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GÊNERO, FEMINISMO E PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL: ANÁLISE DA REVISTA PSICOLOGIA & SOCIEDADE (1996-2010)

GÉNERO, FEMINISMO Y PSICOLOGÍA SOCIAL EN BRASIL: ANÁLISIS DE LA REVISTA PSICOLOGIA & SOCIEDADE (1996-2010)

GENDER, FEMINISM AND SOCIAL PSYCHOLOGY IN BRAZIL: ANALYSIS OF THE JOURNAL PSICOLOGIA & SOCIEDADE (1996-2010)

RESUMO

Os estudos de gênero e feministas têm sido desenvolvidos em diversas áreas das ciências humanas e sociais no Brasil, contribuindo para a consolidação de um campo de pesquisa amplo, marcado por uma heterogeneidade epistemológica, teórica e metodológica. Entretanto, a literatura indica que o campo do gênero tem vivido uma crise significativa, principalmente a partir das críticas que tal noção recebeu das feministas da terceira onda. Interessou-nos analisar se e como no contexto brasileiro tais críticas têm marcado a produção em psicologia social. Para tanto, identificamos e analisamos as produções sobre gênero publicadas na revista Psicologia & Sociedade, no período de 1996 a 2010. Apresentamos características gerais dos artigos com foco em aspectos quantitativos e analisamos, em termos qualitativos, as formas de utilização da noção de gênero. Foi possível concluir que gênero é uma categoria multidimensional que exige especificações quando utilizada como categoria analítica.

Palavras-chave:
gênero; feminismo; psicologia social; Psicologia & Sociedade

RESUMEN

Los estudios de género y feministas se han desarrollado en diversas áreas de las ciencias humanas y sociales en Brasil, lo que contribuye a la consolidación de un campo de investigación amplio, marcado por una heterogeneidad epistemológica, teórica y metodológica. Sin embargo, la literatura indica que el campo de género ha experimentado una crisis significativa, principalmente por las críticas que recibió esta noción de las feministas de la tercera ola. Analizamos si y cómo en el contexto brasileño tales críticas han marcado la producción en la psicología social. Para ello, se identifican las producciones de género publicados en la revista Psicología y Sociedad, de 1996 a 2010. Se presentan las características generales de los artículos con foco en los aspectos cuantitativos y analizamos, en términos cualitativos, las formas de uso del concepto de género. Se concluyó que género es una categoría multidimensional que requiere especificaciones cuando se utiliza como una categoría analítica.

Palabras clave:
género; feminismo; psicología social; Psicologia & Sociedade

ABSTRACT

Gender and feminist studies have been developed in several areas of the humanities and social sciences in Brazil, contributing to the consolidation of a wide field of research, marked by an epistemological, theoretical and methodological heterogeneity. However, the literature indicates that the gender field has experienced a significant crisis, mainly from the criticism that has been coming from the feminists of the third wave. We became interested in analyzing whether and how such criticisms have marked production in social psychology in the Brazilian context. For this, we identified and analyzed the productions on gender published in Psychology & Society magazine, from 1996 to 2010. In this article we present general characteristics of the articles focused on quantitative aspects and analyzed in qualitative terms, the forms of use of the gender concept. It was concluded that gender is a multidimensional category that requires specifications when used as an analytical category.

Keywords:
gender; feminism; social psychology; Psicologia & Sociedade

Introdução

Os estudos de gênero e feministas têm sido desenvolvidos em diversas áreas das ciências humanas e sociais no Brasil, contribuindo para a consolidação de um campo de pesquisa amplo, que tem ganhado realce e proeminência ao longo dos anos. Desde as suas primeiras manifestações e produções, o feminismo possui um caráter crítico e emancipatório e se construiu a partir da experiência de opressão e discriminação das mulheres e do desejo de relações sociais emancipatórias, livres de dominação, discriminação e exclusão. Esse movimento visa à problematização dos eixos de opressão que marcam as sociedades ocidentais, contribuindo para a construção de relações de maior igualdade, embora encontremos muitas controvérsias e antagonismos dentro do próprio feminismo.

Se em outros contextos o debate entre teóricas do gênero e teóricas da diferença sexual foi acirrado (Braidotti, 2004Braidotti, R. (2004). Gênero y posgénero: el futuro de una ilusión? In Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade (pp. 131-150). Barcelona: Gedisa.; Dunchen, 1986Dunchen, C. (1986). Feminist in France. London: Routledge y Kegan Paul.), colocando em tensão as tradições anglo-norte-americana, no Brasil essa tensão não será muito expressiva. Gênero foi, desde seus primeiros usos no país, tomado nos estudos acadêmicos como uma categoria central para a análise crítica das desigualdades que marcam as experiências das mulheres em situações diversas. O clássico texto de Joan Scott (1986Scott, J. W. (1986). Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, 91(5), 1053-1075.), intitulado Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, foi referência fundamental para as primeiras produções da área no país.

Contudo, tal campo é marcado por uma heterogeneidade epistemológica, teórica e metodológica. É possível identificar desde os estudos de gênero embasados no positivismo lógico, que apresentam grandes mapeamentos e descrições sobre quantidade de mulheres, seu perfil de moradia, educação, trabalho, índices de maternidade, violência e assim por diante e articulações com o materialismo histórico e dialético com a incorporação da ideia de patriarcado e da critica à constituição da família burguesa como importante pilar do capitalismo, até as correntes pós-estruturalistas que vão dialogar com a noção de gênero, com intuito de desconstruí-lo e de apontar os efeitos de dominação sexista que tal categoria estaria difundindo. Essa heterogeneidade marca tensões importantes para o campo - necessárias tanto para o debate teórico quanto para o político, mas aponta também para imprecisões e problemas dessa categoria. Algumas perspectivas (Haraway, 1990Haraway, D. (1990). Simians, cyborgs and women. London: Free Association Books.) identificam nessa heterogeneidade a opacidade do termo gênero, o que encontra explicações em sua longa história - principalmente na biologia e na linguística -, antes mesmo de sua apropriação pelo feminismo, no momento em que a categoria foi reorientada a partir de uma perspectiva das relações de poder, ganhando em complexidade, mas não necessariamente em clareza.

Matos (2008Matos, M. (2008). Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Rev. Estud. Fem., 16(2), 333-357.) toma essa heterogeneidade da produção como objeto de reflexão e apresenta análises acerca do estatuto da "temática" e do "conceito" de gênero hoje na academia brasileira. Sua preocupação se refere à forma como os estudos de gênero se articulam com o feminismo e com as ciências, e, para isso, procura explicitar teórica e conceitualmente como gênero se tornou não mais apenas uma noção, ferramenta ou construto analítico, mas sim um novo campo nas ciências humanas e sociais e mesmo um novo campo epistêmico das ciências. A preocupação de fundo dessa e de outras autoras diz respeito à perda do caráter político e emancipatório dessa categoria. Algumas das teorias e estudos sobre gênero a abordam como um conceito útil e iluminador de questões, mas não a tomam como um elemento central das análises. Outros estudos a absorvem, fazendo-a ocupar uma posição de destaque. Os primeiros trabalhos operam como "teorias e gênero" (trabalhos que tomam gênero como categoria de análise, mas não como perspectiva teórica) e os outros seriam o que Matos (2008) define por "teorias de gênero" com um viés de abordagem feminista, posição da qual compartilhamos.

Dentro da psicologia brasileira, é a psicologia social que melhor acolherá as perspectivas de gênero e feministas. Tal receptividade possui explicações históricas relacionadas com o movimento da chamada crise da psicologia social, que marcará o debate da área principalmente nos anos 1970 e 1980. Sabemos que, nesse período, a psicologia social brasileira e latino-americana dedicou-se à construção de um corpo teórico, conceitual e metodológico próprios, se institucionalizaram, e toda a crítica realizada à psicologia social standard teve consequências importantes no campo psi. A importação a-crítica das teorias psicológicas oriundas dos Estados Unidos e Europa, as lógicas coloniais presentes na produção do conhecimento, a ênfase na perspectiva positivista e quantitativista nos estudos realizados, a prevalência do que se chamou de reducionismo psicológico, a distância das teorizações da psicologia social standard dos fortes problemas que marcavam a sociedade brasileira nesse momento e a necessidade de constituir um campo científico que tomasse a sociedade brasileira como ponto de partida para as análises em psicologia social, foram alguns dos pontos problematizados no momento da crise.

