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PATERNIDADES ENCARCERADAS: REVISÃO SISTEMÁTICA SOBRE A PATERNIDADE NO CONTEXTO DO CÁRCERE

PATERNIDADES ENCARCELADAS: UNA REVISIÓN SISTEMÁTICA DE LA PATERNIDAD EN EL CONTEXTO DE LA CÁRCEL

IMPRISONED PATERNITY: A SYSTEMATIC REVIEW OF PATERNITY IN THE PRISON CONTEXT

Resumo

Este estudo teve por objetivo realizar uma revisão sistemática da literatura sobre a paternidade no contexto do cárcere, a fim de identificar qual o panorama internacional de publicações sobre a temática. A partir da busca em bases de dados internacionais de artigos publicados na íntegra entre 2005 e 2016, identificou-se a coexistência de estudos que compreenderam a paternidade de um modo tradicional, pautada prioritariamente na capacidade de ser provedor, bem como estudos que, sustentados por uma abordagem de gênero, buscaram problematizar os lugares socialmente determinados do pai na família. Considerando as limitações impostas pelos modelos estereotipados e considerando que a prisão reproduz as desigualdades de gênero impostas pela sociedade mais ampla, pontuamos que o estímulo à vivência de uma paternidade mais afetiva e cuidadora pode produzir mudanças não só dentro do contexto do cárcere, mas também no mundo fora das grades.

Palavras-chave:
paternidade; gênero; cárcere

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo realizar una revisión sistemática de la literatura sobre la paternidad en el contexto de la cárcel a fin de identificar el panorama internacional de las publicaciones sobre el tema. A partir de la búsqueda en bases de datos internacionales de los artículos completos publicados entre 2005 y 2016, fue identificada la coexistencia de estudios que comprendieron la paternidad de un modo tradicional, basado principalmente en la capacidad del padre de ser proveedor, así como estudios que, con el apoyo de un enfoque de género, trató de problematizar los lugares socialmente determinados para el padre en la familia. Considerando las limitaciones impuestas por los modelos estereotipados y considerando que la prisión reproduce las desigualdades de género impuestas por la sociedad en general, señalamos que la experiencia de una paternidad más afectiva y protectora puede producir cambios no solo dentro del contexto de la cárcel, sino también en el mundo fuera de la penitenciaria.

Palabras clave:
paternidad; género; cárcel

Abstract

This study aimed to perform a systematic review of the literature on fatherhood in the prison context in order to identify the international panorama of publications on the subject. From the search in international databases of articles published in full between 2005 and 2016, it was identified the coexistence studies which understand fatherhood in a traditional way, based primarily on the ability to be a provider, as well as studies which, supported by a gender approach, sought to question the socially determined positions of the father in the family. Considering the limitations imposed by stereotyped models and considering that prisons reproduce gender inequalities imposed by the wider society, it was pointed out that the stimulating experience of a more affective and caregiving fatherhood might produce changes not only within the prison context, but also in the world outside bars.

Keywords:
fatherhood; gender; prison

Introdução

Tomando por base uma perspectiva social, é possível identificarmos que a paternidade tem assumido contornos diversos conforme o passar do tempo. Em função da pluralidade de arranjos familiares que coexistem com o modelo nuclear e que revelam a construção de diferentes formas de relação, o papel paterno encontra-se atualmente em uma fase de “transição social” (Cia, Williams, & Aiello, 2005Cia, F., Williams, L. C. A., & Aiello, A. L. R. (2005). Influências paternas no desenvolvimento infantil: revisão da literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 9(2), 225-233. DOI: 10.1590/S1413-85572005000200005
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, p. 226). Isto equivale a dizer que, questionando a visão tradicional que atribui ao pai a função prioritária de provedor financeiro, estudos demonstram que os homens têm dividido com as mães, cada vez mais, as responsabilidades com o cuidado e a educação dos filhos (Colleti & Scorsolini-Comin, 2015Colleti, M. & Scorsolini-Comin, F. (2015). Pais de primeira viagem: a experiência da paternidade na meia-idade. Psico, 46(3), 374-385. DOI: 10.15448/1980-8623.2015.3.19335
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; Vieira & Souza, 2010Vieira, E. N. & Souza, L. (2010). Guarda paterna e representações sociais de paternidade e maternidade. Análise Psicológica, 28(4), 581-596. DOI: 10.14417/ap.376
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).

É fato que as transformações pelas quais o ideal de paternidade tem passado abriram espaços para novos estudos envolvendo essa temática. No entanto, em relação ao sistema prisional, enquanto a maternidade tem sido foco de pesquisas que visam a entender o impacto do encarceramento feminino na experiência de ser mãe (Cúnico, Brasil, & Barcinski, 2015Cúnico, S. D., Brasil, M. V., & Barcinski, M. (2015). A maternidade no contexto do cárcere: uma revisão sistemática. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(2), 509-528. ; Forsyth, 2003Forsyth, C. J. (2003). Pondering the discourse of prison mamas: a research note. Deviant Behavior: an interdisciplinary journal, 24(3), 269-280. DOI: 10.1080/713840202
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; Haney, 2013Haney, L. (2013). Motherhood as punishment: the case of parenting in prison. Journal of women in culture and society, 39(11), 105-130. ), a paternidade nesse mesmo contexto é raramente discutida. Além disso, se por um lado encontramos programas ou grupos de apoio que tenham por foco a questão da maternidade em alguns presídios femininos, os mesmos raramente são oferecidos aos homens, muito embora o número de homens que são pais e que estão privados de liberdade seja bastante elevado (Arditti, Lambert-Shute, & Joest, 2003Arditti, J. A., Lambert-Shute, J., & Joest, K. (2003). Saturday Morning at the Jail: Implications of Incarceration for Families and Children. Family Relations, 5(3), 195-204. ; Hairston, 2003Hairston, C. F. (2003). Prisoners and their families: parenting issues during incarceration. In J. Travis & M. Waul (Eds.), Prisoners once removed: the impact of incarceration and reentry on children, families and communities (pp. 259-282). Washington, DC: Urban Institute Press. ; Haney, 2013).

