa atenção em vários campos das ciências, como a biologia, a sociologia, a psicologia e a filosofia, que caminham em paralelo ao alvo de ações nas esferas governamental, empresarial, social, cultural, econômica e acadêmica. Esses direcionamentos apontam para a multidisciplinaridade implicada na sustentabilidade e em seus desdobramentos na vida cotidiana. O reconhecimento dessas implicações e desdobramentos fertiliza os investimentos na compreensão da sustentabilidade e da emancipação, produzindo crescente produção bibliográfica (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.; Loureiro, 2012Loureiro, C. F. (2012). Sustentabilidade e educação: um olhar da ecologia política. São Paulo: Cortez.; Martínez-Alier, 2011; Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.;Veiga, 2010Veiga, J. E. (2010). Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond. entre outros)

Mesmo reflexões superficiais sobre os objetos de análise deste ensaio, identidade e sustentabilidade, permitem reconhecer sua complexidade, multidisciplinaridade e a interdependência na qual estão implicados, em movimento dialético cuja realização de um requer a compreensão e consideração do outro. Como ocorre na relação entre tese e antítese cujo movimento contínuo de aproximação é o que lhes permite existir enquanto fundamento para a existência do homem (Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.). Dessa forma, o investimento em um requer a compreensão e o investimento no outro.

Este artigo, que integra a edição especial sobre a teoria de identidade proposta por Ciampa (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), analisa a tríade identidade-metamorfose-emancipação, assumindo à luz desta o exame da sustentabilidade como seu principal objeto, tendo em vista o reconhecimento de sua contribuição para melhor compreensão da sociedade e dos desafios da gestão de suas redes de causalidade que podem resultar em manutenção ou destruição das próprias potencialidades. Hoje, tanto se fala e se escreve sobre sustentabilidade e emancipação que se torna difícil neutralizar sua banalização, por sua função crucial na vida humana em sociedade. O alvo aqui perseguido é compreender por que a sustentabilidade somente poderá ser viabilizada por sujeitos cujas trajetórias apontem para uma mesmidade, para uma autodeterminação de ser-para-si, cujas metamorfoses rumo à emancipação marcam a “invencibilidade da substância humana” (Ciampa,1987, p. 182) na amplitude de suas potencialidades. Assim, este artigo propõe a sustentabilidade como potencialidade humana, cujo movimento de construção identitária aponta para a vida em “progressiva execução revolucionário-crítica, sempre a título de ensaio, sem certeza totalitária, (que) progressivamente realize as grandes ilusões da humanidade” (p. 235).

A diversidade na compreensão da identidade

Para realizar esse propósito e diante das distintas possibilidades de compreensão da identidade e sua relação com a emancipação - portanto como detentora de potencialidade para a construção de fragmentos emancipatórios - o primeiro passo será a detalhada análise das propostas de três autores que fundaram, consolidaram ou contribuíram para a compreensão do conceito de identidade: Mead, Ciampa e Ricoeur. A compreensão de suas teorias facilitará a decodificação dos movimentos de construção de identidades pessoais que viabilizam os parâmetros e condições para a compreensão e a ação da sustentabilidade.

A identidade em Mead (1934Mead, G. (1934). Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press.) significa a individuação como um processo de construção possível apenas nos movimentos da relação homem-sociedade denominados de “comunicação triádica”. Tal processo de construção é composto por três elementos igualmente importantes: o eu, o mim e o nós. Representando o social propriamente dito, o nós, mediado pelos processos comunicacionais e de interação com o outro, concretiza o ato social. Mead refere-se a comportamentos cooperativos em que a criação simbólica como atribuição de valores e significados permite inferir e prever o comportamento do outro facilitando a interação social. Nessa perspectiva, tanto a comunicação como a capacidade de criar símbolos e significados são condições essenciais para a diferenciação das sociedades humana e animal, possibilitando a nova ética para o ser humano atuar emancipadamente na sustentabilidade de si e do mundo. O eu (self/persona) refere-se a uma parte única do indivíduo, caracterizada pela capacidade de atuar com relação aos outros e a si mesmo. Através do comportamento social, o eu torna-se objeto social e portanto passa a existir. Isso porque não há, de acordo com Mead, o eu sem o nós, pois é o nós que permite a diferenciação. Como incorporação do nós pelo eu, o mim é construído quando o indivíduo passa a se reconhecer como um objeto de reflexão, reconhecendo-se simbolicamente como fruto da interação do nós com seu próprio eu. Aqui cabe ressaltar que o movimento de busca pela sustentabilidade estaria intimamente relacionado ao mim, cuja essência estaria na reflexão, na consciência de si e do outro. Evento este que, sendo essencialmente social, depende do reconhecimento do outro, cujos efeitos estariam na capacidade de reconhecer a si e o outro como uma totalidade, de forma que o mim passasse a reagir ao eu enquanto produto dos impactos das ações dos demais, do social ou, nas palavras de Mead, “o eu é a resposta do organismo frente à atitude dos outros, o mim é o conjunto organizado de atitudes dos outros que o indivíduo assume” (p. 22). É esse sentido que possibilitaria aos indivíduos reflexão e autonomia, uma vez que se trata de uma elaboração do próprio homem.

