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Desvendando olhares: infância e AIDS nos discursos da sociedade

Unraveling looks: childhood and AIDS in society's speeches

Resumos

O presente trabalho aborda a epidemia da Aids sob a perspectiva não somente de seu impacto biológico, como também social, tendo como principal foco as crianças infectadas pelo vírus HIV. Para tanto, contextualiza o percurso da epidemia, abordando a mudança de seu quadro no panorama mundial até chegar à infância. A partir de uma perspectiva histórica, analisa o conceito de infância e se atém principalmente aos aspectos psicossociais peculiares a essa infância "produzida" a partir do surgimento da epidemia. Baseada principalmente na teoria de Michel Foucault, aliada a aspectos específicos sobre Aids, procura identificar os discursos que envolvem essa infância, acreditando que estes têm poder de determinar lugares, mas também de realizar mudanças em nossa sociedade.

HIV/AIDS; infância; discurso; poder


This paper discusses the AIDS epidemic from the perspective of its impact not only biological but also social, with the primary focus on children infected with HIV. For this purpose, we contextualized the course of the epidemic, addressing the change in its picture on the world scene until childhood. It analyzes the concept of childhood from a historic perspective, mainly addressing distinctive psychosocial aspects of this child, derived from the emerging epidemic. It is mostly based on Michel Foucault's theory, combined with specific aspects of AIDS. The aim is to identify the speeches involved in this childhood, believing that they have power to determine places, as well as changes in our society.

HIV/AIDS; childhood; speech; power


Desvendando olhares: infância e AIDS nos discursos da sociedade

Unraveling looks: childhood and AIDS in society's speeches

Lara Brum de CalaisI; Maria Ângela das Graças Santana de JesusII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil

IICentro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil

RESUMO

O presente trabalho aborda a epidemia da Aids sob a perspectiva não somente de seu impacto biológico, como também social, tendo como principal foco as crianças infectadas pelo vírus HIV. Para tanto, contextualiza o percurso da epidemia, abordando a mudança de seu quadro no panorama mundial até chegar à infância. A partir de uma perspectiva histórica, analisa o conceito de infância e se atém principalmente aos aspectos psicossociais peculiares a essa infância "produzida" a partir do surgimento da epidemia. Baseada principalmente na teoria de Michel Foucault, aliada a aspectos específicos sobre Aids, procura identificar os discursos que envolvem essa infância, acreditando que estes têm poder de determinar lugares, mas também de realizar mudanças em nossa sociedade.

Palavras-chave: HIV/AIDS; infância; discurso; poder.

ABSTRACT

This paper discusses the AIDS epidemic from the perspective of its impact not only biological but also social, with the primary focus on children infected with HIV. For this purpose, we contextualized the course of the epidemic, addressing the change in its picture on the world scene until childhood. It analyzes the concept of childhood from a historic perspective, mainly addressing distinctive psychosocial aspects of this child, derived from the emerging epidemic. It is mostly based on Michel Foucault's theory, combined with specific aspects of AIDS. The aim is to identify the speeches involved in this childhood, believing that they have power to determine places, as well as changes in our society.

Keywords: HIV/AIDS; childhood; speech; power

Avaliando o panorama da Aids no Brasil, é possível perceber que inicialmente a epidemia chega causando grande impacto na saúde pública, tendo em vista o desconhecimento e despreparo para lidar com tal doença, que trazia consigo um grande comprometimento do sistema imunológico e um elevado número de subepidemias.

Segundo Brito, Castilho e Szwarcwald (2000), o impacto causado pelo surgimento da epidemia da Aids não possui proporções somente biológicas, tendo em vista que se configurou como um fenômeno global na saúde pública, causando danos de grande magnitude à saúde da população e tornando-se um marco na história da sociedade.

Pode-se dizer que a Aids tomou proporções de um fenômeno social que desencadeou um profundo debate sobre valores ligados à sexualidade, à moral, aos direitos humanos, relações de gênero e à vida. Com seu início detectado primeiramente e primordialmente em homens que mantinham práticas homossexuais, a doença ganhou forte cunho estigmatizante, que também marcou outros segmentos aos quais a epidemia estava associada (Batista & Gomes, 2000).

O crescimento da notificação dos casos em hemofílicos, submetidos a tratamento por via de recebimento de componentes sanguíneos de determinados grupos de doadores e o destaque da infecção de usuários de drogas injetáveis em meados da década de 80 viabilizaram o conhecimento das possíveis vias de transmissão do recém descoberto Vírus da Imunodeficiência Humana, o HIV. Entre essas vias estão a relação sexual, o contato com o sangue e seus derivados e a transmissão da mãe para o bebê (Andrade, Bastos, Esteves, & Szwarcwald, 2000; Batista & Gomes, 2000).

De acordo com o Boletim Epidemiológico AIDS/DST do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2007), somadas às informações do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e fontes de informações complementares, foram notificados, de 1980 a junho de 2007, 474. 273 casos de Aids no Brasil.

