Acessibilidade / Reportar erro

À saúde de uma psicologia cada vez mais pública

To the health of an increasingly public psychology

RESENHA

À saúde de uma psicologia cada vez mais pública

To the health of an increasingly public psychology

Simone Mainieri Paulon

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil

Resenha de: Ferreira Neto, J. L. (2011). Psicologia, Políticas Públicas e o SUS. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fapemig. 224p.

A análise cuidadosa, investigações rigorosas e reflexões variadas acerca dos efeitos produzidos a partir das aproximações que os psicólogos têm feito ao campo teórico e metodológico das políticas públicas abordadas no livro dão um bom indicativo do quanto o fazer psicológico desses profissionais tem sido progressivamente permeado pelas demandas concretas que os diversos coletivos de nossos muitos "brasis" lhes apresentam. E o fato de que tais demandas passem a constituir não simplesmente novos campos de intervenção, descortinar novos espaços no competitivo mercado de trabalho (em 2006, de saída Ferreira Neto anuncia, O SUS já representava o maior contratador de psicólogos do país), mas também passem a compor e ampliar o campo de análise desses profissionais é, decididamente, uma boa nova. Trazer para o campo de análise da instituição psicologia o que pulsa nos movimentos sociais, o que escapa à clínica tradicional, mas se reapresenta como dispositivo clínico convocado pela análise das implicações dos profissionais em equipes interdisciplinares, buscar nas unidades de saúde aquilo que escapa à racionalidade de uma psicologia asséptica e fazê-la vibrar com o que "pode mais" no encontro que é capaz de produzir entre o aluno do PET-saúde, o agente comunitário de saúde, o "aluno problema" e o trabalhador do posto de saúde ao lado da escola significa forçar os limites daquilo que se instituiu como psicologia, instituindo novos fazeres que ressignificam também aquilo que se foi delineando como território de um saber-poder especializado.

Entre os méritos que vale apontar do trabalho de Ferreira Neto, talvez um dos mais significativos seja precisamente esta abordagem de inspiração genealógica – ainda que o autor tenha a preocupação de grifar que não se trata de trair Foucault falando de uma pretensa psicologia foucaultiana – que rastreia as repercussões da passagem de um campo de trabalho liberal privado para os espaços públicos de atuação junto a segmentos do estado. Daí, importa destacar a referência no capítulo conclusivo (p. 204) a um livro que trabalha "um campo de saberes e fazeres caracterizado por uma multiplicidade e dispersão de tal ordem ... cujo histórico de constituição é marcado mais por hibridismos do que por linhagens puras".

Na análise dessa passagem, o campo da saúde coletiva é privilegiado, sem ser exclusivo, pois além das experiências de pesquisa e intervenção com usuários e trabalhadores do SUS que são narradas (a começar pelo próprio autor, trabalhador que se hibridiza entre a academia e a atenção básica de sua cidade), a rede de conceitos e espaços de intervenção que se vão tramando a cada inserção do psicólogo no incipiente campo das políticas públicas brasileiras vai se complexificando. É assim que a passagem do psicólogo clínico "de consultório" para um CAPS, um CRAS ou um cargo de gestão junto às esferas estatais que reúnem esses serviços opera deslocamentos bem maiores do que meramente no setting em que tais profissionais atuam.

Ao focar as repercussões desse deslocamento na atuação, na formação e na produção teórico-conceitual dos psicólogos, o trabalho de Ferreira Neto abre passagem para uma análise do presente da psicologia no Brasil no mais fiel espírito do genealogista: menos preocupado com o que Foucault disse ou teria a dizer sobre a psicologia e mais atento às descontinuidades que se foram produzindo na história dessa disciplina, focado na "análise dos dispositivos concretos" (p.205) que ajudam a apreendê-la enquanto construção humana, singular e circunscrita histórica e culturalmente em nosso tempo. Como sublinhado por Rodrigues - prefaciadora-traidora em sua função de ordenar o discurso-leitura:

Com seu triângulo formação-ação-teorização, desconstrói meras triangulações a desdobrar, fazendo-o soar, tilintante, ao modo do polígono... ou de multígono-multívoco. Entre a teoria e a prática, ou entre a teoria e a política, mantém-se na defesa intransigente da univocidade dos modos de ser, reconhecendo que não se hierarquizam e que só vale ligar esses pólos para potencializá-los reciprocamente. (p.12)

Para desenvolver essa argumentação, a obra compõe-se de sete capítulos afora o prefácio assinado por Heliana Conde Rodrigues e as considerações iniciais e finais do autor.

O capítulo de abertura enfatiza o vértice formação do triângulo ofertando uma análise abrangente do tema-foco do livro, a partir de uma leitura crítica dos efeitos que as novas demandas do mercado de trabalho têm apresentado aos diferentes modelos formativos presentes nos cursos de graduação. A retomada histórica do processo de democratização do país faz a necessária contextualização para que a conjunção entre política econômica e política de subjetivação seja devidamente compreendida como marca do capitalismo contemporâneo da qual a entrada da psicologia nas políticas públicas é apenas mais uma decorrência. As modificações curriculares que vão acompanhar tal conjuntura são abordadas ainda neste capítulo das "Novas questões para a Formação" do psicólogo e que, de saída, anuncia tratar-se de uma categoria profissional que conta, hoje, não por acaso, com 17 unidades coordenadas nacionalmente pelo sistema Conselhos de Centros de Referência técnica em Psicologia e Políticas Públicas.