Ciampa (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), utilizando as concepções de Mead (1934Mead, G. (1934). Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press.), ao relacionar a existência do eu como dependente da presença do nós - já que o indivíduo se diferencia como ser único (eu) a partir do outro (nós) - defende que é nesse movimento que o eu “encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal”. Dessa forma, o indivíduo constrói uma base para negociar com o mundo e com isso transformar sua identidade. Como consequência, a identidade pode ser considerada, antes de tudo, como questão social e política, pois através dela se “concretiza uma política (que) dá corpo a uma ideologia” (Ciampa, 1987, p. 127). Assim, em um movimento dialético, a sociedade se constitui de identidades, e as identidades se constituem na sociedade em constantes e inseparáveis movimentos de interdependência. Nesse contínuo movimento, a identidade é metamorfose, transformação “que faz do agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do mundo” (p. 146). A sustentabilidade, nessa perspectiva, é alcançada somente diante de ações afirmativas dos sujeitos diante de si e do mundo, cujas ações aparentemente isoladas passam a conter em si toda a humanidade. Portanto, a sustentabilidade decorrente de uma vida autenticamente humana (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.) só seria alcançada mediante a possibilidade de ser um outro outro, que nas palavras de Ciampa ocorre “na alterização da minha identidade, na eliminação de minha identidade pressuposta (que deixa de ser reposta) e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda humanidade contida em mim se concretiza” (p. 181). Identidade pressuposta que segundo Ciampa é aquela que é esperada, de um ser e de um agir totalitário que no movimento de reposição, enquanto algo dado e não se dando, limita as potencialidades do homem e, consequentemente, a sustentabilidade, da garantia de uma vida autenticamente humana.

Ricoeur (1990Ricoeur, P. (1990). Oneself as another. Chicago: University of Chicago Press .) acredita que não há como separar o eu do outro e assim o termo identidade pode ser utilizado tanto para referir-se ao que é igual (outros) quanto ao que é próprio (eu). A expressão mesmidade ou identidade-idem foi utilizada por Ricoeur para referir-se à concepção de identidade como igualdade. Em concordância com este sentido, a identidade-idem caracteriza-se pela existência de critérios de definição que para serem mantidos são corroborados continuamente. Dessa forma, os critérios levantados que garantiriam essa caracterização são a unicidade e a semelhança extrema. No primeiro caso, tem-se o reconhecimento de um objeto como sendo o mesmo independente das mudanças temporais, como é o caso dos nomes próprios. Já no critério de semelhança extrema, há um reconhecimento de acordo com critérios objetivos, como no caso dos traços físicos. Tais critérios de definição, sejam através da unicidade ou da semelhança extrema, permitem que um mesmo indivíduo seja identificado como sendo a mesma pessoa em decorrência da continuidade ininterrupta que não permitiu o rompimento com a semelhança. Diferentemente da identidade-idem, Ricoeur apresenta um segundo uso para o termo identidade, que foi denominado como ipseidade ou identidade-ipse. Nesse caso, a identidade-ipse refere-se ao eu próprio, ao quem, à identidade comprometida pela ação do indivíduo no mundo. A identidade narrativa, que identifica o contexto das ações do sujeito, seria portanto o resultado do processo de ipseidade, do qual decorre uma construção conjunta do eu e do outro em diálogos éticos, em que indivíduo e sociedade ajustariam suas orientações. Na perspectiva trazida por Ricoeur, pode-se compreender a sustentabilidade como resultante de um processo de construção conjunta cuja narrativa estaria no que chamou de diálogo ético. Este, pautado e balizado pela solicitude na qual a “desigualdade de potência venha a ser compensada por uma autêntica reciprocidade na troca” (1990, p. 224), pautada por uma interrogação, uma reflexão e reconhecimento de si e do outro, cuja interlocução potencialmente é uma abertura para a sustentabilidade.