De fato, mesmo em outros contextos, as críticas feministas feitas com base na psicologia social se dirigiram à psicologia experimental, à psicologia das diferenças individuais e à psicologia cognitiva a partir de uma convicção: o caráter excludente injusto e inapropriado da produção em psicologia sobre as mulheres (Burman, 1996Burman, E. (1996). Identificación, subjetividad y poder en La psicoterapia feminista. In A. Gordo & J. L. Linaza (Eds.), Psicologias, discursos y poder (pp. 285-315). Madrid: Visor. , 1998Burman, E. (1998). La desconstrucción de la psicologia evolutiva. Madrid: Antonio Machado.; Callaghan, 2005Callaghan, J. (2005). Becoming a psychologist: professionalism, feminism, activism, feminisms & activisms. Annual Rewiew of Critical Psychology, 4, 154-165.; Fine, 1985Fine, M. (1985). Reflections on a feminist psychology of women: paradoxes and prospects. Psychology of Women Quarterly, 9, 167-183.; García-Dauder, 2005Garcia-Dauder, S. (2005). Psicologia y feminismo: historia olvidada de las mujeres pioneras en psicologia Madrid: Narcea.; Gergen, 1988Gergen, M. (Ed.). (1988). Feminist thought and the structure of knowledge. New York: New York University Press. ; Gilligan, 1982Gilligan, C. (1982). In a different voice. Cambridge: Cambridge University Press. ; Miller & Scholnick, 2000Miller, P. H. & Scholnick, E. K. (Eds.). (2000). Towards a feminist develompental psychology. New York: Rotledge Press.; O'Leary, Unger, & Strudler Wallston, 1985O'Leary, V., Unger, R. K., & Strudler Wallston, B. (1985). Women, gender and social psychology. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum.; Wilkinson, 1986Wilkinson, S. (1986). Feminist social psychology: developing theory and practice. London: Open University Press. , 1989Wilkinson, S. (1989). The impact of feminist research: issues of legitimacy. Philosophical Psychology, 2(3), 261-269. ). As perspectivas da psicologia standard serão criticadas por sua contribuição significativa na criação de estereótipos de gênero assimétricos e desvalorizadores para as mulheres (Cabruja & Fernández-Villanueva, 2011Cabruja, T. & Fernández-Villanueva, C. (2011). Psicologias feministas: perspectivas criticas, posmodernas y radicales. In A. Ovejero & J. Ramos (Eds.), Psioclogía social critica (pp. 83-97). Madrid: Biblioteca Nueva.). Em seu trabalho sobre as mulheres pioneiras na psicologia institucional no final do século XIX e início do século XX no Estados Unidos, García-Dauder (2005)Garcia-Dauder, S. (2005). Psicologia y feminismo: historia olvidada de las mujeres pioneras en psicologia Madrid: Narcea. mostra as manifestações visíveis e invisíveis de sexismo da academia e as dificuldades de inclusão das mulheres nas comunidades científicas. Assim, durante os anos 1960 e 1970, as acadêmicas feministas evidenciaram a existência de elementos patriarcais tanto nas teorias e paradigmas das ciências sociais, quanto nas práticas das comunidades acadêmicas. Problematizaram questões como a configuração da maternidade como núcleo simbólico do feminino (Irigaray, 1992Irigaray, L. (1992). Yo, tú, nosotras. Madrid: Cátedra.; Martínez, 1992Martínez, E. (1992). Hacia una crítica de la maternidad como eje de construcción de la subjetividad femenina en psicoanálisis. In A. M. Fernández (Comp.), Las mujeres en la imaginación colectiva: una historia de discriminación y resistencias (pp. 191-205)Buenos Aires: Paidós.), a proposição do homem como o modelo mais completo e superior do humano (Nicholson, 1986Nicholson, L. (1986). Gender and history: the limits of social theory in the age of the family. New York: Columbia University Press.), a argumentação científica da inferioridade intelectual e moral das mulheres (Gilligan, 1985Gilligan, C. (1985). La moral y la teoría: psicología del desarrollo femenino México, DF: FCE.), assim como as barreiras para a igualdade de oportunidades para as mulheres na academia, contribuindo para denunciar a função do conhecimento moderno na configuração de uma cultura patriarcal, sustentando o fracasso das pretensões de neutralidade e universalidade da epistemologia moderna. As contribuições do feminismo acadêmico se configuraram, portanto, como fonte privilegiada na pressão da mudança paradigmática da teoria social moderna, reconhecidas pelas perspectivas críticas da sociologia do conhecimento, do construcionismo social, entre outras (Estrada-Mesa, 2010Estrada-Mesa, A. M. (2010). Recursos crítico-interpretativos para la psicología social. Rev. Colomb. Psicol., 19(2), 261-270.).

Voltando à psicologia social brasileira, identificamos processos semelhantes, mas também diferentes na sua articulação com os estudos de gênero. Veremos que, no momento da crise da psicologia social, o pensamento marxista orientará grande parte das críticas realizadas naquele momento e sua articulação com a psicanálise ou com a teologia da libertação, por exemplo, levará ao fortalecimento de perspectivas dentro do campo da psicologia social, como a psicossociologia, a análise institucional, a psicologia comunitária, a psicologia sócio-histórica etc. O movimento da crítica à psicologia social standard que marcou o momento da crise acabou constituindo uma espécie de ethos crítico (Mayorga, 2007Mayorga, C. (2007). Otras identidades: mujeres, inmigración y prostitución. Tesis Doctoral, Programa de Postgrado en Psicología Social, Universidad Complutense de Madrid, Madrid.), que possibilitou um campo propício para o desenvolvimento de estudos sobre gênero na psicologia social. Embora as perspectivas teóricas não fossem semelhantes, problematizavam os pilares da ciência moderna, que se expressavam numa psicologia social psicológica, de cunho individualizante. Essa talvez seja uma das explicações do porquê, no Brasil, não encontramos uma psicologia social feminista, já que a psicologia social que se buscou construir a partir da crise e que se tornou objeto de uma associação específica - a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) - foi relativamente receptiva à articulação com as perspectivas de gênero.

Como apontado por Mayorga, Nascimento, Pinto e Pinto (2011Mayorga, C., Nascimento, A. R. A., Pinto, G. & Pinto, T. (2011). Psicologia Social em Minas: Contexto Sócio-político de Produção na Psicologia & Sociedade Psicologia em Pesquisa52), 135-145.), as tensões entre universalidade e particularidade e também entre igualdade e diferença problematizadas pelo feminismo serão objeto de análise da psicologia social no momento anteriormente indicado. O caráter sexista e, portanto, excludente e não universal da ciência foi criticado através da problematização do fato de a ciência se referir ao homem como sinônimo de humano (Machado, 1988Machado, M. N. M. (1988). A questão da mulher como tema da psicologia. Psicologia & Sociedade , 3(4), 36-40. ). O tema da violência será também bastante recorrente e se associará à discussão das estratégias institucionais e ao seu alcance para combatê-la (Moreira, 1989Moreira, M. I. C. (1989). Delegacia de Mulheres: relato de uma experiência em psicologia. Psicologia & Sociedade , 4(7), 19-29. ; Smigay, 1987Smigay, K. E. V. (1987). Delegacia de Mulheres: visibilidade para a violência sobre a mulher. Psicologia & Sociedade , 3(3), 34-37. , 1988Smigay, K. E. V. (1988). A constituição de um grupo para mulheres na instituição universitária: desventuras de quem a viveu. Psicologia & Sociedade , 3(5), 103-113. , 1989Smigay, K. E. V. (1989). Mulheres: (re)partidas e excluídas. Psicologia & Sociedade , 4(7), 11-18.; Smigay, Souza, & Rubinger, 1988/1989Smigay, K. E. V., Souza, A. L. & Rubinger, M. C. (1988/89). Itinerários da violência contra a mulher ou o que dizer da sedução. Psicologia & Sociedade , 3(6), 130-140. ). Ainda como frutos dessa época encontramos as problematizações sobre o sujeito da ação feminista (Smigay, 1987Smigay, K. E. V. (1987). Delegacia de Mulheres: visibilidade para a violência sobre a mulher. Psicologia & Sociedade , 3(3), 34-37. ) e a clássica tensão entre feminismo e marxismo através das análises sobre divisão sexual do trabalho (Smigay, 1989Smigay, K. E. V. (1989). Mulheres: (re)partidas e excluídas. Psicologia & Sociedade , 4(7), 11-18.).

