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Os impasses entre acolhimento institucional e o direito à convivência familiar

Los impases entre el acogimiento institucional y el derecho a la convivencia familiar

The impasses between institutional and the right to family life

Resumos

Este artigo trata do direito à convivência familiar das crianças e adolescentes e discute, à luz da Psicologia Sócio-Histórica, o processo de afirmação das novas concepções de criança, de adolescente e família, na sociedade brasileira, bem como o processo de judicialização das relações familiares. Destaca, entre as medidas protetivas, a de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, expondo as contradições e paradoxos dessa medida quanto à garantia do direito à convivência familiar.

direito à convivência familiar; judicialização; acolhimento institucional


Este artículo trata del derecho a la convivencia familiar de los niños y adolescentes y discute, a la luz de la Psicología Socio-Histórica, el proceso de afirmación de las nuevas concepciones de niño, adolescente y familia en la sociedad brasileña, así como el proceso de judicialización de las relaciones familiares. Destaca, entre las medidas de protección, el acogimiento institucional de los niños y adolescentes, mostrando las contradicciones y paradojas de esa medida en lo que se refiere a garantizar el derecho a la convivencia familiar.

derecho a la convivencia familiar; judicialización; acogimiento institucional


This paper addresses the right children and adolescents have to live as members of their families. Moreover, in the light of Socio-historical Psychology, it discusses the affirmation process regarding new child, adolescent and family concepts in the Brazilian society, as well as the judicialization process involved in family relations. Among protective measures, this paper brings the institutionalization of children and adolescents to the foreground, exposing the contradictions and paradoxes of such measure in regard to family life assurance.

right to family life; judicialization; institutionalization


ARTIGOS

Os impasses entre acolhimento institucional e o direito à convivência familiar

Los impases entre el acogimiento institucional y el derecho a la convivencia familiar

The impasses between institutional and the right to family life

Maria Ignez Costa Moreira

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, Brasil

RESUMO

Este artigo trata do direito à convivência familiar das crianças e adolescentes e discute, à luz da Psicologia Sócio-Histórica, o processo de afirmação das novas concepções de criança, de adolescente e família, na sociedade brasileira, bem como o processo de judicialização das relações familiares. Destaca, entre as medidas protetivas, a de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, expondo as contradições e paradoxos dessa medida quanto à garantia do direito à convivência familiar.

Palavras-chave: direito à convivência familiar; judicialização; acolhimento institucional.

RESUMEN

Este artículo trata del derecho a la convivencia familiar de los niños y adolescentes y discute, a la luz de la Psicología Socio-Histórica, el proceso de afirmación de las nuevas concepciones de niño, adolescente y familia en la sociedad brasileña, así como el proceso de judicialización de las relaciones familiares. Destaca, entre las medidas de protección, el acogimiento institucional de los niños y adolescentes, mostrando las contradicciones y paradojas de esa medida en lo que se refiere a garantizar el derecho a la convivencia familiar.

Palabras clave: derecho a la convivencia familiar; judicialización; acogimiento institucional.

ABSTRACT

This paper addresses the right children and adolescents have to live as members of their families. Moreover, in the light of Socio-historical Psychology, it discusses the affirmation process regarding new child, adolescent and family concepts in the Brazilian society, as well as the judicialization process involved in family relations. Among protective measures, this paper brings the institutionalization of children and adolescents to the foreground, exposing the contradictions and paradoxes of such measure in regard to family life assurance.

Keywords: right to family life; judicialization; institutionalization.

Introdução

Este artigo aborda o direito à convivência familiar das crianças e dos adolescentes preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.609, 1990), e os impasses cotidianos para a sua realização, especialmente quando as crianças e os adolescentes recebem a medida protetiva de acolhimento institucional, o que resulta em sua retirada temporária ou definitiva de suas próprias casas.

Essas reflexões decorrem da experiência de intervenção psicossocial realizada por meio do Núcleo de Pesquisa e Intervenção Família e Infância, composto por professores e alunos de graduação e da pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUC Minas, nas casas de acolhimento institucional filiadas a uma associação religiosa de Belo Horizonte (MG) e são apoiadas nos pressupostos da teoria sócio-histórica. Vygotsky considera que "estudar alguma coisa, historicamente, significa estudá-la no processo de mudança: esse é o requisito básico do método dialético. ... É somente em movimento que um corpo mostra o que é" (Vygotsky, 1999, pp. 85-86). Ao examinarmos o processo de mudança das concepções de família, criança e adolescente, encontramos as contradições e os paradoxos. Percebemos que as transformações e as permanências se manifestam, na constante tensão entre as ações assistencialistas e tutelares historicamente praticadas, e aquelas inovadoras, que pretendem potencializar os recursos materiais e simbólicos das famílias das crianças e dos adolescentes em situação de vulnerabilidade, promovendo-lhes a autonomia e o exercício pleno de sua cidadania.

