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A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA EM TRANSFORMAÇÃO: CINQUENTA ANOS NA REVISTA FAMÍLIA CRISTÃ

REPRESENTACIÓN SOCIAL DE LA FAMILIA EN TRANFORMACIÓN: CINCUENTA AÑOS EN LA REVISTA FAMÍLIA CRISTÃ

Resumo

Este artigo aborda o processo de transformação da representação social da família veiculada na Revista Família Cristã entre 1962 e 2011. Foi realizada análise lexical de 323 artigos, selecionados em 100 exemplares. A discussão foi pautada em construtos como influência social, ideologia e representações sociais. A ideologia cristã católica fundamenta o discurso da revista, mas a representação é moldada em função das mudanças sócio-históricas e da influência de diversos saberes e instituições, gerando múltiplos sentidos: a família patriarcal como responsabilidade da mulher mãe abnegada; as famílias diversificadas e estruturadas em situação de violência e miséria; a família educadora que deve submeter-se à ciência; a família cristã que deve seguir normas e práticas da igreja e, finalmente, a família em crise por afastar-se dos valores religiosos. A revista vai modificando seu discurso sobre a família com vistas à manutenção de seu poder de influência e propagação de valores católicos.

Palavras-chave:
Representação social; Família; Sociogênese; Influência social

Resumen

Este artículo analiza el proceso de transformación de la representación social de la familia difundida en la revista Familia Cristiana entre 1962 y 2011. Se realizó el análisis léxico de 323 artículos, seleccionados en 100 ediciones. El debate se basó en la influencia social, la ideología y las representaciones sociales. La ideología cristiana católica cimenta el discurso de la revista, pero la representación se forma a la luz de los cambios sociohistóricos y la influencia de los diversos saberes e instituciones: la familia patriarcal como responsabilidad de la madre abnegada; las familias diversificadas y estructuradas en situaciones de violencia y miseria; la familia educadora que debe someterse a la ciencia; la familia cristiana que debe seguir las reglas y prácticas de la Iglesia, y la familia en crisis por apartarse de los valores religiosos. La revista va modificando su discurso sobre la familia con la intención de mantener su poder de influencia y propagación de valores católicos.

Palabras-clave:
Representación social; Familia; Sociogénesis; Influencia social

Abstract

This article discusses the transformation process of the social representation of family related to Família Cristã magazine between 1962 and 2011. A lexical analysis was performed on 323 articles, which were selected among 100 editions. This study is based on the constructs of social influence, ideology, and social representation. Catholic Christian ideology underlies this magazine's discourse, however, the family representation is shaped by socio-historical changes as well as influenced by different kinds of knowledge and institutions. Thereby, different meanings are produced: the patriarchal family as a selfless woman's responsibility; the families that are diverse and maintained through violence and misery; the educating family that must be subordinated to science; the Christian family that must follow the Church’s rules and practices; and finally, the family in crisis due to their diverted path from religious values. Over time, the magazine has changed its discourse about family in order to maintain its power of influence and transmission of Catholic values.

Keywords:
Social Representation; Family; Sociogenesis; Social influence

Introdução

A família é um tema polêmico e polissêmico, um objeto antigo, mas que se encontra em constante revisão, de modo que nos deparamos com múltiplos discursos divergentes sobre a temática. Atualmente, propõe-se uma reestruturação da família, explicada pela redução da desigualdade entre os membros e a legitimação das múltiplas configurações existentes. Por outro lado, as mudanças são entendidas como uma crise da família que justifica toda a sorte de mazelas psicológicas e sociais. Essas concepções são construídas em meio a um amálgama social de sentidos e instituições e possuem uma história. Na cultura brasileira, a ideologia cristã da igreja católica é umas das matrizes simbólicas mais importantes no que se refere à construção social do objeto família. Questionamos, portanto, como são construídas historicamente as representações sociais da família veiculadas pela igreja católica.

O presente trabalho teve como objetivo estudar as Representações Sociais (este texto RS) de família,veiculadas entre 1962 e 2011 na Revista Família Cristã (RFC). Realizou-se uma abordagem sociogenética ao analisar as variações do conteúdo e os processos envolvidos na gênese da representação numa perspectiva temporal, considerando o diálogo com mudanças macrossociais. Este não se pretende um estudo sobre as ideias correntes na sociedade, nem mesmo na Igreja, ou entre todo o público leitor nas cinco décadas estudadas, mas se resume à análise do discurso de uma revista produzida por um determinado grupo com objetivos específicos.

A RFC tem sua origem na Itália em 1915 e é publicada no Brasil pela Congregação das Irmãs Paulinas Comunicadoras do Evangelho desde 1934. É a única revista sobre e para a família com mais de meio século de circulação e que manteve certa homogeneidade: sempre foi publicada mensalmente pela mesma instituição, teve como público-alvo a mulher e o objetivo de evangelizar e orientar condutas no interior dos lares brasileiros. Abordar um veículo de popularização do discurso católico possibilita compreender como se deram as transformações neste discurso na busca por manter sua influência.

Buscamos as matrizes simbólicas da produção da RS de família por meio da ancoragem, abordando os processos de influência e mudança social, juntamente com a noção de ideologia. A representação social é aqui entendida como um ponto móvel em um sistema de transformações derivado de relações intergrupais e interinstitucionais e dos processos de produção e renovação da cultura (Jovchelovitch, 2011Jovchelovitch, S. (2011). Representações sociais e polifasia cognitiva: notas sobre pluralidade e a sabedoria da razão em Psicanálise sua Imagem e seu Público. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das Representações Sociais, 50 anos (pp. 159-176). Brasília, DF: Technopolitik. ). Para abordar como a RS da família se transforma no diálogo entre diferentes grupos/discursos ao longo do tempo, tomamos como referência o estudo de Moscovici (1979/2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .) sobre influência e mudança social.