Mesmo que se admita que exista um movimento que se fortalece na atualidade, o qual busca questionar antigos valores, abrindo a possibilidade de novas formas de vivenciar o papel de pai, ainda é frequente a vinculação exclusiva da paternidade com a função de prover materialmente os filhos, como se a função de cuidado fosse secundária ou uma escolha dos homens (Bornholdt, Wagner, & Staudt, 2007Bornholdt, E. A., Wagner, A., & Staudt, A. C. P. (2007). A vivência da gravidez do primeiro filho à luz da perspectiva paterna. Psicologia Clínica, 19(1), 75-92. DOI: 10.1590/S0103-56652007000100006
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; Lyra & Medrado, 2000Lyra, J. & Medrado, B. (2000). Gênero e paternidade nas pesquisas demográficas: o viés científico. Estudos Feministas, 8(1), 145-158. ). Assim, aqueles pais que estão cumprindo pena privativa de liberdade podem ser vistos como tendo pouco valor para os filhos, em função de, frequentemente, não se constituírem como provedores durante o encarceramento. Dessa forma, a manutenção do contato entre pai e filho pode ser pouco valorizada (Forsyth, 2003Forsyth, C. J. (2003). Pondering the discourse of prison mamas: a research note. Deviant Behavior: an interdisciplinary journal, 24(3), 269-280. DOI: 10.1080/713840202
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), o que talvez justifique, em parte, a escassez de estudos que se debrucem sobre esses aspectos. Nesse panorama - de escassez de literatura que tenha por foco a paternidade no contexto prisional -, poucos são também os estudos que se detêm sobre essa temática a partir de uma perspectiva analítica de gênero. Gênero, como um construto social, diz respeito a todas as condutas, obrigações e deveres que determinada cultura entende como apropriados para homens e mulheres (Pizzinato, 2007Pizzinato, A. (2007). Identidade e gênero em famílias ciganas: negociações contemporâneas. In M. N. Strey, J. A. Silva, & R. L. Horta (Orgs.), Família e gênero (pp. 57-78). Porto Alegre: EDIPUCRS. ), tendo sido empregado como um meio de rejeição ao determinismo biológico inerente aos termos sexo e diferenças sexuais (Saffioti, 2004Saffioti, H. I. B. (2004). Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. ).

De acordo com Scott (1995Scott, J. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99.), a utilização deste conceito busca dar ênfase a todo um sistema de relações, se constituindo como uma forma primária de dar significado às relações de poder. Nesse sentido, assumir uma abordagem de gênero é assumir uma abordagem crítica de análise que busca novas formas de questionar a priorizar as diferenças e as igualdades não somente entre homens e mulheres, mas também entre homens e entre mulheres, uma vez que tais categorias não são em si universais (Araújo, 2005Araújo, M. F. (2005). Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicologia Clínica, 17(2), 41-52. DOI: 10.1590/S0103-56652005000200004
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).

Partimos do entendimento de que diferentes formas de vivenciar o papel de pai coexistem, o que evidencia que essa experiência se constrói em vários níveis, assumindo contornos distintos ao considerarmos o país, a classe social, e a idade dos pais, por exemplo. Isto significa dizer que não é possível falarmos de um modelo único de vivenciar a paternidade, o que reforça a importância de que a paternidade em contexto de privação de liberdade também seja discutida. Diante do exposto, este estudo teve por objetivo realizar uma revisão sistemática da literatura sobre a paternidade no contexto do cárcere, a fim de identificar qual o panorama internacional de publicações sobre a temática. Para além de buscar contribuir com a literatura que discorre sobre a experiência de ser pai no contexto de aprisionamento, a importância deste estudo está também na problematização do modelo socialmente consolidado do que seria o papel de pai e mãe na família, a partir de uma abordagem de gênero.

Método

De modo a identificar os estudos que tratam sobre a paternidade no contexto de privação de liberdade, e entendendo que, como afirma Monturi (2005Montuori, A. (2005). Literature review as creative inquiry: Reframing scholarship as a creative process. Journal of Transformative Education ,3(4), 374-393. DOI: 10.1177/1541344605279381
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), uma revisão de literatura não é um processo passivo e requer criatividade, dois juízes independentes conduziram uma revisão sistemática nas bases de dados PsycInfo, Scielo, Scopus e Lilacs. A escolha por se realizar um estudo dessa natureza se deu pelo fato de esse processo sistemático ser um procedimento claro e transparente sobre como os documentos de pesquisa foram obtidos (Walker, 2015Walker, S. (2015). Literature Reviews: Generative and Transformative Textual Conversations. Forum: Qualitative Social Research, 16(3), 1-13. DOI: 10.17169/fqs-16.3.2291
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). A busca foi realizada no mês de maio de 2016.

A PsycInfo é uma base de dados em Psicologia, Educação, Psiquiatria e Ciências Sociais, sendo editada pela American Psychological Association (APA). A Scielo é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. A Scopus é uma base multidisciplinar de resumos e de fontes de informação de nível acadêmico. A base Lilacs, por sua vez, é uma base de dados latino-americana de informação bibliográfica em ciências da saúde. A escolha das bases citadas guiou-se por sua representatividade e seu amplo alcance, viabilizando, então, a procura dos artigos dentro da temática desejada.