O cotidiano de aplicação da medida protetiva de acolhimento institucional nos remete à construção dos processos de significação vividos por todos aqueles envolvidos na rede de proteção das crianças e dos adolescentes. Os textos legais, tais como o ECA (Lei n. 8.609, 1990) e as Orientações Técnicas de Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (Conselho Nacional de Assistência Social [CNAS] & Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [Conanda], 2009), têm sido tomados como textos de referência que definem as concepções legais dos direitos das crianças e dos adolescentes e normatizam as práticas cotidianas dos operadores da rede de proteção social. Nesse sentido, podem ser compreendidos na dimensão do significado.

Para Vygotsky (1999), os significados referem-se à cultura, aos valores, às crenças, ideias e pensamentos acordados e decididos nas relações coletivas que se institucionalizam. Lane explica que os significados das palavras "são aqueles cristalizados no dicionário" (Lane, 2000, p. 13). Além disso, os significados são produções históricas. Assim, o significado de criança, adolescente e família se transforma ao longo do tempo, e essa transformação é visível por meio da lente da lógica dialética. Retiramos do nosso vocabulário, ou pelo menos lutamos para retirar, a palavra "menor", utilizada como referência às crianças pobres em "situação irregular", posto que o seu significado não mais expressa a compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A expressão "sujeito de direitos" tornou-se um significado compartilhado, que se originou dos sentidos produzidos e compartilhados pelos movimentos sociais que se organizaram na década de 1980 no Brasil, em torno da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes excluídos.

O conjunto das prescrições contidas nesses documentos, nos discursos que atribuem à criança e ao adolescente a condição identitária de sujeitos de direitos, é interpretado e encarnado na vida cotidiana. Na expressão de Lane (2000), as vivências singulares dos sujeitos confrontam-se com os significados cristalizados e resultam na produção dos sentidos pessoais. E são as experiências pessoais que se confrontam com as normas estabelecidas e revelam as contradições e os paradoxos. Nesse sentido, "crianças e adolescentes, sujeitos de direitos" e "direito à convivência familiar", são significados incorporados, interpretados e transformados. Por esse movimento a história caminha.

Estudar a prática das medidas protetivas de acolhimento institucional implica compreender, em primeiro lugar, que se trata de um processo, de uma história em movimento, e não de um produto acabado. Em segundo lugar, que os sujeitos envolvidos na rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, tanto aqueles responsáveis pela gestão das práticas jurídicas, assistenciais e psicológicas, quanto os destinatários dessas práticas, ou seja, as crianças, os adolescentes e suas famílias, são sujeitos ativos que produzem sentidos pessoais para as suas vivências.

A prescrição do direito à convivência familiar

Passamos da concepção de criança como "menor", preconizada no Código de Menores de 1927, à concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, como afirma o ECA desde 1990. Entre os direitos previstos, está o da convivência familiar.

Ao examinarmos os marcadores jurídicos e os ordenamentos das políticas públicas de atenção às crianças e aos adolescentes no Brasil, percebemos que a família tem ocupado um lugar central nos discursos e nas práticas relativas à promoção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. E, se aproximarmos mais as nossas lentes, veremos que, independentemente da configuração familiar, tal centralidade ainda recai sobre as mulheres, em primeiro lugar sobre as mães, seguidas pelas madrastas, avós, tias e irmãs.

A família é considerada pela Constituição Federal (1988) "a base da sociedade" (art. 226), competindo a ela "assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais" (art. 227). O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.609, 1990) reafirma o papel da família, como elemento basilar para a promoção e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, com o dever de prover-lhes as condições necessárias para o seu desenvolvimento saudável e para o exercício pleno de sua cidadania.

Por outro lado, o Estado deve, nos casos de vulnerabilidade social, prover as famílias das condições necessárias para que elas possam cumprir o seu dever. Nesse sentido, as políticas públicas e os programas sociais integrantes do sistema de proteção social têm colocado a família como agente imprescindível para a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. O sistema de proteção segue também o princípio que considera as crianças e os adolescentes prioridade absoluta nas políticas públicas de assistência, saúde e educação, entre outras.

A convivência familiar é um dos direitos elencados pelo ECA, cujo artigo 19 afirma que "toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária". O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à convivência familiar e comunitária orienta:

No tocante ao direito à convivência familiar e comunitária, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu no artigo 19 que toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária. Em função deste princípio, o ECA estabelece a excepcionalidade e a provisoriedade do Acolhimento Institucional, obrigando que se assegure a "preservação dos vínculos familiares e a integração em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem" (artigos 92 e 100). Nesta hipótese, o ECA estabelece que a colocação em família substituta se dê em definitivo por meio da adoção ou, provisoriamente, via tutela ou guarda (artigos 28 a 32 do ECA), sempre por decisão judicial. (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2006, p. 34)

Quando a família não cumpre o seu dever de proteção dos direitos, ou é a própria agente de violação ou de violência de qualquer natureza contra suas crianças e adolescentes, ela se torna passível de ação judicial. A porta de entrada para o sistema jurídico-assistencial é o Conselho Tutelar, órgão encarregado de receber as denúncias de violação de direitos, maus-tratos e violência e de tomar as providências necessárias para a realização das medidas protetivas.

