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GÊNERO E IDENTIDADE: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CULTURA DE NÃO VIOLÊNCIA E EQUIDADE

GÉNERO E IDENTIDAD: POSIBILIDADES Y APORTES A UNA CULTURA DE LA NO VIOLENCIA Y IGUALDAD

GENRE AND IDENTITY: POSSIBILITIES AND CONTRIBUTIONS TO A CULTURE OF NON-VIOLENCE AND EQUITY

Resumo

A sociedade ainda estruturada em moldes patriarcais reforça um preocupante reflexo a respeito da condição de violência contra a mulher. Este trabalho tem como objetivo ajudar a transformar a visão sobre as diferenças entre homens e mulheres, por meio do relato da experiência de um projeto de pesquisa realizado nas escolas públicas da cidade de Catalão-GO, através do Departamento de Psicologia da UFG-RC. A metodologia se deu numa abordagem qualitativa que utilizou uma pesquisa documental para coleta de dados, extraídos de Diários de Campo feitos a partir dos grupos de discussões sobre conceitos importantes como gênero, papéis e violência de gênero durante os anos de 2013 e 2014. Pensando a construção do indivíduo a partir da teoria da Identidade de Antônio da Costa Ciampa, sob uma perspectiva de emancipação, entre os principais resultados deste trabalho está o auxílio para a construção de uma cultura de não violência, de novos valores.

Palavras-chave:
identidade; gênero; violência

Resumen

La sociedad aún estructurada en moldes patriarcales refuerza un preocupante reflejo sobre la condición de violencia contra la mujer. Este trabajo objetiva ayudar a transformar la visión sobre las diferencias entre hombres y mujeres, a través del relato de la experiencia de un proyecto de investigación realizado en las Escuelas públicas de la ciudad de Catalão-GO.

La metodología se dio en un abordaje cualitativo que utilizó de una investigación documental para recolección de datos, extraídos de Diarios de Campo de los grupos de discusiones sobre conceptos importantes como género, papeles y violencia de género durante los años de 2013 y 2014. Pensando La construcción del individuo a partir de la teoría de la identidad de Antônio da Costa Ciampa, bajo una perspectiva de emancipación, entre los principales resultados de ese trabajo está el auxilio para la construcción de una cultura de no violencia, de nuevos valores.

Palabras clave:
identidad; género; violencia

Abstract

The society still structured in patriarchal ways reinforces a worrying reflection on the condition of violence against women. This work aims to help transform the view on the differences between men and women, through the report of the experience of a research project carried out in the public schools of the city of Catalão-GO, through the Department of Psychology of UFG-RC. The methodology was based on a qualitative approach that used a documentary research to collect data, extracted from Field Diaries made from the discussion groups on important concepts such as gender, roles and gender violence during the years of 2013 and 2014. Thinking the construction of the individual from the identity theory of Antônio da Costa Ciampa, from a perspective of emancipation, among the main results of this work is to help building a culture of non-violence, of new values.

Keywords:
identity; gender; violence

Introdução

A violência e as práticas tidas como violentas têm sido definidas e redefinidas pelos grupos sociais, baseados quase sempre em interesses, confrontos, ou seja, nas relações de poder em um determinado contexto social e também histórico. Assim, em suas variadas manifestações, a violência é resultado de diversas dimensões da estrutura e conjuntura de uma sociedade; sua dinamicidade segue o mesmo ritmo em que se dão as mudanças sociais.

De acordo com Berger e Luckmann (1966/2000Berger, P. & Luckmann, T. (2000). A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1966)), o mundo da vida cotidiana se origina no pensamento e nas ações de homens e mulheres comuns e se apresenta como uma realidade interpretada subjetivamente e dotada de sentido para os mesmos de uma maneira que vai se tornando coerente. Essa realidade já surge constituída e objetivada na linguagem como intersubjetividade, a qual marca o rumo da vida das pessoas dando sentido aos objetos e acontecimentos deste mundo. A identidade também, enquanto categoria psico-sócio-histórica, surge, desenvolve-se e se transforma na realidade da vida cotidiana. As mudanças nas situações sociais, na história de vida e nas relações sociais determinam um processo contínuo na compreensão de si mesmo.

Dentre os tipos de violência, aquela praticada contra a mulher é tida como qualquer conduta baseada no gênero que cause dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico tanto no ambiente público como privado, podendo ou não levar à morte. Para se compreender o fenômeno da violência relacionada ao sexismo, é preciso que se refaçam considerações a respeito da construção histórica da mulher ao longo do tempo, de como a figura feminina, vista como mera reprodutora, resguardada ao ambiente privado, esteve em posição inferior à masculina.

Este artigo é fruto das reflexões feitas durante realização de pesquisa de pós- doutorado em Psicologia Social desenvolvido na PUC-SP acerca da violência contra a mulher, em especial a doméstica. O objetivo é o estudo da relação identidade e violência de gênero, no campo escolar, identificando valores e processos de identidade nas circunstâncias e dinâmicas cotidianas dos atores envolvidos; bem como pensar sobre os espaços relacionais que facilitam a interiorização de valores e posturas inerentes à condição cidadã e à cultura de igualdade e equidade de gênero; e também contribuir com a Teoria da Identidade de Antônio da Costa Ciampa, a partir dos estudos sobre igualdade-equidade de gênero.