A busca nas bases foi conduzida por meio da string "fatherhood AND prison", "fatherhood AND male prison", "fatherhood AND correctional institution", "fatherhood AND incarceration", "fatherhood AND penal institution" e "fatherhood AND jail". A busca inicial resultou em 85 estudos. A partir da exclusão de 16 artigos repetidos nas bases, permaneceram 69 referências potencialmente relevantes.

Os artigos foram analisados a partir dos seguintes critérios de inclusão: ser artigo científico, versar sobre o exercício da paternidade no cárcere, estar disponível na íntegra, pertencer ao período de 2005 a 2016 e estar publicado em português, espanhol ou inglês. Dos 69 selecionados, 48 não se enquadraram nesses requisitos, sendo, portanto, excluídos. Os 21 estudos remanescentes foram novamente avaliados, agora pelos critérios de exclusão, a saber: não versar sobre a paternidade adolescente, não ter como foco a discussão sobre a criminalidade masculina ou as formas e desafios da reinserção do preso na comunidade. Com base nesses critérios, 07 estudos foram retirados, restando 14 artigos no banco de dados final. O procedimento de busca é apresentado na Figura 1.

Figura 1:
Procedimento de busca

Os dados dos 14 artigos foram extraídos e separados em uma planilha do Excel, que incluía o nome do estudo, nome dos autores, ano e país de publicação, abordagem do estudo e perfil dos participantes. Esses componentes são expostos de forma sintetizada na Tabela 1.

Tabela 1:
Descrição de características dos estudos revisados

Resultados

No que tange à origem de publicação dos estudos, os países que mais desenvolveram estudos sobre o tema no período pesquisado foram os Estados Unidos da América (EUA), com sete artigos publicados, e Portugal, com três artigos. Impende mencionar que não foi encontrado nenhum estudo brasileiro que versasse sobre a temática, confirmando a pouca expressividade nacional de publicações no que se refere às problematizações da paternidade no contexto de encarceramento. Quanto ao tipo de abordagem do estudo, as pesquisas com caráter quantitativo foram as mais empregadas (sete), seguidas das pesquisas qualitativas (cinco) e das pesquisas etnográficas (duas). Em relação ao perfil dos participantes, oito estudos tinham como base pais que estavam em situação de privação de liberdade e um contava com a participação de ex-detentos. Os demais utilizavam dados do Fragile Families and Child Wellbeing Study, estudo americano realizado com mais ou menos 5.000 crianças nascidas nos EUA entre os anos de 1998 e 2000.

No que tange aos conteúdos explorados pelos artigos selecionados para esta revisão, identificamos que um dos pontos abordados de forma recorrente foi a associação entre o encarceramento do pai e a provisão financeira dos filhos. Nesse panorama, os artigos de Schwartz-Soicher, Geller, e Garfinkel (2011Schwartz-Soicher, O., Geller, A., & Garfinkel, I. (2011). The effect of paternal incarceration on material hardship. Social Service Review, 85(3), 447-473. DOI: 10.1086/661925
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), bem como o de Geller, Garfinkel, e Western (2011Geller, A., Garfinkel, I., & Western, B. (2011). Paternal incarceration and support for children in Fragile Families. Demography, 48(1), 25-47. DOI: 10.1007/s13524-010-0009-9
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) buscaram estimar em que extensão o encarceramento paterno tem impacto no aumento da dificuldade financeira da família. A partir da análise dos dados coletados pelo estudo do Fragile Familes, os estudos concluem, de modo geral, que o encarceramento reduz significativamente as contribuições materiais que os pais faziam às suas famílias, além de desestabilizar as relações familiares e dificultar a inserção dos homens no mercado de trabalho após a libertação. Nesse sentido, as famílias em que os pais têm histórico de encarceramento estão mais propensas a passarem por dificuldades financeiras e/ou estarem em condições de pobreza extrema do que aquelas em que o pai nunca passou pela prisão.

Por meio de entrevistas realizadas com ex-detentos em Hong Kong, a pesquisa conduzida por Chui (2016Chui, W. H. (2016). Voices of the incarcerated father: struggling to live up to fatherhood. Criminology & Criminal Justice, 16(1), 60-79. DOI: 10.1177/1748895815590201
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) buscou explorar algumas das dificuldades enfrentadas por pais encarcerados em relação à sua identidade paterna. O autor identificou que todos os participantes relataram não terem vivenciado integralmente a responsabilidade de ser pai tanto durante o encarceramento quanto depois. As restrições financeiras causadas pela prisão foram cruciais para influenciar a identidade de pai dos participantes, dificuldades essas que se mantiveram como obstáculo mesmo após a libertação do pai. No entanto, apesar de todas as dificuldades relatadas, os homens, embora em níveis distintos, estavam de alguma forma fazendo esforços positivos em direção a resgatar os seus padrões de serem bons pais, como usar o encarceramento para ensinar os filhos sobre boa conduta, por exemplo.

A manutenção do contato entre pai e filho também foi um dos temas abordados nos estudos revisados. O estudo de Swisher e Waller (2008Swisher, R. R. & Waller, M. R. (2008). Confining fatherhood: incarceration and paternal involvement among nonresident white, African American and latino fathers. Journal of family issues, 29(8), 1067-1088. DOI: 10.1177/0192513X08316273
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), cujo objetivo foi examinar as diferenças étnicas e raciais na manutenção do contato com os filhos, bem como com o suporte financeiro formal e informal dado a eles num contexto de encarceramento paterno, identificou que o impacto desse encarceramento tendia a ser menor em famílias latinas e afro-americanas. Uma das explicações sugeridas pelos autores baseou-se no entendimento de que o estigma do encarceramento talvez seja menor em famílias de tais descendências quando comparadas às de descendência branca.