As oito medidas protetivas previstas pelo ECA, em 1990, foram revistas em 2009, a partir da nova Lei de Adoção (Lei n. 12.010), que acrescentou a medida de "inclusão em programa de acolhimento familiar". Dessa forma, temos hoje um rol de nove medidas protetivas: (a) encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade; (b) orientação, apoio e acompanhamento temporário; (c) matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; (d) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; (e) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; (f) inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; (g) acolhimento institucional; (h) inclusão em programa de acolhimento familiar (medida acrescentada em 2009), e (i) colocação em família substituta. Tais medidas devem ser determinadas pela autoridade competente, o juiz da Infância e da Juventude. O Conselho Tutelar pode encaminhar crianças e adolescentes para uma instituição de acolhimento institucional, mas deve dar ciência de sua ação ao juiz.

As relações familiares entre pais e filhos têm sido alvo da regulação jurídica na perspectiva de garantia e restituição de direitos das crianças e dos adolescentes. Nesse sentido, temos visto a crescente judicialização das relações familiares, ou seja, o discurso jurídico tem se afirmado de forma hegemônica.

A família foi alvo da prática de especialistas, em diversas épocas e contextos. Em uma breve revisão da história da família brasileira, encontraremos, no final do século XIX e começo do século XX, a primazia do discurso higienista, entendido como um conjunto de preceitos que visava à conservação das crianças, à formação de pessoas saudáveis e produtivas, capazes de realizar o projeto de afirmação do Estado brasileiro, em moldes urbanos e não agrários, segundo Costa (1983).

Rauter (1987) mostrará que o discurso higienista produziu a mudança do lugar que a mulher ocupava na família colonial, passando ela a ser responsável pelo cuidado das crianças e pela formação de cidadãos saudáveis.

A mãe higiênica deveria ser principalmente a mãe devotada aos filhos; amorosa, caseira, esse era modelo da mãe geradora de filhos saudáveis. As mães corriam o risco, ao se afastarem deste modelo, de serem criticadas como desnaturadas, uma vez que estariam dando a seus filhos menos do que deveriam. (Rauter, 1987, p. 23)

Em meados dos anos 1970, assistimos à divulgação dos preceitos psicológicos que deveriam ser utilizados pelos pais, para que as relações familiares e as crianças fossem saudáveis. A família regulada pelo discurso "psi", assim como aquela que foi regulada pelo movimento higienista, teve a mãe como aliada. Rauter (1987) considera que a mãe do discurso "psi" deveria favorecer o processo de individuação dos filhos e prepará-los para serem autônomos: "O modelo psi de família vai cuidar de fazer com que se tolerem as diferenças, que se dialogue, que se distribua o poder na família, mas tudo de forma equilibrada e cautelosa" (Rauter, 1987, p. 25).

Os cuidados com a saúde e alimentação, bem como o amparo afetivo, material e moral foram convertidos em direitos das crianças e dos adolescentes, a serem assegurados pelos pais e pelo Estado com prioridade absoluta. As decisões judiciais sobre as crianças e os adolescentes têm sido tomadas em muitos casos por equipes multidisciplinares, das quais os psicólogos fazem parte, demandados a oferecer subsídios psicológicos que amparem as decisões judiciais pelo "melhor interesse da criança". As dificuldades de diversas ordens e graus, encontradas na convivência familiar entre pais e filhos, resultam muitas vezes em violência intrafamiliar, ou em negligência e descuido compreendidos como violação de direitos.

A hegemonia do discurso jurídico nos tempos atuais tem propiciado a judicialização das relações familiares. Segundo Sierra (2004). a judicialização expressa a invasão do direito em áreas antes regidas pela tradição. O ECA, por exemplo, abre espaço para a judicialização das relações entre os pais e os filhos menores de dezoito anos. Se no âmbito das relações familiares cuidar de crianças, adolescentes, idosos e doentes era uma prática tradicional repetida ao longo das gerações, com todos os conflitos e dificuldades inerentes, hoje esse cuidado torna-se uma obrigação legal e, por consequência, o seu descumprimento é passível de punição, uma vez que o descuido torna-se uma violação de direitos.

Não se trata de colocar em dúvida a pertinência do ECA. Evidentemente, em tempos de barbárie e de violação dos direitos, o ECA é um instrumento bem-vindo e necessário à proteção de crianças e adolescentes; devemos , estar atentos aos modos pelos quais esses direitos têm sido convertidos em uma forma de gestão das relações afetivas e familiares, enfim, em uma forma de controle dos cidadãos. A intervenção jurídica não esgota toda a complexidade das relações vividas por numerosas famílias.

Os psicólogos têm sido convocados para integrar as equipes da rede de proteção social e jurídica e, nesse sentido, não podemos deixar de considerar as dimensões afetivas das relações, sem, evidentemente, reduzir a problemática das famílias à dimensão psicologizante, pois não se trata de substituir um discurso totalizante por outro. No entanto, a dimensão psicológica e afetiva não pode ser negligenciada.

