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OS SENTIDOS DO RISCO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

LOS SENTIDOS DEL RIESGO EN EL CAMPO DE LA SALUD MENTAL

THE MEANINGS OF RISK IN MENTAL HEALTH FIELD

Resumo

Na segunda metade do século XX, a noção de risco adquire centralidade nas pesquisas biomédicas e nas práticas em saúde. No campo da saúde mental, identificamos um deslocamento dos discursos preventivos sobre o louco, tratado como indivíduo perigoso, para a consideração dos fatores de risco que podem, de forma probabilística, representar risco de desenvolver transtornos mentais. Neste artigo, a partir das considerações históricas e sociológicas de Robert Castel e Nikolas Rose, analisamos a passagem da noção de risco entendida como periculosidade para o risco entendido como probabilidade de desenvolver transtornos mentais. Neste percurso, destacamos a tendência de expansão da aplicação da noção, os desafios e críticas à sua utilização e as possíveis consequências subjetivas decorrentes das alterações nas fronteiras do que designamos como patológico.

Palavras-chave:
risco; prevenção; saúde mental; loucura; subjetividade

Resumen

En la segunda mitad del siglo XX, la noción de riesgo adquiere centralidad en la investigación biomédica y en las prácticas de salud. En el campo de la salud mental, hemos identificado un cambio de discursos preventivos sobre el loco, tratado como un individuo peligroso, hacia la consideración de los factores de riesgo que pueden, de una manera probabilística, representar riesgo de desarrollar trastornos mentales. En este artículo, a partir de las consideraciones históricas y sociológicas de Robert Castel y Nikolas Rose, analizamos el cambio de la noción de riesgo percibido como peligrosidad para el riesgo percibido como probabilidad de desarrollar trastornos mentales. En este texto, se destaca la tendencia de ampliar la aplicación del concepto, los desafíos y críticas para su uso y las posibles consecuencias subjetivas de los cambios en los límites de lo que designamos como patológicos.

Palabras clave:
riesgo; prevención; salud mental; la locura; subjetividad

Abstract

In the second half of the twentieth century, the notion of risk acquires centrality in biomedical research and in health practices. In the mental health field, we identify a shift from preventive discourses on madness, focused on the dangerous individual, to the consideration of risk factors that can, in a probabilistic manner, represent risk of developing mental disorders. In this article, grounded on the historical and sociological considerations of Robert Castel and Nikolas Rose, we analyze the path of the notion of risk as dangerousness to the risk as possibility to develop mental disorders. In this course, we highlight: the trend of expanding the concept application; challenges and critics to its use; and possible subjective consequences from changes in the boundaries of what we designate as pathological.

Keywords:
risk; prevention; mental health; madness; subjectivity

Introdução

A preocupação com a ameaça atribuída aos portadores de transtorno mental é um traço característico da história dos discursos psiquiátricos, suscitando diferentes estratégias preventivas ao longo da história dos campos da saúde mental e da psiquiatria. Em função da suposição de características como agressividade, instabilidade e ausência de controle pessoal, esses sujeitos representariam um perigo em potencial à ordem social instituída (Castel, 1987Castel, R. (1987). A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves., 1991; Rose, 1998Rose, N. (1998). Governing risky individuals: The role of psychiatry in new regimes of control. Psychiatry, Psychology and Law, 5(2), 177-195.). A principal resposta construída para lidar com a imprevisibilidade do comportamento do louco e, consequentemente, com a sua suposta ameaça, foi o confinamento asilar, medida de proteção ao perigo social atrelada ao nascente conhecimento psiquiátrico (Foucault, 2005Foucault, M. (2005). História da loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. ). A associação entre loucura e periculosidade estava na base das preocupações preventivas dos primeiros psiquiatras, marcando a história da loucura desde a fundação da psiquiatria (Castel, 1987).

Ao longo do século XX, a proposta de prevenir a doença mental foi entendida como uma das principais ações da psiquiatria, capaz de redefinir o escopo de intervenções e dar novo fôlego à disciplina, apresentando alternativas em momentos de crise ou de falta de legitimidade como saber médico (Castel, Castel, Lovell, 1982Castel, R., Castel, F., & Lovell, A. (1982). The Psychiatric Society. New York: Columbia University Press. ; Grob, 1983Grob, G. (1983). Mental Illness and American Society: 1875-1940. Princeton, NJ: Princeton University Press., 1994; Shorter, 1997Shorter, E. (1997). A History of Psychiatry: from the era of the asylum to the age of Prozac. New York: John Wiley & Sons Inc.). O movimento eugênico, a higiene mental e a psiquiatria preventiva e comunitária norte-americana são exemplos de discursos construídos no interior da psiquiatria, ou por ela apropriados, nos quais o ideal preventivo adquiriu significativo destaque.

No entanto, o modo de operar as estratégias preventivas no campo da saúde mental sofreu profundas modificações no final do século XX. Investigando o que chamou de mutações contemporâneas das técnicas médico-psicológicas, Castel (1987Castel, R. (1987). A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves.) sugere que, a partir da década de 70, a estrutura da psiquiatria como instituição social governamental responsável pelo cuidado à doença mental começa a passar por transformações e a ser substituída por uma série de atividades especializadas e dispersas de gestão social das populações. Entre os tipos de ação médico-psicológica surgidos nesse contexto, identificado como uma nova fase de “gestão das fragilidades individuais” (Castel, 1987, p. 18), aparece a gestão dos riscos, na qual a ambição da psiquiatria de prevenir a doença mental se aproxima cada vez mais de um rastreamento dos riscos.