Tendo como referência os aspectos apontados pelas três teorias, nota-se presente em todas a condição dos movimentos de construção de identidades pessoais como um processo que, além de dinâmico, é absolutamente atrelado ao ganho da consciência de si - possibilitado apenas a partir do contraponto que oferece a alteridade. Assim, sendo um movimento de construção, que portanto não está dado, precisa ser negociado, considerando todos os seus elementos no que diz respeito ao social e ao individual. A sustentabilidade, como será tratado na próxima sessão, seria somente alcançada diante da construção de identidades que apontassem para o ganho de autonomia e reflexão dos homens, potencialmente presente no mim de Mead, na tríade identidade-metamorfose-emancipação proposta por Ciampa, como também na ipseidade apresentada por Ricouer.

Identidade, homem-fronteira e sustentabilidade

A análise aqui proposta a fim de responder aos objetivos deste artigo foi desenvolvida sobre as três teorias apresentadas. O eixo comum entre elas coloca a questão da identidade intrinsecamente ligada à subjetividade como elemento implicado na relação eu-outro na construção do eu.

Dessa forma, o mim do interacionismo simbólico de Mead, a identidade metamorfose de Ciampa e a identidade-ipse de Ricoeur implicados na ação do indivíduo no mundo trazem em sua essência a existência entre eu-outro, cujo movimento pautará a ação e a potencialidade de transformação do estar-no-mundo dos sujeitos. Retomando o objeto deste ensaio caberia perguntar como as identidades são construídas num mundo cuja evolução tem cerceado as potencialidades da vida autenticamente humana (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.) e limitado a própria sustentabilidade da natureza e do homem? São muitos os autores que assumem a construção de identidades forjadas por cisões, rupturas e ambiguidade (Bauman, 2005Bauman, Z. (2005). Identidade. Rio de Janeiro: Zahar.). Entre eles Habermas (1986Habermas, J. (1986). The theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Cambridge: Polity Press.) quando, ao apontar para a cisão entre sociedade e identidade, denuncia a subordinação do homem e da sociedade moderna às ações particulares diante da operacionalização da técnica, cujos desdobramentos podem ser compreendidos como identidades forjadas sob a égide da alienação ou dominação. Igualmente, Jonas (2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.) assinala que a exigência de uma nova ética evidencia a inadequação, na qual o homem se encontra quando na relação com o mundo. Essa condição chama por uma concepção de direitos e deveres relacionada à sustentabilidade da natureza e do próprio homem, cujo movimento de construção das identidades não lhes garante a condição de sujeitos em uma constante atualização de suas potencialidades. Já Ciampa (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.) indica que, nas trajetórias dos sujeitos, a metamorfose não pode ser qualquer uma, mas sim uma trajetória pautada pela autodeterminação, por consciência crítica das finalidades. Desse modo, pode-se afirmar que a construção das identidades, apesar de sua potencialidade emancipatória, pode produzir ações cujos movimentos não gerem transformações significativas na natureza, na sociedade e na vida do próprio homem, mostrando o distanciamento entre as identidades e as demandas da sustentabilidade de uma sociedade tão complexa como esta do século XXI. Nas três reflexões acima apresentadas (Habermas, Jonas e Ciampa), a identidade é uma potencialidade para o caminhar rumo à emancipação, porém a falta de consciência crítica das finalidades, de si e do mundo pode cercear tal potencialidade.

Outra evidência do cerceamento na construção das trajetórias das identidades pessoais pode ser observada na própria discussão que cerca a questão da sustentabilidade. Malvezzi (2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.) reconhece que emerge hoje uma política identitária verde que “pressupõe a reprodução de certos predicados na relação dos indivíduos entre si e com o meio” e que ainda estaria sendo moldada, intencionalmente ou não, “uma pressuposta identidade verde que delimita e aponta as condutas que devem ser assumidas por todos nessa nova busca pela sustentabilidade” (p. 123), como exibir determinado comportamento e mesmo externalizar valores específicos, sendo o muito referido “politicamente correto”. Igualmente, Layargues (1998Layargues, P. (1998). A cortina de fumaça: o discurso empresarial verde e a ideologia da racionalidade econômica. São Paulo: Annablume.) também aponta para esse fenômeno quando descreve a atual produção em torno da sustentabilidade como restrita a externalidades, condição que institui uma sensação de proatividade e efetividade perante as problemáticas ambientais. Essa sensação foi apontada por Habermas (1986Habermas, J. (1986). The theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Cambridge: Polity Press.) como a cristalização da própria biografia, referente à delimitação aos papéis dados socialmente, que nesse caso estaria na adoção de um não pensar na reposição de uma identidade compreendida como fato construído e não a ser construído, ou nas palavras de Ciampa “vista como dada e não se dando” (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense., p. 163).

Tais construtos sociais, personificados por uma identidade pressuposta, colocam os sujeitos em condições para as quais possuem apenas duas escolhas: abraçar as trajetórias e predicados traçados socialmente ou estar fora dessa biografia, dessa forma de ser-no-mundo. Portanto, vive-se diante da escolha entre estar em conformidade ou não com predicados e normas socialmente indicadas, entre estar dentro ou estar fora.