Essa associação das perspectivas de gênero com a possibilidade da constituição de uma psicologia social crítica é uma marca importante da produção brasileira, que possui alcances e limites importantes.

Crise do gênero?

Braidotti (2004Braidotti, R. (2004). Gênero y posgénero: el futuro de una ilusión? In Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade (pp. 131-150). Barcelona: Gedisa.), em seu texto intitulado Gênero e pós-gênero: o futuro de uma ilusão apresenta uma análise da noção de gênero. Ela conclui que essa noção estaria em crise e chega a mencionar a emergência de um momento pós-gênero no campo dos estudos feministas. A autora localiza a crítica ao gênero oriunda das perspectivas pós-coloniais e do feminismo negro, da epistemologia feminista e do feminismo lésbico como fundamentais e decisivas para compreender a crise dessa categoria.

A distinção entre sexo e gênero foi feita de forma pioneira por Money e Hampson (1955Money, J., Hampson, J. G. & Hampson, J. L. (1955). Hermaphroditism: recommendations concerning assignment of sex, change of sex, and psychological management. Bulletin of the Johns Hopkins Hospital, 97, 301-319. ) e Stoller (1968Stoller, V. (1968). Sex and gender. New York: Science House. ), diante da impossibilidade de classificar determinados sujeitos como machos e fêmeas a partir do dimorfismo sexual, devido à ausência de uma clara demarcação dos caracteres sexuais secundários ou por problemas de caráter cromossômico ou hormonal que afetavam a diferença sexual. O feminismo fará uma releitura dessa categoria, incorporando a dimensão das relações de poder, virada fundamental para compreender a situação de opressão e subalternidade que marca a condição das mulheres em nossas sociedades. Dois pontos são centrais na releitura que o feminismo fará dessa categoria: primeiro, a dimensão histórica da construção do gênero, o que levará à diferenciação de tal categoria da dimensão do sexo; segundo, a análise da designação das mulheres como associadas à natureza e à vida privada como efeitos de relações de poder.

Na sua definição mais geral e desde a sua formulação pelas feministas, gênero tem sido compreendido como o produto de representações, espaços, características, práticas e expectativas que são designadas a homens, mas principalmente às mulheres, a partir da sua diferença biológica, como se fossem consequências derivadas naturalmente de um dado biológico. A crítica feminista consistirá em fazer a diferenciação entre sexo e gênero, biologia e cultura, que consistiu/consiste em um esforço de retirar as mulheres de um essencialismo da natureza e reposicionar suas experiências e heterodesignações no campo da cultura, ressaltando o caráter fundamentalmente construído do gênero, já produto dessa cultura, sem nada de natural ou necessário. A posição de gênero passaria a ser compreendida, sobretudo, como uma condição passível de ser desconstruída e transformada. Buscar-se-á compreender a construção social e cultural do gênero a partir de uma teoria do poder, isto é, as diferenças sociais e culturais entre homens e mulheres seriam o reflexo de relações desiguais de poder no campo da vida pública e privada entre homens e mulheres.

Apesar da categoria gênero, desde os primórdios, ter sido definida com base em sua oposição ao sexo, é muito frequente encontrar em textos acadêmicos uma substituição do segundo pelo primeiro, inclusive quando se quer dar conotações biológicas. Por exemplo, tem sido comum encontrar pesquisas que, ao perguntarem pelo sexo dos entrevistados, substituem tal categoria por gênero. O problema desse tipo de prática está ligado ao potencial analítico da categoria gênero, que passa a ser neutralizado por um uso eufemístico muito mais relacionado ao campo do politicamente correto do que a um campo de estudos que poderia analisar a constituição de identidades, subjetividades, relações interpessoais, institucionais, simbólicas materiais a partir das lentes do gênero, identificando, sobretudo, efeitos de poder e também potenciais de transformação.

Simone de Beauvoir (1949Beauvoir, S. (1949). O segundo sexo: a experiência vivida (2ª ed.). São Paulo: Difusão Européia do Livro. ), que, embora não tenha utilizado a noção de gênero e não tenha partido de uma agenda política, ao analisar a condição das mulheres de seu tempo, é uma precursora importante dentro do feminismo quando afirma que a experiência de ser mulher não é algo que vem do nascimento ou da natureza, mas refere-se a um processo de construção e busca desnaturalizar a diferença de lugares e espaços ocupados pelas mulheres socialmente. Essa autora está certa de que o sexo e a anatomia não são definidores do destino de ninguém. O segundo sexo só existe em relação ao primeiro, problematizará Simone de Beauvoir. Isso é evidenciado na própria linguagem em que "homem" se refere à espécie humana, e cabe à mulher o lugar de Outro. Contudo, embora a constituição de si deva se dar em uma relação de reciprocidade entre um e outro, no caso da relação entre homens e mulheres essa reciprocidade não existiria, acarretando o lugar naturalizado de submissão feminina.

Gayle Rubin (1975Rubin, G. (1975). The traffic in women: notes on the political economy of sex. In R. Reiter (Ed.), Toward an anthropology of women (pp. 157-210). New York: Monthly Review.), ao tentar compreender a opressão das mulheres, propõe a noção de sistema sexo/gênero, um sistema de poder através do qual a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, mas que institui o lugar subalterno das mulheres e a heterossexualidade como dimensão natural, normal e desejada da relação entre homens e mulheres. Para tanto, analisa o marxismo, a psicanálise e a teoria do parentesco de Lévi-Strauss, apontando para o lugar invisível, subalterno e silenciado das mulheres difundida e legitimada por diversas teorias sociais.

O problema que se colocará é que a polaridade sexo-gênero acaba por reproduzir a oposição natureza-cultura e o dualismo corpo-mente, que tem marcado o pensamento ocidental desde as suas origens. Por um lado, se supõe que essa oposição corresponde a uma diferença real, mesmo que produto de uma operação cultural que estabelece artificialmente limites dentro de um continuum. Por outro, se desconhece que é impossível diferenciar aquilo que resulta de uma condição biológica e aquilo que tem sido gerado pela sua formação no seio do universo humano, linguístico e cultural. Compartilhamos aqui algumas questões colocadas por Molina (2000Molina, C. (2000). Debates sobre el género. In C. Amorós (Ed.), Feminismo y filosofia (pp. 255-285). Madrid: Editorial Síntesis.), filósofa e feminista espanhola: até que ponto poderíamos afirmar que o corpo é somente fisis, sem significados culturais construídos? Sexo e sexualidade não teriam sido também construídos e, em certa medida, generificados? Como opera, então, o gênero? É uma característica estrutural das relações de poder? Pode considerar-se o gênero como uma relação de poder ou como sendo o efeito em homens e mulheres de uma normativa para as identidades e subjetividades? Trata-se de um produto da socialização ou da atribuição? O gênero é um efeito da linguagem ou um modo de percepção?