No campo médico, a partir dos anos 50, a noção de risco começa a se destacar e, gradativamente, a ser valorizada como conceito fundamental para o conhecimento e as práticas em saúde. A associação entre a valorização dos fatores de risco como alvo para a intervenção na saúde pública, a determinação dos ensaios clínicos randomizados como padrão para a definição de evidências científicas e os interesses financeiros da indústria farmacêutica produziram um novo modo de fazer ciência no campo médico, ampliando o escopo de fenômenos investigados e redefinindo diversos parâmetros adotados na prática clínica (Dumit, 2012Dumit, J. (2012). Drugs for Life. How Pharmaceutical Companies Define Our Health. Durham , NC: Duke University Press.). Como consequência, observamos uma reconfiguração das experiências de saúde e doença, na qual o estado de normalidade passa a ser povoado por sintomas e fatores de risco antes desconhecidos e potencialmente tratáveis, e as fronteiras que definem o patológico são continuamente alteradas.

De que modo tal transformação atingiu o campo da saúde mental? Esse vem sendo marcado, de um lado, pelo predomínio dos modelos biológicos de explicação da doença, pelo crescimento do número de categorias diagnósticas e pela expansão da prescrição e do consumo de medicamentos (Bezerra, 2014Bezerra, B. (2014). A Psiquiatria contemporânea e seus desafios. In R. Zorzanelli, B. Bezerra, & J. F. Costa (Orgs.), A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (pp. 09-32). Rio de Janeiro: Garamond .; Healy, 2002Healy, D. (2002). The creation of psychopharmacology. Cambridge, MA: Harvard University Press.; Mayes & Horwitz, 2005Mayes, R. & Horwitz, A. (2005). DSM-III and The Revolution in the Classification of Mental Illness. Journal of the History of the Behavioral Sciences, 41(3), 249-267.) de outro, pela contínua contestação dos fundamentos, métodos e critérios da psiquiatria biológica (Rosenberg, 2006Rosenberg, C. (2006). Contested Boundaries; psychiatry, disease and diagnosis. Perspectives in Biology and Medicine, 49(3), 407-424.) e pela construção de propostas não reducionistas de cuidado, nas quais a doença não é vista como produto exclusivo da realidade biológica, mas como expressão singular de um modo de estar no mundo, como preconizado pela política de saúde mental brasileira (Amarante, 2007Amarante, P. (2007). Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz .; Campos, Onocko-Campos, & Del Barrio, 2013Campos, G. W. S., Onocko-Campos, R. T., & Del Barrio, L. R. (2013). Políticas e práticas em saúde mental: as evidências em questão. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2797-2805.; Leal & Delgado, 2007Leal, E. & Delgado, P. G. (2007). Clínica e cotidiano: o CAPS como dispositivo de desinstitucionalização. In R. Pinheiro, A. P. Guljor, , A. G. Silva , & R. Mattos (Orgs.), Desinstitucionalização da Saúde Mental: contribuições para estudos avaliativos (pp. 137-167). Rio de Janeiro: CEPESC; IMS/LAPPIS; ABRASCO.; Onocko-Campos, 2014; Pitta, 2011Pitta, A. (2011). Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira: instituições, atores e políticas. Ciência e Saúde Coletiva, 16(12), 4579-4589.).

Neste artigo, analisamos a passagem da noção de risco entendida como periculosidade inerente à loucura para o risco entendido como probabilidade de desenvolver transtornos mentais. O manuscrito propõe-se, do ponto de vista metodológico, a tecer uma reflexão teórica a partir das considerações históricas e sociológicas de Robert Castel e Nikolas Rose, discutindo os usos e sentidos da noção de risco no campo da saúde mental, a recente expansão de sua aplicação, os desafios à sua utilização e as críticas que provoca. Neste percurso, privilegiamos a reflexão sobre os efeitos subjetivos e sobre as transformações das experiências de saúde e doença decorrentes da tendência de ampliação do uso da noção de risco. Paradoxalmente localizada entre controle e incerteza, a lógica do risco atinge o campo da saúde mental e reedita antigas ambições preventivas, suscitando esperanças antecipatórias e despertando preocupações éticas e sociais.

Periculosidade e discursos preventivos

Robert Castel (1987Castel, R. (1987). A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves., 1991) foi um dos primeiros autores a discutir as transformações nas estratégias preventivas e a analisar a ascensão da noção de risco no campo da saúde mental. O foco da análise histórica de Castel está na dimensão de prevenção da ameaça que o doente mental pode trazer à população em função de sua suposta periculosidade. De fato, considerações sobre a ameaça que tais sujeitos representavam para a ordem social e, consequentemente, proposições sobre ações preventivas fizeram parte do modo como a insanidade foi tratada nas sociedades ocidentais. No contexto de valorização da racionalidade como fundamento da experiência humana e de ordenamento moderno, a loucura é definida como alienação mental e entendida como erro, desvio, equívoco e, como tal, ameaça à ordem social vigente (Foucault, 2005Foucault, M. (2005). História da loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. ).

A suposição de periculosidade é intrínseca à noção de alienação mental (Castel, 1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.). O louco é aquele cujo comportamento não se adéqua aos códigos sociais vigentes, provoca estranhamento e, portanto, desafia o consenso coletivo, ameaçando a estabilidade da vida social. A partir da sua apropriação pelo saber médico, tomada como objeto científico, sob o primado da razão, inaugura-se a possibilidade de tratar tal desvio como um distúrbio passível de normalização. No entanto, a percepção da loucura como ameaça social atravessa o período da “Grande Internação” no Hospital Geral, se mantém nas novas instituições, os asilos e, mais fundamental, consolida um modo de compreender o sofrimento mental marcado pelo estigma e pela marginalização (Amarante, 1996Amarante, P. (1996). O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz.).