Aliado a esse impacto, o desconhecimento também foi forte fator desencadeador do medo com relação às consequências da doença, tendo em vista que no início da epidemia e ainda sem a descoberta de medicamentos eficazes, a morte ocorria em grande número. Já após o surgimento dos medicamentos antirretrovirais, houve um importante impacto sobre a história natural do HIV/Aids, aumentando significativamente a sobrevida das pessoas vivendo com a doença (Lent, 2000).

É sobre essas bases que a ideia acerca da Aids vem se construindo, sendo marcada pela discriminação, muitas vezes envolvendo o indivíduo em um contexto de culpa por ter agido de acordo com o que são considerados comportamentos de risco para a infecção pelo HIV. Em decorrência disso, os direitos humanos são muitas vezes violados, prevalecendo as iniquidades de classe social, opção sexual, gênero, entre outros, tornando-os objeto de estigmatização (Bastos & Szwarcwald, 2000).

Por meio de mecanismos sutis de exclusão, enredados em discursos cheios de um preconceito implícito, a Aids se torna um problema do outro, um outro que ainda hoje carrega o rótulo de "Aidético" e é marcado por esse segredo sobre si mesmo. Uma relação paradoxal fica então estabelecida, na medida em que o indivíduo portador de HIV/Aids, "condenado" a manter segredo sobre sua condição, é também pressionado a confessar, a revelar-se (Cruz, 2005).

Sobre o ato da confissão, Foucault (1985) aponta que o indivíduo "passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo" (p. 59). E ainda destaca que essa obrigação da confissão está tão incorporada que não é mais percebida como o efeito de um poder.

É preciso estar muito iludido com esse ardil interno da confissão para atribuir à censura, à interdição de dizer e de pensar, um papel fundamental; é necessária uma representação muito invertida de poder, para nos fazer acreditar que é de liberdade que nos falam todas essas vozes que há tanto tempo, em nossa civilização, ruminam a formidável injunção de devermos dizer o que somos, o que fazemos, o que recordamos e o que se oculta, o que não pensamos e o que pensamos inadvertidamente (Foucault, 1985, p. 60).

É nesse contexto que "o portador de HIV" é transformado em um "outro", que é construído e se percebe como alguém que precisa manter em segredo sua soropositividade, para ser aceito e evitar as marcas do preconceito em uma sociedade que ainda hoje exclui a diferença. Ao passo que também é pressionado a revelar-se por carregar em si próprio o "perigo" do contágio, aos olhos do outro. Por tais motivos, a revelação do diagnóstico tornou-se questão central no âmbito da epidemia da Aids, seja para adultos, crianças ou adolescentes, soropositivos ou não (Cruz, 2005).

De acordo com Batista e Gomes (2000), perceber a Aids sob a perspectiva de que existe um "outro", diferente e portador, cria a ilusão de que a epidemia está distante e que só é capaz de atingir a determinados grupos. Essa visão, além de acirrar o estigma a determinados segmentos, gerou uma falsa segurança àqueles que não se diziam pertencentes aos chamados "grupos de risco".

A situação da epidemia atualmente não condiz em nada com essa ótica, já que a Aids deixa de afetar a segmentos populacionais sobre particular risco. O conceito de "grupos de risco" é diluído então, tendo em vista que a Aids torna-se capaz de alcançar a qualquer pessoa em uma sociedade, mesmo que muitos ainda tenham arraigada a ideia de Aids e "mau comportamento" como sinônimos (Andrade et al., 2000; Batista & Gomes, 2000).

Há, portanto, uma mudança significativa no panorama da epidemia da Aids no Brasil, tendo em vista que este é um país que se caracteriza pela intensa desigualdade social e abundantes diferenças em áreas de fundamental importância como a educação, a renda e o acesso a serviços de saúde (Andrade et al., 2000).

Partindo desse pressuposto, alguns estudos apontam para o fenômeno da "pauperização" da Aids, que está relacionado às variáveis, tanto biológicas quanto sociais, que influenciam na vulnerabilidade à infecção em estratos menos assistidos, causando novos desafios às políticas públicas e à ação da sociedade civil (Andrade et al., 2000; Bastos, Fonseca, & Szwarcwald , 2002; Bastos & Szwarcwald, 2000; Camargo & Parker, 1999; Richmond, 2007).

Outro fator de relevante influência na mudança do quadro da epidemia é o aumento dos casos em heterossexuais, fazendo com que as atenções se voltassem de maneira incisiva para a transmissão sexual. Consequentemente, houve um crescimento substancial do número de casos da infecção em mulheres, ocasionando o surgimento da infecção pelo HIV em crianças (Andrade et al., 2000).

A denominada Transmissão vertical, segundo o Ministério da Saúde1 1 Tal conceituação pode ser encontrada na página do Ministério da Saúde, na seção "Aprenda sobre HIV e Aids": http://www2.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS5F9787FCPTBRIE.htm , é a via pela qual o bebê é infectado pela mãe durante o período de gestação, no parto ou pela amamentação. A partir de 1985, foram detectados os primeiros casos de transmissão do HIV para bebês no Brasil. Nesse momento, procedimentos para a não infecção do feto e medicamentos eram inexistentes, tendo como consequência a morte frequente e prematura desses indivíduos, o que fomentava ainda mais o medo e o preconceito acerca da doença (Cruz, 2007).