O estudo de Arditti, Smock, e Parkman (2005Arditti, J. A., Smock, S. A., & Parkman, T. S. (2005). “It’s been hard to be a father”: a qualitative exploration of incarcerated fatherhood. Fathering, 3(3), 267-288. DOI: 10.3149/fth.0303.267
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) que, por sua vez, buscou compreender as percepções de pais encarcerados sobre a paternidade e a natureza de envolvimento mantido com seus filhos durante o período de prisão, pontuou que a prisão representava um período de “dormência” dos pais no que se refere à paternidade. Ademais, a liberdade era entendida como uma oportunidade de começar de novo, de estar perto e fazer a diferença na vida dos filhos. Assim, os pais tinham fantasias e expectativas otimistas a respeito do seu retorno para a vida dos filhos e de suas famílias quando ganhassem a liberdade. Os autores identificaram, também, a mãe ou a cuidadora dos filhos como tendo potencial para influenciar em como os homens se veem como pais, uma vez que são elas as mediadoras do contato entre pai e filho, podendo encorajar ou obstaculizar esse contato.

A centralidade materna na manutenção do convívio entre pai e filho no contexto do cárcere também foi abordada no estudo de Machado e Granja (2013Machado, H. & Granja, R. (2013). Paternidades fragmentadas: género, emoções e (des)conexões biogenéticas e prisionais. Análise Social, 48(3), 550-571. ). Tal pesquisa buscou entender qual é o modelo em que se espelham e quais são as atribuições de sentido à paternidade que são dadas pelos pais encarcerados em uma prisão portuguesa. As autoras concluem que, em alguns contextos, os filhos são encarados como uma extensão da relação com a mãe. Assim, quando o laço entre o pai e a mãe não é estável ou enfraquece, isso repercute na relação parental, promovendo distanciamento entre o pai e as crianças. Esaa situação reflete padrões de envolvimento dos pais com os filhos delimitados por construções sociais de gênero, as quais atribuem à mulher a função primordial de cuidado e uma função periférica ao pai.

Nesse mesmo viés, Granja, Cunha, e Machado (2013Machado, H. & Granja, R. (2013). Paternidades fragmentadas: género, emoções e (des)conexões biogenéticas e prisionais. Análise Social, 48(3), 550-571. ) realizaram sua pesquisa com homens e mulheres privados de liberdade objetivando compreender as formas de envolvimento entre pais/mães e seus filhos de maneira a desvendar quais são alternativas encontradas para exercer sua parentalidade em meio prisional. O estudo aponta que a pouca presença de alguns pais e mães na vida dos filhos antes da reclusão demonstra que a presença física em contexto de liberdade não significa automaticamente um envolvimento de proximidade e intimidade com os filhos. Por outro lado, homens e mulheres encarcerados demonstram como a sua ausência em função do encarceramento não constitui um contexto de rupturas e deteriorações relacionais. Paradoxalmente, para as autoras, a prisão pode se constituir como um cenário favorável à vivência da parentalidade.

O reconhecimento de que a prisão, ao contrário do esperado, possa se tornar um espaço de desenvolvimento de potencialidades parentais também foi um dos pontos da pesquisa de Secret (2012Secret, M. (2012). Incarcerated fathers: exploring the dimensions and prevalence of parenting capacity of non-violent offenders. Fathering, 10(2), 159-177. ). O estudo teve por objetivo explorar o nível e a natureza multidimensional da capacidade parental, definida como as qualidades psicológicas e pessoais associadas a uma parentalidade positiva de homens encarcerados que são pais. A autora conclui que, apesar das dificuldades e mudanças associadas ao encarceramento, muitos pais em instituições de segurança mínima, da mesma forma que pais não-residentes por outros motivos, continuam a ter contato com seus filhos podendo exercer uma paternidade efetiva mesmo por trás dos muros da prisão.

Vieira, Saavedra, e Araújo (2015Vieira, C., Saavedra, L., & Araújo, A. M. (2015). Preservando a relação com os/as descendentes menores: padrões de comunicação na maternidade e paternidade em reclusão. Ex aequo, 32, 141-154. ) objetivaram avaliar a frequência da comunicação estabelecida entre pais e mães em reclusão e seus descendentes menores, assim como suas percepções da qualidade da relação e de competência parental percebida por parte dessas figuras. Os autores concluem que, apesar de ser possível identificarmos uma alteração do modelo tradicional de paternidade, com homens mais envolvidos na vida doméstica e parental, ainda existem certas assimetrias de gênero e definições tradicionais de paternidade e maternidade. Essas marcas parecem mais evidentes quando analisadas no período anterior do encarceramento, uma vez que, comparativamente aos homens, as mulheres vivem mais com seus filhos no período pré-reclusão.

A partir de um estudo etnográfico realizado em uma instituição prisional inglesa, Earle (2012Earle, R. (2012). “Who’s the Daddy?” - Ideas about fathers from a Young men’s prison. The Howard Journal of Criminal Justice, 51(4), 387-399. DOI: 10.1111/j.1468-2311.2012.00722.x
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) buscou explorar as maneiras pelas quais as ideias sobre a paternidade são institucionalmente implantadas e pessoalmente experienciadas. Através de entrevistas semiestruturadas e da participação de workshops sobre parentalidade oferecidos aos presos pela instituição carcerária, o autor observou que, nas aulas de parentalidade e nos grupos ofertados na prisão, os pais jovens eram apresentados a uma concepção instrumental de paternidade, com necessidades específicas, aptidões e atitudes que requerem correções.