Esta pesquisa se mostra relevante ao trazer a discussão sobre a violência doméstica no campo escolar, refletindo sobre a existência ou não de práticas escolares voltadas aos estudos de gênero com enfoque na violência doméstica, auxiliando e incentivando os profissionais da educação a abrir caminhos para o diálogo sobre gênero, identidade de gênero e violência, além de articular o conceito de identidade de Antônio Ciampa, com o intuito de questionar as relações de gênero e poder envolvidas na sociedade, que consequentemente refletem na escola. As identidades são construídas dentro, e não fora do discurso; por isso, é necessário entendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Elas emergem no interior do jogo de poder e são, assim, mais que produto da marcação da diferença e da exclusão.

O método de investigação desta pesquisa se deu numa abordagem qualitativa, que se utilizou de pesquisa documental para a coleta de dados que possibilitassem alcançar os objetivos propostos. Na sistematização dos dados, toda a metodologia seguiu um padrão crítico-reflexivo e, para tanto, foi utilizada a pesquisa-ação instrumentalizada pelos diários de campo. A pesquisa-ação é um método científico que pressupõe algumas características, tais como pesquisa-diagnóstico, pesquisa participante, pesquisa empírica e pesquisa experimental. Esta experiência deve constituir uma ação que por si só pressupõe uma melhoria na realidade dos participantes da intervenção. Mais que um pesquisador, quem trabalha com pesquisa-ação deve ser um "ativista", já que é a partir de suas intervenções que poderá haver possibilidade de emancipação das comunidades.

Em educação, a pesquisa-ação é, principalmente, uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar suas pesquisas para aprimorar o ensino e, em decorrência disso, o aprendizado de seus alunos. É a partir dessa metodologia que são coletados os dados que são retirados da interação entre os pesquisadores e os alunos, em que há um grau de envolvimento entre pesquisador e a população a ser investigada, devendo haver um planejamento para soluções de cunho comunitário.

Os documentos analisados são os Diários de Campos de dois pesquisadores inseridos em projetos de pesquisas vinculados ao departamento de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão, que ao longo dos anos de 2013 e 2014 estiveram em escolas do município de Catalão-GO, formando grupos de discussão com os alunos a fim de questionar: as características dos papéis de gênero na sociedade encontradas também nas escolas; como a socialização primária, dada na família, interferirá na educação da criança e refletirá na construção da identidade das mesmas e como a ambiente escolar trabalha os conceitos de violência, exclusão, discriminação direta e indiretamente.

O Diário de Campo é um instrumento importante a ser utilizado na pesquisa-ação. É através dele que se podem relatar as experiências vividas pelo pesquisador. Nos Diários, que são relatos retirados a partir da percepção dos sentidos, há que se estar atento ao que se olha e a forma como olhamos a coisa observada; o olhar do pesquisador é reflexo de experiências passadas que são mescladas com as vividas no campo. Esse instrumento torna-se de grande valia quanto à forma com que ele possibilita um registro dos dados; é através desse registro que se pode planejar uma melhor intervenção ou até mesmo possibilitar elementos emancipatórios aos participantes da pesquisa. Há também a regressão aos dados, que serve para a elaboração de relatórios posteriores para que as experiências ali vivenciadas possam ser compartilhadas.

A pesquisa que gerou os Diários de Campo foi devidamente autorizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (UFG), bem como registrada no sistema interno de cadastro de pesquisas dessa mesma universidade. Para tanto, foi necessário o levantamento bibliográfico, que possibilitou a construção de uma revisão de literatura que desse embasamento teórico para a análise dos dados. Esse levantamento bibliográfico se deu de forma intencional numa abordagem em Psicologia Social Crítica, onde a identidade humana é compreendida como metamorfose em busca de emancipação. Também fazem parte da construção da mesma revisão de literatura textos indexados de pesquisas a respeito da temática violência doméstica e de gênero, para melhor compreensão do fenômeno que assola todos os dias inúmeras mulheres mundo afora.

As reuniões em grupo desenvolvidas pelo projeto aconteciam com os alunos participantes e um mediador membro do projeto, que servia como uma espécie de professor orientador, a quem cabia pensar o tipo de atividade a ser desenvolvida no decorrer das oficinas, além da função de também sanar possíveis dúvidas que surgiam no decorrer do processo. Entre as atividades, tínhamos: recorte e colagem, desenhos, vídeos, entre outros; todos esses recursos utilizados como disparadores para as discussões e como forma também de aproximar os pesquisadores do cotidiano desses jovens, propiciando uma fala mais natural sobre os tipos de violência no lar, violências conhecidas ou já vivenciadas.