As famílias têm sido advertidas para que cuidem e protejam suas crianças e seus adolescentes. A etimologia da palavra "cuidado" afirma os aspectos afetivos das relações. Essa palavra vem do latim coera (conforme nos ensinam os dicionários de etimologia) e era utilizada no contexto das relações de amor e amizade, para expressar a atitude de desvelo e preocupação pela pessoa amada. A palavra "cuidado" também deriva de cogitare cogitatus, que significa mostrar interesse, prestar atenção, revelar uma preocupação, cogitar/pensar. Podemos concluir que o dever da família de cuidar de suas crianças e seus adolescentes relaciona-se a uma ética do cuidado com o outro, que depende não só das disponibilidades pessoais ou psicológicas para o cuidado, na expressão de Chodorow (1978) (disponibilidades essas entendidas como fruto dos processos de socialização dos indivíduos), mas também do modo como são construídas as bases da organização social, dos valores compartilhados coletivamente em favor da vida, do bem e da cultura da paz. Pretende-se ressaltar aqui que, diante da complexidade das relações, não é possível que o discurso e a prática jurídicos resolvam todos os problemas ou sanem todos os conflitos.

Assistimos cotidianamente, em nossa prática de intervenção psicossocial junto às casas de acolhimento institucional, à destituição do poder dos pais e à instituição do poder dos operadores do campo jurídico sobre os pais, as crianças e os adolescentes. Embora nossa sociedade seja marcada pela lógica adultocêntrica, nem todos os adultos têm poder político para enunciar suas próprias demandas e representar suas crianças e adolescentes. Entre os diversos paradoxos encontrados, ressaltamos aquele que faz da família a entidade central na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes e, ao mesmo tempo, uma instância incapaz de promover e defender tais direitos.

A medida de acolhimento institucional traz à tona as contradições entre o direito à convivência familiar e a supressão dessa convivência, como condição para restaurar esse mesmo direito à convivência. O acompanhamento psicossocial das crianças e adolescentes, em acolhimento institucional realizado pelo Núcleo, tem revelado que a medida de acolhimento institucional (a sétima em um rol de nove medidas) é muitas vezes a primeira a ser tomada, seja em razão da situação extrema na qual se encontram as crianças e os adolescentes no momento em que são abordados, ou pela dificuldade de conexão entre os diversos equipamentos componentes da rede de assistência. Esses componentes deveriam prover a família para a preservação da convivência familiar. Há também os casos nos quais os operadores da rede de proteção imaginam que a retirada dos filhos de casa é, de certo modo, "um susto" suficiente para que a família mude a sua conduta.

A retirada das crianças e dos adolescentes de casa, além de protegê-los dos riscos imediatos, é compreendida como uma estratégia para que as relações familiares sejam trabalhadas e revistas. No entanto, nem sempre se oferece o tempo necessário à construção de novas possibilidades. Frequentemente, a situação urgente e grave é tomada como justificativa para ações rápidas e impositivas. Muitas vezes as famílias percorrem uma série de serviços, recebem e tentam cumprir uma série de tarefas que podem resultar na volta de seus filhos para casa, tais como: arrumar trabalho, reformar a casa ou inscrever-se em um serviço de atendimento de dependentes químicos. Na nossa trajetória de trabalho, nas Casas de Acolhimento Institucional, encontramos uma história paradigmática dessas recomendações: uma jovem mãe desempregada, grávida, com histórico de abandono e abuso sexual na própria infância, ex-interna da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), visitava seu filho frequentemente e demonstrava o desejo de tê-lo de volta. Foram-lhe colocadas três condições: (a) que voltasse a morar com o próprio pai, sabidamente alcoolista, com histórico de agressão à família; (b) que deixasse de morar com a sua irmã, considerada prostituta; e (c) que após o parto ela fizesse uma laqueadura de trompas. Esse é um exemplo da regulação produzida pelos discursos e práticas da rede de proteção de direitos, que acaba por promover a tutela e não a emancipação e autonomia, que não fornece as condições para a afirmação dos sujeitos como sujeitos de direitos e responsáveis pelos seus atos.

Ao examinar os processos de transformação das concepções de proteção às crianças, aos adolescentes e suas famílias, encontramos os vestígios das antigas práticas assistencialistas para com as famílias pobres, a visão de seus membros como "necessitados" e não como sujeitos e cidadãos. A postura das mães e dos pais que têm seus filhos acolhidos revela, muitas vezes, a introjeção dessa desvalorização, os sentimentos de menos-valia e passividade, manifestados em certa conformação com o destino de suas vidas, ocupando uma posição vitimada, ou, no outro extremo, a atitude de recusa em receber qualquer ajuda e de revolta. É sempre longo o processo que possibilita potencializar os recursos materiais e simbólicos das famílias, tendo em vista restaurar a própria autoestima e construir as condições para que elas possam responsabilizar-se por suas escolhas e sua trajetória e colocarem-se como cidadãs de direitos, o que requer muitas vezes mais tempo do que aquele estipulado pelas normas assistenciais e jurídicas.