São muitas as pensadoras feministas que têm ressaltado as dificuldades que o uso indiscriminado do conceito de gênero apresenta tanto na filosofia quanto nas ciências humanas e sociais. Butler (2009Butler, J. (2009). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) analisa que a diferença sexo-gênero sugere uma descontinuidade radical entre os corpos sexuados e os gêneros culturalmente construídos, mesmo que a suposição de um sistema binário de gêneros conserve implicitamente a crença em uma relação mimética do gênero com o sexo. A autora feminista sustenta que se aceitamos que o sexo não se reduz a uma entidade anatômica, cromossômica, hormonal, supostamente natural, e que a dualidade dos sexos se estabelece através de uma história, de uma genealogia que apresenta as posições binárias como uma construção viável e que os fatos supostamente naturais do sexo se produzem por meio de discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais, concluiremos que a categoria sexo é uma construção cultural na mesma medida que o gênero. Para o ser humano, o sexo natural, entendido como realidade pré-discursiva, prévia à cultura, é um produto dos discursos e práticas sociais, mesmo que seja construído como algo não construído. Assim, a diferença sexo-gênero perde seu significado porque não tem mais sentido definir gênero como a interpretação cultural do sexo, se o sexo é entendido como uma categoria do gênero. Para Butler (2009), a forma como o gênero é hoje concebido pela teoria e política feminista abre a possibilidade para que se reafirmem as relações de poder e as lógicas de exclusão que o próprio feminismo procura combater.

Jane Flax, filósofa e psicanalista, vai criticar a generalização abstrata promovida pelo gênero que reproduz, segundo a sua análise, a lógica dualista própria da nossa cultura. Nancy Chadorow, socióloga e psicanalista, em um movimento de crítica à sua própria obra, destacará que algumas perspectivas, ao trabalharem com gênero, deixaram de lado o exercício de codificação das relações de poder e tomaram gênero como categoria universal, a partir de uma visão monocausal da dominação masculina. Essa autocrítica, associada à intenção de ir além do dualismo e de conceitos essencialistas que geralmente acompanham algumas das teorias centradas no gênero como conceito explicativo, responde à observação de que tem produzido uma verdadeira inversão da intenção presente nas origens da noção de gênero: mais do que revelar o que permanecia oculto, gênero tem operado como uma tela que encobre questões de importância teórica, nas diversas disciplinas que tem trabalhado com tal temática e também questões de relevância política, no que se refere às interpretações que têm sido dadas às experiências das mulheres e às possibilidades de tensionamento da cultura e sua transformação.

Sabe-se que as primeiras concepções acerca de gênero e da dominação sobre as mulheres realizadas pela teoria e pelo movimento feminista receberam muitas críticas por parte de mulheres feministas negras, latino-americanas, asiáticas, africanas, muçulmanas que contribuíram, de forma bastante significativa, para a compreensão dos múltiplos eixos de opressão que afetam as experiências de vida de mulheres por todo o mundo. O feminismo que se desenvolveu nos anos 1980 e 1990 segue desafiando os paradigmas unitários de gênero desenvolvidos por feministas brancas e de classe média nos anos 1960 e 1970, já que a decepção com os modelos e os discursos dessas feministas fez com que outros coletivos de mulheres utilizassem suas próprias experiências de opressão, exclusão, discriminação e violência para desenvolver formas próprias de trabalhar com as noções de gênero e feminismo (Caldwell, 2000Caldwell, K. L. (2000). Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Revista Estudos Feministas, 8(2), 91-108.).

A grande contribuição dessas outras perspectivas foi denunciar e explicitar que as questões de gênero não são suficientes para compreender a opressão das mulheres; seria necessário compreendermos como se estabelece a ligação entre o sexismo e outras formas de dominação, como o racismo, por exemplo. Não atentar a isso certamente perpetua a cegueira em relação a outros aspectos das experiências, identidades e lutas de mulheres que incluem questões de raça, etnia, classe, geração, sexualidade, cultura e nacionalidade. Angela Davis (2005Davis, A. Y. (2005). Mujeres, raza y clase. Madrid: AKal.), por exemplo, lança mão de diferentes instrumentais teóricos para colaborar na desconstrução de estereótipos relativos às experiências históricas da diáspora africana, sobretudo das mulheres afro-americanas. Sua produção se dá nas interseções entre raça, classe e gênero, buscando "radicalizar" o feminismo negro a partir da percepção da interação dessas dimensões. Considerando que construção da subalternidade das mulheres negras é fortemente marcada pela dimensão da opressão racial, Davis aponta que não é possível avaliar o gênero de forma isolada e desligada da dimensão de raça e classe.

Um dos aspectos mais importantes que tem sido criticado por grupos de mulheres que, por suas marcas de raça, nacionalidade, cultura ou sexualidade estiveram fora das reflexões feministas mais tradicionais, se refere à forma inadequada através da qual têm sido discutidas as diferenças/desigualdades dentro da categoria mulher. Esta tem sido definida não exclusivamente a partir da análise das relações de poder entre homens e mulheres, mas, frequentemente, a partir da relação de desigualdade entre mulheres de diversas raças, etnias, classes e culturas. Tal aspecto nos leva a problematizar que a questão central não é a diferença, mas quem a define (Brah, 2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu , 26, 329-376.) a partir de certos critérios e leituras sobre as sociedades contemporâneas. Questiona-se ainda quais as categorias de mulheres são representadas dentro do discurso da diferença e se essa representação se faz horizontalmente ou hierarquicamente. Nesse sentido, não é a parcialidade de concepções que é tomada aqui como um problema; o que se questiona é como perspectivas parciais são utilizadas como representação da totalidade das mulheres, constituindo, dessa forma, invisibilidades em relação à experiência de muitas outras (Azeredo, 1998Azeredo, S. (1998). Gênero e a diferença que ele faz na pesquisa em psicologia. Cadernos Pagu, 11, 55-66.) e ao mesmo tempo se constituem como prescrições das formas mais ou menos legitimas de ser mulher e também de se pensar a emancipação das mulheres.

Diante de algumas críticas ao gênero apresentadas, que, segundo Braidotti (2004Braidotti, R. (2004). Gênero y posgénero: el futuro de una ilusión? In Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade (pp. 131-150). Barcelona: Gedisa.), caracterizam a crise dessa categoria para o feminismo, indagamos se essas críticas têm ocorrido da mesma forma no contexto da produção acadêmica brasileira, de forma mais específica, na relação entre psicologia social e estudos feministas e de gênero. Na introdução deste artigo, discutimos como a relação entre estudos de gênero e psicologia social no Brasil apresentou especificidades, e nos interessa compreender se o debate que coloca problemas importantes para o campo do feminismo tem sido absorvido no campo da psicologia social ou se a psicologia social brasileira tem contribuído com esse debate.

Para tanto, tomamos a produção sobre gênero e feminismo veiculada no periódico científico Psicologia & Sociedade, da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), como objeto de análise. A escolha desse periódico se deu baseada em alguns critérios, entre eles, o fato de o mesmo refletir o momento histórico da crise da psicologia social, discutida na introdução deste artigo. A psicologia social que estava se constituindo na e a partir da supracitada crise fortaleceu um grupo expressivo de acadêmicos da área, responsável pela fundação da ABRAPSO (1980), e que encontrou na criação da revista, em 1986, a possibilidade de divulgação e difusão dessa nova perspectiva. Atualmente, o periódico Psicologia & Sociedade é uma das principais publicações brasileiras com ênfase em psicologia social.

Cruz (2008Cruz, R. N. (2008). Psicologia & Sociedade . Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), e Cruz e Stralen (2012)Cruz, R. N. & Stralen, C. J. V. (2012). A produção do conhecimento na psicologia social brasileira: um estudo descritivo a partir da revista Psicologia & Sociedade , 1986-1992. Psicologia & Sociedade , 24(1)227-239. dividem a produção da revista Psicologia & Sociedade em duas fases. Na primeira delas (1986 a 1992), encontram-se publicados artigos e produtos dos encontros nacionais e regionais da ABRAPSO. No período de 1992 a 1996, a revista não realizou nenhuma publicação, devido a dificuldades editoriais, financeiras, dentre outros fatores. Na segunda fase (1996 até os dias atuais), Psicologia & Sociedade se adéqua à política editorial de periódicos científicos tradicionais. É importante frisar que revistas publicadas a partir desse período passam a ser avaliadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), que têm como objetivo avaliar a qualidade das revistas e da produção científica dos programas de pós-graduação brasileiros.