Mesmo com o predomínio da transmissão vertical, Abadia-Barrero e Cruz (2005), de acordo com o Ministério da Saúde, apontam que é valido ressaltar que existem crianças e adolescentes com menos de 15 anos que também têm se infectado por outras vias, como pelo inicio de práticas sexuais sem proteção, uso de drogas injetáveis, prostituição infantil, trocas sexuais, relacionadas com padrões de vulnerabilidade.

De acordo com o Ministério da Saúde (2007), estima-se que 13.012 casos de Aids tenham sido notificados em crianças menores de 13 anos no período de 1980 a 2007. Outro dado relevante é o fato de muitas crianças ficarem órfãs em decorrência da morte dos pais soropositivos. Com o surgimento dos medicamentos antirretrovirais, que vinham sendo utilizados desde o final da década de 80, mas com relevante avanço da distribuição e de novas abordagens medicamentosas em 1996, vislumbrou-se a possibilidade de uma maior perspectiva de vida e controle da doença, para adultos e crianças vivendo com HIV/Aids. A mãe passou a ter acesso ao tratamento mesmo durante a gestação, sendo que o acompanhamento pré-natal dessas mulheres e estratégias de prevenção, passam a ser a preocupação central das políticas públicas direcionadas a esse público (Batista & Gomes, 2000; Cruz, 2007).

Cruz (2007), considerando tal avanço no tratamento, aponta que um novo momento se instala, possibilitando que as crianças que supostamente morreriam ainda na infância começassem a chegar à adolescência e, juntamente com isso, uma série de novos questionamentos, desafios e paradigmas.

No momento em que afeta as crianças, a Aids desconstrói o lugar de idealizada felicidade que essas ocupam no imaginário adulto, tendo em vista que é revestida de um preconceito fortemente ligado à sua forma de transmissão, sendo, na maioria das vezes, relacionada à transgressão de uma moral (Cruz, 2005).

Essa representação de esperança, de futuro que geralmente é construída ao redor da infância, não coaduna com a associação à Aids, fazendo com que, aos olhos da sociedade, a criança soropositiva não possa ser representante desse imaginário adulto, traindo os moldes de uma infância idealizada e, ao mesmo tempo, denunciando a fragilidade da sociedade diante do novo. Esses discursos colaboram para a construção das "pessoas vivendo com Aids", havendo, consequentemente, a "invenção" de uma infância com Aids que é descrita sob o olhar da sociedade, criando uma identidade do sujeito com a doença (Cruz, 2005).

Devido à comum associação entre Aids e morte e a força dos discursos estigmatizantes, a criança soropositiva é, muitas vezes, envolvida em uma imagem dramática e apontada como vítima. Porém, é importante que essas não assumam tal papel de vítima oferecido pelo olhar da sociedade, abrindo espaço para que sejam percebidas e tenham a possibilidade de reagir, criando novas formas de lidar com sua situação (Abadia-Barrero & Cruz, 2005).

A "Infância com Aids"

Antecedendo a essa ideia que se constituiu a respeito da infância com Aids está o conceito de infância propriamente dito, que vai ter influência ímpar na forma como olhamos e tratamos a infância atualmente. Portanto, torna-se relevante avaliar, em uma perspectiva histórica, o caminho traçado pelo discurso acerca da infância, para assim melhor entendermos o impacto e particularidades de uma infância "produzida" pela Aids.

Tomada como uma invenção moderna para Ariès (1981), a infância somente começa a ser configurada como tal a partir do século XVII, surgindo o que o autor chama de "sentimento da infância", considerando a particularidade infantil e marcando o início de uma concepção diferenciada para essa fase da vida.

Anteriormente a esse período, o autor aponta que a ideia de infância estava ligada à de dependência, um período transitório e cuja lembrança não era fixada por muito tempo. O sentimento acerca da infância era de indiferença e estritamente relacionado com a demografia da época, ou seja, muitas crianças morriam, e a perda dessas era fato recorrente e natural (Ariès, 1981).

Um novo hábito surge entre a burguesia durante o século XVII, dando à palavra infância um sentido moderno, ao passo que uma maior atenção aos fenômenos biológicos e particulares dessa fase passou a ser dispensada (Ariès, 1981).

Kramer e Leite (1996), de acordo com as ideias de Áries, apontam que esse sentimento moderno aborda duas atitudes paradoxais quanto às crianças, ou seja, a de "paparicação", na qual a criança é tida como ser inocente e ingênuo, e a outra de "moralização", tomando-a como ser incompleto, que necessita de educação e controle exercidos pelo adulto.