A medida de acolhimento institucional: retirar para reintegrar

O acolhimento institucional de crianças e adolescentes integra os serviços de alta complexidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e tem caráter excepcional e provisório, ou seja, espera-se que o afastamento do convívio familiar de crianças e adolescentes, motivado pela violação de direitos e a violência intrafamiliar, não gere a ruptura definitiva dos vínculos familiares, nem a institucionalização prolongada das crianças e adolescentes.

A rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes deve, durante o período de acolhimento institucional, buscar construir com as famílias as condições necessárias para que seus filhos possam retornar ao convívio com seus pais. Esgotadas todas as possibilidades, deve-se procurar que essas crianças e adolescentes sejam adotados por membros da família extensa (tios, avós, por exemplo) ou por outras famílias cadastradas como adotantes.

Em junho de 2009, foi publicada uma resolução do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), juntamente com o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), contendo as "orientações técnicas de acolhimento para crianças e adolescentes". Em seu conjunto, tais orientações reafirmam o direito à convivência familiar e comunitária das crianças e dos adolescentes, e estabelecem uma série de ações visando evitar a institucionalização prolongada de crianças e adolescentes.

Em 2009, foi feita a seguinte inclusão no texto original do ECA sobre a medida de acolhimento institucional:

§ 1o Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar1 1 A expressão "acolhimento familiar" refere-se à colocação da criança ou do adolescente em uma família acolhedora, que se responsabilizará pela medida protetiva. ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei. (Lei n. 12.010, 2009)

O denominador comum desses marcos regulatórios, como já dito, é a centralidade da família, considerada como agente primordial de promoção e defesa desses direitos. Tanto as políticas públicas quanto os programas sociais, que visam garantir as condições necessárias para que a família possa cumprir o seu dever constitucional, têm como meta "assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais" (art. 227).

A medida de acolhimento institucional pretende, de um lado, proteger a criança e o adolescente, retirando-os da situação de violação e violência no contexto intrafamiliar e, de outro, contribuir para restauração e fortalecimento dos vínculos com a família de origem, ou encaminhar as crianças e adolescentes para a adoção, seja pela família extensa, seja por uma família substituta. No entanto, o acolhimento institucional implica a perda do poder familiar temporário, quando ao final da medida o retorno é possível. Porém, naqueles casos em que o retorno é impossível, o poder familiar é definitivamente retirado, e as crianças e os adolescentes são encaminhados para adoção.

Compreende-se que quanto maior o tempo de afastamento da criança e do adolescente de sua família, maior o risco da ruptura dos vínculos e de sua institucionalização; e quanto menor for a criança, mais curto deve ser o tempo de acolhimento institucional, uma vez que as primeiras experiências vinculares são decisivas no seu processo de subjetivação.

§ 3o A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em que será esta incluída em programas de orientação e auxílio, nos termos do parágrafo único do art. 23, dos incisos I e IV do caput do art. 101 e dos incisos I a IV do caput do art. 129 desta Lei. (Incluído pela Lei n. 12.010, 2009)

Nesse sentido, o ECA criou, segundo Sierra (2004), um sistema aberto de cooperação institucional que depende do esforço de participação dos atores sociais envolvidos, bem como das condições de desenvolvimento das cidades, posto que, para a garantia e a restituição dos direitos das crianças e dos adolescentes, é necessário que uma complexa rede de equipamentos sociais esteja articulada.

A condição de pobreza não é motivo legal para o afastamento das crianças e dos adolescentes de seu convívio familiar. No entanto, a pobreza estrutural e a exclusão do acesso a bens materiais e simbólicos configuram um contexto de sofrimento ético-político, definido por Sawaia (1999) como o sofrimento que

abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. (Sawaia, 1999, p. 104)

A condição da maioria das famílias que têm suas crianças e adolescentes acolhidos é de pobreza e exclusão, o que contribui para a fragilização emocional tanto dos adultos quanto das crianças e dos adolescentes. A relação entre a situação de pobreza e exclusão familiar e o acolhimento institucional é amplamente demonstrada e discutida em pesquisa nacional realizada, em 2004, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) (Silva, 2004).

Rizzini mostra que as condições precárias de vida das famílias atingem especialmente as crianças, mas enfatiza o equívoco em associar a pobreza à incompetência das famílias para exercerem suas funções: "Há muito a se aprender sobre as famílias que sobrevivem com poucos recursos e enorme dificuldade para atender às necessidades básicas dos filhos" (Rizzini, Rizzini, Naiff, & Batista, 2007, p. 18).

E continua a autora:

O que se deseja ressaltar aqui é o equívoco na compreensão do problema, cuja origem ficou, não por acaso, reduzida à incapacidade da família. Na atualidade, ressaltam-se as competências da família, mas, na prática, com frequência, cobra-se dos pais que deem conta de criar seus filhos, mesmo que faltem políticas públicas que assegurem as condições mínimas de vida digna: emprego, renda, segurança e apoio para aqueles que necessitem. (Rizzini, Rizzini, Naiff, & Batista, 2007, p. 18).