Existe um controle social sobre os corpos revelado pela violência de gênero, evidenciando como se dá de forma diferente a inserção de homens e mulheres na estrutura familiar e social, bem como a manutenção do modelo patriarcal. Assim, é possível dizer que a violência física e sexual mantida como uma forma de controle está ancorada na violência simbólica. É possível perceber, segundo dados da campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, que a violência física é uma das modalidades de violência que mais atinge a mulher e, na maioria dos casos, é praticada por alguém muito próximo: pai, irmão, marido, namorado, companheiro etc., em quem a princípio ela poderia confiar - “A violência física representa 54% dos casos relatados e a psicológica, 30%” (Compromisso e Atitude, 2013Compromisso e Atitude. (2013). Dados nacionais sobre violência contra as mulheres. Recuperado de http://www.compromissoeatitude.org.br/sobre/dados-nacionais-sobre-violencia-contra-a-mulher/
http://www.compromissoeatitude.org.br/so...
). Infelizmente, acaba fazendo parte do dia a dia, de um ciclo de violência muito difícil de ser rompido, que muitas vezes vem desde a tenra infância.

Há consenso, entre pesquisadores, de que o movimento pela busca de redução da violência de gênero não pode ser restrito apenas à população feminina-adulta, nem à aplicação de penalidades de restrição de liberdade aos homens-adultos. É necessário que se faça desde cedo trabalho preventivo com crianças e adolescentes, sendo então necessário que tal discussão seja levada às escolas. Apesar de identificada uma cultura de violência, geralmente, por parte dos homens na sociedade brasileira, reconhece-se a necessidade de situá-los além da posição de “agressores”, localizando-os no contexto de uma socialização masculina baseada na ausência de diálogo, ausência de equidade de gênero e violência.

Revisão de literatura

Identidade se (trans)forma porque considera-se que ela é construída a partir de um processo de metamorfose, o que significa dizer que a identidade do sujeito está em constante transformação e construção. Ela se modifica na vida cotidiana, refletindo e servindo de reflexo na construção identitária dos que estão ao nosso redor: “a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele (afinal, ele só é meu pai porque eu sou filho dele)” (Ciampa, 2012Ciampa, A. (2012). Identidade. In S. Lane (Org.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 58-74). São Paulo: Brasiliense., p. 59).

Segundo Pacheco e Ciampa (2006Pacheco, K & Ciampa, A. (2006). O processo de metamorfose na identidade da pessoa com amputação. Acta Fisiatr, 13(3), 163-167. ), os pressupostos sobre a identidade afetam todos mesmo antes do nascimento, em que os futuros pais criam expectativas que irão interferir no desenvolvimento do feto. Havendo também pressupostos que constituem as relações em sociedade como: classe social, trabalho, gênero, religião, etc. Identidade é metamorfose, é um fenômeno social, e não natural. Somos os papéis que representamos, e a mesmice se dá pela constante reposição desses, assim:

Se ele é pai e a mesmice de si está assegurada, sua identidade de pai está constituída permanentemente; de fato ele se “tornou” pai e assim permanecerá enquanto reconhecer e for reconhecida essa identidade, ou seja, enquanto ela estiver sendo reposta cotidianamente. (Ciampa, 2012Ciampa, A. (2012). Identidade. In S. Lane (Org.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 58-74). São Paulo: Brasiliense., p.67)

A constante reposição de papéis por vezes deve ser vencida. Para Paulino-Pereira (2006Paulino-Pereira, F. (2006). “Memória se faz na História”: um estudo da identidade de melodistas militantes sociais orientados pela teoria da libertação. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. , p. 54), “nascemos como animal humanizável - pode-se considerar o processo de tornar-se humano como nossa primeira e constitutiva emancipação”. Mesmo quando parece que o indivíduo não está em movimento, ele está, através da reposição de papéis.

A identidade é constituída pelas relações sociais já na primeira infância, quando internalizamos valores e absorvemos papéis que nos são apresentados. A socialização primária, salvo raras exceções, se dá em âmbito familiar, e lá serão apresentados à criança os primeiros papéis e conceitos que serão internalizados. Para Vigário e Paulino-Pereira (2014Vigário, C. & Paulino-Pereira, F. C. (2014). Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica. Revista de Psicologia, 5(2), 153-172. ), “a violência como um fenômeno social é historicamente presente no cotidiano das relações sociais, é intrínseca ao processo civilizatório e é manifestada por diferentes formas” (Vigário & Paulino-Pereira, 2014, p.154).

Os estudos que tratam do tema da violência tendem a apresentar um consenso de que se trata de um fenômeno complexo e de múltiplas faces. Andrade e Fonseca (2008Andrade, C. & Fonseca, R. (2008). Considerações sobre violência domestica género e o trabalho das equipes de saúde familiar. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 42(3), 591-595. , p. 592), por exemplo, concebem que a violência pode ser entendida como “todo evento representado por relações, ações, negligencias e omissões realizadas por indivíduos, grupos, classes e nações que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a outrem”.