Esse debate segue aprofundando uma questão mais conceitual no capítulo dois, intitulado "Subjetividade e Território: para além da interioridade". O triângulo sofre pequena inflexão para fazer ressoar em tons levemente intensificados esta categoria fundante da ciência psicológica calcada na noção de subjetividade. A perspectiva de ampliar a compreensão de uma subjetividade interiorizada – marca do liberalismo econômico traduzido em conceito-ferramenta – para uma geografia da subjetivação, entendida a partir das experiências concretas de vida no território que a inserção nas políticas públicas permite é o mote da problematização trazida nesse capítulo.

Na sequência, "Artes da Existência: Foucault, Práticas Clínicas e Práticas Sociais" faz o que o autor define como sua única análise mais rigorosamente conceitual, na medida em que nele se ocupa, diferente dos demais capítulos, de explorar o conceito de "artes da existência" na obra do filósofo eleito como interlocutor privilegiado.

O capítulo quarto – "Psicologia no SUS: dos impasses e das possibilidades" - retoma o campo da reforma sanitária como foco de análise, fazendo um paralelo crítico com o movimento reformista análogo no campo da saúde mental - a reforma psiquiátrica – a partir da trajetória de participação dos psicólogos na rede de saúde mental de Belo Horizonte. Considerado porta de entrada da psicologia na saúde pública, o trabalho na saúde mental contribuiu muito com o que o artigo define por "desconstrução identitária ainda em curso no âmbito da atuação e formação" (p.108) da psicologia. No desenvolvimento dessa argumentação, o autor discrimina 3 momentos distintos de vivência da reforma psiquiátrica, a saber: (a) de implantação (anos 80), (b) antimanicomial (anos 90) e (c) apoio matricial (séc. XXI). O recente incentivo à implantação dos NASF é apontado, ainda nesse estudo do estado mineiro, como uma nova alavanca às mudanças nas formas de inserção e atuação dos psicólogos nas políticas de saúde.

O tema da "Formação Profissional para a Atuação em Saúde Pública", capítulo em coautoria com Luciana Kind, dá continuidade às abordagens atuais sobre a formação em saúde detendo-se, mais especificamente, no denominado "indesejável divórcio" historicamente existente em nossa realidade entre as Instituições de Ensino Superior e as demandas concretas que o SUS exige. Um estudo dos documentos e primeiras experiências do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - permitem tomá-lo como analisador privilegiado das relações IES-serviços, indicando a possibilidade de que interessantes rearranjos nos processos de trabalho possam surgir tanto na academia quanto nos serviços.

O sexto capítulo ocupa-se da "Clínica Transversalizada em Saúde Mental", problematizando o conceito de Clínica e as mudanças nas práticas clínicas operadas no campo da saúde pública a partir de um estudo realizado com seis psicólogos do Programa de Saúde Mental de um Distrito Sanitário de Belo Horizonte. A pesquisa qualitativa descreve os dilemas que os profissionais vivenciam a partir do encontro das políticas públicas com os serviços locais, fazendo-os lidar com o "entrecruzamento de elementos heterogêneos, menos como um atravessamento dificultador da clínica a ser evitado (conforme o modelo clássico) e mais como fator potencializador de um tratamento que pensa o paciente como sujeito e como cidadão" (p.182).

Finalmente, o capítulo de encerramento da coletânea apresenta-se como interface do anterior na medida em que, ao discorrer sobre uma "Intervenção Psicossocial em Saúde", retoma, em verdade, toda problematização do livro. Curiosamente, a intervenção psicossocial em questão narra uma experiência ocorrida 20 anos antes. Seu caráter intersetorial, o referencial socioanalítico que a embasou e as reflexões acerca da formação-atuação-teorização que a intervenção à época permitiu fizeram com que a escolha por integrá-la ao projeto desse livro soasse muito harmoniosa. De forma não menos curiosa, a prefaciadora elege este como seu capítulo preferido e pinça, entre tantas, as noções de saudade e amizade para alçá-las ao status de dispositivos de análise...

Pudera que o faça ao abrir uma leitura-dobradura que, ousaria dizer, oferece certo "balanço" do processo de institucionalização da profissão Psicologia no Brasil, com todos os ônus e bônus que qualquer processo de institucionalização inevitavelmente carrega. Permite, dessa maneira, análise análoga, ao que a própria obra aqui sintetizada faz, à p. 30, comentando o processo de regulamentação do SUS em nosso país:

O próprio aparato jurídico de regulamentação, uma vez institucionalizado, torna-se instrumento para fortalecer novas lutas sociais e políticas instituintes, pois pode e muitas vezes é utilizado por grupos e movimentos na luta pelo avanço ou consolidação de direitos, mantendo assim a correlação entre instituinte e instituído.

Brindemos, então, à saúde do que esses 50 anos de regulamentação da profissão puderam instituir. Mas brindemos, principalmente, a este movimento instituinte que os textos de Ferreira Neto deixam claro estar constituindo um novo e bem vindo psicólogo alinhado, não sem tempo, às demandas concretas que a vida na polis lhe apresenta.

Recebido em: 04/09/2012

Revisões requeridas 12/10/2012

Aceite em: 05/11/2012

Simone Mainieri Paulon é docente e pesquisadora no PPG de Psicologia Social e Institucional e no PPG de Saúde Coletiva da UFRGS. Endereço: Rua Ramiro Barcelos 2600, sala 212. Porto Alegre/RS, Brasil. CEP 90035 – 003. Email: simone.paulon@ufrgs.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    2013
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com