Concordamos com Rizzini (Rizzini, Rizzini, Naiff, & Batista, 2007), quando ela afirma que, ao lado da mudança dos paradigmas, concernente às atribuições e deveres das famílias e do Estado frente às crianças e aos adolescentes, ainda persiste a compreensão de que as famílias pobres são incapazes de cuidar de seus filhos, o que acaba por justificar a aplicação da medida de acolhimento institucional, que, mesmo sendo a sétima, tem sido muitas vezes a primeira a ser aplicada. Entre outras razões, Rizzini aponta que "persiste o mito de que elas [crianças] estariam protegidas e em melhores condições longe de suas famílias, consideradas 'desestruturadas'" (p. 18).

A fala de uma das educadoras da Casa de Acolhimento Institucional exemplifica bem a colocação de Rizzini (Rizzini, Rizzini, Naiff, & Batista, 2007):

Totalmente desestruturadas, não têm estrutura nenhuma... igual falou ... Cuidar mais das famílias... Tipo assim, visitar mais, sabe? Porque eu acho que tudo isso é as drogas... Esses casos aqui é só droga... Tráfico de droga... A maioria aqui ta nessa situação... A maioria ... usuário de droga... O pai ta preso... A mãe ta presa... Prostituição... Tem mãe que sai à noite, deixa com a avó, deixa com a tia... Ou então com uma pessoa que mal mal viu um dia... Vários casos desses que a gente tem aqui ... que o Conselho Tutelar... Que o conselho encontra a criança com outra pessoa ... maioria das mães nem nota... (Educadora – Casa de Acolhimento Institucional)

A prática cotidiana de aplicação da medida protetiva de acolhimento institucional tem mostrado que os operadores da medida são eficazes na proteção da criança e do adolescente em situação de risco pessoal e social, oferecendo um ambiente seguro, promovendo a saúde, a escolarização, o acesso ao lazer e às práticas culturais. No entanto, as entidades de acolhimento têm tido grandes dificuldades para efetivar a restauração dos vínculos familiares, por várias razões; uma delas pela crença compartilhada em um modelo ideal de família e pela descrença na potencialidade das famílias que tiveram seus filhos acolhidos institucionalmente.

Embora os documentos que explicitam o direito à convivência familiar enfatizem a pluralidade dos modelos de família, na sociedade brasileira contemporânea diversas configurações familiares coexistem: nuclear conjugal, reconstituída, monoparental feminina, monoparental masculina, extensa, homoparental, colateral. Assim, persiste um ideal imaginário de família nuclear conjugal heterossexual, e com as lentes desse ideal é que muitas vezes as outras configurações familiares são vistas como "desestruturadas".

Além das dificuldades de ordem material, essas famílias são vistas como frágeis do ponto de vista simbólico. Em sua maioria, são famílias monoparentais femininas ou reconstituídas, nas quais o companheiro da mãe nem sempre é o pai biológico das crianças ou investido de autoridade frente aos filhos da companheira. Nesse contexto, as famílias pobres também são consideradas desestruturadas do ponto de vista das relações de autoridade.

Sierra (2004) contribui para esse debate, ressaltando que a afirmação dos direitos das crianças e dos adolescentes tem ocorrido em um contexto no qual a condição da criança e do adolescente está frequentemente associada a certo mal-estar social, provocado pelas transformações das relações familiares que acarretaram a quebra da autoridade parental, a indefinição dos papéis sociais e o questionamento dos valores tradicionais que intermediavam as relações sociais, quadro em que os conflitos familiares se tornaram mais intensos.

Ainda, seguindo o raciocínio de Sierra (2004), as famílias modernas passaram a enfrentar o desafio de conciliar as necessidades da criança (materiais, afetivas, culturais) com os anseios de independência dos pais. Busca-se a autonomia cada vez mais precoce das crianças, bem como o preenchimento do tempo livre, após a jornada escolar, com atividades que possam ser realizadas sem a presença dos pais, e com a intermediação de várias instituições e membros da família extensa. Desse modo, embora sejam consideradas como essenciais na vida das crianças e dos adolescentes, e centrais nas políticas públicas de garantia de direitos, as famílias têm sido cada vez mais atravessadas pela esfera pública.

Nesse contexto, encontramos dois grandes obstáculos na potencialização dos recursos da família. O primeiro na efetividade das medidas anteriores ao acolhimento institucional, em decorrência da desconexão entre os diversos pontos da rede de proteção social, o que acarreta ações desencontradas e por vezes superpostas. Muitas ações anteriores ao acolhimento institucional têm um caráter de amparo exclusivamente material, tais como a bolsa aluguel ou a distribuição de cesta básica, disponibilizadas sem nenhum acompanhamento psicossocial. Essas ações revelam, muitas vezes, o resquício da prática assistencialista de atender às necessidades imediatas, como se fosse uma concessão ou a dádiva do Estado, e não um direito do cidadão de ter garantidas as condições para uma vida digna. Além disso, revelam também uma desconexão na compreensão das necessidades materiais e afetivas dos sujeitos, como se as necessidades materiais urgentes e prementes dos sujeitos retirassem deles a vivência das emoções, da angústia, do sentimento de desamparo. Nesse sentido, recorremos mais uma vez a Sawaia: "Perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão é superar a concepção de que a preocupação do pobre é unicamente a sobrevivência, e que não tem justificativa trabalhar a emoção quando se passa fome" (Sawaia, 1999, p. 98).