A expressão “violência contra a mulher” possui um significado amplo, que diz respeito à ação ou omissão violenta praticada contra a mulher, exclusivamente pelo fato de ser mulher, sem considerar o espaço em que é executada (Sarmento & Cavalcanti, 2009Sarmento, S. & Cavalcanti, G. (2009). Violência doméstica e assédio moral contra as mulheres. Maceió: Edufal., p.18). As violências moral, psicológica e física geralmente são realizadas por pessoas que convivem diariamente com as mulheres; esse tipo de violência se tornou uma questão se saúde pública, uma vez que afeta a saúde individual e também coletiva das mulheres envolvidas; esse crime exige também políticas públicas e serviços voltados para atenção, cuidado, prevenção e tratamento da violência doméstica (Vigário & Paulino-Pereira, 2014Vigário, C. & Paulino-Pereira, F. C. (2014). Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica. Revista de Psicologia, 5(2), 153-172. ).

Para Mendonça e Brito (2011Mendonça, J. & Britto, D. (2011). A importância da Lei Maria da Penha como mecanismo de proteção às mulheres no direito brasileiro. Revista Direito UNIFACS, 128. Recuperado de http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/1428/1114
http://www.revistas.unifacs.br/index.php...
, p. 8), “Violência doméstica é aquela praticada dentro de casa, mas não se trata apenas da violência física. Sob o aspecto jurídico, se trata de um constrangimento físico e moral exercido sobre alguém”. Assim, a violência de gênero é um fenômeno psicossocial que se articula com as questões políticas, econômicas, morais, psicológicas, institucionais das relações humanas e pessoais.

Lima, Bichele e Clímaco (2008Lima, D. C., Buchele, F., & Clímaco, D. A. (2008). Homens, gênero e violência contra a mulher. Saúde e Sociedade, 17(2), 69-81. ), salientam que o risco de uma mulher ser agredida em sua própria casa é oito vezes maior do que em outro ambiente. Na América Latina, 50% das mulheres afirmaram sofrer abusos domésticos; no Brasil, mais da metade das mulheres que são assassinadas são mortas por parceiros íntimos. Para compreender a violência na perspectiva de gênero, é preciso incluir análise sobre os processos de socialização masculina e os significados de ser homem em nossa sociedade, na qual estes são educados para reprimir suas emoções, sendo a agressividade, incluindo a violência física, formas geralmente aceitas como marcas ou provas de masculinidade. Assim:

A violência, em suas formas destrutivas, visa o outro para destruí-lo, mas atinge a humanidade como todo. ... A violência, direcionada à mulher consiste em todo ato de violência de gênero que resulte em qualquer ação física, sexual ou psicológica, incluindo a ameaça. (Gomes, Aráujo, & Coelho, 2007Gomes, N. P., Araújo, A. J., & Coelho, T. M. (2007). Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias de gênero e geração. Revista Acta Paul Enferm., 20(4), 504-508., p. 505)

A maioria das mulheres que denunciam seus companheiros somente os acusam de violência física, pelo motivo de muitas vítimas não terem o conhecimento que a violência verbal e psicológica são passíveis de denúncia também. As mulheres, muitas vezes, preferem se silenciar diante da violência em que vivem por estarem sendo coagidas em um relacionamento baseado na dependência financeira e emocional, que leva a eventos cíclicos da violência. Esses eventos repetidos levam a mulher a uma situação de mesmice. “A violência familiar interfere na construção da identidade masculina, haja vista que os homens tendem a reproduzi-las nas relações sociais, em especial nas relações com suas companheiras e filhos”. (Gomes et al., 2007Gomes, N. P., Araújo, A. J., & Coelho, T. M. (2007). Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias de gênero e geração. Revista Acta Paul Enferm., 20(4), 504-508., p. 505)

Para Sott (1992, citado por Torrão-Filho, 2005Torrão-Filho, A. (2005). Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, 24, 127-152.), o termo gênero surgiu para oposição ao determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes caráter social, além de ampliar a capacidade de propor uma transformação dos paradigmas do conhecimento tradicional. A violência doméstica tem profundas raízes culturais e sociais na crença de que a mulher, ao se casar, passa a ser propriedade do esposo, e esse, como dono, pode tratá-la da forma que considerar mais adequada. Sendo que a construção da violência doméstica não tem relação com as diferenças biológicas entre homens e mulheres, mas sim com os tais papéis sociais reforçados por pensamentos patriarcais que são reproduzidos nas famílias (Vigário & Paulino-Pereira, 2014Vigário, C. & Paulino-Pereira, F. C. (2014). Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica. Revista de Psicologia, 5(2), 153-172. ).

Na distinção social entre os sexos, pressupõe-se que são as características que formam a identidade do feminino e do masculino; sendo assim, as mulheres são ensinadas a ser femininas e submissas e os homens são vigiados na manutenção da masculinidade. É possível afirmar que os homens são ensinados a reprimir suas emoções, não demonstrando afetividade e utilizando o poder e a agressão como ferramentais para se autodeterminarem enquanto machos, enquanto as mulheres são educadas para apresentar fragilidade, submissão, sensibilidade (Paulino-Pereira & Ribeiro, 2013Paulino-Pereira, F. & Ribeiro, L. (2013). Identidade masculina: um trabalho com homens em situação de violência doméstica. OPSIS, 13(1), 265-283.).

Algumas mulheres nos centros urbanos relacionam a ascensão social, profissional e status ao seu lado masculino, e os homens associam suas necessidades afetivas ao seu lado feminino.