Com a Teoria das Minorias Ativas, Moscovici (1979/2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .) ampliou a compreensão de como o processo de influência permeia a gênese histórica de uma RS, a qual resulta de negociações passadas e presentes entre indivíduos e grupos. Desse modo, a mudança e o controle são objetivos da influência social e cada membro do grupo é sua fonte e seu receptor potencial. Assim, além da conformidade, existem outras modalidades de influência, como a normatização e a inovação. Na normatização, a influência recíproca e a necessidade de evitar o conflito levam os grupos a fazer concessões mútuas e a formular ou acolher compromissos ou normas aceitáveis por todos. Já a inovação resulta da ação de uma minoria, ou se dá quando os líderes impõem novos comportamentos aos seus adeptos. A influência é associada à noção de conflito ou ausência de consenso na medida em que a inovação emerge do dissenso (Moscovici, 1979/2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .).

Para entender como o discurso estudado se organiza imerso nos processos de influência recíproca com outros discursos e instituições, utilizamos o conceito de ideologia na perspectiva de Geertz (1989Geertz, C. (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.) e buscamos sua relação com a Teoria das Representações Sociais. Ideologias seriam fontes extrínsecas de informações que padronizam mecanismos de compreensão, julgamento e manipulação do mundo e fornecem um gabarito para a organização dos processos sociais e psicológicos, servindo como matriz para a criação da consciência coletiva. Assim como as RS, a ideologia seria uma modalidade de pensamento social que depende da cultura acumulada e que desempenha funções na interpretação e na construção da realidade social. Apesar de intimamente relacionados, RS e ideologia seriam conceitos distintos. Enquanto as RS se referem aos determinantes simbólicos, a um objeto particular e a agentes específicos, as ideologias abarcam os determinantes socioestruturais e materiais e possuem um caráter de generalidade. As RS atuariam como textos e as ideologias seriam os códigos que compõem esses textos, atuando como dispositivo gerador de juízos. Desse modo, as RS podem modificar elementos ideológicos que contribuíram para sua própria formação (Ibáñez, 1988Ibañez, T. (1988). Ideologias de la vida cotidiana. Barcelona, ESP: Sendai.).

Método

Amostra documental e procedimentos de coleta

Foi selecionado um exemplar da RFC por semestre entre os anos 1962 e 2011, totalizando 100 exemplares de todos os meses distribuídos equitativamente. Cada exemplar foi lido na íntegra e foram selecionados os artigos que abordavam os seguintes aspectos sobre a família: educação dos filhos; relacionamento intrafamiliar; dados sociológicos e legais; eventos, rituais e cursos sobre família; conselhos e reflexões sobre as funções e a importância da família; além das sessões Confie-me seus Problemas e Carta do mês. Dessa forma, selecionaram-se em média 6,6 artigos por ano, totalizando um corpus textual de 323 artigos.

Procedimentos de Análise

Foi realizada uma análise lexical com ajuda do software Alceste (Analyse Lexicale par Contexte d’un Ensemble de Texte). O trabalho realizado pelo Alceste (Reinert, 1986Reinert, M. (1986). Un Logiciel d’analyse lexicale: ALCESTE. Les Cahiers de l’analyse des Données,11(4), 471-484.) consiste em investigar a distribuição do vocabulário em um texto a partir de análises estatísticas sofisticadas, as quais possibilitam a organização do corpus por meio de sua partição e agrupamento em classes. Inicialmente o software decompõe “cada texto - ou Unidade de Contexto Inicial (UCI) -, em segmentos de texto (ST) - ou Unidade de Contexto Elementar (no texto UCE) -, considerando o duplo critério de pontuação e tamanho do trecho” (Sousa, 2018, p. 84Sousa, Y. S. O. (2018). Drogas e normalização: uma análise psicossocial desde a perspectiva das Representações Sociais. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.). Em seguida, como destaca ainda Sousa, a partir da construção de uma matriz de contingência com todas as UCEs, o programa realiza uma Classificação Hierárquica Descendente, agrupando as UCEs em classes homogêneas, descritas a partir das ocorrências de palavras e das variáveis de caracterização. Nessa etapa, o programa realiza a Análise Fatorial de Correspondência. Por fim, identifica “os segmentos de texto mais característicos de cada classe, o que torna possível - e mesmo fundamental - resgatar os contextos de enunciação em que são atualizados os vocabulários típicos das classes” (Sousa, 2018, p. 85Sousa, Y. S. O. (2018). Drogas e normalização: uma análise psicossocial desde a perspectiva das Representações Sociais. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.).

A ideia subjacente é que diferentes classes de palavras representam diferentes formas de discurso sobre o tema. Essas classes foram submetidas a uma análise semântica de modo a contextualizá-las e interpretá-las (Kronberger & Wagner, 2002Kronberger, N. & Wagner, W. (2002). Palavras-chave em contexto: análise estatísticas de textos. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático (pp. 416-441). Petrópolis/RJ: Vozes. ). Neste caso, a variável década de produção do artigo permitiu realizar uma análise das transformações do discurso ao longo do período pesquisado, de modo a compreender a ancoragem destas variações na história do Brasil, da Igreja e da revista.

Resultados e Discussão

O corpus total foi analisado divido em 2 grandes eixos subdividos em 5 classes, conforme pode ser observado na Figura 1.

Figura 1:
Classificação Hierárquica Descente do corpus total

O Eixo 1 explica 63% da variância total do corpus e foi intitulado O discurso sobre/da família: prescrições e práticas. Esse foi dividido em três classes que abordam: as prescrições da ideologia cristã sobre a família; o discurso da família sobre suas práticas; e as prescrições da ciência sobre a família.O Eixo 2, que explica 37% da variância do corpus, foi intitulado As Instituições que (in)formam a família e foi dividido em duas classes que abordam a materialização da ideologia cristã nos dispositivos da Igreja e a noção de crise e sua relação com outras instituições sociais.