O estudo de Áries é debatido por alguns autores que afirmam existir a expressão de amor ou rejeição às crianças ainda na Idade Média, criticando a visão romântica do autor quanto ao passado (Cruz, 2005). Mesmo considerando tais fatos, Bujes (2000b) faz referência ao mérito de Ariès, ressaltando que esse inaugurou uma nova compreensão acerca da infância, esclarecendo a mudança de atitude e sentimento diante das crianças e dando destaque jamais oferecido a essa fase da vida.

Uma ótica sob a qual a criança é vista e falada é construída, diferenciando-a do adulto, na medida em que a coloca em uma posição de um ser em falta, imaturo e dependente. Desse modo, passa a ser objeto de regulação e controle, exercidos por meio dos discursos que as enunciam. (Bujes, 2000a).

Sobre esse ponto, Foucault (1993) pontua que existe uma orientação acerca do que se deve dizer e nomeia esses limites sobre a enunciação de "regimes de verdade".

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discursos que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado. (p.12)

Essas verdades são produzidas e perpertadas pelas variadas instituições que exercem poder em nossa sociedade, considerando a argumentação de Foucault (1993) sobre o fato de que não existe verdade sem poder, ou fora do poder. Os regimes de verdade são construídos e proliferados através dos discursos, produzindo efeitos e lugares que os indivíduos são chamados a ocupar. Para o autor, tais verdades operam de forma circular com os sistemas de poder, que as sustentam e fazem determinados enunciados e discursos funcionarem como verdadeiros.

Considerando a existência dos regimes de verdade que fazem funcionar estratégias de poder, muitas vezes engendrados em mecanismos sutis, determinados discursos são imbuídos desta posição do que é verdadeiro, como o discurso científico e o das instituições que o produzem. Nesse contexto, "lugares" são produzidos em nossa sociedade e determinadas posições de sujeito são demarcadas (Foucault, 1993).

Bujes (2000a) afirma que é a partir de Foucault que se passa a perceber, dentro deste novo contexto social, que à infância é designado um novo lugar, diferenciado do adulto, em uma sociedade em que o poder soberano perde sua potência.

Surge nesse cenário uma organização do poder sobre a vida, o que Foucault aborda em seu conceito de Biopoder, apontando que é preciso agir sobre as populações para gerir a vida dos indivíduos, utilizando, para tanto, mecanismos como a prevenção da mortalidade, o controle da natalidade e dos fluxos populacionais, entre outros. É nesse contexto, em que as atitudes a favor da vida são cultuadas e sob a qual se quer ter o poder, que é suscitado na sociedade o sentimento de proteção com relação às crianças (Bujes, 2000b).

Kramer e Leite (1996) criticam o conceito de criança como algo definido pela falta, que se desenvolve para tornar-se alguém quando adulta, destacando "as crianças como produzidas na e produtoras de cultura" (p.14).

A criança filhote do homem, ser em maturação, cidadão do futuro, esperança de uma humanidade que não tem mais esperança é desalojada por uma criança parte da humanidade, que é fruto de sua tradição cultural mas que é também capaz de recriá-la , refunda-la; criança que reconta e re-significa uma história de barbárie, refazendo essa história partindo dos despojos de sua mixórdia cultural, do lixo, dos detritos, trapos, farrapos, da ruína. (p.29)

A infância passa, assim, a ser um amplo campo de intervenção social e exercício de poder e saber, sendo que a junção dos discursos médico, administrativo, educacional, entre outros, respaldados no saber científico, acaba por designar a fabricação do sujeito infantil (Bujes, 2000a).

Cruz (2007) ressalta que os discursos sobre o que significa "ser criança" começam a construir uma ideia de infância idealizada e feliz, no imaginário adulto, preenchendo a "função cultural essencial de tornar a modernidade suportável" (Calligaris, 2000, p.65). Paralelo a isso, o sentimento de esperança e consolação são depositados nas crianças, que carregam a tarefa de conquistarem o que os adultos não conseguiram, construindo uma visão ambígua, dando a elas o direito e o dever de serem felizes (Calligaris, 2000).

Esse discurso idealizado, a forma como a infância é tomada e a representação desse conceito para cada indivíduo posiciona as crianças como espelhos de nós mesmos, representantes do que ainda não atingimos e guardiãs de um futuro produtivo e próspero (Cruz, 2005).

Entremeada nessa prática discursiva construída sob as bases de "regimes de verdade", as crianças nascidas de mães soropositivas em meados de 1985 são incorporadas a esse contexto, desmistificando e trazendo à luz uma infância que trai os moldes da infância idealizada. Surge, assim, uma infância nascida a partir do advento da Aids, que vai ter sua história marcada e construída a partir de discursos e significados prévios, transmitidos pela sociedade (Cruz, 2007).