Segundo Castel (1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.), na psiquiatria clássica o sentido de “risco” estava atrelado à suposição de que os portadores de doença mental seriam capazes de cometer atos violentos e imprevisíveis. A periculosidade, nesse contexto, seria uma noção paradoxal e misteriosa pois apontaria, simultaneamente, para uma qualidade imanente do sujeito e para uma possibilidade em aberto, carregada de incerteza. Por um lado, o risco como se supunha na época era uma característica constitutiva da identidade do louco, contribuindo para a sua definição individual e social. Por outro, a rigor, só seria possível comprovar a periculosidade após a realização do ato violento. Disso resulta a imprevisibilidade do ato patológico, que pode ocorrer a qualquer momento, realizado por qualquer um desses sujeitos, ou pode nunca se realizar.

Podemos deduzir a dificuldade de elaboração de qualquer iniciativa de prevenção específica a partir da noção de periculosidade. Diante da impossibilidade de discriminar os sujeitos violentos dos que nunca viriam a cometer qualquer ato disruptivo, os psiquiatras adotavam estratégias de prevenção “prudentes” e intervencionistas, como o confinamento e a esterilização. No entanto, uma vez que a confirmação da avaliação da periculosidade dos alienados se daria de modo completamente individualizado e seria confirmada apenas após a realização do ato violento, a noção de periculosidade aplicada no contexto asilar se tornava pouco operativa como estratégia preventiva. Independente de considerações políticas ou éticas, o confinamento como instrumento preventivo era tecnicamente arbitrário, economicamente custoso e impossível de ser estendido à grande massa da população (Castel, 1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.). Com o suposto crescimento dos casos de alienação mental e as discussões sobre a degradação social que a acompanha, a questão preventiva permanecia em cena como ideal social.

Na virada do século XX, as dificuldades enfrentadas pela psiquiatria asilar levam à defesa de políticas eugênicas destinadas a regular e controlar a reprodução de indivíduos com doenças mentais (Grob, 1994Grob, G. (1994). The Mad Among Us: a history of the care of american´s mentally ill. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Castel (1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.) identifica um pensamento sobre o risco nas teorias eugênicas, que buscavam relacionar a alta frequência de doenças mentais e outras anormalidades nas camadas desfavorecidas da população às suas condições de vida e hábitos comportamentais. No entanto, ainda que possamos identificar a intenção eugênica de ampliação das ações preventivas, a esterilização, técnica eugênica por excelência, ainda era aplicada no contexto asilar e restrita às populações confinadas. O alcance das medidas profiláticas permanecia, portanto, limitado.

A saída da psiquiatria do asilo em direção à comunidade, verificada no contexto do pós-guerra, aprofundou as intenções preventivas da disciplina, alcançando uma espécie de ápice no contexto norte-americano com a psiquiatria preventiva de Gerald Caplan (1964Caplan, G. (1964). Principles of Preventive Psychiatry. New York: Basic Books, Inc. ). Partindo das intensas críticas às condições degradantes e à incapacidade de oferecer tratamentos eficazes no hospital psiquiátrico, o movimento comunitário propõe a criação de novas instituições e formas de atuação psiquiátrica, além de redefinir o público-alvo da disciplina, expandindo seu foco de interesse dos casos de transtorno severo e crônico para o sofrimento e a incapacidade mais corriqueiros (Castel, Castel, & Lovell, 1982Castel, R., Castel, F., & Lovell, A. (1982). The Psychiatric Society. New York: Columbia University Press. ; Grob, 1983Grob, G. (1983). Mental Illness and American Society: 1875-1940. Princeton, NJ: Princeton University Press., 1994; Healy, 2002Healy, D. (2002). The creation of psychopharmacology. Cambridge, MA: Harvard University Press.; Horwitz, 2002Horwitz, A. (2002). Creating Mental Illness. Chicago: The University of Chicago Press .).

Neste contexto, a prevenção aparece como uma das tarefas primordiais da psiquiatria, alçada a prioridade não somente no campo da saúde mental, mas entendida como um projeto amplo e coletivo de reordenamento da vida social, cujo principal objetivo era a construção de uma sociedade mentalmente saudável. Acompanhando o projeto de expansão da ação psiquiátrica e a organização de serviços de base comunitária, vemos florescer temas como a promoção da saúde mental, o fortalecimento da comunidade, a educação da população para a saúde mental e a responsabilidade da psiquiatria em intervir no meio social. Nas palavras de Basaglia, “a prevenção, nesse caso, serve para dilatar o campo da ‘doença’ mais que para reduzi-lo” (2010, p. 156).

No entanto, a estreita sintonia entre o contexto do pós-guerra, as necessidades sociais mais prementes no período e as formulações da psiquiatria preventiva norte-americana teria curta duração, uma vez que profundas transformações na vida social e nas teorias que fundamentam o conhecimento psiquiátrico teriam lugar poucos anos depois. No interior da disciplina, os anos 70 constituíram um período turbulento, marcado por intensas críticas à expansão da ação psiquiátrica e à falta de coerência, objetividade e cientificidade do conhecimento psiquiátrico vigente na época, caracterizando uma verdadeira crise de legitimidade (Mayes & Horwitz, 2005Mayes, R. & Horwitz, A. (2005). DSM-III and The Revolution in the Classification of Mental Illness. Journal of the History of the Behavioral Sciences, 41(3), 249-267.).