Alguns comportamos são definidos pela cultura como sendo pertencentes a um ou outro sexo, aos quais o homem e a mulher devem recalcar para serem reconhecidos como homem e mulher. O que se configura hoje para uma libertação para gêneros, a emancipação do homem e da mulher, seria simplesmente liberar alguns aspectos masculinos da personalidade das mulheres (trabalho, produção cientifica, competição, esportes) e alguns femininos da personalidade do homem (afeto, paternidade responsável, cuidados da casa, beleza). (Torrão-Filho, 2005Torrão-Filho, A. (2005). Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, 24, 127-152., p.141)

A história das mulheres surge em 1960 com o movimento feminista, quando se exigiu que a histografia apresentasse a participação feminina na história. Todavia, mesmo a academia reconhecendo a história das mulheres, esse assunto foi entendido como específico das feministas ou como assunto que deveria ser discutido em aspectos privados do lar. Assim, mesmo décadas depois, essa problematização se mostra ausente no âmbito escolar, trazendo à tona a rigidez com que são tratadas as identidades de gênero e a sexualidade.

A educação escolar é um dos componentes na produção da subjetividade, porém, a partir da modernidade, a sexualidade vem sendo confinada em espaços rígidos de “feminilidade” e “masculinidade”, culminando na naturalização da heterossexualidade. Essa naturalização implica uma dificuldade em se pensar a diversidade, marcando, segundo os autores, a identidade “normal” e “anormal”. Para tal: “A escola, ao transmitir determinado tipo de conhecimento científico e técnico segue produzindo dois tipos de identidade: ‘normal’ e ‘anormal’, e esta última que é marcada como desvio e que se passou a chamar de diferente ou diversa” (Quartiero & Nardi, 2008Quartiero, E. T. & Nardi, H. C. (2008). Escola inclusiva não sexista? Políticas públicas e produção de subjetividade. In Anais do VIII Seminário Internacional Fazendo Gênero: Corpo, violência e poder. Florianópolis: UFSC. , p. 3).

É notória a necessidade da reestruturação escolar, bem como familiar, uma vez que a visão patriarcal vem reforçando os papéis sociais designados aos homens e mulheres, interferindo assim na construção das identidades das novas gerações. Para tal,

é de fundamental importância compreender que a construção da violência no âmbito doméstico não tem relação com as diferenças biológicas entre homens e mulheres. Esses papéis sociais são, na realidade, reforçados por culturas patriarcais reproduzidas na família. Nesse modelo de família, os atributos e os papéis de gênero valorizam o homem em detrimento da mulher, legitimando, por um lado, a dominação do homem e por outro, a inferioridade da mulher. Nesta perspectiva, a mulher é destituída de autonomia e do direito de decidir, inclusive sobre o seu próprio corpo (Gomes et al., 2007Gomes, N. P., Araújo, A. J., & Coelho, T. M. (2007). Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias de gênero e geração. Revista Acta Paul Enferm., 20(4), 504-508., p. 505)

Assim, a socialização e a perpetuação das concepções de feminilidade e masculinidade marcam gerações em constante reposição do patriarcado e da superioridade não somente do homem, mas do “homem heterossexual” que se coloca em posição de “normalidade” e “superioridade”, tornando constante e preocupante a violência de gênero, dentro e fora do vínculo familiar.

A práxis através da inserção nas escolas

As escolas estão se tornando um campo de estudo cada vez mais comum entre pesquisadores nas mais variadas abordagens científicas. Entre suas funções está a produção e reprodução das condições institucionais para a reprodução cultural e para a reprodução social. Sendo assim, a escola tem grande relevância na vida dos indivíduos, uma vez que é uma das primeiras instituições em que o homem é integrado, sendo ela importante na formação e manutenção dos valores sociais (Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, P. & Passeron, J. C. (1992). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (3ª ed.). Rio de Janeiro: Francisco Alves.).

Ao se realizar um projeto de pesquisa em um ambiente escolar, devem-se considerar suas finalidades, tais como o seu papel social, formas operacionais e as ações de todos que abrangem o processo educacional. "Seu processo de construção aglutinará crenças e convicções, conhecimentos da comunidade escolar, do conhecimento social e cientifico, constituindo-se em compromisso pedagógico e coletivo” (Veiga & Resende, 1998Veiga, I. & Resende, L. M. (Orgs.). (1998). Escola: espaço do projeto político pedagógico. Campinas, SP: Papirus., p. 9).