Analisando o panorama das ações e políticas públicas, pode-se perceber que a maioria dessas está direcionada para questões que atingem em maior número a população, para aquele público cuja incidência é alarmante e para assuntos sobre os quais a mídia demonstra particular interesse. Dentro da perspectiva da Aids, que atinge em enormes proporções indivíduos de todo o mundo, a infecção de crianças não adquire status central. Porém, é possível perceber um apelo dramático atrelado à epidemia, situando a criança portadora, dentro de um contexto de ações extremamente julgadas, como vítima. Vítima, na maioria das vezes, de seus pais, que segundo a ótica sustentada pela sociedade, além de sofrerem preconceito, possivelmente serão culpabilizados pela transmissão do vírus aos filhos (Cruz, 2005).

Há, portanto, segundo Cruz (2005), uma preocupação que se volta prioritariamente para o tratamento da infecção, para a perspectiva de tempo de vida, a influência do vírus no organismo da criança, as políticas de prevenção à transmissão materno-infantil, as taxas de incidência, entre outros.

O conhecimento acerca de tais aspectos foi e continua sendo de vital importância para que as crianças pudessem viver mais e melhor, como vemos atualmente. Porém, também se faz necessário pensar nas necessidades não somente físicas dessa criança, mas nas dúvidas, medos e conceitos que ela vai construindo a respeito de si e de sua condição, através do que lhe é passado, implícita ou explicitamente (Abadia-Barrero & Cruz, 2005).

Portanto, os assuntos que dizem respeito ao cotidiano das crianças vivendo e convivendo com HIV/Aids devem ser respeitados e fazer parte desse espaço em que ela é percebida, como a revelação do diagnóstico, a sexualidade, a morte e o luto, a orfandade, os relacionamentos na escola, a adesão ao tratamento, a necessidade de frequentes consultas médicas, as condições socioeconômicas, as instituições frequentadas, o estigma e o preconceito, facilitando com que ela lide com o presente e construa perspectivas (Abadia-Barrero & Cruz, 2005).

Cruz (2007) ressalta que a mesma discursividade que constrói ao longo dos anos o conceito de infância e sobre o que significa "ser criança" vai delinear a infância que surge a partir do advento da Aids, "inventando" as crianças vivendo com HIV/Aids, que vão ter sua história marcada por preconceitos, estigmas e discriminação. A partir dessas representações existentes, ocorre a construção simbólica da infância com Aids, e é sob esse olhar que as crianças vão adquirindo instrumentos para construir sua identidade.

Um aspecto relevante na construção da identidade da criança soropositiva e da ideia que ela vai adquirir acerca de sua condição é a revelação do diagnóstico, que muitas vezes é apresentada pelos adultos como uma das maiores dificuldades.

Pizzarro (2007) argumenta que, considerando a possibilidade de estigma e exclusão, que segundo Ayres, Junior e Paiva (2006) "são processos de desvalorização dos sujeitos, que produzem iniquidades sociais e reforçam aquelas já existentes" (p.01), muitos pais ou instituições estabelecem o segredo com relação à real patologia, criando uma condição de saúde alternativa a essa, porém não excludente. A partir disso, a criança passa a construir uma concepção de si que não é verdadeira, uma realidade fictícia.

No entanto, conforme analisa Cruz (2005), o que sustenta essa posição por parte dos cuidadores é a ideia de proteção da criança, ou de que ela ainda não é capaz de compreender sua situação. Entremeadas nesse discurso, as crianças usam de sua percepção, construindo uma imagem de si - a partir de indicadores como as conversas, as frequentes consultas, internações e medicamentos - que não é confirmada pelo adulto. Encarcerada no referencial adulto, a criança passa a duvidar de sua percepção e consequentemente de si mesma.

A Aids torna-se, então, o indizível, produzindo a ideia de que não é permitido dizer sobre si mesmo (Cruz, 2007), reforçando a postura discriminatória, condenando o indivíduo a um regime de segredo, que segundo Pizzarro (2007) "é viver numa condição de estar separado daquilo que não é capaz de aceitar como parte de si, é negar aquilo que fere, ou de alguma forma, macula o ideal de ser" (p. 02).

O saber sobre sua condição, a experiência de se tornarem "crianças vivendo com HIV/Aids", pode trazer vários sentimentos como revolta, medo, negação, vergonha e isolamento, podendo acarretar em um processo de autoexclusão quando essa postura discriminatória é reforçada pelo segredo. Porém, é necessário estranhar que a revelação não seja tida como um direito das crianças e jovens, favorecendo inclusive a adesão ao tratamento, uma vez que começam a entender o que acontece em seu corpo e participar de forma ativa do tratamento (Cruz, 2005).

No centro de toda essa prática discursiva, está a criança, que na maioria das vezes é falada sob o olhar de um ideal adulto, de uma sociedade com (pré)conceitos arraigados e que por vezes esquece de ouvir além de palavras, mas através de silêncios, olhares e histórias, que buscam respostas e questionam posicionamentos. É sobre esses discursos que constroem a infância com Aids que os aspectos sociais que envolvem essa questão, como as organizações civis e não governamentais, a família e a sociedade vão exercer relevante influência e merecer um olhar diferenciado.