Diversos fatores contribuíram pra a crise interna da psiquiatria no contexto norte-americano, entre os quais destacamos: a crítica antipsiquiátrica à própria validade da noção de doença mental; as críticas à limitação da terapêutica psicanalítica para o tratamento dos casos de transtorno mais severo que, fruto do processo de desinstitucionalização, retornavam à comunidade, demandando tratamento (Grob, 1994Grob, G. (1994). The Mad Among Us: a history of the care of american´s mentally ill. Princeton, NJ: Princeton University Press.); o impacto do surgimento dos psicotrópicos no tratamento dos casos mais graves (Grob, 1994; Healy, 2002Healy, D. (2002). The creation of psychopharmacology. Cambridge, MA: Harvard University Press.; Shorter, 1997Shorter, E. (1997). A History of Psychiatry: from the era of the asylum to the age of Prozac. New York: John Wiley & Sons Inc.); a insatisfação de um número significativo de psiquiatras com os rumos tomados pela profissão, dominada pelo paradigma psicossocial e distante dos cânones científicos, que começaram a reivindicar uma organização mais sistemática, experimental e objetiva do conhecimento psiquiátrico (Horwitz, 2002Horwitz, A. (2002). Creating Mental Illness. Chicago: The University of Chicago Press .; Shorter, 1997); a competição pelo mercado das psicoterapias oriunda de psicólogos, assistentes sociais e afins, que compartilhavam praticamente os mesmos métodos e, assim, reduziam a especificidade terapêutica do psiquiatra.

No que se refere ao contexto cultural, o enfraquecimento dos discursos coletivos que predominaram durante o século XX, motivando a preocupação social com a adequação dos indivíduos à dinâmica social e a tomada de responsabilidade da psiquiatria na tarefa de construção de uma sociedade mentalmente saudável, promoveram alterações importantes nos modos de gerir a vida social e de regular os processos de saúde e doença. Nesse contexto, que destino teriam as noções de periculosidade e risco? Como viriam a se organizar os discursos preventivos no início do século XXI?

Risco e saúde mental no contexto contemporâneo

No conjunto de transformações que marcaram a história da psiquiatria na virada dos anos 70, Castel (1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.) identifica uma transformação fundamental: a noção de risco torna-se autônoma em relação à noção de periculosidade. Com isso, será possível observar um deslocamento dos discursos preventivos sobre o louco, tratado como indivíduo perigoso, para a consideração dos fatores de risco dispersos que podem, de forma probabilística, representar perigo. Com a extensão da avaliação do risco a potencialmente todos os indivíduos, veríamos a ampliação significativa do espectro daqueles considerados portadores de algum grau de ameaça, seja a si mesmos ou aos que os cercam.

Rose (1998Rose, N. (1998). Governing risky individuals: The role of psychiatry in new regimes of control. Psychiatry, Psychology and Law, 5(2), 177-195.) analisa a lógica do risco no campo psiquiátrico, também relacionando a avaliação do risco às medidas do perigo atribuído a alguns portadores de transtorno mental. Se a categoria de periculosidade era exclusiva dos doentes mais graves e, com isso, usualmente aplicada a um número significativamente restrito de indivíduos, a categoria de risco começa, a partir da década de 90, a ser utilizada para avaliar os diferentes e contínuos níveis de ameaça atrelados aos pacientes psiquiátricos, seja a ameaça de violência contra a população, de suicídio ou de negligência consigo mesmo. De ato exclusivo do psiquiatra forense, a avaliação do risco tenderia a se estender como responsabilidade para os psiquiatras em geral e para todos os profissionais de saúde mental.

A independência da noção de risco em relação à de periculosidade, analisada por tais autores, surge em um contexto de profundas transformações no conhecimento e na prática psiquiátrica. A segunda metade do século XX testemunhou o declínio das explicações psicossociais sobre a formação das doenças mentais e a ascensão das hipóteses biológicas, configurando o que conhecemos como virada biológica na psiquiatria. A partir do surgimento das neurociências, de diversas técnicas de investigação biomédica, do crescimento da indústria de psicotrópicos e da crescente influência dos manuais diagnósticos, especialmente do norte-americano, o DSM, os transtornos mentais passaram a ser entendidos e investigados como fenômenos essencialmente biológicos (Bezerra, 2014Bezerra, B. (2014). A Psiquiatria contemporânea e seus desafios. In R. Zorzanelli, B. Bezerra, & J. F. Costa (Orgs.), A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (pp. 09-32). Rio de Janeiro: Garamond .; Mayes & Horwitz, 2005Mayes, R. & Horwitz, A. (2005). DSM-III and The Revolution in the Classification of Mental Illness. Journal of the History of the Behavioral Sciences, 41(3), 249-267.; Shorter, 1997Shorter, E. (1997). A History of Psychiatry: from the era of the asylum to the age of Prozac. New York: John Wiley & Sons Inc.).

A renovação da esperança de encontrar fundamentos orgânicos para os fenômenos mentais trouxe importantes consequências para as práticas preventivas em psiquiatria. Uma vez que as teorias psicogênicas caíram em desuso, ao menos no que se refere à psiquiatria considerada científica no mundo anglo-saxão, as correlatas propostas de intervenção preventiva baseadas em pressupostos psicossociais que caracterizaram o cenário da saúde mental na segunda metade do século XX perderam terreno. Que tipo de prevenção poderia ser resultado do projeto de conhecimento das teorias neurocientíficas contemporâneas?