Neste trabalho sobre identidade e violência de gênero, a doméstica em específico, o campo de pesquisa escolhido foi uma escola pública da cidade de Catalão-GO. Inicialmente houve algumas dificuldades, entre elas a indiferença por parte da escola e do próprio corpo docente quanto à execução do projeto na instituição. Existe certa falta de compromisso dos profissionais em promover discussões de gênero e violência, mesmo havendo a nítida necessidade da inserção desses assuntos junto aos alunos, indivíduos ainda em formação. Abaixo, uma das falas retiradas dos diários, dita por um dos professores tentando justificar a ausência da discussão sobre a violência doméstica:

Nós professores temos que ficar o mais distante da família, para não pegarmos responsabilidade, quanto menos soubermos é melhor. Se eu fico querendo saber demais, corro o risco da criança achar que é minha amiga e não sair da minha casa. (Diário de Campo, 07/04/2014)

Por causa desse distanciamento e indiferença dos profissionais da instituição, as situações de violência que os alunos podem estar vivendo são constantemente postas de lado, uma vez que falta interesse nos próprios professores em saberem o que se passa na vida de seus alunos. Entretanto, há uma parcela de profissionais preocupados em inserir e problematizar os estudos de gênero dentro das escolas, quebrando assim o círculo de violência intergeracional movido pelo patriarcado no qual estamos inseridos e o silenciamento diante da violência. É importante afirmar que, uma vez desconstruídos os estereótipos de gênero, será possível alcançar uma reorganização familiar, bem como a construção, reconstrução e desconstrução das identidades não só das crianças em suas primeiras socializações, como também da família em geral.

Para Scott (1992, citado por Torrão-Filho, 2005Torrão-Filho, A. (2005). Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, 24, 127-152.), gênero é o primeiro modo de dar significado às relações de poder. Esse se constitui em caráter social, conseguindo abarcar as mulheres sem nomeá-las diretamente, sem constituir assim uma ameaça, entretanto trazendo à luz uma nova perspectiva de estudos que busca romper o discurso consolidado de masculino e feminino, libertando homens e mulheres desses lugares encarcerados.

Através dos relatos feitos nos diários, constata-se que a ideia de papéis de gênero construída socialmente é constantemente reforçada e mantida por professores e alunos. Existe uma indiferença dos professores com relação às brigas que ocorrem entre os alunos de sexo masculino, que são tachadas como "brincadeiras", mesmo sendo violentas. A ideia de masculinidade é relacionada à força, à agressividade, como se para ser “homem” fosse necessário ser também violento ou agressivo. “Após o recreio, os meninos mostram as marcas vermelhas que adquiriram durante o recreio brincado de luta e ficam rindo” (Diário de Campo, 23/10/2013). “No recreio as crianças, principalmente os meninos, brincam muito de bater um no outro e acham graça tanto apanhar quanto bater” (Diário de Campo, 04/12 / 2013).

Numa conversa entre dois alunos, novamente a ideia do homem como sujeito agressivo ocorreu em uma das salas de aula com a presença da professora que ignora a discussão entre os meninos, permitindo assim a perpetuação da briga e a ideia de que homem "bate". Os meninos começaram a discutir e ‘Pedro’ fala para outro menino eu vou te bater” e o outro retruca “vem cá e bate". Sirlene "no final da aula eu te pego" o colega responde"; “vira homem e bate agora" (Diário de Campo, 23/10/2013).

Durante uma aula de educação física, o professor divide o horário na quadra entre seus alunos com base no sexo, estimulando o estereótipo e a ideia de que existem atividades para meninos e outras para meninas. Segundo Torrão Filho (2005Torrão-Filho, A. (2005). Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, 24, 127-152.), na distinção social entre os sexos, pressupõe-se que são as características que formam a identidade do masculino e do feminino, assim as mulheres aprendem a ser femininas e submissas e os homens são vigiados na manutenção de sua masculinidade.

Um fato que chamou a atenção logo de início, foi o fato de inicialmente somente os meninos estarem fazendo educação física. ... Ao perguntarmos a uma das meninas sobre o fato delas não estarem fazendo aula de educação física, ela respondeu que as atividades da aula eram feitas separadamente entre meninos e meninas. (Diário de Campo, 23/10/2013)

A norma social de sexualidade está relacionada à heteronormatividade, desconsiderando qualquer outra forma de sexualidade que não a heterossexualidade. Nas instituições como a escola, há dificuldades de se tratar do tema da sexualidade e também dos conceitos de gênero e identidade de gênero. Os educadores acabam em muitos casos reforçando os estereótipos, cristalizando os papéis de gênero construídos historicamente, justificando a falta da discussão desses temas durante a formação docente, logo, eles alegam que não estão preparados para fazê-lo (Quartieiro, 2008).

Assim, gênero passa a ser “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (Scott, 1992, citado por Torrão-Filho, 2005Torrão-Filho, A. (2005). Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, 24, 127-152., p.134). Essas diferenças se fundam em símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas e mitos.

O desdém com que o tema é tratado dentro das instituições escolares em que a pesquisa foi realizada reforça a importância da discussão, uma vez que, adequadamente abordado, traz a possibilidade de entender como os papéis de gênero estão impostos desde a primeira infância, auxiliando a compreensão dos fatores que levam à violência de gênero bem como as identidades e papéis sociais desempenhados pelas famílias através das falas dos alunos.

Os papéis de gênero se mostram cristalizados no próprio corpo docente, assim, a inserção de pesquisadores traz um novo olhar para dentro da sala de aula afetando positivamente professores, alunos e a comunidade. A abertura possibilita também a aproximação de crianças que, sem essa vivência, não conseguiriam ser ouvidas, dificultando assim a transformação de suas próprias realidades.