A segunda dificuldade é a descrença na possibilidade de que a família deseje e possa mudar de posição e se transformar. Nesse sentido, são eloquentes os depoimentos de educadores das Casas de Acolhimento Institucional:

Olha, vou falar com você uma coisa, porque é muito difícil... Porque às vezes assim, né? A prefeitura, SAF, pessoal da bolsa escola, tenta assim de várias formas possíveis assim... Fazer com que a família se estabilize assim... Ande correto perante a justiça... Perante a lei... Pelas crianças... Mas realmente tem algumas família que é muito complicada ... né? Muito complicada mesmo... Devido a uso da droga, do álcool, do descuido... Às vezes a mãe tem muito filho e não tem condição de sustentar, por mais que a prefeitura ajude... Continua tendo filho ... né? Então, é bem complicado. (Educadora da Casa de Acolhimento Institucional)

A instituição acolhe a criança e o adolescente, mas, muitas vezes, não tem recursos para acolher a família, não no sentido de abrigá-la, mas de oferecer um espaço para que ela possa expressar e elaborar suas vivências. A rede é composta de muitos equipamentos de atendimento psicossocial, mas, frequentemente, esses pontos estão desconectados, e a família os percorre, recebendo a difícil tarefa de integrar ela própria todas as propostas.

Olha, tem algumas famílias que assim, o filho chega no abrigo devido alguma situação e ela tenta se erguer, corre atrás, procura ajuda por querer o filho de volta, né? Pra ta com o filho de volta. Agora, tem muitas famílias que o filho chega no abrigo aí vê que ele ta bem, ta comendo, ta bebendo, né? Ta tendo... Indo no médico... Na escola... Aí deixa pra lá... Não preocupa mais... Mas tem família que realmente assim que não quer preocupar... Aí às vezes quando vai adotado ou vai transferido pra um outro abrigo, aí que vai procurar... Vai correr atrás aí às vezes já é tarde demais. (Educadora de Casa de Acolhimento Institucional)

É interessante notar que a única interpretação corrente para a atitude de algumas famílias (e prevalentemente das mães) de deixar que os filhos fiquem abrigados e de não se moverem para que eles retornem às suas casas, tem sido o abandono, a negligência, a falta de afeto e responsabilidade para com os filhos. Não se percebe, muitas vezes, que essa atitude pode revelar, de um lado, a internalização do sentimento de impotência e incompetência dessas mães e dessas famílias, despotencializadas e desvitalizadas diante de suas condições de existência. Por outro lado, esse comportamento também pode conotar a certeza de que elas estão oferecendo aos filhos, por meio da Casa de Acolhimento, o melhor que podem: um espaço seguro, a garantia da escola, o atendimento à saúde, uma boa alimentação e o acesso ao lazer.

O ideal da família conjugal nuclear também dificulta que as entidades de acolhimento institucional trabalhem pela integração da criança em sua família extensa, ou seja, seus avós ou seus tios, por exemplo. A nova lei de adoção ressalta essa possibilidade de que um membro da família extensa tenha a guarda da criança e do adolescente. Na história da família brasileira, a prática da circulação das crianças, como estratégia de cuidado e preservação dos laços, foi muito comum no contexto rural e entre as famílias da periferia dos grandes centros urbanos. Tal prática evitou a institucionalização das crianças e dos adolescentes.

Causa ainda estranheza nos equipamentos de acolhimento institucional o fato de que a guarda das crianças seja pleiteada pelos pais, homens que se encontram em famílias monoparentais masculinas, ou em famílias reconstituídas, no caso dos homens que estabelecem novas uniões, quando as mães das crianças estão vivas, porém se declaram sem condições materiais e afetivas de assumir os seus filhos. Esses casos parecem revelar um duplo rompimento da expectativa de realização dos papéis de gênero, ou seja, o das mulheres naturalmente aptas para o cuidado, ao contrário dos homens, naturalmente inaptos para o cuidado.

A declaração da educadora da Casa de Acolhimento Institucional abaixo mostra outro aspecto interessante, que é a perspectiva da criança frente à medida de acolhimento institucional: muitas vezes, ela não percebe essa medida como uma proteção, mas como uma punição. É preciso considerar também que a mãe ou o pai, embora sejam os agentes da violência intrafamiliar, permanecem, ainda assim, na perspectiva da criança, como figuras de significação afetiva.