Mais uma vez, o ideal preventivo se mantém e renova as esperanças regulatórias da psiquiatria, ainda que adquira novos contornos e fundamente-se em pressupostos diversos daqueles verificados na psiquiatria preventiva. A partir do avanço do projeto de fundamentação biológica da doença mental, aposta-se que passaremos a conhecer mais e melhor a etiologia dos transtornos, de modo a antecipar a formação da doença e elaborar intervenções precisas, eficazes e específicas. Nesse cenário, o conhecimento neurobiológico seria tomado como base para estratégias preventivas de avaliação do risco, operacionalizadas por diferentes agências de controle social, por meio de ações antecipatórias (Rose, 2010Rose, N. (2010). ‘Screen and Intervene’: governing risky brains. History of The Human Sciences, 23(1), 79-105.).

Ao analisar de modo mais detalhado as propostas de intervenção, Rose (2010Rose, N. (2010). ‘Screen and Intervene’: governing risky brains. History of The Human Sciences, 23(1), 79-105.) sugere que dois sentidos de risco estão em voga na psiquiatria contemporânea: os indivíduos “at risk” e os indivíduos “risky”. No primeiro caso, trata-se da defesa de um novo entendimento de determinadas categorias diagnósticas, especialmente daquelas destinadas a classificar distúrbios em crianças e adolescentes. Toma-se como ponto de partida um diagnóstico de transtorno mental na infância ou adolescência, como o TDAH e o transtorno da conduta, e pretende-se avaliar o risco que tal fenômeno pode sinalizar em direção ao desenvolvimento de transtornos mais graves na idade adulta, à manutenção e ao agravamento de condutas antissociais, ao surgimento de transtornos de uso de substâncias e à formação de variados prejuízos psicossociais. Com isso, supõe-se que será possível elaborar intervenções capazes de alterar o prognóstico negativo de crianças e adolescentes.

No segundo caso, o objetivo se concentra em intervir nos chamados estados patológicos intermediários, denominação utilizada principalmente para fazer referência a um conjunto de sintomas e comportamentos que caracterizam risco para a esquizofrenia. A partir de experiências inovadoras no atendimento de pacientes psicóticos, surgiu a possibilidade de identificar indivíduos “pré-psicóticos” e oferecer intervenções que alterem o curso da doença, retardando o surgimento do primeiro surto, ou mesmo impedindo que o transtorno se desenvolva. Nesse contexto, inicialmente clínico, foi elaborada a noção de “estado mental de risco”, posteriormente utilizada como fundamento para a proposição de uma categoria diagnóstica durante a formulação do DSM-5 (Freitas-Silva & Ortega, 2014Freitas-Silva, L. R. & Ortega, F. (2014) Intervenção precoce na psicose: de estratégia clínica a possível categoria diagnóstica. Psicologia em Estudo, 19(4), 729-739.).

Em ambos os casos, verificamos a lógica de intervir no presente para alterar o futuro. Seja buscando identificar estados patológicos que não são abrangidos pelos instrumentos diagnósticos atualmente disponíveis, como o “estado mental de risco”, ou determinar características que especifiquem quais crianças ou adolescentes são mais vulneráveis à manutenção de condutas antissociais e à permanência de transtornos que gradativamente se agravam, importa descobrir para quais conjuntos de indivíduos a psiquiatria pode elaborar intervenções e alterar desfechos patológicos. À parte os diferentes níveis de sofrimento e severidade dos casos atuais, se os mesmos sinalizam um futuro indesejado, mais custoso, com altos índices de violência ou difícil de manejar a partir do conhecimento e da terapêutica psiquiátrica vigente, a identificação e a intervenção precoces se mostram opções atraentes e almeja-se a antecipação que caracteriza a lógica do risco.

No entanto, limitações no conhecimento científico, controvérsias, críticas e desafios éticos se multiplicam na mesma medida em que crescem as expectativas preventivas relacionadas ao risco na psiquiatria contemporânea. Em primeiro lugar, apesar da elevada esperança e dos maciços investimentos financeiros nos estudos genéticos e nas técnicas de visualização do cérebro, o desenvolvimento e a validação de marcadores biológicos para as categorias diagnósticas vêm se mostrando extremamente desafiadores (Rose, 2013Rose, N, Abi-Rached, J. (2013). Neuro. The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Priceton, NJ: Priceton University Press.). Consequentemente, a possibilidade de elaborar intervenções preventivas objetivas e específicas, adequadamente formuladas a partir de avaliações biológicas de risco, enfrenta importantes dificuldades.

As proposições dirigidas ao rastreamento de risco em crianças e adolescentes remetem diretamente às históricas políticas de regulação e controle formuladas para essa população. O primeiro exemplo destacado por Castel (1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.), elaborado pelo governo francês no final dos anos 70, se refere exatamente a um programa completo de rastreamento da saúde e, paralelamente, de riscos, da população infantil. Por um lado, a proteção e o cuidado à infância representam um dos valores mais fundamentais da responsabilidade social que caracteriza as sociedades modernas. Nesse sentido, a proteção à infância desassistida pode se juntar à prevenção dos riscos de um futuro incerto como argumento para justificar políticas intervencionistas dirigidas a crianças e adolescentes.

Por outro lado, não há muita dificuldade em relacioná-las às estratégias e técnicas formuladas desde a segunda metade do século XIX que tiveram como objetivo responder ao problema social da violência e das populações marginalizadas através da medicalização das famílias e das crianças. Das recomendações morais formuladas no contexto do movimento da higiene mental aos argumentos para a criação de serviços de proteção à criança no bojo das políticas do pós-guerra, diversos foram os discursos formulados a partir da suposição de que devemos reduzir o conflito social, incluindo os índices de criminalidade, através do governo da criança, realizado a partir da família (Rose, 2013Rose, N, Abi-Rached, J. (2013). Neuro. The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Priceton, NJ: Priceton University Press.).