O caso “Ana”

A história que será relata a seguir foi retirada de um dos Diários de Campo, e trata-se de uma conversa entre uma pesquisadora do projeto e uma das alunas da instituição, em que esta última confidencia sua experiência pessoal com a violência doméstica. O nome fictício da vítima (de 13 anos) aqui será Ana, preservando sua identidade e fazendo alusão às várias Anas, Marias, Joanas e outras tantas jovens, que mesmo com tão pouca idade são forçadas à realidade cruel da violência que uma vez foi/é praticada por aqueles que as deveriam acolher, cuidar e respeitar. Ana atualmente mora com a tia e tem duas irmãs, uma já casada que reside em outra cidade e a caçula de 10 anos de idade, que vive com ela na mesma casa.

A história de vida de um indivíduo é um fator relevante para se entender o processo de construção de sua identidade. Na busca da identidade de Ana é possível se perceber os vários personagens que ela assume, tais como filha, irmã, sobrinha, aluna etc. Assim, vai construindo seu eu, sucedendo papéis e personagens que a colocam numa dinâmica criativa constituindo sua identidade múltipla e única na diferença.

A identidade de Ana

Pedimos para que os alunos escrevessem um texto a partir destas frases: “Se eu fosse vítima de violência... E se eu pudesse mudar a realidade, gostaria que fosse...”. Eles pegaram os cadernos e começaram a escrever. Informamos que recolheríamos os textos ao final da aula. Ana me chamou e disse que precisava conversar a sós comigo. Fomos pra fora. Ela disse que não poderia escrever como “se” fosse vítima de violência doméstica, pois ela já havia sofrido todos os tipos de violência que falamos. Continuou dizendo que o pai bebia e usava drogas, batia nela, nos irmãos e na mãe, quebrava as coisas e a estuprava.

Ana não está limitada em viver por um fim preestabelecido e também não está liberta das condições sociais, culturais e históricas em que vive, de modo que seu vir a ser é uma indeterminação absoluta. Não é possível pensar sobre a identidade da jovem sem dizer da identidade social que a cerca, pois as diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social. A identidade é formada, mantida ou modificada pelas relações sociais na primeira infância, momento em que começa a participar de um mundo social já estabelecido. No início através da interiorização e depois da internalização de valores morais e éticos, obtidos das relações ocorridas em ambientes mais restritos e carregados de fortes emoções, assim já desde muito cedo Ana teve contato com a violência dentro de casa, a partir das agressões do próprio pai.

Ao ser questionada se isso ainda estava acontecendo, Ana disse que não, que os abusos aconteceram há alguns anos atrás, enquanto seu pai ainda estava vivo, e, nessa mesma época, seu pai matou o irmão de seis meses que estava chorando no berço, sufocando-o até a morte. Sua mãe, no momento do assassinato do irmão, estava doente de cama e não viu o acontecido. Depois desse fato, eles foram levados para um abrigo pelo Conselho Tutelar. Entretanto, lá eram maltratados, obrigados a fazer serviços de limpeza e viviam “jogados”, segundo Ana. Para fugir dessa situação, resolveram morar com uma tia, mas essa batia neles por qualquer motivo.

Segundo a jovem, ainda existem as cicatrizes nas costas provocadas pelas surras de fio e cabo de vassoura que sofria da tia. Ciampa (2002Ciampa, A. (2002). Políticas de Identidade e Identidades Políticas. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.),Uma Psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon.) afirma que a identidade é a própria articulação entre a diferença e a igualdade, constitui-se enquanto metamorfose, enquanto “vida que supera a morte”, enquanto movimento e transformação, é a própria união entre subjetividade e objetividade, entre desejo e realização. No entanto, apesar de se caracterizar por uma constante metamorfose, a identidade, na atual conjuntura social, histórica e política, vem se apresentando como não metamorfose.

Ana conta que tentou se matar, e mostra suas cicatrizes no pulso. Ela não suportou sua condição de violentada, e chegou à ideia do suicídio. Sua mesmice se torna intolerável, e por essa, ou por quaisquer outras situações que vivencia no lar, não consegue construir uma nova personagem para si. Só lhe parece restar o caminho da autodestruição, cujo final é a morte. A mesmice decorre da “re-posição” da identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade. Ela é “pré-suposta” como dada permanentemente e não como “re-posição” de uma identidade que um dia foi posta.

Enquanto atriz, ela está sempre em busca de novas personagens, e quando novas não são possíveis, repete as mesmas. Quando se tornam impossíveis tanto novas quanto velhas personagens, a adolescente caminha para a tentativa de morte biológica. Não tendo sucesso em sua tentativa de suicídio, Ana precisa, de alguma maneira, que sua identidade seja representada (Ciampa, 2005Ciampa, A. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. Um ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Editora Brasiliense.).

Ana diz que ainda mora com a tia, todavia há alguns anos, quando conheceu seu namorado, que atualmente tem 26 anos, tentou voltar para a casa de sua mãe, uma vez que sua tia não o aceitava, mas o relacionamento com a mãe não deu certo e ambas acabaram brigando e se agredindo fisicamente, por isso se viu forçada a voltar a morar com a tia, sem outro lugar para ficar. Ciampa (2012Ciampa, A. (2012). Identidade. In S. Lane (Org.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 58-74). São Paulo: Brasiliense.) fala da identidade como processo de identificação que começa no grupo social, sendo o primeiro grupo, quase sempre, a família na qual as duas dimensões da identidade começam a se constituir, igualdade e diferença.