Tais escolhas, estar dentro ou fora, da articulação identitária acima citada, estar ou não em conformidade com os comportamentos e valores socialmente esperados, e em especial tomando o espaço do século XXI, pautado pela intensificação e pela velocidade da evolução da sociedade, reforçam uma classificação binária (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.), na qual a clivagem entre os que estão dentro dos padrões e os que estão fora aparece evidenciada no cotidiano dos centros urbanos, que por sua lógica de funcionamento, pelas relações que estabelece com seus habitantes, por seu movimento constante de abertura e fechamento, de reconhecimento e de desrespeito (Honneth, 2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. ) impõe a todos, a partir das alteridades no movimento da construção da identidade, um delicado limiar baseado nos elementos simbólicos que pontuam o pertencer ou não pertencer aos anseios e expectativas impostas socialmente. As externalidades citadas por Layargues (1998Layargues, P. (1998). A cortina de fumaça: o discurso empresarial verde e a ideologia da racionalidade econômica. São Paulo: Annablume.) podem ser consideradas o balizador desse estar dentro ou estar fora quando se considera a questão da sustentabilidade. Ilustra bem tal situação um comportamento considerado socialmente sustentável, como a reciclagem do lixo, que na perspectiva aqui apresentada poderia ser alienante quando diante de um indivíduo que reproduz estas externalidades sem acrescentar ganho de autonomia e reflexão à própria biografia.

Nessa classificação binária, Hartog (2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.) refere-se aos homens-fronteira como elementos de demarcação, uma vez que móveis, transitam entre as delimitações, dentro e fora, recorrendo ao outro, à alteridade em um movimento que “traduz dúvida do mesmo sobre o que ele é, o olhar, enfim, que não cessou de percorrer o novo, para certificar-se de si, ‘encontrando de novo’ os sinais e traços de uma antiga identidade” (p. 18). Assim, reconhece-se a si mesmo a partir da dúvida que a alteridade é capaz de invocar na construção da própria biografia. Sendo o homem dessa forma e “a um só tempo o mesmo e outro, tal é seu destino, sua razão de ser e de sobreviver: sua identidade” (Hartog, 2004, p. 233Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.). Na atualidade, nessa perspectiva todos podem ser considerados homens-fronteira, cujos limiares de pertencimento, pautados pela alteridade, remontam ao mercantilismo e à instrumentalização. Condição que coloca o pertencimento, como o cumprimento ou não, com os predicados de uma identidade pressuposta verde que pode ser igualmente vazia, transformadora apenas na aparência (Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.) e suas iniciativas pautadas por externalidades (Layargues, 1998Layargues, P. (1998). A cortina de fumaça: o discurso empresarial verde e a ideologia da racionalidade econômica. São Paulo: Annablume.) de uma re-posição (repetição) de uma identidade imposta (Ciampa, 1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), de uma cristalização, de um endurecimento de uma identidade que perde a possibilidade de transformar-se com o novo (Habermas, 1986Habermas, J. (1986). The theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Cambridge: Polity Press.).

Dessa forma, a sociedade, cuja disposição expõe os limites das fronteiras entre o estar dentro e o estar fora, aponta a naturalidade de seus mecanismos de inclusão e exclusão, a partir das restrições do modelo de sistema hegemônico. Tal condição clama por uma busca “nas identidades que não correspondem a um específico modelo padrão, novas identidades para modelos do urbano e da urbanidade” (Tassara & Ardans, 2008Tassara, E. & Ardans, O. (2008). Mudanças climáticas e mudanças socioambientais globais: reflexões sobre alternativas de futuro. Brasília, DF: UNESCO; IBECC., p. 140), clama para a construção de identidades pessoais capazes de uma “evolução criadora” na qual “através da inter-relação entre informações históricas e informações psicossociais..., gerando percursos para a construção das ideias sobre suas determinações” (p. 142).