Para fins deste estudo, escolhemos analisar a produção sobre gênero e feminismo da segunda fase da revista Psicologia & Sociedade, mais especificamente a produção publicada entre os anos 1996 e 2010.

A análise da produção sobre gênero na revista Psicologia & Sociedade (1996-2010)

Para investigarmos as concepções sobre gênero presentes na produção em psicologia social publicada pela revista Psicologia & Sociedade, selecionamos e analisamos 36 artigos do periódico publicados entre os anos de 1996 e 2010. Acessamos todos os números da revista publicados no intervalo de tempo acima indicado e, a partir da leitura dos títulos, resumos, palavras-chave e, em alguns casos, artigo completo, escolhemos aqueles que estavam relacionados à questão de gênero e/ou da mulher.

Elaboramos uma ficha padrão de coleta de informações sobre as produções e, em diálogo com o debate na literatura sobre o tema e após a leitura dos artigos identificados, os ordenamos com base nos seguintes critérios: (a) artigos que abordavam questões de mulheres/homens, sem fazer referência ao gênero, (b) artigos que abordavam gênero como construção social de mulheres e homens, sem considerar as relações de poder, e (c) artigos que utilizavam a noção de gênero a partir de uma perspectiva de poder. Buscamos identificar se gênero aparecia mais como uma categoria descritiva ou associado à teoria feminista. Interessou-nos também destacar quais problemas e temas foram debatidos ou analisados pela perspectiva de gênero. Elencamos as principais referências bibliográficas utilizadas pelas/os autoras/es para fundamentar a perspectiva de gênero e separamos pelo menos três trechos representativos dessas posições teóricas de cada artigo. Por fim, identificamos possíveis articulações de gênero com outras temáticas e categorias: raça, classe social, orientação sexual, lugar de origem, religião, dentre outras.

Além dessas informações centrais para aprofundarmos a análise do problema de pesquisa delimitado, ordenamos os artigos por tipo de trabalho (teórico, pesquisa, relato de experiência, etc); no caso de pesquisa, identificamos que tipo de metodologia orientou o estudo e se o método utilizado foi de caráter mais qualitativo e/ou quantitativo. Fizemos ainda a identificação dos autores, nos aspectos que se referem à formação, instituição a que está vinculado, titulação e sexo. A partir dos dados coletados, analisamos dados quantitativos sobre os artigos por meio do Statistical Package for the Social Science (SPSS) para obtermos informações mais descritivas e fizemos a análise qualitativa de informações extraídas do resumo, das referências bibliográficas utilizadas nos textos e selecionamos trechos em que as/os autoras/es fundamentavam sua perspectiva de gênero. Para fins deste artigo, não apresentaremos todas as análises feitas durante a pesquisa, mas destacaremos alguns que nos parecem relevantes para o problema ao qual estamos dando destaque neste texto.

Características gerais dos artigos

O primeiro elemento que destacamos se refere à distribuição dos artigos ao longo dos anos. Ao todo, analisamos 36 artigos publicados no periódico entre os anos de 1996 e 2010. Ficou evidente o aumento em números absolutos das publicações de trabalhos com a temática de gênero na revista. De 1997 a 2005, houve a publicação de um artigo (2,8%) por ano que tratasse da temática. Em 2006, identificamos cinco artigos (13,9%) e, em 2007, seis (16,7%), indicando um aumento significativo comparado a anos anteriores. No ano de 2008, ocorreu uma queda, havendo quatro (11,1%) artigos publicados e, em 2009, um aumento, com sete (19,4%) artigos. Em 2010, houve a diferença de apenas um artigo em relação ao ano anterior (seis artigos, 16,7%).

Considerando que o campo de estudos de gênero começa a se estabelecer a partir dos anos 1980 nas ciências sociais e humanas no Brasil, podemos entender os elementos desse gráfico como expressão de um processo de consolidação de tal campo relacionado à psicologia social e também ao fortalecimento e surgimento de núcleos de pesquisas que se constituíram em torno da articulação de outros temas da psicologia social com questões de gênero a partir dos anos 2000. Podemos ainda relacionar a consolidação desse campo com a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), em 2003, e com a intensa mobilização social em torno das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres realizadas em 2004 e 2007. Entre outras ações da SPM, identificamos o lançamento de editais específicos para pesquisas de gênero, em parceria com órgãos nacionais de fomento à pesquisa.

Ao verificarmos os dados referentes ao tipo de trabalho, podemos observar que, dentre os 36 artigos analisados, 69,4% (25 no total) deles foram identificados como pesquisa, 27,8% (10) foram teóricos e 2,8% (1), relatos de experiência. Dentre os 25 artigos, que se classificam como pesquisa, temos uma maior porcentagem de trabalhos qualitativos, 58% dos textos, apenas 2,7% são pesquisas quantitativas e 8,3% dos artigos envolvem elementos quantitativos e qualitativos.

O número expressivo de trabalhos de cunho qualitativo pode ser compreendido tanto pela história da produção em psicologia social no Brasil relacionada à ABRAPSO, que surge em 1980 como contraponto à vertente da psicologia social de cunho mais empiricista e quantitativo, quanto do campo de estudos de gênero no Brasil, que também privilegiará essa perspectiva. Esses aspectos são relevantes, já que, no campo da reflexão acerca de epistemologia e feminismo, encontramos indagações e debates sobre uma possível existência da epistemologia e também da metodologia propriamente feministas. No Brasil, essas reflexões não tiveram o mesmo vigor que pode ser encontrado em contextos como Europa e Estados Unidos, mas elementos desse debate aparecerão nos desdobramentos da crise da psicologia social nos anos 1970 e 1980. Se em outros países a relação da psicologia com o feminismo se deu de tal forma a delimitar o campo de uma psicologia feminista, no Brasil, é a psicologia social a primeira disciplina que se abrirá aos estudos de gênero e feminismo, sendo que essas perspectivas contribuíram com as contestações que marcaram a crise da psicologia social e que foram dirigidas à psicologia social vigente naquele momento, de cunho individualizante.

Dentre os 25 artigos que são resultados de pesquisas, identificamos um total de 35 métodos utilizados nos trabalhos. Verificamos que entrevistas compõem 42,9% (15 no total) dos métodos utilizados; 11,4% (quatro) são oficinas e dinâmicas de grupo; 8,7% (três) são análises documentais; 20% (sete), observações participantes; 5,8% (dois) questionários. Análises de mídias, narrativas autobiográficas, etnografia e grupo focal são 2,8% (um) cada uma. Foi comum encontrar artigos que articularam mais de um método.

Dos 86 autores envolvidos nos 36 artigos analisados, 80% são mulheres e 20%, homens. Esse número não é de fato uma novidade, já que o campo da psicologia no Brasil é bastante feminizado. Contudo, ainda sobre a relação entre ciência e feminismo, encontraremos reflexões que indicam que o fato das mulheres acessarem a formação superior e o seu vínculo com a pesquisa foi o que permitiu a emergência de estudos de gênero nas universidades brasileiras, o que também colocou questões para o debate sobre relações de poder, ciência e gênero. Isso nos faz refletir sobre quais sujeitos estão interessados em produzir determinados tipos de estudos e nos desafia a pensar sobre a relação entre a história social dos sujeitos e grupos e sua implicação nos diferentes temas, nos diversos espaços de poder.

Sobre as regiões em que se encontram as instituições às quais os autores estavam vinculados, encontramos uma presença expressiva de artigos da região Sul, que representam 47,67%, seguida da região Sudeste, com 22,09%. Os artigos da região Nordeste foram 5,81%, da região Centro-Oeste, 1,16%, e não identificamos nenhum trabalho da região Norte. Tivemos ainda 3,49% de outros países da America Latina e 8,14% de outros continentes. Os dados evidenciam que há, ou podem haver, relações assimétricas de poder na configuração desse cenário. Vale pensar sobre as dinâmicas de produção e socialização dos conhecimentos produzidos, as rotas de visibilização das produções, os grupos de diálogo e relação acadêmica, além das hierarquias produzidas e reproduzidas nos circuitos acadêmicos e na própria ABRAPSO. É importante perguntar sobre as dinâmicas que colaboram para que as produções de outros continentes e de algumas regiões do país tenham mais visibilidade em nossos espaços de socialização do conhecimento, que as produções de certas regiões do Brasil ou de países da América Latina são elementos que devem ser melhor investigados e problematizados.