A Classe 1/Eixo1 foi intitulada Deus criou o homem com a cabeça acima do coração. Esta corresponde a 12% do corpus e 530 UCEs e refere-se às prescrições cristãs sobre a família. A ideia subjacente é que para se construir uma vida com amor mútuo, felicidade e paz é preciso perdoar e agradar o marido, controlar os impulsos, os desejos e as emoções. A oração ajuda a manter Deus no coração para enfrentar o pecado da carne, com sacrifício e sem desânimo, pois é preciso enxugar as lágrimas e manter sempre a esperança e a alegria.

A mulher-mãe-esposa, construída dentro dos preceitos religiosos-cristãos, pressupõe a renúncia do seu próprio prazer em nome do homem e da família e sua única realização é o casamento. Naturaliza-se a noção de que o homem e a mulher se completam e foram feitos para viver juntos, num ideal de amor casto e submisso a Deus, que não deve ser permeado pela paixão carnal, fonte de desejos e prazer. A razão deve sempre estar acima dos desejos e emoções. Observa-se um discurso normativo, servindo como uma espécie de receita para uma boa vida em família, com foco no casal:

A mulher espera que seu marido lhe perdoe as pequenas tragédias, tais como uma refeição queimada, uma camisa sem botões; com essa delicadeza feita de sorrisos ela aprende melhor a lição do que se fosse uma cena lamentável. (1970)

Quem esqueceu a dimensão da fé, do sagrado, num encontro de homem e mulher entrou no bonde errado que rumou à paixão e ao prazer intenso, mas nem sempre levou ao amor ternura, ao encontro ágape de comunhão na alegria e na dor. (1985)

A Classe 2/ Eixo 1, nomeada Entre a ciência e a religião, a família se constrói em suas práticas, corresponde a 20% do corpus total, com 890 UCEs. É um discurso que remete ao cotidiano vivido pela família e reflete a fala da própria família. Os sujeitos dessas falas relatam suas experiências, muitas vezes diversas das prescrições religiosas ou científicas, revelando a existência de famílias com múltiplas formações e contextos de existência. A família pode ser lugar de amor e cuidado, mas também é um lugar privilegiado de conflitos, sofrimentos e instabilidade. Os conflitos na relação do casal, muitas vezes derivam de discordâncias sobre os sentidos e lugares sociais do masculino e do feminino.

A relação entre pais e filhos é descrita pelo afeto e doação, mas também pelas dificuldades atribuídas a características de personalidade, ou ao conflito de geração. O jovem luta por liberdade de escolha, os pais tentam impor sua autoridade.As falas das crianças revelam uma realidade na qual brincam, mas também trabalham e são vítimas diretas ou indiretas da violência.

O problema é que ele me proíbe tudo. Não posso sair sozinha que ele faz aquele escândalo. Eu não o proíbo de nada, dou-lhe toda liberdade. (1973)

É divertido trabalhar na feira. Também gosto de brincar, de jogar bolinha de gude e de andar de bicicleta. Eu mesmo comprei minha bicicleta com meu dinheiro. (1993)

A polícia bate muito, que nem aconteceu quando levaram meu pai. Só que, nos filmes, os policiais são bonitos e os de verdade não são. (1978)

A Classe 3/ Eixo1 foi definida pela frase: Existem princípios fundamentais de psicologia que os pais não podem ignorar se quiserem o bem de seus filhos e congrega a maior porcentagem do corpus analisado (31%), o que corresponde a 1359 UCEs. Apesar de também trazer um discurso prescritivo, o vocabulário se diferencia nitidamente da Classe 1 ao focar fundamentalmente as prescrições científicas sobre a família. A ideia veiculada é que os adultos precisam compreender a mente e a personalidade em desenvolvimento na infância para modelar suas atitudes e comportamentos no relacionamento com os filhos. Para que a criança se desenvolva em equilíbrio, devem-se evitar cobranças demasiadas, mas os limites são muito importantes, assim como a expressão dos próprios sentimentos. Estes ensinamentos apoiam-se na psicologia, que precisa ser buscada por todos aqueles que desejam ser bons pais.

Evidencia-se a tentativa de convencer os pais de que estes não possuem conhecimentos suficientes a uma boa educação dos filhos, sendo preciso recorrer à ciência dos psicólogos, pedagogos e médicos. Conhecimentos específicos, comportamentos exemplares e desprendimento afetivo sintetizam os esforços hercúleos que os pais precisam fazer para lutar contra um mundo externo ameaçador que se opõe ao são desenvolvimento de seus filhos.

Os pais são bons educadores emocionais, quando capazes de perceber e compreender os sentimentos dos filhos, de tranquilizá-los e guiá-los através das emoções. (1989)

Os homens olham para trás em busca de alguma referência que lhes dê mais segurança quanto à atitude que devem adotar ao lidar com os filhos e o que veem é um modelo anacrônico, totalmente incompatível com o mundo contemporâneo. (2003)

A Classe 4/Eixo2, A Igreja e seus dispositivos, refere-se à instituição Igreja, suas práticas e suas normas, e corresponde a 12% do corpus com 523 UCEs. Nessa classe, é abordado o aparelho ideológico Igreja e seus dispositivos - cartas, encíclicas e documentos, além de rituais e sacramentos - que servem para objetivar, difundir e controlar o discurso ideológico cristão sobre a família e exercer o controle sobre suas práticas.