Nessa lógica, o modelo estratificador do sistema-mundo reforça, ou melhor, está em sintonia com a dualidade apontada na retórica da alteridade que foca na classificação binária da relação, do reconhecimento do eu-outro presente em Hartog (2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.) e também nas teorias de identidade anteriormente apresentadas. Nesses termos, na atual sociedade e diante de uma pauta em que impera o entendimento binário (dentro-fora/ eu-outro/ bom-ruim) impõem-se externalidades de uma identidade cuja natureza parece pautar a construção das biografias, as descobertas e as perguntas do homem-fronteira (Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.) na atualidade. Desta forma, reproduzem-se discursos, ações e elementos imagéticos que falseiam a construção de uma sociedade rumo à sustentabilidade e sua subordinação a uma nova ética (Jonas, 2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.; Layargues, 1998Layargues, P. (1998). A cortina de fumaça: o discurso empresarial verde e a ideologia da racionalidade econômica. São Paulo: Annablume.; Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.). Assim, as identidades pressupostas reforçam a compreensão da sustentabilidade, apontando para a existência de um roteiro a ser seguido na construção das próprias biografias, de uma metamorfose estéril. Nessa condição, a autodeterminação dos sujeitos vê-se eclipsada por elementos externos que superficialmente representam ações, que falseiam uma transformação e um reconhecimento de si, do outro e do mundo, ou como apontou Ciampa (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), uma ação de não metamorfose, de não pensar, de uma armadilha do materialismo mecanicista que se presencia na atualidade.

Diferentemente do que aponta o personagem Ulisses, na Odisseia, atribuída a Homero (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.), que parte de Ítaca por 10 anos e quando retorna se vê transformado e portanto irreconhecível para grande parte de seus conterrâneos, a viagem a que os sujeitos de hoje empreendem em suas vidas possui um roteiro predeterminado, como uma viagem cuja chegada e trajetória são estipuladas por outrem. E mais: cujo caminho não possui alternativas além das demarcadas e apontadas pelo sistema-mundo, delimitando as possibilidades de ser e atuar no mundo - e portanto da busca pela sustentabilidade. Nessa lógica, a viagem a que se propõem os sujeitos desponta no sentido de, diante da classificação binária, ser direcionada à civilização e não à barbárie (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.), aqui representada pela preocupação com a questão da sustentabilidade traduzida pela concordância com seus elementos simbólicos, suas externalidades. Entre a barbárie e a civilização optam-se pelos elementos superficiais desta, cujos desdobramentos, todavia, não levam a outro espaço senão à própria barbárie. Jonas (2011Jonas, H. (2011). O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Ed. PUC/RJ.) indica como esse movimento poderia ser entendido quando refere-se ao “não ser” como restrição das possibilidades de ser do homem e da sociedade. Portanto, a construção das identidades pessoais “se configura(m) em função de aberturas ou afastamentos em relação a determinados campos simbólicos ou a algo que pode ser uma invenção” (Tassara & Ardans, 2008Tassara, E. & Ardans, O. (2008). Mudanças climáticas e mudanças socioambientais globais: reflexões sobre alternativas de futuro. Brasília, DF: UNESCO; IBECC., p. 141) e aparentam estar presas ao campo simbólico do que pode ser considerado desejável ou não. Limitam, dessa forma, as possibilidades de autonomia e originalidade dos homens-fronteira da atualidade, que se submetem a fim de terem assegurados, diante de uma divisão binária do mundo, um estar dentro caminhando rumo à civilização, garantindo assim supostos pertencimentos. Tem-se um não pensar, uma reposição cuja materialidade aparenta transformação, mas cujo fundamento é a não metamorfose, a mesmice.

Cabe perguntar como pode o homem-fronteira (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.) da atualidade traçar sua trajetória em direção ao mim (Mead, 1934Mead, G. (1934). Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press.), à metamorfose (Ciampa, 1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), à ipseidade (Ricoeur, 1990Ricoeur, P. (1990). Oneself as another. Chicago: University of Chicago Press .) dentro dos preceitos da busca emancipatória (Habermas, 1986Habermas, J. (1986). The theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Cambridge: Polity Press.), cujo movimento de abertura e afastamento (Tassara & Ardans, 2008Tassara, E. & Ardans, O. (2008). Mudanças climáticas e mudanças socioambientais globais: reflexões sobre alternativas de futuro. Brasília, DF: UNESCO; IBECC.) aponta para situações de exclusão espacial e simbolismo, cujas bases estão na ameaça imposta pela questão da sustentabilidade a todos? Questionamento que vai de encontro a Odisseia, de Ulisses, que, nas palavras de Hartog, estava pautada pelo entendimento de que “viaja-se de certo para aprender, mas também, senão, sobretudo, para exibir as marcas de seu próprio saber” - e desta forma “medir as sabedorias do mundo e medir-se com elas” (Hartog, 2004, p. 224Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.). Desta forma, a construção das identidades pessoais é potencialmente capaz de gerar transformação desde que haja reconhecimento das alteridades e reflexão por parte dos sujeitos. Entretanto, tal processo parece não ocorrer diante da perda de simbolismos e da exclusão observada nos dias de hoje.