Em meio a esse contexto e de acordo com as necessidades apontadas como importantes pela sociedade, surgem as instituições direcionadas ao cuidado a esse público, que vão exercer forte influência sobre os discursos acerca da criança soropositiva e da infância em geral. Um exemplo dessas instituições são as ONG's que trabalham com Aids no Brasil, que de acordo com o Ministério da Saúde (1997) tiveram seu surgimento a partir de 1985. Com relação ao público infantil, surgem no interior das respostas comunitárias à epidemia, as casas de apoio, abrigando crianças cujos pais haviam falecido ou não tinham mais condições de cuidar dos filhos.

Tais instituições assumem uma função de responsabilidade sobre o cuidado à criança em vários aspectos de sua vida, muitas vezes assumindo o lugar de "família" dessa, de referência afetiva e exercendo relevante papel na delimitação de discursos e lugares à infância (Cruz, 2005).

Além de adquirirem caráter complementar ao trabalho dos serviços de saúde, Cruz (2005) destaca que também existe a perspectiva de um lugar de acolhimento, no qual se oferece "saúde, escola, carinho, amor, um lugar que surge a partir de uma necessidade trazida pela epidemia e que passa a ser a família da criança" (p.82). Outras propostas alternativas à institucionalização também são articuladas pela sociedade civil, como o auxílio por meio de cestas básicas, espaços de convivência, visitas e fortalecimento comunitário.

Ainda de acordo com a autora, no contexto da epidemia, as instituições são detentoras de poder sobre a produção de discursos e verdades sobre a infância. A partir do momento em que a criança é tomada pelo discurso da instituição, essa passa a moldar suas perspectivas de acordo com o que lhe é passado. Se a instituição torna-se sua casa, a equipe, os voluntários, as visitas e doações passam a fazer parte de sua família (Cruz, 2005).

Foucault (1977), dizendo sobre o poder das instituições, revela que essas funcionam como mecanismos de controle e regulação. Portanto, quando nos referimos ao cuidado oferecido por instituições às crianças e, mais especificamente, às crianças que vivem com Aids, também retomamos a esses mecanismos, sendo relevante ressaltar, de acordo com Cruz (2005), que por vezes a família pode ser colocada em posição inferior à instituição, podendo fazer com que as crianças que vivem nessas organizações tenham suas histórias escritas a partir desse ponto, muitas vezes negligenciando seu passado e sua história. Nesse cenário reside a influência das instituições na transmissão de discursos relacionados ao cuidado e ao lugar que a infância deve ocupar e a necessidade de se avaliar os enunciados que os compõem.

Foucault (1977), refletindo sobre o poder das instituições, chamou de Disciplina "os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo" (p.126) e impõem a docilidade. A docilidade do corpo significa que esse pode ser utilizado, aperfeiçoado, fazendo da criança, controlada, um objeto de poder. Constrói-se, portanto, uma prática discursiva a respeito da infância com Aids, sobre o que os adultos, que depositam na infância a esperança de um futuro próspero, acreditam ser a forma correta de se lidar, sobre o que as instituições acreditam ser sua forma de contribuir e sobre o que o governo acredita ser possível de ser feito em termos de ações para esse público e, dessa forma, exerce-se o controle sobre essa infância, que na maioria das vezes é falada por um outro (Cruz, 2005).

Coadunando com essa visão de instituição-casa, esses espaços de cuidado começam a ser procurados à medida que vai sendo construída uma imagem a respeito da família, de incompetência e incapacidade de exercer esse cuidado. Tais famílias que vivem e convivem com Aids e em situações de precariedade financeira têm inúmeras necessidades, aliadas ao desemprego e ausência de suportes básicos. São, muitas vezes, rotuladas como "desestruturadas" de acordo com o discurso vigente na sociedade sobre a representação de família (Abadia-Barrero & Cruz, 2005).

Não se trata, portanto, de ser contra ou a favor das instituições, que cumprem importante papel na superação de adversidades trazidas pelo HIV, porém, segundo Cruz (2005), é necessário problematizar, questionar o atendimento dispensado à infância vivendo com HIV/Aids, fomentando espaços de diálogo, indo na via inversa à desqualificação da família, que muitas vezes fica em uma posição de incapaz de exercer o cuidado.

Um lugar também é estabelecido para a família, como consequência a um forte julgamento moral que impõe a "desestrutura" como adjetivo para essa. De acordo com Cruz (2005), romper com o modelo de instituição como depositária de crianças é importante, abordando uma ideia de família no ato de cuidar. Porém, é preciso que não se estabeleça uma espécie de competição entre quem é mais ou menos qualificado para cuidar da criança, mas sim fazer desse cuidado uma possibilidade de reinventar atos de amor, de refletir sobre o compromisso que dizemos ter com a infância e trazê-la de volta para o centro de nossas atenções.