A campanha antidivorcista, na verdade, foi assumida pelas autoridades da Igreja como uma santa cruzada... Ao povo, pediu que orasse e que fizesse apelos junto aos deputados e senadores, pressionando-os a votarem contra a emenda ao artigo 175 da constituição... A Conferência dos Bispos prometeu rever a praxe de casamento religioso com efeito civil e da exigência do casamento civil como condição para o religioso. (1979)

Os divorciados que contraírem nova união civil não poderão receber a eucaristia, nem ser padrinhos de batismo, crisma ou matrimônio religioso. (1979)

É apresentada uma série de documentos religiosos reguladores das situações familiares, os quais buscam propor uma divisão clara entre o certo e o errado e orientar as práticas nos lares e na Igreja. Esses documentos afirmam a supremacia da lei da Igreja, que transcenderia a dos homens. Encontros internacionais são organizados para difundir os preceitos da Igreja sobre a família, mas também para discuti-los e adaptá-los à luz das mudanças sociais. Num âmbito mais local, as discussões e a difusão da ideologia católica se dão em torno dos grupos de trabalho, pastorais e equipes. Esses grupos, juntamente com os sacramentos e grandes rituais católicos, como o batizado e o matrimônio, são fundamentais para a manutenção e difusão da ideologia e se voltam para o controle da família ao incidir em seus principais momentos de transformação.

A Classe 5/Eixo 2, A família em crise: de quem é culpa?, remete a um discurso de cunho sociológico, político ou jurídico sobre a instituição família, corresponde a 25% do corpus analisado e agrega 1109 UCEs. O discurso sobre a família se desdobra nas análises sobre seus membros atravessadas por temas que configuram relevantes questões sociais: a violência, os meios de comunicação, as políticas públicas, a economia, a sexualidade e a bioética. Considera-se que a influência das diversas instituições sociais - imprensa, escola, direito, ciência - provocou transformações na família que a colocaram numa situação de crise, o que acarretaria inúmeros problemas sociais.

As relações de gênero na família são discutidas principalmente em termos das mudanças no lugar social da mulher: em 1980 aponta-se para o lugar de inferioridade; em 1990, divulgam-se políticas públicas voltadas para as mulheres; em 2000, são propostas reflexões sobre as consequências do aumento da participação feminina na renda familiar.

Outra mudança na família se dá em função do envelhecimento da população brasileira e a constituição de um novo grupo social idoso, com práticas anteriormente não aceitas: ouvir música eletrônica, frequentar academias, vestir roupas juvenis. As políticas públicas, no entanto, não garantiriam a assistência apropriada a esse grupo, bem como não seriam suficientes no que se refere à juventude. O foco recai na associação da juventude com a rebeldia e a violência, considerada fruto de uma nova sociedade sem valores e evidencia-se a preocupação com uma educação que exerça o controle sobre o comportamento sexual.

Eduque as mulheres e imediatamente crescerá o nível humano das massas. Quando, no Brasil, a mulher sair da marginalidade em que é colocada, o país sairá de sua asfixia econômica, social, política e cultural.(1985)

Hoje existem no país 11 milhões de idosos - ou um em cada 16 habitantes. O Brasil já ultrapassou o índice de 7% de pessoas com mais de 60 anos ... Seu número está crescendo, mas os idosos são em geral pessoas mal assistidas pelo poder público e pela família, além de serem discriminados e de estarem inativos, vivendo em condições precárias.(1992)

Não é por acaso que as entidades estudantis estão se esvaziando. Os jovens passaram a substituir a ação política pelas saídas individuais para os problemas. Numa sociedade cada vez mais sem valores, isso significa banditismo e violência. Os atos de violência vêm se tornando hits da juventude urbana. (1990)

As famílias são apresentadas como lugar onde a violência se inicia e se materializa, de modo que é construída uma relação de causalidade entre a crise familiar e a violência social/urbana. Assim, a família atual é culpabilizada pelo aumento da violência, juntamente com a influência da escola e dos meios de comunicação.

Violência, de quem é a culpa? Em termos de formação das crianças, a sociedade dispõe de um tripé, representado de modo especial pela família, escola e meios de comunicação social em particular a televisão. (1977)

Outro aspecto associado às transformações na família é o desenvolvimento das pesquisas na área de genética e as novas tecnologias reprodutivas. O periódico defende que esta evolução científica pode ser nociva à família e à sociedade e aproxima as evoluções na genética da questão do aborto e rejeita ambos em defesa da proteção à vida do feto. Por fim, a condenação da homoafetividade e a crítica à noção social de gênero são abordadas pela RFC, a qual defende a naturalização dos papéis sociais nas diferenças entre os sexos. Na década de 1970, a RFC fazia campanha contra a legalização da chamada homofilia, divulgada como uma doença com possíveis tratamentos.

Quando uma ação científica suprime um ser humano com o pretexto de favorecer um outro ser humano, como ocorre com o descarte de embriões nas técnicas de reprodução assistida, na clonagem e no uso de células-tronco ... isso se chama ciência nazista. (2004)

Legalizar seria dar-lhes os meios para praticar a homofilia. Tal solução redundaria em afronta à lei natural e à sociedade. Quais seriam os meios recomendados para ajudar a curar um irmão vítima do homossexualismo? Limitamo-nos a indicar os seguintes: os hormônios femininos aplicados ao organismo masculino moderam a libido deste. (1970)

Em resumo, esta Classe mostra como os grandes temas polêmicos da atualidade são interpretados como graves problemas que podem perturbar o funcionamento familiar e ao mesmo tempo são considerados resultados das transformações familiares. Os temas discutidos são associados à noção de crise familiar, a qual é considerada a causa e ao mesmo tempo a consequência de uma infinidade de problemas sociais. Essa suposta crise na família vem cada vez mais ocupando as páginas da RFC e as matérias se esforçam para explicar suas diferentes causas: a estrutura social, a organização do trabalho e da educação, a perda de valores tradicionais estruturantes da sociedade, a baixa qualidade dos meios de comunicação e a ausência de políticas públicas.

A análise fatorial de correspondência ajuda a compreender como todas estas classes e eixos e como os saberes, as práticas, os contextos e instituições se articulam para compor a RS da família na RFC. Na análise do plano fatorial (Figura 2), observa-se a oposição entre os dois Eixos descritos acima. Encontramos, no lado direito, o Eixo 1 com discursos prescritivos e as práticas relacionadas à família e, em oposição a este, no lado esquerdo, posiciona-se o Eixo 2, com as instituições que ancoram estes discursos e as reflexões sobre suas influências na família.