A gente vê os maus-tratos assim de um monte de forma, né? Às vezes num banho que num dá, numa alimentação que não dá, ou dá numa hora adequada, dum jeito inadequado... Às vezes a criança vê maus-tratos assim com uma agressão de um tapa... E às vezes tem alguma família que não chega a agredir o filho de bater, mas agride o filho em não dar assistência, né? Então às vezes a criança não percebe isso... Porque tipo assim... Às vezes o pai não batia, a mãe não batia, então... Eles realmente não sente a falta de nada dos pais... Porque mesmo com o que eles tão passando lá fora eles querem ficar com o pai e com a mãe. Num quer afastar de forma alguma, né? Na cabecinha deles é assim... Eles num entende que é por precaução, por cuidado. "Lá ta ruim, mas eu to acostumado, eu quero meu pai e minha mãe" ... Com certeza, nenhuma criança quer vim pro abrigo aqui não... (Educadora de Casa de Acolhimento Institucional)

É interessante notar que, embora a retórica afirme a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, eles ainda são pouco escutados sobre a compreensão que têm de suas próprias trajetórias, sobre as suas escolhas e sobre as alternativas que propõem para os seus problemas e dificuldades. Encontramos ainda a consideração de que as crianças "não sabem o que dizem" e devem ser "poupadas" de conhecer o seu processo no quadro das medidas protetivas, para que não sofram.

Considerações finais

A análise do contexto particular encontrado nas Casas de Acolhimento Institucional nas quais desenvolvemos, em Belo Horizonte, um projeto de intervenção psicossocial apresentada neste artigo, é um exercício da proposição feita por Vygotsky (1999), de que estudar historicamente qualquer acontecimento ou fenômeno social significa estudá-lo em seu movimento, em seu processo de mudança. Evidentemente, as mudanças não são construídas de modo linear e descrevendo uma reta ascendente. As mudanças são construídas dialeticamente e de modo contínuo, revelando processos de contradição, de avanços e de recuos. Nesse sentido, as medidas protetivas previstas pelo ECA revelam de um lado a superação de práticas assistencialistas do passado e os avanços na perspectiva de um trabalho em rede. No entanto, elas também revelam limites e resquícios de práticas assistencialistas..

A análise do contexto particular do acolhimento institucional de crianças e adolescentes apresentada neste artigo não é feita com a intenção da generalização de suas conclusões. Ressaltamos, todavia, que é no contexto particular que as diretrizes universais das medidas protetivas destinadas às crianças e aos adolescentes se encarnam e se transformam cotidianamente.

Consideramos que a articulação da teoria da Psicologia Sócio-Histórica com a experiência vivida no contexto do acolhimento institucional contribui para a construção de um modelo de análise, que poderá vir a ser utilizado em outros casos semelhantes com potencialidade explicativa e operativa. Entendemos que o próprio modelo de análise da experiência poderá ser reformulado de acordo com as necessidades dos contextos particulares. Assim, a construção e a acumulação de conhecimento, de forma dialética, pela constante reflexão entre a teoria (modelo construído) e a prática (modelo aplicado), poderá contribuir para o aprimoramento crítico das práticas de proteção das crianças, dos adolescentes e de suas famílias.

A desconstrução dos altos muros dos antigos edifícios dos orfanatos foi acompanhada de uma mudança profunda na compreensão do lugar social e político das crianças e dos adolescentes. Desde a promulgação do ECA, eles são considerados sujeitos de direitos, entre os quais o do direito à convivência familiar.

No entanto, se esse discurso é, de um lado, libertário, de outro parece construir novos muros menos palpáveis que separam as famílias "estruturadas" daquelas "não estruturadas", e o direito à convivência familiar parece não atingir a todos. A ressalva de que a pobreza não é motivo para a retirada das crianças e dos adolescentes do convívio familiar trouxe amparo legal às famílias, mas ainda não produziu a superação total do preconceito que atinge as famílias pobres.

O trabalho com famílias em situação de vulnerabilidade material e simbólica inquieta a todos os envolvidos e coloca, permanentemente, a questão dos limites entre ajudar e tutelar as famílias, entre potencializar a posição de sujeitos e normatizá-las por meio dos discursos e práticas especializadas. Por isso mesmo, a superação dessas tensões é um desafio a ser enfrentado diariamente.

Submetido em: 07/06/2012

Revisão em: 11/10/2013

Aceite em: 06/04/2014

Maria Ignez Costa Moreira é doutora em Psicologia Social pela PUC SP; professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da PUC Minas. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção Família e Infância. Membro do GT A Psicologia Sócio-Histórica e o contexto brasileiro de desigualdade social da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – Anpepp. Membro da Abrapso – Associação Brasileira de Psicologia Social. Endereço: Programa de Pós-graduação em Psicologia - PUC Minas. Av. Itaú, 525. Prédio Redentoristas. Bairro Dom Cabral. Belo Horizonte/MG, Brasil. CEP 30535-012. E-mail: maigcomo@uol.com.br

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  • 1
    A expressão "acolhimento familiar" refere-se à colocação da criança ou do adolescente em uma família acolhedora, que se responsabilizará pela medida protetiva.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jan 2015
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Recebido
      07 Jun 2012
    • Aceito
      06 Abr 2014
    • Revisado
      11 Out 2013
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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