Também lançando mão de um estudo etnográfico, realizado em uma prisão masculina na Noruega, Ugelvik (2014Ugelvik, T. (2014). Paternal pains of imprisonment: Incarcerated fathers, ethnic minority masculinity and resistance narratives. Punishment & Society, 16(2), 152-168. DOI: 10.1177/1462474513517020
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) buscou discutir sobre os problemas enfrentados pelos presos estrangeiros que são pais, além de refletir sobre as soluções empregadas por eles para tais problemas. O autor problematiza que o impacto do encarceramento é diferente para homens e mulheres e que ser excluído da vida familiar por conta da prisão é algo experienciado de modo particular pelos homens. A privação de liberdade, de bens e serviços, de relações heterossexuais, de autonomia e de segurança são experienciados como um desafio para os homens em um contexto cultural no qual o ideal hegemônico é que os homens devem ser autônomos e viris. Assim, a prisão vai, por meio de suas práticas cotidianas de controle e administração, desafiar a masculinidade dos prisioneiros de várias maneiras.

Prinsloo (2007Prinsloo, C. R. (2007). Strengthening the father-child bond: using groups to improve the fatherhood skills of incarcerated fathers. Groupwork, 17(3), 25-42. ) guiou um estudo qualitativo, realizado por meio da utilização de grupos de trabalho com homens privados de liberdade, cujo objetivo foi descrever a natureza de um projeto em grupo sobre as habilidades da paternidade como o principal método de intervenção em um ambiente prisional e a sua influência em aliviar o impacto do encarceramento nos demais membros da família. Serviços que tenham por objetivo ajudar os pais encarcerados a preservar e fortalecer relacionamentos positivos com os familiares não são a norma. Por essa razão, e em função dos bons resultados do projeto apresentado, a recomendação da autora é que os profissionais sociais se engajem em projetos similares a esse para aliviar o impacto do encarceramento do pai nas crianças e contribuir para melhorar os vínculos entre pai e filhos. A autora finaliza argumentando que os pais que estão na prisão também são pais e, além disso, as crianças filhas de pais encarcerados também precisam da “presença” desses em suas vidas.

O impacto do encarceramento do pai no desenvolvimento infantil também foi temática abordada nos artigos revisados. O estudo de Geller, Cooper, Garfinkel, Schwartz-Soicher, e Mincy (2012Geller, A., Cooper, C. E., Garfinkel, I., Schwartz-Soicher, O., & Mincy, R. B. (2012). Beyond absenteeism: father incarceration and child. Demography, 49(1), 49-76. DOI: 10.1007/s13524-011-0081-9
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), por exemplo, a partir de dados coletados pelo Fragile Families, concluiu que o encarceramento paterno tem consequências importantes para o desenvolvimento socioemocional de crianças pequenas, em especial no que se refere a comportamentos agressivos e problemas de atenção. Nesse contexto, segundo o estudo, os filhos de pais que tinham histórico de encarceramento eram mais agressivos se comparados às crianças cujos pais nunca haviam sido encarcerados. Essa agressividade era ainda mais significativa quando relacionada a aprisionamentos recentes, sendo mais forte e intensa em meninos do que em meninas. Em estudo semelhante, Perry e Bright (2012Perry, A. & Bright, M. (2012). African American fathers and incarceration: paternal involvement and child outcomes. Social Work in Public Health, 27(1-2), 187-203. DOI: 10.1080/19371918.2011.629856
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) buscaram identificar a influência do histórico prisional paterno no comportamento infantil e investigar o impacto do encarceramento em massa em famílias afro-americanas. A desestabilização na relação conjugal dos pais, consequência do encarceramento do pai, mostrou-se um dos maiores preditores do mau comportamento de crianças.

Discussão

É sabido que a instituição prisional não costuma ter como prioridade a facilitação do convívio entre pai e filho, contrariamente ao que acontece com relação à mãe encarcerada e seus filhos. Isto porque é frequente a veiculação da ideia de que a recuperação das mulheres privadas de liberdade está associada à confirmação do seu desejo e da sua vivência da maternidade. Sendo assim, a instituição prisional tende a reforçar a domesticidade e o desejo de ser uma boa mãe em função de entender que aquelas que buscam manter o contato com os filhos têm maiores chances de reabilitação (Shamai & Kochal, 2008Shamai, M. & Kochal, R. B. (2008). “Motherhood starts in prison”: the experience of motherhood among women in prison. Family process, 47(3), 323-340. DOI:10.1111/j.1545-5300.2008.00256.x
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). No caso dos homens, por outro lado, o exercício da paternidade não é usualmente considerado um ícone de redenção, uma vez que é por meio do reforço do ideal de homem trabalhador que a ideia de recuperabilidade se sustenta (Miyamoto & Krohling, 2012Miyamoto, Y. & Krohling, A. (2012). Sistema prisional brasileiro sob a perspectiva de gênero: invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada. Direito, Estado e Sociedade, 40, 223-241. DOI: 10.17808/des.40.173
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). Nesse sentido - de vinculação do feminino quase que exclusivamente com a maternidade e do masculino com a provisão material -, percebemos que as instituições prisionais reforçam e perpetuam os estereótipos de gênero da sociedade mais ampla, não contribuindo para a sua modificação (Cúnico et al., 2015Cúnico, S. D., Brasil, M. V., & Barcinski, M. (2015). A maternidade no contexto do cárcere: uma revisão sistemática. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(2), 509-528. ).