Figura 2:
Análise Fatorial de Correspondência: a relação entre as classes

Numa análise norteada pelo eixo vertical, no plano superior temos a Igreja que, com seus dispositivos práticos e legais (Classe 4), produz e difunde as prescrições sobre a família fundamentadas na ideologia cristã (Classe 1), como forma de exercer sua influência sobre os discursos e práticas das famílias (Classe 2). Em oposição a este processo, observamos outros Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), como as escolas, a política e a justiça (Classe 5), que buscam exercer sua influência sobre a família, fornecendo as condições materiais, práticas e legais para a produção do conhecimento científico e prescritivo sobre o objeto (Classe 3). É por meio deste discurso, baseado principalmente na psicologia, que essas instituições almejam exercer sua influência sobre as práticas da família (Classe 2).O que observamos é como as instituições sociais atuam como AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado), pois criam e difundem seus sistemas simbólicos, agindo como fontes de informações que fundamentam as práticas sociais e os modos de compreensão do mundo dos sujeitos na vida cotidiana, legitimando assim as crenças, valores e uma dada forma de organização social.

A oposição entre as Classes evidenciada na Figura 2 denota uma luta histórica entre instituições e saberes com vistas a ampliar o poder de influência sobre a família e, consequentemente, sobre a sociedade como um todo. É a disputa entre a ideologia cristã e a ciência, ou entre a Igreja e o Estado com vistas a atuarem como matriz hegemônica de produção de sentidos e práticas sobre a família. O estudo da sociogênese se constitui como um modo de acessar como esta luta de ideias incide na formação da representação. Por meio deste modelo genético, observaremos a constituição histórica de uma rede de relações instáveis em torno da ideologia católica no que diz respeito à construção do objeto família.

No plano fatorial, verifica-se que cada Classe está relacionada a uma década analisada. O discurso agrupado na Classe 1 foi produzido predominantemente na década entre 1962 e 1971, quando prevalecia na RFC um discurso prescritivo sobre a família que pregava a renúncia e a dedicação da mulher, bem como a aproximação com o divino. Esse foi um momento de grande efervescência na Igreja Católica e um dos períodos de maior tiragem da revista - chegando a 130 mil exemplares. Como reação à crescente perda de fiéis no mundo todo, a Santa Sé realizou entre os anos 1962 e 1965 o Concílio Vaticano II, que objetivava modernizar a Igreja adaptando-a ao mundo ocidental, mas sem perder sua tradição. Esse processo ficou conhecido como aggiornamento. O cenário mundial era afetado pelos movimentos hippie e feminista. No Brasil, se iniciava a ditadura militar e o impulso do capitalismo com alianças internacionais gerava o chamado milagre brasileiro, mas também um aprofundamento das diferenças sociais, do êxodo rural e de lutas sociais.

Quando os militares tomaram o poder em 1964, a Igreja se dividiu política e ideologicamente. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou seu apoio ao golpe, enquanto grupos de religiosos que se opunham a ditadura eram aprisionados e torturados (Löwy, 1991Löwy , M. (1991). Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez.; Santos, Caldana, & Biasoli-Alves, 2001Santos, M. C., Caldana, R. H. L., & Biasoli-Alves, Z. M. M. (2001). O papel do masculino dos anos quarenta aos noventa: transformações no ideário. Paideia (Rib. Preto), 11(21), 57-58.). Nessa mesma época, surgia a “Igreja dos pobres”, a partir de movimentos leigos e estudantis, nos bairros periféricos, nos sindicatos e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as quais se proliferaram, chegando a atrair três milhões de pessoas (Löwy, 1991Löwy , M. (1991). Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez.). Essa parte da Igreja tomou os direitos humanos como referência e desenvolveu maior sentido de justiça social (Azevedo, 2003Azevedo, D. (2003). Desafios Estratégicos da Igreja Católica. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 60, 57-79.).

Apesar de toda essa efervescência, a RFC parece se manter alheia às discussões dos grupos mais progressistas e, assim como a CNBB recomendava, calava-se diante das questões sociais. Até então, a Igreja era uma importante aliada do Estado, e a ideologia cristã era um discurso com enorme poder de influência nas famílias da classe média brasileira. Como importante “aparelho ideológico”, a Igreja volta-se para a família com o objetivo de exercer e alargar sua influência como guia orientador de condutas. Essa fiscaliza e repreende os desvios por meio de práticas como a confissão e a incitação da exclusão social dos desviantes (Althusser, 1985Althusser, L. (1985). Aparelhos ideológicos de Estado.Rio de Janeiro: Graal.; Brown, 1989Brown, P. (1989). Antiguidade Tardia. In P. Veyne (Org.), História da Vida Privada, 1: do Império Romano ao ano mil (pp. 213-287). São Paulo: Companhia das Letras.; Costa, 2004Costa, J. F. (1979/2004). Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal .). Dessa forma, a alta hierarquia da Igreja se constitui como um grupo de controle, que busca a cristalização das normas e o exercício da força dominante, e sua influência é exercida com vistas à conformidade. A estratégia da RFC era particularizar os desvios que revelavam problemas sociais, evitando a emergência de conflitos que poderiam incitar mudanças nas normas. Assim, a igreja reduzia os movimentos que tomavam força dentro e fora dela, reafirmando seus princípios.

O período predominantemente encontrado na Classe 2 é a década de 1972 a 1981, ainda que estatisticamente não significativa. Na década de 1970, os movimentos progressistas ganham mais força no interior da Igreja e a ditadura reforça sua repressão por meios violentos, forçando a instituição a reagir. Em 1970, Dom Paulo Evaristo Arns assume o prelado da arquidiocese de São Paulo e a CNBB se coloca oficialmente contra a ditadura. Assim, a Igreja se torna um símbolo de resistência, entrando numa dinâmica de conflito com o Estado. Contrariando o Vaticano, o catolicismo brasileiro passa a criticar o sistema capitalista e a denunciar a desigualdade social e os casos de tortura e assassinato realizados pelas forças policiais. Surge a Teologia da Libertação questionando o modelo de salvação individual e defendendo que a redenção deve se realizar na construção do homem por ele mesmo em meio à luta política e histórica (Löwy, 1991Löwy , M. (1991). Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez.).