Sustentabilidade, emancipação e reconhecimento: lados de uma mesma moeda? Desdobramentos do tema

A discussão até aqui apresentada procurou criticar as atuais acepções que fundamentam a busca da sustentabilidade, enquanto em face do predomínio da lógica binária de exclusão, que apenas por sua existência é potencialmente limitadora das trajetórias humanas - dado que não resta aos homens submeterem-se aos pressupostos que indicam o estar dentro rumo à civilização (Hartog, 2011). Também a ausência de simbolismos e, portanto, a insuficiência de reflexão acerca de si mesmo e dos outros, faz com que as atuais ações para a sustentabilidade sejam incapazes de produzir a construção da transformação (Layargues, 1998Layargues, P. (1998). A cortina de fumaça: o discurso empresarial verde e a ideologia da racionalidade econômica. São Paulo: Annablume.; Martinéz-Alier, 2011Martinéz-Alier, J. (2011). O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto.; Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.) que a natureza, a sociedade e o próprio homem reivindicam através de sintomas que vão desde a fome, a miséria e a desigualdade, até o crescente desmatamento e uso predatório dos recursos naturais. Em conformidade com esses aspectos, a busca pela eficácia instrumental, característica da atualidade, ofusca a condição do homem como um ser de esperanças, que tem em suas escolhas e ações a chave para o ganho de consciência e reflexão, elementos verdadeiramente capazes de transformar a realidade da natureza e do homem no mundo. A transformação que vem sendo articulada por este artigo aponta a metamorfose como alternativa capaz para o reconhecimento autêntico de si e do outro, na dialética de interdependência por meio da qual se reconhece o que lhe é próprio no outro e o que é do outro em si mesmo, tal como proposto por Hegel (1988Hegel, G. (1988). Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Um dos possíveis desdobramentos do reconhecimento autêntico de si e do outro pode incorrer mediante o estabelecimento da autorrealização positiva, quando o diálogo indivíduo-mundo (outro) permite a este referir-se a si mesmo como detentor de determinadas propriedades ou competências de “uma confiança dirigida para fora, que oferece ao indivíduo segurança tanto na expressão das carências como na aplicação de suas capacidades” (Honneth, 2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. , p. 273). Logo, tomando novamente a autodeterminação de Ciampa (1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.) como referência, a identidade-ipse de Ricoeur (1990Ricoeur, P. (1990). Oneself as another. Chicago: University of Chicago Press .) e o mim de Mead (1934Mead, G. (1934). Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press.), a construção das identidades pessoais em movimentos subjetivos caminha para o ganho de consciência de si na condição de autonomia diante da própria vida. Essa qualidade pode ser compreendida sob a proposta de reconhecimento de Honneth (2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. ), cujos desdobramentos vão além de aspectos exteriores aos homens e abarca a própria subjetividade através da exigência de “falta de bloqueios internos, de inibições psíquicas e de angústias” (p. 273), que afirmam a sua absoluta interdependência dos demais, na qual “a liberdade da autorrealização depende de pressupostos que não estão à disposição do próprio sujeito humano, visto que ele só pode adquiri-la com a ajuda de seu parceiro de interação” (p. 273).

Em contrapartida ao reconhecimento e à autorrelação positiva, Honneth (2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. ) cita a possibilidade da ocorrência de autorrealizações negativas, de impossibilidades de reconhecimento, na qual o homem desconsideraria qualquer valor ou dignidade ao que eventualmente lhe é próprio. Nesse viés, o sujeito negaria o próprio desejo, a própria consciência e abriria mão de sua potencialidade para a autodeterminação diante de uma condição de universalidade, aclamando “mais a respeito das estruturas universais de uma vida bem-sucedida do que está contido na mera referência à autodeterminação individual” (Honneth, 2003, p. 274Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. ). Hegel igualmente refere-se à negatividade, porém como um processo transcendental inerente ao movimento de desenvolvimento da consciência sensível para a consciência do entendimento. Nessa perspectiva, o movimento de negação da própria consciência seria aquilo que possibilita seu oposto e, consequentemente, a vida, “esse percurso, uma alternância perpétua entre o determinar do verdadeiro e o suprassumir desse determinar, constitui a rigor a vida e a labuta, cotidianas e permanentes, da consciência que-percebe e que acredita mover-se dentro da verdade” (Hegel, 1988, p. 94Hegel, G. (1988). Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.). A negatividade em ambos autores pode ser compreendida como expressão da subjetividade. Na proposta Hegeliana, esta é constitucional da condição humana e o contraponto necessário para o ganho da consciência. Por sua vez, Honneth sugere a negação, também a partir de uma alteridade, como um impedimento subjetivo frente ao reconhecimento das próprias potencialidades para a concretização de autonomia e autodeterminação.