Dessa forma, a importância em assumir uma perspectiva de gênero ao tratarmos da temática da paternidade no cárcere está no reconhecimento de que a experiência da prisão impacta de modo diferente homens e mulheres, precisando ser compreendida a partir dessas singularidades. Dos 14 artigos selecionados para esta revisão, apenas cinco foram sustentados por uma abordagem de gênero em suas análises, sendo um proveniente do Reino Unido (Earle, 2012Earle, R. (2012). “Who’s the Daddy?” - Ideas about fathers from a Young men’s prison. The Howard Journal of Criminal Justice, 51(4), 387-399. DOI: 10.1111/j.1468-2311.2012.00722.x
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), um da Noruega (Ugelvik, 2014Ugelvik, T. (2014). Paternal pains of imprisonment: Incarcerated fathers, ethnic minority masculinity and resistance narratives. Punishment & Society, 16(2), 152-168. DOI: 10.1177/1462474513517020
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) e três de Portugal (Granja et al., 2013Granja, R., Cunha, M. P., & Machado, H. (2013). Formas alternativas do exercício da parentalidade: paternidade e maternidade em contexto prisional. Ex aequo, 28, 73-86. ; Machado & Granja, 2013Machado, H. & Granja, R. (2013). Paternidades fragmentadas: género, emoções e (des)conexões biogenéticas e prisionais. Análise Social, 48(3), 550-571. ; Vieira et al., 2015Vieira, C., Saavedra, L., & Araújo, A. M. (2015). Preservando a relação com os/as descendentes menores: padrões de comunicação na maternidade e paternidade em reclusão. Ex aequo, 32, 141-154. ). De modo geral, embora tratando de aspectos culturais distintos, esses artigos problematizaram as diferenças envolvidas no exercício da maternidade e da paternidade. Tais diferenças são reforçadas e projetadas também no contexto prisional, uma vez que se assume a centralidade da mãe na vida dos filhos, mesmo em situação de encarceramento. Ao pai, em contrapartida, ainda é destinada uma função periférica, que envolve prioritariamente a sua capacidade de sustentar financeiramente os filhos, não contemplando a necessidade de sua presença emocional na vida das crianças. Nesse entendimento, temos a perpetuação de uma visão simplista e baseada no binarismo de gênero que entende, por exemplo, que ser pai é algo que deve ser aprendido, ao passo que a maternidade é naturalizada, isto é, as mulheres já nascem sabendo ser mães.

Portugal, com três artigos publicados, se apresentou como um país que direciona seu olhar para a desigualdade de gênero, tensionando a reprodução de uma cultura prisional engessada e sexista. Granja et al. (2013Granja, R., Cunha, M. P., & Machado, H. (2013). Formas alternativas do exercício da parentalidade: paternidade e maternidade em contexto prisional. Ex aequo, 28, 73-86. ) afirmam que o contexto de encarceramento provou ser um cenário favorável à vivência da paternidade e, inúmeras vezes, um facilitador à reconstrução de laços parentais. Situação que aponta para as contradições implícitas no sistema prisional, na medida em que tal sistema parece operar simultaneamente processos de apagamentos subjetivos, de visibilização pessoal e de afirmação de potencialidades (Barcinski & Cúnico, 2014Barcinski, M. & Cúnico, S. D. (2014). Os efeitos (in)visibilizadores do cárcere: as contradições do sistema prisional. Psicologia Portugal, 28(2), 63-70. ). Ademais, a prioridade portuguesa pelos estudos qualitativos - uma vez que dois dos três estudos aqui analisados são dessa abordagem - parece demarcar uma preocupação maior de estudos que contemplem a vivência e os significados atribuídos a essa paternidade encarcerada.

O estudo norueguês (Ugelvik, 2014Ugelvik, T. (2014). Paternal pains of imprisonment: Incarcerated fathers, ethnic minority masculinity and resistance narratives. Punishment & Society, 16(2), 152-168. DOI: 10.1177/1462474513517020
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), apesar de relatar que a cultura norueguesa traz indícios de grandes avanços no que se refere às questões de gênero, apontando para relações mais igualitárias, identificou discrepâncias entre tais avanços e o entendimento dos pais privados de liberdade. Para esses homens, os valores parentais igualitários difundidos na Noruega eram os responsáveis pelo declínio moral da juventude norueguesa. Isso porque os participantes - homens privados de liberdade - entendiam que meninos e meninas eram fundamentalmente diferentes e, por isso, deviam ser criados de formas diferentes. Sendo assim, a forma de exercer a parentalidade por eles estava vinculada com a ideia de que as filhas devem se encarregar pela honra da família e pelo cuidado para com outros, o que seria ensinado pelo pai como forma de passar seus valores familiares em frente. Já ao filho homem o pai ensinaria a ficar encarregado de manter o respeito quanto ao nome da família, a ser firme, forte, viril e dominador. Características diametralmente opostas ao modelo igualitário conquistado, ao menos em parte, na Noruega.

Rod Earle (2012Earle, R. (2012). “Who’s the Daddy?” - Ideas about fathers from a Young men’s prison. The Howard Journal of Criminal Justice, 51(4), 387-399. DOI: 10.1111/j.1468-2311.2012.00722.x
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), por sua vez, se refere à permanência e reprodução do mito da família nuclear mesmo em situação de encarceramento. Embora diversas configurações familiares coexistam atualmente com o modelo nuclear, sendo este apenas um entre tantos outros, o mito relacionado à singularidade e solidez da família nuclear segue presente. A idealização de relações simétricas e de intimidade é sustentada mesmo quando a realidade familiar revela o oposto disso. Nesse sentido, as ideias sobre a paternidade ainda se mantêm em crenças históricas, longe das discussões sobre as masculinidades que vieram à tona na esteira dos estudos feministas e dos movimentos sociais que reposicionam criticamente o conceito de gênero e sexualidade nas relações sociais mais amplas de poder e hierarquia.