Todo este movimento gera profundas mudanças nas páginas da RFC, a qual passou a ser impressa pela Editora Abril e ampliou sua equipe de redatores. As primeiras “irmãs” com curso de jornalismo assumiram a direção, dando um caráter mais jornalístico às matérias, trazendo conteúdos da realidade brasileira e aproximando a publicação de uma revista de variedades. Buscou-se a formação de uma consciência política cristã, de modo que a evangelização passou a se confundir com denúncia e participação social (Puntel, 1984Puntel, J. T. (1984). Família cristã: caminhos e respostas. Família Cristã, 50(577), 48-58.). Esse fato explica a drástica queda no número de matérias voltadas para o tema da família nessa década, com a produção de 41 artigos, em detrimento dos 77 no período anterior. Essas mudanças parecem repercutir positivamente, e a RFC chega a uma tiragem de 205 mil.

Nesse momento, o discurso sobre como agradar o marido e educar os filhos dá lugar aos problemas sociais e econômicos enfrentados no país. As matérias sobre a família passam a focar em relatos pessoais que evidenciam problemas sociais: a miséria, as drogas e a violência. O desvio da norma deixa de ser tratado como exceção individual para se tornar a denúncia de um grupo. Estas repercussões na revista e na postura da cúpula da Igreja brasileira constituem um exemplo de mudança social a partir do processo de inovação provocado por uma minoria ativa (Moscovici, 1979/2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .). Toda a Igreja se vê influenciada por um grupo que inicialmente era ignorado ou excluído como minoria desviante. Movimento de crítica consciente contra a Igreja e o Estado, a Teologia da Libertação forma uma minoria nômica, pois assumia uma agenda de luta consciente, provocando o conflito e possibilitando mudança.

Por meio de processos de negociação com persuasão e concessões mútuas, a Igreja se viu impelida a reformular algumas normas, acolheu a luta pela igualdade social e se posicionou contra a violência praticada pela ditadura. No entanto, os grupos progressistas abriram mão de adentrarem temas relativos ao universo do privado, de forma que os teólogos da libertação são criticados por terem ignorado questões como o divórcio, o aborto e a contracepção (Löwy, 1991Löwy , M. (1991). Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez.). Essas questões também ficaram ausentes na RFC, mas observa-se uma abertura em direção a relações mais igualitárias de gênero.

A Classe 3 possui como variável típica a década que vai de 1982 a 1991. Nesse momento, o Vaticano reage mais enfaticamente e pressiona a Igreja Brasileira visando a reduzir as influências dos movimentos progressistas, de modo que em 1984 a Teologia da Libertação foi considerada oficialmente uma heresia. No entanto, a força do movimento obrigou o Vaticano a legitimá-lo. O que foi feito sob a estratégia de manter pressão sobre os bispos progressistas e nomear sistematicamente os mais conservadores, além de espiritualizar os temas, despojando-o de seu conteúdo social. Dessa forma, conseguiu-se a marginalização das correntes mais radicais e o reestabelecimento do controle.

Este abrandamento dos movimentos sociais se reflete claramente na RFC. Apesar de manter certa abertura aos problemas políticos e sociais, os temas voltados para a família ganham um novo impulso, e o número de artigos selecionados passa de 41 para 67. Nesse momento, a Igreja já vivenciava a crise que vem se agravando com a diminuição da prática do catolicismo e a proliferação da indiferença religiosa e dos movimentos protestantes. Nesse momento, a psicologia e a psicanálise despontavam no Brasil. A Igreja, então, adota a estratégia de se abrir para o diálogo com a ciência. Dessa forma, na década de 1980 a RFC utiliza o discurso psicológico como meio de manter os leitores e continuar difundindo suas ideias. Assim, o foco no sujeito individual e na saúde emocional fundamentada numa moralidade individualista e hedonista ganha ênfase (Caldana & Biasoli-Alves, 1993Caldana, R. H. L. & Biasoli-Alves, Z. M. M. (1993). Educação de crianças: ideias numa revista católica brasileira (1935 a 1988). Paideia, 4, 37-44.). Esta apropriação da psicologia pela revista, numa época de decadência do poder de influência da Igreja e ascendência da ciência, ilustra o processo de normatização (Moscovici, 2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .).

A Igreja percebe que para se manter como um saber influente, precisava se aliar à psicologia e utilizá-la para confirmar e justificar seus princípios. Então o discurso cientifico é apropriado pela RFC, formando um sincretismo entre os preceitos da fé e da ciência moderna. A família busca ser salva e ao mesmo tempo se tornar menos patológica; ela reza por perdão e salvação tanto quanto busca orientação profissional para salvar seus membros de seus próprios malefícios. Este processo de “cientificização” que implica a coexistência dinâmica de diferentes saberes, referências e modos de pensamento, muitas vezes contraditórios, é denominado de Polifasia Cognitiva (Moscovici, 1961/2012Moscovici, S. (1961/2012). A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis/RJ: Vozes . ). A RFC utiliza de duas matrizes diferentes de pensamento - a religião e a ciência - na tentativa de manter sua influência como filtro de compreensão da realidade.

A estratégia foi, então, convidar os psicólogos a preencher as páginas da RFC, criando o que podemos chamar de uma “psicologia católica” ou um “catolicismo psicológico”. Observa-se, portanto, uma influência recíproca em que são feitas concessões mútuas de modo a asfixiar alguns aspectos das teorias psicológicas que gerariam conflito e poderiam acirrar ainda mais a perda de influência da Igreja, ao passo que esta torna seu discurso mais aceitável para a sociedade cientificista da época. Vemos, então, no processo de normatização, a influência mútua em que ambos se modificam, evitando o conflito e ampliando seu poder de influência.