A partir das duas interpretações acima referenciadas, pode-se concluir que o refreamento, a negação da própria consciência implica incondicionalmente em atentar-se para a alteridade e que como tal, não é considerado necessariamente ruim, porque é através da negação provida pelo outro que o indivíduo pode construir-se como tal. Seja no movimento proposto por Honneth, do confronto entre os desejos do sujeito e a ordem social, ou na leitura Hegeliana, que convoca para a busca da reciprocidade, de uma consciência, que partindo do sensível, chega ao entendimento, é crítico que se saboreiem todos os elementos que possibilitam a vida do homem, alteridade, sociedade e natureza para que, no confronto se permitam movimentos de “abertura e controle, inquietude e segurança, reconhecimento e desconhecimento, tradução e traição” (Hartog, 2011, p. 233), matérias para a construção das identidades pessoais.

O outro e o social são fatores críticos para o estabelecimento de uma identidade pessoal que caminha rumo à capacitação para a transformação de si e do mundo e dessa forma para a garantia de assegurar a sustentabilidade. Não uma transformação qualquer, mas uma transformação que caminhe em direção ao crescimento e à autorrealização de todos.

O que dizer diante das situações que se apresentam na atualidade, onde os sujeitos têm impossibilitadas suas condições para a autorrealização? Há como pensar em sustentabilidade diante dessa limitação, mesmice ou reposição dos sujeitos?

O esvaziamento da crítica, do protagonismo e do assujeitamento dos sujeitos hoje observados marcam uma exclusão identitária, por terem sempre seu pertencimento posto à prova em razão das demandas mercantilistas e instrumentárias do sistema-mundo moderno, fato que sinaliza a indeterminação na qual o homem parece carregar dentro de si uma profunda cisão interna. Tal condição de indeterminação pode ser entendida como resultante do processo de anomia que ocorre “quando as demandas deixam de ser determináveis, deixam de ter forma específica devido ao enfraquecimento das normas com sua capacidade de individualização e de limitação das paixões” (Safatle, 2013Safatle, V. (2013). Abaixo de zero: psicanálise, política e o “déficit de negatividade” em Axel Honneth. Discurso, 43, 193-228., p. 215). Acrescenta-se aqui um novo elemento na discussão da construção da identidade, pois como dependente da alteridade, encontra-se profundamente imbricada nas condições sociais e do outro (Ciampa, 1987Ciampa, A. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.).

Hoje, sem dúvida, o relaxamento das bases de definição da normatividade da lei está exposto no seio da sociedade moderna. A própria discussão que cerca a questão da sustentabilidade aponta para a polissemia, a cisão entre conceitos, práticas e mesmo utopias (Malvezzi, 2013Malvezzi, M. (2013). Sustentabilidade e emancipação: a gestão de pessoas na atualidade. São Paulo: Senac.). Os limites entre o certo e o errado, o desejável e o indesejável foram diluídos e em razão disso é possível ao sujeito transitar livremente diante das alteridades sem esforçar-se por estabelecer um diálogo com o mundo. Tanto na visão hegeliana como na psicanalítica da construção do eu (da consciência), há uma implicação objetiva do sujeito no seu estar no mundo. Seja através da autorrestrição de Honneth ou nos níveis de consciência de Hegel a alteridade com sua normatividade circunscreve para a limitação de si - e portanto permite o estabelecimento das identidades pessoais.

O sistema-mundo, com sua demanda mercantilista e instrumental, pode comprometer tal desenvolvimento, pois reforça em sua ideologia a anomia social institucionalizada que, ao mesmo tempo, é força propulsora do sistema e sua principal ameaça. Desse modo, o capitalismo é dependente da anomia, ao mesmo tempo em que é ameaçado por ela. Portanto, o enfraquecimento das normas que estão implicadas no estado de anomia social é propulsor do sistema devido ao engrandecimento da mercantilização, que ameaça o próprio sistema através de patologias sociais, pagas com a “desregulação da capacidade de construir identidades, com a depressão e seu ‘cansaço de ser si mesmo’, a insegurança narcísica e os transtornos de personalidade” (Safatle, 2013Safatle, V. (2013). Abaixo de zero: psicanálise, política e o “déficit de negatividade” em Axel Honneth. Discurso, 43, 193-228., p. 217).