O avanço mais consistente das propostas de intervenção preventiva baseadas na noção de risco pode ser verificado no caso da intervenção precoce na psicose e da elaboração da categoria Attenuated psychotic symptoms syndrome. A intervenção precoce na psicose surgiu no cenário psiquiátrico no final da década de 80, junto ao movimento de redefinição do prognóstico negativo associado à esquizofrenia e a iniciativas clínicas destinadas a reduzir o longo período verificado entre o aparecimento dos primeiros sintomas e a busca de ajuda especializada. Com o desenvolvimento das pesquisas sobre o primeiro surto e o período de psicose não tratada, começa a se delinear o chamado “estado mental de risco”, no qual ainda não há um quadro de psicose instalado, mas são identificados sintomas e alterações consideradas precursoras do surto psicótico (McGorry, 1996McGorry, P. (1996). EPPIC: an evolving system of early detection and optimal management. Schizophrenia Bulletin, 22(2), 305-326., 2008). Portanto, indicativas de risco, especialmente para a esquizofrenia.

A categoria Attenuated psychotic symptoms syndrome formalizou e, consequentemente, favoreceu a identificação do estado mental de risco em diversos contextos de saúde mental, além dos serviços de pesquisa no qual o mesmo vinha sendo investigado. Ilustração da tendência crescente de aplicação da noção de risco ao campo psiquiátrico, a defesa da inclusão dessa categoria diagnóstica no DSM-5 provocou inúmeras críticas, muitas delas vindas de psiquiatras renomados, como Allen Frances. O elevado número de indivíduos que receberiam o referido diagnóstico, sem que viessem a desenvolver qualquer transtorno - os chamados falso-positivos -, o desconhecimento acerca de possibilidades concretas de prevenir a psicose, os efeitos colaterais, significativos, resultantes do uso prolongado e desnecessário de antipsicóticos são algumas das críticas apontadas por Frances, que militou contra a categoria (Frances, 2013). Por fim, o risco para a psicose não se confirmou como categoria diagnóstica no DSM-5, publicado em 2013.

Expansão, indefinição e os paradoxos da lógica do risco

Podemos questionar quais seriam os principais efeitos decorrentes da ampliação dos usos e sentidos que a noção de risco adquiriu no campo da saúde mental a partir de sua separação da noção de periculosidade. No entanto, consideramos imprescindível relacionar tal modificação às discussões sobre o impacto mais amplo no campo da saúde produzido pela intensa valorização do conhecimento sobre os riscos de adoecimento. Ainda que o interesse sobre os riscos de adoecimento da população tenha feito parte da própria constituição da saúde pública, caracterizando-se como instrumento para fundamentar estratégias biopolíticas, na segunda metade do século XX a noção passa a adquirir centralidade nas pesquisas biomédicas e nas práticas em saúde (Castiel, 1999Castiel, L. D. (1999). A medida do possível... saúde, risco e tecnobiociências [online]. Rio de Janeiro: Contra Capa; Fiocruz.; Spink, 2010Spink, M. J. (2010). Comunicação sobre riscos, biopolítica e a reconfiguração possível do cuidado. In R. Pinheiro & A. G. Silva (Orgs.), Por uma sociedade cuidadora (pp. 217-230). Rio de Janeiro: CEPESC ; IMS/UERJ; ABRASCO. ).

Diversos fatores podem ser discriminados como contribuição ao privilégio do risco no campo da saúde. O relativo controle das doenças transmissíveis e a necessidade de construir respostas para o crescimento do adoecimento provocado por patologias crônicas, para as quais não é possível identificar um único elemento causal - a chamada transição epidemiológica -, trouxeram a necessidade de investigação das probabilidades de adoecimento. Tal necessidade deveria ser enfrentada com a construção de um conhecimento objetivo e preciso, capaz de quantificar a chance de adoecer e, idealmente, servir como fundamento para práticas de saúde. As tecnologias biomédicas, que se ampliavam no período, tornando possível pesquisas genéticas e moleculares, seriam o meio adequado para realizar tal intento. Ayres et al. (2012Ayres, J. R. C. M., França, I., Calazans, G. J., & Saletti, H. C. (2012). Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In W. Campos, J. R. A. Bonfim, M. C. S. Minayo, M. Akerman, M. Drumond , & Y. M. Carvalho (Orgs.), Tratado de Saúde Coletiva (2a ed., pp. 399-442). São Paulo: Hucitec.) destacam as transformações epistemológicas no conhecimento epidemiológico no pós-guerra, a partir das quais a disciplina torna-se cada vez mais dependente das ciências experimentais laboratoriais e mais distante dos contextos sociais e culturais nos quais se vivenciam os processos de saúde e doença.

A lógica do risco que se configura a partir de então terá como fundamento o conhecimento produzido a partir de pesquisas científicas realizadas em grande escala, os chamados ensaios clínicos randomizados. A conexão entre o modo de produzir o conhecimento científico no campo médico e os interesses econômicos das indústrias farmacêuticas resulta na lógica produzida nos ensaios clínicos: as pesquisas são entendidas como investimentos econômicos, portanto, importa investigar tratamentos e medicamentos que possam ser prescritos para o maior número possível de pessoas (Dumit, 2012Dumit, J. (2012). Drugs for Life. How Pharmaceutical Companies Define Our Health. Durham , NC: Duke University Press.). Nesse contexto, os tratamentos para as doenças mentais seriam especialmente valorizados, uma vez que tais patologias tendem a ser crônicas e os medicamentos consumidos durante longos períodos. As duas vertentes de intervenção no risco de desenvolver transtornos mentais verificadas na psiquiatria contemporânea compõem o referido cenário.