Para não se perder nos discursos alheios, a Igreja precisa reafirmar sua importância por meio da proclamação de suas leis e rituais. Observa-se, portanto, na década seguinte, o reforço de um discurso que afirma a importância de pertencer e participar ativamente da Instituição Igreja por meio da divulgação de seus dispositivos práticos e legais. Esse discurso encontra-se agrupado na Classe 4, que tem a década 1992 a 2001 como variável típica. Nesse período, a RFC continua usando o discurso científico com a função de reafirmar a ideologia cristã e de reforçar a Instituição Igreja e suas práticas.O principal foco da revista nessa década não é divulgar os valores da ideologia cristã, mas atrair as pessoas para o interior da instituição, fazer com que elas participem de suas práticas e conheçam suas leis, pois a difusão da ideologia depende da existência de um aparelho material que a sustente.

Atesta-se, portanto, uma reaproximação do texto da RFC com a Instituição do Vaticano e uma tentativa de valorização da ideologia cristã por meio da incitação de uma participação mais efetiva e ativa dos leigos nos rituais e práticas católicas. Este movimento, somado à perda de fiéis e de influência, acarreta um forte declínio no consumo da RFC, passando de 217 mil assinantes em 1980 a uma tiragem média de 165 mil em 1990.

Considerando que a ideologia tem uma existência material, objetivada nos AIEs, o que observamos nesta Classe é a existência material da ideologia cristã (Althusser, 1985Althusser, L. (1985). Aparelhos ideológicos de Estado.Rio de Janeiro: Graal.). Essa Classe, então, revela quais são os mecanismos do “aparelho igreja” para construir, adaptar e divulgar sua ideologia de forma a manter-se exercendo influência sobre os pensamentos e práticas da população. As tensões entre Igreja, Estado e Ciência, entre as chamadas “Leis de Deus” e “Lei dos Homens”, se fazem presentes no discurso da RFC. Nesse jogo de forças em constante transformação, a Igreja lança suas estratégias para manter sua influência e divulga documentos que servem como códigos legais e orientam estratégias e práticas que os setores locais deverão desenvolver. Ao negar a natureza negociada e flexível de suas normas, afirmando-as como provenientes do divino, e não passíveis de questionamento pelos homens, a Igreja opera exercendo a pressão para o consenso por meio da norma de objetividade com o fornecimento de um modelo visando à conformidade (Moscovici, 1979/2011Moscovici, S. (1979/2011). Psicologia das Minorias Ativas. Petrópolis/RJ: Vozes .).

Para além dos códigos, é por meio de práticas como os sacramentos, os cursos de formação e os encontros de grupos específicos que a ideologia sobrevive e se coloca como um código interpretativo gerador de juízos. Mas este movimento não se dá sem tensão, há conflitos entre setores da Igreja e entre ela e os outros AIE, que impulsionam mudanças sociais a serem administradas pela Igreja, seja na forma de resistência ou de adaptação. Ao analisarmos os dados descritos na Classe 5, deparamo-nos com a expressão na RFC da reação da Igreja às transformações sociais e sua relação com os demais “aparelhos ideológicos” de Estado: político, jurídico, escolar, de informação e familiar. A Igreja, como qualquer outra instituição, está sempre em debate com outros setores da sociedade, envolvida em um permanente processo de negociação com vistas a manter ou expandir sua influência social. O período típico desta Classe situa-se entre e 2002 e 2011. Neste momento, a Igreja substitui seu maior líder, posto que em 2005 morre o Papa João Paulo II e assume o Papa Bento XVI, conhecido por seus posicionamentos ainda mais conservadores que o primeiro.

Na RFC, observa-se um período de maior foco nas questões sobre a família (79 artigos) e a intensificação do movimento de valorização da Igreja em detrimento de outras instituições. A RFC assume um vocabulário de cunho mais sociológico nas análises sobre as transformações na família e defende que esta estaria vivenciando uma crise que se refletiria na desestruturação dos valores sociais. Esse processo vem acompanhar o agravamento da crise do catolicismo nas últimas décadas. No Brasil, dados do IBGE demonstram o processo de pentecostalização: em 1950, 93,5% da população se declarava católica apostólica romana e 3,4% eram evangélicos. Em 2000, 73% declararam-se católicos e 15,4% evangélicos (Azevedo, 2003Azevedo, D. (2003). Desafios Estratégicos da Igreja Católica. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 60, 57-79.). Esses números ajudam a compreender o declínio em relação à venda da RFC a partir da década de 1980, atingindo uma tiragem total de 70 mil exemplares em 2004.

Os AIE estão sempre em conflito de posições, num jogo de lutas por poder que varia com o tempo. Na Idade Média, a Igreja acumulava as funções culturais, escolares e de informação. Ao longo dos séculos esta instituição foi perdendo poder e o AIE que assumiu posição dominante nas formações capitalistas foi a escola, que é comandada pelo Estado. Assim, na formação das mentalidades, o par Igreja-Família é substituído pelo par Escola-Família, posto que cabe à escola transmitir às crianças os saberes dominantes. A família continua possuindo grande importância no sistema, sendo um dos AIE dominantes, pois ela intervém na reprodução material da força de trabalho e assume sua função socializadora e agregadora sendo, portanto, promotora da ordem social (Althusser, 1985Althusser, L. (1985). Aparelhos ideológicos de Estado.Rio de Janeiro: Graal.). Apesar de dominante, a família é um aparelho difuso, sem uma estruturação organizacional estável como os outros. Isso justifica porque ela se torna alvo privilegiado da influência dos demais AIE.