Nesta teia de discursos, lugares são erigidos e sustentados pela "produção" de uma infância que depende desses artifícios criados pela sociedade para atendê-las. É essa atribuição de sentidos e o olhar que destinamos às experiências relacionadas à epidemia que então "produzem" essa infância com Aids, e não a Aids, imbuída de uma enorme proporção, que inventa esses sujeitos. Portanto, revisitar conceitos como o de instituição, família e cuidado se faz necessário, assim como identificar os discursos que envolvem as crianças vivendo com HIV/Aids e o poder desse discurso na delimitação de lugares e ações (Cruz, 2005).

O poder do discurso

É considerando o poder dos discursos que envolvem a criança que se torna relevante analisar a construção e intervenção desses. Foucault (2001) questiona, então, "o que há de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente?" e aponta que:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder ... o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (p.10).

Pela via dessas interdições do discurso, "pessoas vivendo com Aids" e espaços de isolamento e solidão são produzidos, pautados na exclusão do "diferente". O discurso vai sendo tecido silenciosamente, a partir de (pré) conceitos e olhares, sobre o que é correto e o que é errado, sobre o que é autorizado e o que não é, julgado de acordo com os paradigmas da sociedade (Cruz, 2005).

Já que se fala de "produção" de lugares, Foucault (1977) chama a atenção para o fato de somente tomarmos o poder e seus efeitos como algo negativo, que exclui, reprime, mascara e censura, enquanto que "na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campo de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção" (p.172).

Todavia, há de se ter cuidado, então, com essa produção de regimes de verdade, em que os micropoderes atuam, quando a produção de que se trata é de sujeitos, de um lugar social da diferença e de uma infância moldada a partir de discursos engendrados em um preconceito anterior a ela. Uma infância revelada como espelho de nós mesmos, que descortina o que queremos esconder (Cruz, 2005).

Nesse contexto, torna-se saudável problematizarmos e nos questionarmos de que espelhos estamos servindo para as crianças com Aids, que verdades estamos transmitindo a elas, quando, com o poder de nosso olhar, designamos lugares de exclusão social, insistindo em olhar para o mesmo, quando elas nos convidam a olhar para o novo (Cruz, 2005).

Em um contexto no qual as crianças são vistas como depositárias de esperança, como a chance de, através delas, realizarmos o que não conseguimos, a infância com Aids quebra esse espelho, contraria nossos planos, expõe nossos medos. Ela denuncia essa idealização e traz à luz valores e conceitos arraigados, entremeados em um discurso capaz de esconder preconceitos e estigmas (Cruz, 2005).

Sobre esse jogo especular, Cruz (2005) questiona:

Quem sabe então, se, quando choramos pelas crianças que morreram e morrem em decorrência do HIV, não estamos chorando por nós mesmos, pela quebra desse espelho, tanto de infinitude como de controle e domínio da vida (domínio tecido nas teias do biopoder descrito por Foucault). Será que choramos pela quebra da idéia de que o NOVO pudesse nos salvar, nos redimir de alguma coisa nas nossas vidas, que não fomos capazes de dar conta? O que vem (a criança) é o depositário de nossa esperança de que algo poderia ser diferente. Mas se a vida do que vem é uma vida tida como breve, estaríamos condenados portanto ao MESMO e não teríamos a oportunidade do NOVO (que deixaria de ser possível em decorrência da morte). (p.136)

Nesse sentido, a criança com Aids não se encaixa mais no papel de continuidade, não serve mais como o espelho do imaginário adulto. Daí a necessidade de o adulto reinventar seu olhar e seus conceitos. Porém, este convite de reinvenção da existência de fato não é tarefa fácil. É convidar a mexer em construções solidificadas, questionar conceitos estruturados, abordar medos, preconceitos e angústias escondidas com muito esforço (Abadia-Barrero & Cruz, 2005).

Saberes e verdades são construídos em meio aos mecanismos do poder e proliferados pela via do discurso a respeito da infância, da Aids e consequentemente da infância com Aids. Mas essas verdades se veem desconstruídas quando o espelho se quebra e nos deparamos com a finitude da vida. A criança, quando reduzida à doença, torna-se representante do que não queremos ver, do que não queremos tocar e, com isso, ela é enredada em discursos que dizem a respeito de si, mas muitas vezes não as escutam.

Foucault (2001) ainda afirma que o que salta aos nossos olhos é a verdade embasada na riqueza, na força e na fecundidade. Dessa forma, muitas vezes a exclusão dos que pretendem contornar a vontade de poder ou desviar dos moldes de verdade é ignorada, designando lugares sociais a serem ocupados, nem sempre acolhedores, como no caso da Aids. Nesse mecanismo, a infância que contradiz os moldes erigidos pela sociedade recebe o lugar do interdito.

Dentro desse contexto, no qual a prática discursiva é capaz de marcar um lugar social da diferença, uma renovação do olhar se faz necessária, não somente voltada para as crianças portadoras do HIV, mas também ao que temos como conceito de infância, que segundo a tese de Corazza (2002) "nunca foi realmente assumida, efetivada, praticada, como uma idade, etapa ou identidade específicas" (p.196). A autora ainda destaca a necessidade de assumir a responsabilidade ética sobre o que fazemos com a infância, transformando profundamente os modos de dizer e olhar nossas relações com o infantil.