As consequências da adoção dos ensaios clínicos randomizados e do conceito de risco como fundamento para o conhecimento médico não se limitam à expansão do universo de consumidores dos tratamentos e medicamentos. Essa é, sem dúvida, uma tendência marcante no campo da saúde contemporânea, que atrela um determinado modo de produzir pesquisa científica e interesse econômico, culminando na redefinição de diversos parâmetros clínicos que equivalem, de fato, à expansão das fronteiras do que designamos como patológico. Simultaneamente, autores como Aronowitz (2009Aronowitz, R. (2009). The Converged Experience of Risk and Disease. The Milbank Quaterly, 87(2) 417-442.), Rosenberg (2009Rosenberg, C. (2009). Managed fear. The Lancet, 373, 802-803.) e Dumit (2012Dumit, J. (2012). Drugs for Life. How Pharmaceutical Companies Define Our Health. Durham , NC: Duke University Press.) apontam como resultado do intenso investimento no conceito de risco a emergência de um novo modo de lidar com os fenômenos de saúde e doença, marcado pelo excesso de informação, o automonitoramento e a vigilância constante.

Ao contrário do inicialmente suposto, o avanço tecnológico e a ampliação das pesquisas no campo biomédico não resultaram diretamente no aumento de confiança sobre os processos patológicos ou sobre as opções de tratamento. De fato, a velocidade com que novas informações sobre saúde chegam aos indivíduos, muitas vezes suplantando e contradizendo pesquisas anteriores, e a constante revisão de indicações, parâmetros clínicos e mesmo de definições de doença, geram um estado no qual o excesso de informações se conjuga com a sensação de insegurança. Com isso, verifica-se uma tendência de aumento da complexidade das definições de doença e, consequentemente, de dificuldades e incertezas que passam a caracterizar os processos de diagnóstico, tratamento e prevenção (Armstrong, 2012; Aronowitz, 2009Aronowitz, R. (2009). The Converged Experience of Risk and Disease. The Milbank Quaterly, 87(2) 417-442.; Dumit; 2012Dumit, J. (2012). Drugs for Life. How Pharmaceutical Companies Define Our Health. Durham , NC: Duke University Press.; Rabinow, 1999Rabinow, P. (1999). Artificialidade e Iluminismo: da sociobiologia à biossociabilidade. In Antropologia da Razão (pp. 135-157). Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Rosenberg, 2009Rosenberg, C. (2009). Managed fear. The Lancet, 373, 802-803.).

Nesse contexto, indivíduos e famílias são estimulados a manterem constante atenção à saúde, a se submeterem a avaliações e revisões médicas regulares, a buscarem informação em variadas fontes, a tomarem decisões ponderando benefícios e possíveis prejuízos, e a se reunirem em grupos e associações para compreender sua condição, reivindicar avanços e intervenções médicas mais eficazes e compartilhar dúvidas e incertezas quanto ao futuro. A vigilância constante e o automonitoramento são formas reflexivas de lidar com os processos de saúde e doença promovidas pela cultura do risco no campo médico e assimiladas por cada um de nós, como tarefa individual a ser realizada cotidianamente.

Cabe questionar que tipo de experiência subjetiva pode ser engendrada no contexto de vigilância e incerteza. Por um lado, podemos supor que a atenção à saúde e ao corpo possa, em alguns casos, ser vivenciada no âmbito do cuidado, no qual o sujeito cuida de si mesmo e atualiza, segundo suas possibilidades singulares, as prescrições gerais e impessoais que circulam no meio social. Do mesmo modo, o discurso sobre o risco no campo biomédico não é fatalista, mas aponta para probabilidades, descortinando um horizonte de variações e desfechos possíveis (Rose, 2013Rose, N, Abi-Rached, J. (2013). Neuro. The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Priceton, NJ: Priceton University Press.). Nesse sentido, a negociação e a constante revisão singularizada das recomendações preventivas podem fazer parte de uma experiência contemporânea da saúde que resulta em arranjos inovadores e únicos, preservando a autonomia dos sujeitos, não reduzidos à mera sujeição a estratégias de regulação do saber biomédico.

No entanto, questionamos se a expansão das fronteiras entre normalidade e patologia e a constante indefinição sobre os processos de adoecimento não estariam dificultando a vivência de um modo mais espontâneo e direto do que seria a saúde, no qual o sujeito sente que está saudável, confia na sua percepção e isso lhe basta. Se a experiência própria da saúde parece esvaziada diante do aparato técnico apresentado como necessário à sua investigação, o sofrimento individual tampouco é valorizado como indicativo primordial da doença. Os estados intermediários, ou pré-patológicos, não são vivenciados, sentidos, percebidos como alteração até que uma imagem, um exame, um parâmetro se apresente alterado. A experiência subjetiva da doença tende, portanto, a se expandir, estendendo-se a um número cada vez maior de situações e indivíduos, ao mesmo tempo em que se esvazia, tornando-se indefinida.