Ana complementa que só sabe resolver “as coisas” na briga, e que não gosta de se entrosar com os colegas. Chegou a ser expulsa de outra escola em que havia estudado por bater e quebrar o braço de um colega mais velho. Cada indivíduo, progressivamente, apropria-se da realidade atribuindo um sentido pessoal às significações sociais. Devido às condições objetivas, expectativas da sociedade, bem como expectativas internalizadas pela própria pessoa, a identidade vai sendo construída num constante processo de vir-a-ser. Desde o nascimento, diariamente, novos acontecimentos e significados são acrescentados à vida cotidiana, atribuindo, ao ser humano e ao mundo, predicações diversificadas, para o bem e para o mal (Paulino-Pereira, 2006Paulino-Pereira, F. (2006). “Memória se faz na História”: um estudo da identidade de melodistas militantes sociais orientados pela teoria da libertação. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ). Ana, em uma tentativa de comunicação e desespero, fala disparadamente, aparentando querer contar toda sua vida em apenas cinco minutos. Segundo ela, está vivenciando a melhor época de sua vida atualmente; o namorado não usa mais drogas e nem bebe e, de acordo com ela, mudou bastante desde que o namoro “ficou sério”.

Quando questionada sobre o motivo de ter arrumado um namorado que usa drogas e bebe como seu pai, ela respondeu: “professora, ele mudou, não faz essas coisas mais e a gente vai se casar, mas estou com medo de sair de casa porque meu padrasto também tentou abusar sexualmente de mim e acho que, se eu sair, ele tentará abusar da minha irmã que só tem 10 anos de idade”. Por fim, ao ser questionada sobre o motivo de não ter contado isso para sua mãe, Ana diz que até tentou falar, mas a mãe não acreditou e disse que estava inventando, fato que se repete em muitos outros casos de abusos ocorridos dentro da própria família.

Segundo Ciampa (2005Ciampa, A. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. Um ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Editora Brasiliense.) é na atividade social que ocorre a objetivação e, portanto, que temos a característica de materialidade do processo identitário. A multiplicidade das determinações sociais se reflete nas representações individuais de Ana, ao mesmo tempo em que ela transforma o meio e luta para se alterizar, modificando seu entorno.

Considerações finais

Quando falamos em conflito de gênero, temos que levar em conta a subjetividade produzida em uma relação dialética individuo x sociedade. É importante mencionar que a construção social dos gêneros é um processo complexo e revela como está estruturada a sociedade. Nas escolas, e no campo da Educação de forma geral, ainda se reproduz a mulher numa visão machista, conferindo mais liberdade aos meninos do que às meninas. Historicamente o homem dirige a vida social, tomando o modelo patriarcal como questão indissociável das relações desiguais de gênero, enquanto sistema que oprime e domina as mulheres.

A criação de projetos como este possibilita a construção de novos valores, além da escuta de possíveis vítimas, como no caso Ana, que necessitam ser ouvidas, tanto pela instituição de ensino quanto por psicólogos e comunidade. Ela é capaz de formular projetos de identidade pessoal, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos, ou “pela aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)” (Ciampa, 2002Ciampa, A. (2002). Políticas de Identidade e Identidades Políticas. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.),Uma Psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon., p. 241).

Identidade, para Ciampa, é movimento, está em constante construção e desconstrução de valores, papéis e personagens, por isso é importante que haja cada vez mais espaços para as discussões e projetos que como o descrito aqui, que trabalhe com temáticas da violência doméstica nas escolas, por esse local ser uma das primeiras instituições em que o ser humano é inserido. Esses princípios indicam tanto a importância da relação com o outro quanto a influência do contexto no processo de “re-significações” das identidades. Dessa forma, podemos refletir sobre a fluidez da identidade de qualquer indivíduo, sobre a mobilidade característica ao processo identitário e também sobre a importância da relação dialética nessa dinâmica que constitui o ser humano. Portanto, o estudo da identidade possibilita uma compreensão mais global do fenômeno estudado na presente pesquisa, uma vez que permite considerar vários aspectos que influenciam a construção das identidades desses alunos, marcadas pela flexibilidade e alternância entre papéis.

A proposta do grupo formado com os alunos é, primeiramente, descobrir o que cada um sabe ou traz sobre as categorias de gênero, e de que forma isso implica no processo de subjetivação do que é ser homem ou mulher e em sua construção identitária. A identidade é construída e reconstruída o tempo todo, assim, é importante construir uma identidade de não violência, é necessário criar um novo tipo de cultura para que jovens inseridos numa sociedade de modelo ainda patriarcal não carreguem para o futuro características opressoras quanto às questões de gênero.

Agradecimento

À Universidade Federal de Goiás/RC - Programa Bolsas de Licenciatura - PROLICEN.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2016
  • Revisado
    26 Maio 2017
  • Aceito
    01 Jul 2017
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