É necessário enfrentar essa ordem discursiva que tem poder de criar verdades sobre a Aids, verdades que em seus regimes, contém preconceitos e estigmas associados ao aperfeiçoamento dos mecanismos sutis, que tentam eliminar as diferenças (Kramer & Leite, 1996). Repensar a linguagem que inventa sujeitos dentro dos jogos de poder de nossa sociedade, de acordo com Cruz (2005), é dar espaço aos fios de resistência que lutam contra a restrição de horizontes e, muitas vezes, restrições a si mesmos.

Porém, contrariando muitos desses discursos, aparecem as resistências, nas quais as crianças e adolescentes se contrapõem a esse controle. Eles participam, falam sobre Aids, desejam namorar, ter filhos, viver. Entende-se que não negar o discurso que a instituição sustenta também é uma forma de resistir, preservando o direito de sentir-se diferente. Outra forma que pode ser assumida pela resistência é o aparecimento do que a instituição chama de "problemas" (como os de comportamento, ou adesão ao tratamento) que a criança que vive causa, pois não se encaixa no papel de doente, mais facilmente controlável (Cruz, 2005).

De acordo com Foucault (1985), o discurso tem o poder de dar lugar, e onde existe o poder, também existe resistência. Pautada na esperança dessas resistências infantis que, de forma corajosa e criativa, contrariam a manipulação e escapam desses discursos que as encapsulam, Cruz (2005) ressalta que é possível que as crianças encontrem "parceiros de resistência, que mesmo com dúvidas e dificuldades arrisquem-se a tentar alguma mudança" (p.120).

Repensar as verdades que construímos através do discurso e o compromisso que dizemos ter com a infância é avaliar o nosso papel enquanto cidadãos e produtores de realidade, nos colocando ao lado da criança, para que ela possa enfrentar e elaborar as adversidades que podem se encontrar em seu caminho (Cruz, 2005).

Reinventando olhares, caminhamos no sentido de reinventar ações, lugares, espelhos... E como Cruz (2005) aponta, antes de exigirmos respostas de como fazer, é relevante pensarmos na necessidade de mudarmos as perguntas, construindo novos caminhos com as crianças, e não só para elas. É preciso demonstrar que não nos convencemos com certas verdades e estamos dispostos a, com o poder de nossos discursos, criar sim lugares, mas que esses sejam de acolhimento e solidariedade.

Considerações finais

É relevante observarmos que as crianças portadoras de HIV/Aids também estão inseridas no contexto maior das lutas e prevenção à Aids e, portanto, merecem maior número de estudos e ações que se preocupem com o tratamento da doença e as taxas de incidência de transmissão, mas também que olhem para as crianças como seres que querem viver, estudar, brincar, falar sobre o que sentem e serem ouvidos.

A criança portadora do vírus HIV torna-se portadora da denúncia, que nos remete a nossa fragilidade diante do novo, por ser uma infância que trai os moldes da infância idealizada e representante do imaginário adulto. Como consequência a isso, e utilizando a via das interdições dos discursos, lugares são erigidos para que a diversidade os ocupe. Lugares que escondam de nós mesmos nossos preconceitos, nossos medos, nossas angústias. Lugares que deixem longe de nós o que não queremos ver, o que não queremos tocar e o que não temos coragem para mudar.

Quando Foucault questiona sobre o perigo da proliferação indefinida dos discursos, podemos concluir que o perigo é este, de que através dos discursos e da estagnação de pré(conceitos) se estabeleçam lugares de exclusão e discriminação. Porém é com a mesma ferramenta que podemos mudar, reinventar olhares e descobrir novos caminhos.

Pela via desse olhar voltado para o novo, que não se vê encarcerado pela repetição, fomentamos a criação de um novo lugar para a infância com Aids. Um lugar mais humano, com discursos que atravessem o preconceito e a exclusão, encontrando apoio em pessoas que em seu espaço não se contentam em fechar os olhos diante do que acontece em sua volta. Assim, caminhamos na tentativa de modificar os rumos da história da Aids, fazendo com que os personagens tenham a chance de tecer suas histórias com as próprias mãos.

Nota

Referências

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Recebido em: 09/04/2009

Revisão em: 29/04/2010

Aceite em: 21/05/2010

Lara Brum de Calais é Psicóloga, mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Endereço: R. Floriano Peixoto, 938/04, Centro. Juiz de Fora/MG, Brasil. CEP 36015-440. Email: laracalais@hotmail.com

Maria Ângela das Graças Santana de Jesus é Psicóloga, Mestre em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior

de Juiz de Fora – CES/JF. Professora do curso de Psicologia do CES/JF.

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  • 1
    Tal conceituação pode ser encontrada na página do Ministério da Saúde, na seção "Aprenda sobre HIV e Aids":
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      21 Maio 2010
    • Revisado
      29 Abr 2010
    • Recebido
      09 Abr 2009
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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