Considerações finais

As práticas preventivas organizadas ao longo da história da psiquiatria tinham na disciplina o seu modo fundamental de operação. A regularidade, o exame dos corpos, a vigilância constante, estratégias disciplinares por excelência, eram dirigidas ao indivíduo, tomando o corpo individual como alvo inequívoco de suas práticas, sejam elas interpretadas como ação especializada de cuidado ou como forma de repressão e controle (Castel, 1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.). Em todo caso, o discurso, o comportamento, a experiência do sujeito eram fundamentais no processo de diagnóstico, a partir dos quais o olhar do médico buscaria identificar diferenças, desvios, anormalidades. Para Castel (1991), a tradição da medicina mental considerava o sujeito e sua experiência desviante, ao mesmo tempo em que almejava estabelecer um modo de cuidado - a tutela - que assumia a responsabilidade pela assistência total ao indivíduo.

Tal modo de operar as ações em saúde estaria sendo profundamente transformado no cenário atual. No contexto da medicina do risco, interessa identificar os fatores que compõem uma rede causal patogênica e definir probabilidades de ocorrência de doenças. Como podemos observar, a experiência do doente não aparece nesse modelo. No campo da saúde mental, uma das principais consequências da passagem da “periculosidade ao risco”, criticada por Castel (1991Castel, R. (1991). From dangerousness to risk. In G. Burchell, C. Gordon, & P. Miller (Orgs.), The Foucault Effect. Studies in Governamentality (pp. 281-298). Chicago: The University of Chicago Press.), seria o declínio do sujeito como alvo das práticas preventivas, em favor de uma coleção de traços de risco e, em função disso, a substituição do encontro clínico pela gestão administrativa e especializada do risco.

Se a assistência total que caracterizava as práticas tutelares típicas da história da psiquiatria não tem mais lugar no contexto de desregulamentação e redução da responsabilidade estatal no cuidado à saúde, o completo desaparecimento do indivíduo e da clínica tampouco parecem ocorrer. Como vimos, a vigilância e o automonitoramento são promovidos pelo discurso do risco como tarefas individuais, a serem realizadas a partir da oferta de avançadas técnicas biomédicas de investigação dos processos de saúde e doença. Os instrumentos de avaliação do risco tendem a ser cada vez mais individualizados, conduzindo o esquadrinhamento do corpo aos níveis ínfimos da biologia molecular e da herança genética (Rose, 2013Rose, N, Abi-Rached, J. (2013). Neuro. The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Priceton, NJ: Priceton University Press.). Conjugado à tendência de questionamento da responsabilidade coletiva no cuidado à saúde, acabam por enfatizar o âmbito individual como espaço primordial para o tratamento das questões de saúde e doença.

No campo da saúde mental, a preponderância das explicações biológicas sobre a etiologia dos transtornos contribui para o fortalecimento das esperanças antecipatórias fundamentadas na noção de risco, ainda que as mesmas se mostrem tecnicamente frágeis e eticamente questionáveis. O que se pretende alcançar é a apreensão técnica e instrumental das ameaças à saúde, bem como das variações que representam desafios à regulação da vida coletiva. Com isso, a perspectiva subjetiva dos estados de doença e saúde, dimensão inegável das experiências individuais, tende a ser esquecida, dificultando a construção de sentido e a elaboração do vivido.

Ainda que a análise e intervenção objetivas e instrumentais venham sendo valorizadas como esperança preventiva no campo psiquiátrico, outros modos de lidar com as “ameaças” à saúde mental também se fazem presentes. Caponi (2009Caponi, S. (2009). A saúde como abertura ao risco. In D. Czeresnia & C. M. Freitas (Orgs.), Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências (pp. 59-81). Rio de Janeiro: Fiocruz .) retoma a discussão de Canguilhem sobre a impossibilidade de restringir ao conhecimento estritamente científico a compreensão do conceito de saúde para defender uma forma mais flexível e tolerante de lidar com os riscos de adoecimento. Assim, ao invés de corroborar a perspectiva improvável de controle sobre a variação e a diferença, buscaríamos a compreensão dos aspectos subjetivos do adoecimento e a aceitação de uma certa instabilidade própria à vida e à saúde.

No campo da saúde coletiva, a noção de vulnerabilidade vem sendo pensada como alternativa ao privilégio da noção de risco (Ayres et al., 2009Ayres, J. R. C. M., França, I., Calazans, G. J., & Saletti, H. C. (2009). O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In D. Czeresnia & C. M. Freitas (Orgs.), Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências (pp. 121-143). Rio de Janeiro: Fiocruz .; Gama, Onocko-Campos, & Ferrer, 2014Onocko-Campos, R. (2014). Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental. In Psicanálise & Saúde Coletiva- Interfaces (pp. 97-116). São Paulo: HUCITEC.; Muñoz Sánchez & Bertolozzi, 2007Muñoz Sánchez, A. I. & Bertolozzi, M. R. (2007). Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva?Ciência & Saúde Coletiva ,12(2), 319-324.). Surgida no contexto do combate à epidemia de AIDS e do ativismo político, a noção de vulnerabilidade parte das análises epidemiológicas do risco, mas não se restringe a elas, abarcando as múltiplas dimensões que configuram o adoecimento, com destaque para os significados e determinantes sociais (Ayres et al., 2009). Não se trata, portanto, de isolar fatores potencialmente controláveis, mas de construir sínteses que se mostrem capazes de responder às particularidades de cada contexto, destacando as condições e representações socialmente partilhadas. Aplicado ao campo da saúde mental, esse modo de pensar os desafios das práticas preventivas poderia, de um lado, fazer jus à ética do cuidado que fundamenta as políticas de saúde mental brasileiras e, de outro, manter atenção aos excessos regulatórios que caracterizam a história das práticas preventivas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2015
  • Revisado
    20 Fev 2016
  • Revisado
    24 Mar 2016
  • Aceito
    19 Abr 2016
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