O que destacamos até então nos permite afirmar que, em geral, o número de artigos publicados sobre gênero e sobre mulheres na revista Psicologia & Sociedade aumentou ao longo dos anos, com expressivo crescimento a partir de 2006. Grande parte dos trabalhos analisados é resultado de pesquisas, em sua maioria, qualitativas. Essa produção está muito centrada nas regiões Sul e Sudeste, o que já foi apontado em estudo realizado por Cruz (2008Cruz, R. N. (2008). Psicologia & Sociedade . Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.).

Abordagens de gênero e psicologia social

Já foi discutido como gênero, desde a sua apropriação pelo feminismo, ganhou conotações relacionadas às relações de poder, com foco nas posições de subalternidade, opressão, violência e invisibilidade das mulheres na sociedade, bem como com as formas de enfrentamento e emancipação. Tal reconfiguração da noção de gênero feita no campo acadêmico, mas com estreita relação com a ação política feminista, sofreu críticas oriundas de campos diversos, principalmente a partir dos anos 1980. O feminismo chamado da terceira onda, a partir da crítica de mulheres lésbicas, negras e do Terceiro Mundo, problematizará os efeitos excludentes do gênero, e as epistemólogas feministas também vão apontar seus efeitos dicotomizantes e por vezes reducionistas da experiência das mulheres. Interessanos compreender se esse movimento tem se dado na produção em psicologia social no Brasil, publicizada através do periódico científico da ABRAPSO. Também temos a preocupação com a apropriação de gênero como categoria descritiva que, a partir principalmente de perspectivas mais focadas no indivíduo, ou na sociedade compreendida como conjunto de indivíduos, centra as relações de poder de forma secundária ou mesmo não as toma como elemento para a análise.

Diante desses pontos, elencamos categorias para organizar o conjunto de artigos identificados no levantamento junto à revista. Dividimos os artigos como (a) aqueles que abordavam problemáticas de mulheres e/ou homens sem utilizar a noção de gênero; (b) aqueles que utilizavam gênero como sinônimo de construção social de homens e mulheres, sem considerar as relações de poder e (c) artigos que tratavam de gênero a partir de uma perspectiva de poder. Entendemos que essa terceira perspectiva se refere ao campo de estudos nomeado como feminismo.

O Gráfico 1 aponta que, dentre os 36 trabalhos analisados, 72% tratam gênero a partir de uma perspectiva de poder, 17% trabalham com gênero como construção social de homens e mulheres e 11% trabalham com as categorias mulheres e homens, sem fazer referência a gênero.

Gráfico 1:
Como gênero é abordado

O gráfico seguinte apresenta a produção dos artigos que entendem gênero a partir de uma perspectiva de poder ao longo do tempo. Percebe-se que o primeiro artigo que entende gênero com base nessa visão foi publicado em 1999. Dos 26 artigos que entendem gênero por um ângulo feminista, 3,8% foram publicados em 1999, 3,8% em 2001, 3,8% em 2004 e 3,8% em 2005. Desde 2006 há um salto de publicações com essa perspectiva, havendo 19,2% das publicações nesse ano. Esse número se mantém em 2007, 2009 e 2010, havendo uma queda apenas no ano de 2008, quando foram publicados 7,7% dos artigos.

Gráfico 2:
Artigo com uma perspectiva feminista ao longo dos anos

A interpretação de um trabalho como sendo feminista ou não, pôde ser feita com a leitura dos artigos e com o diálogo com a literatura feminista. A presença da análise de situações diversas de mulheres com base em uma perspectiva de poder é algo bastante consensuado na teoria feminista, embora as leituras sobre poder e suas consequências sobre as mulheres sejam diversas. Assim, ao fazermos uma análise qualitativa da produção, buscamos identificar as perspectivas de gênero que embasavam as reflexões e os/as autores/as que eram referenciados na construção das argumentações apresentadas nas produções. Autoras como Helieth Safiotti, Joan Scott e Gayle Rubin vão aparecer nos trabalhos publicados nos anos 1990. Judith Butler, Foucault e Gayle Rubin são autores citados de forma recorrente nas publicações analisadas, principalmente a partir de 2006. Interessante perceber que, mesmo tendo sido decisivas para a reconfiguração da noção de gênero no feminismo no Brasil, as feministas negras, lésbicas e latinas, como Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Jurema Werneck e Sueli Carneiro, praticamente não aparecem como referência nos 26 (72 %) artigos que tratam gênero a partir de uma perspectiva de poder.

Em um dos trabalhos analisados, o artigo de Adrião e Toneli (2008Adrião, K. G. & Toneli, M. J. F. (2008). Por uma política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa no contexto brasileiro. Psicologia & Sociedade, 20(3), 465-474.), intitulado "Por uma política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa no contexto brasileiro", as autoras explicitam seu posicionamento feminista em relação ao conceito de gênero. Entendem tal noção como uma ferramenta útil para denunciar a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres; entretanto, também apresentam críticas a esse conceito. Segundo as autoras:

um importante conceito/categoria analítica surgiu e, rapidamente, se fez presente nos discursos militantes: o gênero. Se antes os estudos e práticas se colocavam em torno da temática da "mulher" e/ou "das mulheres", a partir daí o aspecto relacional da problemática se impunha. Entretanto, se por um lado, o gênero ampliava o olhar, permitindo visibilizar as identidades e os sujeitos do feminismo na relação com o poder e o discurso, por outro, como decorrência, permitiu que novas demandas por legitimidade nesse campo de disputas se fizessem presentes. Um desenvolvimento paralelo à análise de gênero se encarregará de reintroduzir experiências concretas de mulheres concretas em contextos de poder e desigualdade, nas próprias teorias de gênero. (Adrião & Toneli, 2008Adrião, K. G. & Toneli, M. J. F. (2008). Por uma política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa no contexto brasileiro. Psicologia & Sociedade, 20(3), 465-474.)

O artigo de Benites e Barbarini (2009Benites, A. P. O. & Barbarini, N. (2009). Histórias de vida de mulheres e saúde da família: algumas reflexões sobre gênero. Psicologia & Sociedade , 21(1), 16-24.), "Histórias de vida de mulheres e saúde da família: algumas reflexões sobre gênero", traz a discussão do conceito de gênero na área da estratégia saúde da família, a partir das histórias de vida de duas mulheres usuárias do sistema de saúde. Segundo as autoras, ao entender as mulheres genericamente como mães e ao não abarcar as subjetividades femininas, a saúde as oprimem enquanto sujeito histórico. O entendimento de gênero como uma categoria que revela relações de poder e o posicionamento feminista podem ser apreendidos no trecho abaixo:

Nesse construir, a família possibilita um lócus privilegiado para o estudo de gênero enquanto categoria relacional, uma vez que é o primeiro núcleo socializador do indivíduo. As terapias familiares de abordagem sistêmica buscam compreender o ser humano através da sua história de vida familiar, nos seus aspectos intergeracionais e socioculturais. Todavia, elas já foram criticadas pelas feministas por não analisarem as questões de gênero e poder incutidas em suas práticas, que traziam um sexismo implícito nas definições de família e de papéis familiares. O questionamento do conceito de papéis sociais foi, sem dúvida, um dos aspectos que colaborou para flexibilizar a definição de família. No paradigma feminista, os terapeutas familiares passaram a criticar os pressupostos sexistas da existência de papéis apropriados para homens e mulheres, entendendo que esses "papéis" podem servir para normatizar e perpetuar as diferenças de poder entre os gêneros. (Benites & Barbarini, 2009Benites, A. P. O. & Barbarini, N. (2009). Histórias de vida de mulheres e saúde da família: algumas reflexões sobre gênero. Psicologia & Sociedade , 21(1), 16-24., p. 17)