Diferentes instituições sociais trabalham no projeto de (in)formar a família: o Estado produz políticas públicas focadas nessa instituição, constrói leis que integram e promovem mudanças sobre esse grupo; a universidade produz saberes científicos para dissecar e influenciar a família; os meios de comunicação popularizam estas leis, saberes e políticas da forma que lhes convém. A Igreja não é diferente e, por meio de suas práticas e normas, inclusive por meio da RFC, também se esforça para manter a influência sobre a família.

No discurso da RFC algumas transformações sociais, como a emancipação econômica da mulher, são absorvidas e adaptadas com mais facilidade e rapidez, enquanto outras, como a aceitação do aborto e das relações homoafetivas, continuam enfrentando duro combate, pois contrastam mais com a ideologia católica e não são unânimes na sociedade a ponto de pressionar a instituição para a mudança. Uma das formas de manter a tradição é propagar a mensagem que determinadas mudanças sociais são danosas, pois provocariam a crise da família e sua possível extinção. Na RFC, a perda de valores e referenciais é enfatizada como uma das principais causas da crise familiar. Isso é uma forma de retroalimentar o poder da Igreja na medida em que os valores e referenciais supostamente perdidos seriam justamente aqueles provenientes da “Ideologia” dessa instituição. Seguindo este raciocínio, a solução para a crise seria, portanto, o retorno da “Ideologia Católica” como matriz hegemônica do pensamento e comportamento social. Só isso seria capaz de salvar a família e, consequentemente, a sociedade.

A crise serve, portanto, para evidenciar de modo combativo a importância dos valores religiosos na sociedade e anunciar que a influência das outras instituições constitui um mal social. Os meios de comunicação, a política, as leis e a educação são então desqualificados e a salvação para eles estaria em voltarem a ser influenciados pela instituição que outrora lhes regulou, a Igreja. A família também é desqualificada sob o argumento de que não consegue se autogerir e educar seus filhos de forma saudável e seus costumes e configurações atuais são combatidos e considerados patogênicos ou pecaminosos. Por outro lado, a mesma Igreja glorifica a família, anunciando-a como principal núcleo responsável pelo bem-estar social. Evidencia-se, assim, que essa instituição tão fundamental está em crise e precisa de cuidado e tutela. Dessa forma, a crise é utilizada pela Igreja para que ela se coloque como salvadora da família e da sociedade, ampliando seu poder de influência.

A RFC, então, aproveita a culpabilização que vem sendo imposta à família, por meio da noção de crise, para afirmar as consequências nefastas do processo de secularização dos costumes e da substituição da religião pela ciência como saber norteador de condutas. Em resumo, a lógica subjacente é que a família e, consequentemente, a sociedade, está em crise porque se afastou da Igreja e ela só poderá recuperar a estabilidade e o bem-estar se voltar a ser dominada pela Ideologia Católica. Conclui-se, portanto, que a crise da família é um discurso útil para a Igreja reforçar sua importância perante vários setores da sociedade, visando conquistar fiéis e ampliar seu poder e influência social.

Conclusão

Este estudo evidencia a relação entre saber, contexto e comunicação e demonstra como, em um único discurso, coexiste uma pluralidade de vozes que compõem a tessitura do saber em meio a processos de transformação e influência (Jovchelovitch, 2011Jovchelovitch, S. (2011). Representações sociais e polifasia cognitiva: notas sobre pluralidade e a sabedoria da razão em Psicanálise sua Imagem e seu Público. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das Representações Sociais, 50 anos (pp. 159-176). Brasília, DF: Technopolitik. ). Com isso, observamos a natureza polifásica da representação social da família que envolve, em diferentes dosagens, distintos saberes que se articulam para dar sentido à família e, principalmente, para informar o que ela deve ser. Abordamos a gênese da RS no nível intergrupal ou ideológico proposto por Doise (2002Doise, W. (2002). Da psicologia social à psicologia societal. Psicologia: Teoria. e Pesquisa, 18(1), 27-35.) na medida em que demonstramos como a RS da família é um sistema simbólico em constante movimento, gerado em um amplo contexto de relações intergrupais dinâmicas envolvidas em jogos de poder. Contribuímos para esclarecer o processo sociogenético na medida em que recompomos a história da representação social da família na RFC ao abordá-la em meio a complexas redes instáveis de práticas,valores, ideologias, crenças e normas que vão ganhando novas configurações ao longo do tempo.

Nesta dinâmica, as ideologias operam como determinantes socioestruturais gerais, como matriz simbólica que compõe o metassistema da representação social. Esse constituído de regulações sociais normativas que controlam, verificam e dirigem as operações cognitivas envolvidas na construção da representação com vistas a obter coerência social (Doise, 2001Doise, W. (2001). Cognições e representações sociais a abordagem genética. In D. Jodelet (Org.), As Representações sociais (pp. 301-320). Rio de Janeiro: EdUERJ. ). Como primeira instituição socializadora, a família assume a função de mediação entre o indivíduo e a coletividade ou o Estado, e constitui um lócus privilegiado de construção e propagação de representações sociais. Por isso, a família é alvo do controle social, e a RFC busca propagar a ideologia cristã com o objetivo de torná-la influente de modo a operar como metassistema na construção das representações sociais da/pela família.

O estudo das RS a partir dos meios de comunicação de massa ao longo de um período de tempo permite a análise da dinâmica social que faz emergir transformações e resistências, o modo como essas mudanças vão sendo ressignificadas e reapropriadas. Este estudo focalizou uma revista de orientação católica, uma das religiões predominantes no país. Entretanto, a análise de outras mídias, com orientações religiosas e politicas diversas poderiam trazer mais elementos para se pensar tanto o objeto família quanto a sociogênese das RS.

Referências

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  • Consentimento de uso de imagem (Consent for image use): Não se aplica (Does not apply)
  • Aprovação, ética e consentimento (Approval, ethics and consent): Não se aplica (Does not apply)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Revisado
    17 Dez 2018
  • Aceito
    16 Mar 2020
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