A dialética implicada em tal movimento reforça a ideia de que o “capitalismo só pode sobreviver enquanto não for totalmente capitalista” (Streeck, 2014Streeck, W. (2014). Como vai acabar o capitalismo? O epílogo de um sistema em desmantelo crônico. Revista Piauí, 97. Recuperado de http://piaui.folha.uol.com.br/materia/como-vai-acabar-o-capitalismo/
http://piaui.folha.uol.com.br/materia/co...
, p. 4) e aponta para a crise que a sociedade atual enfrenta. Crise marcada pela overdose de si mesmo que desemboca em cinco doenças sistêmicas - “são elas: estagnação, redistribuição oligárquica, pilhagem do setor público, corrupção e anarquia global” (p. 4). Males que inevitavelmente atingem o estar-no-mundo dos sujeitos que se veem diante de uma condição de constante relativização, arbitrariedade e deslocamento dos limites das leis e da moralidade. O homem encontra-se perdido a ponto de ter seu ethos originário estremecido.

Compreendendo ethos como a força motivadora por trás dos costumes, ideias e comportamentos que definem “um mundo da vida particular que se tornou hábito” (Honneth, 2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34. , p. 270), ele carrega dentro de si a eticidade de um povo, que é a instância detentora de “todos os pressupostos intersubjetivos que hoje precisam estar preenchidos para que os sujeitos possam se perceber protegidos nas condições de sua autorrealização” (p. 270). A eticidade, enquanto vida boa, permite o estabelecimento de condições intersubjetivas que servem à autorrealização e de onde se estabelece o tracejado dos costumes, das ideias e dos comportamentos (ethos) dos sujeitos.

Retomando a discussão acerca da institucionalização da anomia da sociedade atual, tem-se a eticidade ameaçada pela perda nas condições intersubjetivas para a autorrealização do sujeito. Assim, a eticidade deveria buscar determinações “tão formais ou abstratas que não despertam ... expor meras sedimentações de interpretações concretas da vida boa, ... precisam ser também, no plano material ou do conteúdo, tão repletas que, com base nelas, é possível vir a saber mais acerca das condições da autorrealização do que nos é dado com a referência” (p. 272). Dessa forma, a eticidade perde-se dos seus propósitos e deixa desprendidos os sujeitos na busca pela autorrealização, uma vez que a “vida boa” cede seu espaço para as demandas do sistema e sua mercantilização dos objetos, das pessoas e das relações. A sociedade moderna tem se distanciado dos princípios morais universais e tem se deixado dominar pela anomia que, pautando todas as relações humanas, não permite outra alternativa aos sujeitos que não o adoecimento e o assujeitamento. Em outras palavras, “quando essa estrutura normativa se encontra perturbada ou desorganizada, a conduta individual igualmente sofre perturbações: o indivíduo se perde no vazio sem sentido” (Meireles, 2001Meireles, M. (2001). Anomia. São Paulo: Casa do Psicólogo., p. 79).

Que caminhos restam ao homem na atualidade? Como dar conta da alteridade, caracterizada pela instabilidade e arbitrariedade, na construção da própria identidade? O que significa hoje estabelecer um estar-no-mundo marcado pelo diálogo ativo em busca da autonomia e da consciência?

A anomia social, somada à crescente mercantilização e instrumentalidade do mundo, aponta para a necessidade de fortalecimento das identidades sociais. Isso porque diante da construção das narrativas de vida, muitas vezes entrecortada por demandas arbitrárias e instáveis do sistema-mundo capitalista, o homem deve ser capaz de manter seu ethos, sua identidade e portanto sua integridade preservada. A Odisseia, de Ulisses, retratada por Homero, ilustra bem o movimento aqui assinalado, ou seja, a descoberta do mundo através do traçado (diálogo) próprio em que o homem é memória e ao mesmo tempo é fronteira (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG.).

O homem é memória enquanto recompõe e reativa a própria identidade diante do novo. Esse homem tem seu ethos preservado diante das demandas do mundo, pois é capaz de retornar ao familiar e ao que lhe é próprio. O homem é também fronteira enquanto se desloca, é móvel, e portanto encontra-se nos limites do estar dentro e do estar fora. Esse homem questiona, reflete e avalia a si próprio e ao outro. É assim, no confronto da fronteira eu-outro, que o homem reconhece a si mesmo, é diante da alteridade permitir-se, “interrogar-se, afirmar-se, atribuir-se ... até duvidar de si mesmo, mas sempre mantendo a posição de mestres do jogo” (Hartog, 2004Hartog, F. (2004). Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG., p. 17), é manter-se na posição de sujeito-autor, de possuidor das competências necessárias para o estabelecimento de um diálogo e de uma trajetória que lhe é própria na construção da sua narrativa de vida. Sustentabilidade é, desta forma, o resultado deste diálogo eu-mundo e da construção de identidades pessoais, constituídas a partir de um processo de reflexão, do reconhecer-se a si próprio e aos demais como um e também como outro, como em uma tese e sua antítese, cuja existência de uma é condicionada à existência da outra.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2016
  • Revisado
    23 Dez 2016
  • Aceito
    21 Jun 2017
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