O artigo de Borges e Spink (2009Borges, L. S. & Spink, M. J. P. (2009). Repertórios sobre lesbianidade na mídia televisiva: desestabilização de modelos hegemônicos? Psicologia & Sociedade , 21(3), 442-452.), "Repertórios sobre lesbianidade na mídia televisiva: desestabilização de modelos hegemônicos?", procurou fazer uma análise dos discursos relacionados a duas personagens lésbicas de uma telenovela brasileira. Aliando construcionismo e feminismo, as autoras mostram que a noção de lesbianidade é uma construção social na qual os discursos e a linguagem empregados variam segundo o contexto social e histórico específico (Borges & Spink, 2009). As autoras fazem uso do conceito de gênero para entender a lesbianidade da seguinte maneira:

O enfoque de gênero permite pensar em como masculinidades e feminilidades se articulam no interior da trama e ainda como se constroem as relações afetivas no âmbito de uma matriz heterossexual que ordena as práticas afetivas sexuais para uma heterossexualidade compulsória. A noção de matriz heterossexual é desenvolvida por Gayle Rubin ... e por Adrienne Rich ... e Judith Butler ... em seus estudos sobre o sistema sexo-gênero. (Borges & Spink, 2009Butler, J. (2009). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.)

Assim como Adrião e Toneli (2008Adrião, K. G. & Toneli, M. J. F. (2008). Por uma política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa no contexto brasileiro. Psicologia & Sociedade, 20(3), 465-474.), Borges e Spink (2009Borges, L. S. & Spink, M. J. P. (2009). Repertórios sobre lesbianidade na mídia televisiva: desestabilização de modelos hegemônicos? Psicologia & Sociedade , 21(3), 442-452.) dialogam com autoras que pensam o gênero a partir de uma perspectiva crítica ao próprio conceito de gênero.

Percebemos que as autoras desses trabalhos lançam mão de análises feministas para entender diferentes problemas. Questões relacionadas à saúde e à família (Benites & Barbarini, 2009Benites, A. P. O. & Barbarini, N. (2009). Histórias de vida de mulheres e saúde da família: algumas reflexões sobre gênero. Psicologia & Sociedade , 21(1), 16-24.), à sexualidade (Borges & Spink, 2009Borges, L. S. & Spink, M. J. P. (2009). Repertórios sobre lesbianidade na mídia televisiva: desestabilização de modelos hegemônicos? Psicologia & Sociedade , 21(3), 442-452.) e à política (Adrião & Toneli, 2008Adrião, K. G. & Toneli, M. J. F. (2008). Por uma política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa no contexto brasileiro. Psicologia & Sociedade, 20(3), 465-474.) são analisadas tendo como pano de fundo analítico, as teorias feministas. Uma análise das bibliografias referendadas nesses três artigos indica que essas estudiosas dialogam com o campo de teorias de gênero apontado por Matos (2008Matos, M. (2008). Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Rev. Estud. Fem., 16(2), 333-357.). Contudo, observamos que as definições apresentadas já se articulam ou problematizam gênero e, embora tenham uma forte relação com a noção de gênero como categoria de poder, introduzem elementos presentes nas críticas a essa categoria. Poderíamos interpretar tal aspecto como a incorporação das críticas ao gênero sem que as mesmas tenham afetado tal noção ou tenham levado à sua substituição ou rechaço. Tal posição tem algumas consequências: ou por uma questão estratégica decide-se manter a noção de gênero, já que esta se refere a um campo consolidado e com grande importância política; ou pela imprecisão do gênero, este pode associar-se a outras perspectivas, sem ter que ser abandonado.

Artigos que abordaram gênero como sinônimo de construção social de homens e mulheres, sem fazer referência a relações de poder, também foram analisados. Destacamos trechos que exemplificam a categoria de artigos que aborda somente as diferenças entre homens e mulheres, sem fazer referência a gênero ou a relações de poder. Um desses é o texto de Maciel, Cavalcante, Matos e Rodrigues (2007Maciel, R. H., Cavalcante, R., Matos, T. G. R., & Rodrigues, S. (2007). Autorrelato de situações constrangedoras no trabalho e assédio moral nos bancários: uma fotografia. Psicologia & Sociedade , 19(3), 117-128.), intitulado "Autorrelato de situações constrangedoras no trabalho e assédio moral nos bancários: uma fotografia". Outro é o texto de Jonathan e Silva (2007Jonathan, E. G. & Silva, T. M. R. (2007). Empreendedorismo feminino: tecendo a trama de demandas conflitantes. Psicologia & Socidade, 19(1), 77-84.), "Empreendedorismo feminino: tecendo a trama de demandas conflitantes":

Entre as variáveis sociodemográficas estudadas, apenas o gênero e a orientação sexual da vítima levam a diferenças no índice de assédio, sendo que as mulheres e o grupo de homo e bissexuais relatam terem passado por um maior número de situações constrangedoras. (Maciel et al., 2007Maciel, R. H., Cavalcante, R., Matos, T. G. R., & Rodrigues, S. (2007). Autorrelato de situações constrangedoras no trabalho e assédio moral nos bancários: uma fotografia. Psicologia & Sociedade , 19(3), 117-128., p. 124)

No entanto, pode-se argumentar que a multiplicidade de papéis femininos não envolve demandas incompatíveis em sua natureza, sendo necessário reconhecer que os papéis de gênero são construídos socialmente e que os processos de socialização demarcam espaços, expectativas e atividades a serem desempenhadas pelos membros da sociedade. É nesse contexto de construção social do sujeito que emerge e circula a percepção do inconciliável, do "ou isso ou aquilo", e o discurso da culpa feminina, internalizada pelas mulheres no processo de socialização. Nessa abordagem da condição feminina, não há saída para a mulher contemporânea: culpada por trabalhar; culpada por não o fazer. (Jonathan & Silva, 2007Jonathan, E. G. & Silva, T. M. R. (2007). Empreendedorismo feminino: tecendo a trama de demandas conflitantes. Psicologia & Socidade, 19(1), 77-84., p. 78)

Nesses trechos, gênero aparece quase como sinônimo de sexo, sem maiores problematizações do que isso significa ou das relações de poder inerentes a essas classificações. Esse é um problema que tem sucedido na produção brasileira, mas também em outros contextos, e leva a uma perda do potencial crítico presente no debate de gênero.

Outro artigo que compreende gênero como construção social de homens e mulheres sem fazer menção às relações de poder é o de autoria de Curado e Menegon (2009Curado, J. C. & Menegon, V. S. M. (2009). Gênero e os sentidos do trabalho social. Psicologia & Sociedade , 21(3) 431-441.), intitulado "Gênero e os sentidos do trabalho social". Nele as autoras discutem os sentidos do trabalho social, ressaltando a relação entre gênero e trabalho e da naturalização da participação da mulher no trabalho social. A concepção de gênero que permeia o texto pode ser evidenciada no seguinte trecho:

No entanto, para compreender o trabalho social em uma perspectiva de gênero e a massiva presença de mulheres, não basta apenas reconhecer o caráter sociocultural dessas relações. Concordamos que o trabalho social resguarda, sim, características do altruísmo, do uso do afeto, da preservação de redes de laços humanos e envolvimento emocional, mas isso não significa legitimar a exclusividade das mulheres como detentoras desses posicionamentos. Nesse particular, os cinco homens (13,5%) que participaram da pesquisa são indicativos da pequena parcela que exerce trabalho social, mas sua presença nessa atividade, mesmo numericamente pequena, mostra que, ao realizarem seu trabalho, exercitam sua afetividade e dedicação a um trabalho que mescla sentidos de voluntariado, de militância e de profissionalismo, atualizando atributos ainda cristalizados como exclusividade da mulher. Para desnaturalizar o feminino do trabalho social e questionar formas identitárias cristalizadas, precisamos formular outra compreensão de gênero, concebendo-o como processo em construção e reconhecendo as distinções entre homens e mulheres como ativamente criadas, o tempo todo, e não como identidades individuais e consistentes, mas como algo que se processa mediante peças discursivas, organizadas num sistema de sentidos disponíveis às pessoas para darem sentidos as suas posições. (Curado & Menegon, 2009Curado, J. C. & Menegon, V. S. M. (2009). Gênero e os sentidos do trabalho social. Psicologia & Sociedade , 21(3) 431-441., p. 439)

Também discutimos, na primeira parte deste artigo, como a crítica à categoria gênero levou a embates dentro e fora do feminismo e ao debate sobre a possível relação entre diversas categorias sociais, como raça, etnia, classe, lesbianidade, sexualidade. Foi nesse sentido que procuramos identificar nos trabalhos analisados em que medida essas articulações ou tensões foram abordadas.