Os nove artigos que não eram sustentados por uma abordagem de gênero eram, em sua maioria, provenientes dos EUA (Arditti et al., 2005Arditti, J. A., Smock, S. A., & Parkman, T. S. (2005). “It’s been hard to be a father”: a qualitative exploration of incarcerated fatherhood. Fathering, 3(3), 267-288. DOI: 10.3149/fth.0303.267
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; Geller et al., 2012Geller, A., Cooper, C. E., Garfinkel, I., Schwartz-Soicher, O., & Mincy, R. B. (2012). Beyond absenteeism: father incarceration and child. Demography, 49(1), 49-76. DOI: 10.1007/s13524-011-0081-9
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; Geller et al., 2011; Perry & Bright, 2012Perry, A. & Bright, M. (2012). African American fathers and incarceration: paternal involvement and child outcomes. Social Work in Public Health, 27(1-2), 187-203. DOI: 10.1080/19371918.2011.629856
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; Secret, 2012Secret, M. (2012). Incarcerated fathers: exploring the dimensions and prevalence of parenting capacity of non-violent offenders. Fathering, 10(2), 159-177. ; Schwartz-Soicher et al., 2011Schwartz-Soicher, O., Geller, A., & Garfinkel, I. (2011). The effect of paternal incarceration on material hardship. Social Service Review, 85(3), 447-473. DOI: 10.1086/661925
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; Swisher & Waller, 2008Swisher, R. R. & Waller, M. R. (2008). Confining fatherhood: incarceration and paternal involvement among nonresident white, African American and latino fathers. Journal of family issues, 29(8), 1067-1088. DOI: 10.1177/0192513X08316273
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); exceto por um de Hong Kong (Chui, 2016Chui, W. H. (2016). Voices of the incarcerated father: struggling to live up to fatherhood. Criminology & Criminal Justice, 16(1), 60-79. DOI: 10.1177/1748895815590201
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) e um da África do Sul (Prinsloo, 2007Prinsloo, C. R. (2007). Strengthening the father-child bond: using groups to improve the fatherhood skills of incarcerated fathers. Groupwork, 17(3), 25-42. ). As pesquisas americanas trouxeram questões relativas ao bem-estar dos filhos de pais encarcerados, porém com uma ótica ainda tradicional dos papéis de pai na família. Isso porque os principais objetivos dessas pesquisas foram verificar a capacidade dos pais encarcerados em prover vidas economicamente estáveis para os filhos.

Como já mencionado, não foram encontrados artigos nacionais sobre a temática. A pouca expressividade brasileira em estudos que tratem sobre a paternidade no contexto do cárcere contrasta com os números alarmantes da população carcerária no Brasil. Segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (InfoPen), publicado pelo Ministério da Justiça em junho de 2015, o Brasil possui mais de 600.000 pessoas privadas de liberdade. Esses números fazem com que o país alcance o 4° lugar no ranking dos países com os maiores contingentes de pessoas privadas de liberdade. Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento no Brasil cresceu 119%. Os dados oficiais reforçam a preocupação de que, caso mantenha-se esse ritmo de encarceramento, em 2022, a população prisional do Brasil ultrapassará a marca de um milhão de indivíduos (Ministério da Justiça, 2015Ministério da Justiça. (2015). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional/levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias
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). Tais dados nos fazem pensar a importância de que a subjetividade masculina, mais especificamente a paternidade, seja alvo de estudos e trabalhos dentro do sistema prisional, já que há um número expressivo de presos que são pais.

Considerando os estereótipos e preconceitos associados aos indivíduos que estão em privação de liberdade, é possível que discutir sobre a paternidade no cárcere possa ser entendido como algo que não se delineie como prioridade do ponto de vista social. Ademais, ao levarmos em consideração que o modelo de paternidade tradicional ainda se faz demasiadamente presente na nossa sociedade, pensar na vivência de uma paternidade no contexto de prisão pode ser visto como desnecessário. No entanto, além de entendermos que é a partir, principalmente, da manutenção do contato familiar que os encarcerados podem preservar aspectos da própria identidade, reagindo contra o assujeitamento adoecedor do cárcere, compreendemos que propor essa problematização também é essencial para a desconstrução da lógica binarista de gênero que está engessada em nossa cultura. Essa lógica nos diz que a função de cuidado e amparo emocional é - quase que - exclusivamente da mãe, sendo a função primordial do pai ser provedor financeiro, uma vez que não possui as habilidades naturais da mulher para o cuidado e a intimidade.

Quando pensamos em realizar um estudo sob uma ótica de gênero, fomos surpreendidas com a escassez de um tensionamento crítico que faça uso desse olhar no material revisado. Durante anos, a mulher sofreu por viver na pele o que DeSouza, Baldwin e Rosa (2000DeSouza, E., Baldwin, J. R., & Rosa, F. H. (2000). A construção social dos papéis sexuais femininos. Psicologia: Reflexão e Crítica , 13(3), 485-496. DOI: 10.1590/S0102-79722000000300016
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) chamam de “Maria-mulher”, aquela que nasceu para ser mãe e mais nada: construída e naturalizada como fraca, passiva e submissa. Agora, gradualmente, está sendo conquistado um espaço para uma “Maria de negócios”, isto é, um modelo que representa a mulher que escolhe prazeres como trabalhar em locais que, até pouco tempo, eram tidos como exclusivamente masculinos, representando assim o sujeito de possibilidades de práxis sociais que a mulher pode ser.