Verificou-se, como aparece no Gráfico 3, que em 58,3% dos trabalhos a categoria gênero aparece articulada com outras categorias. Entre esses trabalhos, a categoria classe social é a que mais aparece articulada com gênero, sendo 37,5% das vezes; raça aparece articulada 25% das vezes; orientação sexual e identidade de gênero aparecem 21,8% das vezes; lugar de origem, 9,4%; e religião, 6,3%.

Gráfico 3:
Categorias articuladas a gênero

Esse aspecto é muito relevante para entendermos os estudos de gênero e feminismo no Brasil e a psicologia social. Embora o campo das ciências sociais e humanas, de forma geral, tenha importado de maneira mais ou menos crítica grande parte das teorias e pensamentos da Europa e Estados Unidos, os problemas de uma sociedade como a brasileira, com um histórico colonial fortemente marcado pelas articulações entre patriarcalismo, racismo e autoritarismo, geradores de desigualdades sociais intensas, trouxeram complexidades para as análises das relações de poder nessa sociedade heterogênea. No campo da psicologia social, a crise vivida nos anos 1970 e 1980 teve como grande mote a necessidade de pensar a sociedade brasileira problematizando a reprodução de um pensamento colonial acerca de nós mesmos. Assim, entendemos que a associação dos estudos de gênero com psicologia social no Brasil se constituiu em um campo propício para articular categorias sociais, e as críticas das feministas da chamada terceira onda talvez não tenham tido grande expressividade no Brasil como em outros contextos, devido ao que chamaremos aqui de uma articulação constitutiva, já que, como discutimos na introdução deste texto, a associação dos estudos de gênero com o ethos crítico foi propícia a essa interlocução.

Contudo, outros elementos devem ser considerados: como o histórico da universidade brasileira mostra que tal instituição ofereceu acesso restrito a sujeitos das classes populares e impediu o acesso de sujeitos negros em grande parte de sua história,1 Luana Carola dos Santos é mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha de pesquisa sobre "Política, Participação Social e Processos de Identificação". Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. nos deparamos, durante um certo tempo, com algumas ausências, como a das mulheres negras e de classes populares, por exemplo, na produção feminista. Porém, abalada (ainda que parcialmente) essa ausência, as profundas marcas do racismo acadêmico e do pensamento colonizado persistem em nossas práticas sociais e científicas; mesmo após a entrada de mulheres negras no espaço acadêmico, suas produções intelectuais, muitas das quais são amplamente reconhecidas em âmbito internacional, são frequentemente invisibilizadas e/ou não utilizadas pelos acadêmicos do país.

O Gráfico 4 apresenta a produção dos artigos que articulam gênero com outras categorias ao longo do tempo. Percebe-se que, desde 1997, encontramos um (4,8%) trabalho produzido nessa perspectiva, e essa mesma frequência se manteve até 2005. A partir de 2006, esse número começou a aumentar, sendo 14,3% dos artigos encontrados com essa perspectiva publicados nesse ano. Em 2007, foram 9,5%; em 2008, caiu novamente para 4,8%; em 2009, houve o pico de 19%; e em 2010, 14,3%.

Gráfico 4:
Artigo - gênero articulado à outra categoria ao longo do tempo

Os dados quantitativos apontam não só para o crescimento dos estudos de gênero na psicologia social brasileira, mas também para a consolidação desse campo em uma perspectiva feminista e crítica ao conceito de gênero, sem necessariamente abrir mão desse conceito para entender e explicar os fenômenos sociais complexos nos quais vivem diversas mulheres brasileiras. Analisar a produção sobre gênero e feminismo a partir dos artigos presentes na revista Psicologia & Sociedade é apenas uma das possíveis formas de se investigar as relações que se constroem e as produções que se visibilizam no campo da psicologia social brasileira. Nesse intenso exercício, no qual reconhecemos tanto as produções quanto as relações como elementos de poder, traçamos um "mapa" de quem produz, onde, com quem, a partir de quais referências, sem, contudo, esgotar as possibilidades de reflexão sobre essa temática.

Considerações finais

Nosso objetivo neste texto foi analisar a relação entre estudos de gênero e feminismo e a psicologia social no contexto da produção brasileira. Para tanto, analisamos a emergência dos estudos de gênero no campo da psicologia social e identificamos que tal relação foi marcada por especificidades, já que o contexto da crise da psicologia social brasileira constituiu o que chamamos aqui de um ethos crítico e acabou se constituindo como um campo propício para essa articulação. Diferentemente de outros contextos, no Brasil não chegou-se a constituir um campo delimitado como psicologia social feminista, embora muitas das produções desenvolvidas aqui tenham características que apontam para essa delimitação.

Analisamos também algumas das críticas feitas ao gênero que ora apontam para sua despolitização, devido a seu uso como sinônimo de construção social da realidade, sem associação a uma teoria de poder ou ainda como variável descritiva, ora para os limites epistemológicos dessa categoria através de sua perspectiva dicotomizante da realidade. No estudo da produção publicada no periódico Psicologia & Sociedade, revista da Associação Brasileira de Psicologia Social, apresentada neste texto, foi possível identificar esse aspecto.

Contudo, também foi possível identificar que a crítica que a terceira onda do feminismo fez ao universalismo do gênero e suas consequências excludentes não tiveram o mesmo impacto na produção da psicologia social social brasileira difundida na revista em questão. Consideramos que esse aspecto se deve à articulação, desde os primóridos dos estudos nesse campo, entre problemas sociais tão complexos e heterogêneos que marcam a sociedade brasileira e perspectivas teóricas diversas, o que avaliamos como uma característica positiva. Também percebemos algumas ausências que dizem de uma sociedade marcada por histórico colonial e patriarcal, o que deve ser problematizo em outros estudos.

Consideramos, entretanto, que reconhecer a pluralidade e localizar os referenciais e as perspectivas de gênero distintos que embasam as produções em psicologia social é um exercício indispensável, pois exige que, ao falar-se de gênero, deva-se contemplar uma definição complexa e multidimensional e que lance mão de termos explicativos quantos forem necessários. As lentes do gênero, se utilizadas nessa perspectiva complexa e multidimensional, reconhecendo-se os pontos de partida distintos que orientam os usos dessas mesmas lentes, contribuem com dois aspectos que consideramos fundamentais para o pensamento crítico: a contribuição para a desnaturalização das relações sociais - seja no campo da experiência individual, do corpo, das relações educacionais, comunitárias, da arte e cultura, do trabalho, da política e nos ajudam a analisar e problematizar a dinâmica entre público e privado constitutiva das sociedades modernas.

Agradecimentos

Às agências de fomento: FAPEMIG - Edital Nº 03/2010 - Programa Pesquisador Mineiro e CNPq - Edital 20/2010.

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    Para demonstrarmos a gravidade do que estamos falando, citamos a Constituição de 1824, que proíbe a população africana e escravizada de frequentar escolas brasileiras. E a Lei nº 1 de 4 de janeiro de 1837, que em seu artigo terceiro proíbe de frequentar escolas públicas todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas, escravos e pretos africanos, ainda que fossem livres ou libertos. Durante um longo período de sua história, o Estado brasileiro se utilizou de instrumentos jurídicos para impedir o acesso de negros e negras à educação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2014
  • Revisado
    27 Set 2014
  • Aceito
    16 Dez 2014
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