No entanto, o entendimento de que o principal papel social da mulher se restringe, em especial, ao seu papel de mãe não foi totalmente superado. Nesse contexto, as mulheres seguem sendo pressionadas a serem mães e, consequentemente, mães que se preocupam emocionalmente com os filhos, colocando-os em prioridade sempre. Com elementos diferentes, mas o mesmo quadro se repete com os homens. Deles, não é esperado que abram mão de sua carreira ou que não trabalhem em nome do bem-estar dos filhos. Ao contrário, suas qualidades de pai ainda estão diretamente vinculadas a ter um emprego que possibilite prover financeiramente e materialmente a prole.

Se propusermos um olhar para essas construções que se submetam ao viés de uma ótica de igualdade de gênero, vamos perceber que as possibilidades são inúmeras e diversas. Um pai ser o responsável pela provisão material da família não é negativo por si só, porém essa situação não deveria excluir a possibilidade desse pai ser também sensível ao cuidado dos filhos, dando o suporte emocional de que necessitam. Então por que não existe espaço para possibilidades que vão para além dos estereótipos já consolidados? Pensamos que, talvez, a escassez de estudos que tensionem lugares predeterminados, cultural e socialmente engessados, representa ainda o medo da desconstrução que pode nos tirar de lugares “confortáveis”. A problematização da autoimagem masculina a partir de projetos que incentivem o experienciar da paternidade prisional seria um começo. Pensamos que tais projetos mostrariam que há espaço para o homem viver seu emocional, ser cuidador e se preocupar com o filho, e que isso não é uma “maneira feminina” de viver sua parentalidade e não fere sua masculinidade.

Considerações finais

Este artigo objetivou realizar uma revisão sistemática sobre a paternidade no cárcere, a fim de identificar o panorama internacional de publicações sobre a temática. A revisão manteve um olhar sob a ótica de gênero e buscou tensionar as discussões que tratam da vivência da paternidade nesse contexto. Os estudos selecionados trazem dados que refletem o interesse paterno na manutenção de seu contato com a prole. Dentro de um contexto prisional, eles revisam seus erros e buscam melhorar seu relacionamento com os filhos, mesmo alguns relatando temer que seus atos resultem em má influência para os mesmos. Embora alguns estudos tenham indicado que pais encarcerados têm filhos mais estressados e com pior comportamento, estes mesmos estudos não conseguiram afirmar se tais comportamentos são causados diretamente pelo convívio da criança com a realidade carcerária ou pela ausência do pai, que muitas vezes acontece em período anterior ao encarceramento.

Como já era de se esperar, os estudos analisados indicam que o período de encarceramento produz impacto na vida dos homens, em especial no que tange ao exercício da paternidade. Isso porque os homens ainda são socializados de modo a considerarem que a provisão financeira é a principal função da paternidade. Ao estarem aprisionados, momento em que muitos pais perdem o poder de prover, se percebem frente à possibilidade de desvalorização perante aos filhos, de negligência perante a sociedade que o valorizava e o reafirmava, visto que provia. Naturalmente, desestabiliza-se, pois saiu de sua “zona de conforto”: agora, para provar-se bom, são necessários maiores recursos que apenas o dinheiro.

Evidentemente que a paternidade desempenhada na prisão possui particularidades e restrições que são impostas pela própria pena de privação de liberdade. Nesse sentido, não há como supor que o contato entre pai e filho nesse contexto seja nos mesmos moldes do que a paternidade desempenhada fora das grades. Porém, embora a manutenção de vínculo entre pais e filhos no contexto do cárcere contenha diversos atravessamentos, é importante considerar que esse contato pode trazer benefícios para o indivíduo privado de liberdade e para os seus filhos. Isto porque as relações se firmam e se solidificam na convivência e em espaços de troca, nos quais pais e filhos podem expressar o que sentem e o que pensam. Impedir que os filhos convivam com seus pais privados de liberdade é negar-lhes o acesso ao pai que eles têm, ou seja, o pai de sua história. Dito de outra forma, a punição pela transgressão da lei não deveria se estender aos filhos, através da interrupção total do contato com seu genitor. Além destas questões, entendemos que problematizar e incentivar o valor do cuidado e de uma ligação de afeto entre pai e filho também nesse contexto possa contribuir para mudanças maiores. Considerando que a prisão reproduz aspectos estereotipados da sociedade mais ampla, o estímulo à vivência de uma paternidade diferente, isto é, de uma paternidade pautada na igualdade de gênero, pode produzir mudanças não só dentro do contexto do cárcere, mas também no mundo fora das grades.

Como limitação do estudo, salientamos o fato de que se trata de um estudo teórico, composto por artigos de realidades prisionais diversas. Sendo assim, sugerimos que mais estudos empíricos nacionais que tratem sobre a paternidade no contexto da prisão sejam realizados, de modo a contribuir para o entendimento das possibilidades reais da manutenção do contato entre pai e filho ao longo do cumprimento da pena de prisão do pai.

Agradecimentos

Às agências de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [CAPES] - bolsa de doutorado de Sabrina Daiana Cúnico, vinculada ao processo n° 23038.004622/2015-70; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] - Marlene Neves Strey, bolsista produtividade, bolsa vinculada ao processo n° 303421/2013-4.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2016
  • Revisado
    11 Jul 2017
  • Aceito
    24 Jul 2017
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