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Quando o velho esconde o novo: antigas palavras, novos significados

When the old hides the new: old words, new meanings

Resumos

Em épocas de mudança social acelerada, a criação de palavras para dar conta da nova realidade torna-se imediatamente visível. Ao mesmo tempo, mas de modo geralmente invisível porque em grande parte inconsciente, ocorre a transformação dos significados de antigas palavras. Enquanto ainda em curso, essa é uma mudança semântica de difícil detecção. Quando detectada, contudo, fornece importantes vias de acesso às transformações psicológicas que inevitavelmente acontecem nesses períodos de grande mudança social. Algumas dessas mudanças semânticas, geradas na esteira da " revolução digital" , foram captadas por pesquisas recentes. O presente trabalho tem por objetivo apresentá-las, bem como discutir suas implicações para a psicologia.

mudança social; mudança semântica; transformações de significado; transformações psicológicas; Método de Explicitação do Discurso Subjacente


In times of accelerated social change, it is immediately visible that words are created to register the new reality. At the same time, but in a generally invisible manner due to its largely unconscious process, old words acquire new meanings. While still in course, this is a semantic change of difficult detection. When detected, however, it provides important insights into the psychological transformations that inevitably happen during these periods of deep social change. Some of these semantic changes, brought about by the " digital revolution" , were captured in recent researches. The present work aims at presenting them as well as at discussing their implications to psychology.

social change; semantic change; meaning transformations; psychological transformations; Underlying Discourse Unveiling Method


Quando o velho esconde o novo: antigas palavras, novos significados1 1 Agradeço o apoio dado pelo CNPq, sob a forma de bolsa de produtividade em pesquisa. Agradeço, também, as contribuições de Helena Martins, Daniela Romão-Dias e Denise Portinari.

When the old hides the new: old words, new meanings

Ana Maria Nicolaci-da-Costa2 2 Endereço: Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica (PUC). Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea. Rio de Janeiro, RJ. CEP 22543-900. E-mail: anicol@psi.puc-rio.br.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

RESUMO

Em épocas de mudança social acelerada, a criação de palavras para dar conta da nova realidade torna-se imediatamente visível. Ao mesmo tempo, mas de modo geralmente invisível porque em grande parte inconsciente, ocorre a transformação dos significados de antigas palavras. Enquanto ainda em curso, essa é uma mudança semântica de difícil detecção. Quando detectada, contudo, fornece importantes vias de acesso às transformações psicológicas que inevitavelmente acontecem nesses períodos de grande mudança social. Algumas dessas mudanças semânticas, geradas na esteira da " revolução digital" , foram captadas por pesquisas recentes. O presente trabalho tem por objetivo apresentá-las, bem como discutir suas implicações para a psicologia.

Palavras-chave: mudança social; mudança semântica; transformações de significado; transformações psicológicas; Método de Explicitação do Discurso Subjacente.

ABSTRACT

In times of accelerated social change, it is immediately visible that words are created to register the new reality. At the same time, but in a generally invisible manner due to its largely unconscious process, old words acquire new meanings. While still in course, this is a semantic change of difficult detection. When detected, however, it provides important insights into the psychological transformations that inevitably happen during these periods of deep social change. Some of these semantic changes, brought about by the " digital revolution" , were captured in recent researches. The present work aims at presenting them as well as at discussing their implications to psychology.

Keywords: social change; semantic change; meaning transformations; psychological transformations; Underlying Discourse Unveiling Method.

No início do século XX, em 'Curso de Linguística Geral' (Cours de linguistique général), Ferdinand de Saussure (1916/1972) revolucionou o estudo das línguas naturais3 3 Denominação usada para estabelecer o contraste entre as línguas espontaneamente desenvolvidas e faladas por grupos sociais e sistemas artificialmente construídos, como o das línguas formais ou da linguagem de computadores (Crystal, 1980). ao adotar uma visão em sintonia com princípios das recém-surgidas ciências sociais. Um bom exemplo da influência dessas sobre seu pensamento é o uso que faz do conceito de " fato social" , de importância central na obra de seu contemporâneo, o sociólogo Emile Durkheim. Tal como Durkheim (1894/1981) fazia em relação a diferentes aspectos da vida em sociedade (como, entre outros, o conjunto de regras morais, os dogmas religiosos, os sistemas financeiros ou a organização familiar), Saussure afirmava que toda e qualquer língua natural é um " fato social" . Com isso, ele queria dizer que uma língua é sempre coletiva, exterior aos indivíduos e coercitiva (no sentido em que coage aqueles que a falam a agir e pensar de certos modos e não de outros).4 4 Barthes (1978, p. 13), por exemplo, dizia que a língua francesa proibia-lhe o neutro, obrigando-o a escolher entre o masculino e o feminino.

Em outras palavras, para Saussure (1916/1972), a existência primeira de uma língua natural é sempre social. Por isso mesmo, qualquer língua natural está sempre intimamente vinculada aos aspectos constituintes da sociedade na qual é falada em um determinado período de tempo: às suas estruturas e instituições, à sua visão de mundo, aos seus valores, aos seus costumes etc. Claro está que essa vinculação se estende aos processos de mudança que constantemente incidem sobre as sociedades humanas. Toda língua natural é sensível às transformações pelas quais passam os grupos sociais, sociedades ou conjunto de sociedades nas quais é usada. Mudanças sociais inevitavelmente geram mudanças linguísticas.

Sem ser linguista, mas sim historiador, Eric Hobsbawn dá um excelente exemplo dessa sensibilidade que as línguas humanas têm para registrar mudanças sociais e, por meio desse registro, incorporá-las, sedimentá-las e tornar possível a transmissão de uma nova visão de mundo para as gerações futuras. Na introdução de seu livro 'A Era das Revoluções', Hobsbawn (1962/2006) convida o leitor a pensar o mundo na ausência de uma longa lista de palavras ou expressões que emergiram ou ganharam seus significados modernos na esteira da Revolução Industrial (mais exatamente no período de aproximadamente 60 anos compreendido entre 1789 e 1848). Entre elas encontramos palavras e expressões que nos são tão familiares quanto: " indústria" , " fábrica" , " classe média" , " classe trabalhadora" , " capitalismo" , " socialismo" , " aristocracia" , " ferrovia" , " liberal" , " conservador" , " nacionalidade" , " cientista" , " engenheiro" , " proletariado" , " greve" etc. Embora pouco usual, Hobsbawn deixa claro que esse exercício de imaginar um mundo no qual essas palavras e tudo aquilo que elas nomeiam não existiam nos dá a dimensão da profundidade e extensão da revolução que as tornou necessárias.

Esse é o motivo que o leva a afirmar que " as palavras são testemunhas que muitas vezes falam mais alto do que os documentos" (Hobsbawn, 1962/2006, p. 15). Palavras dão concretude a visões de mundo e o estudo de seu aparecimento, mesmo que em épocas distantes, possibilita a apreensão da emergência de novos modos de organização social, econômica, psicológica etc. De fato, ao listar as palavras acima citadas e outras mais, Hobsbawn mostra como elas foram inventadas ou ganharam novos significados na esteira da revolução industrial, ou, mais precisamente, no período de emergência do modo de vida capitalista.

Nisbet (1966) observa que Hobsbawn (1962/2006) trata esses dois processos – de criação de uma nova palavra ou de transformação do significado de uma palavra já existente – como equivalentes ou, pelo menos, não geradores de diferenças significativas. E tal postura faz sentido se considerarmos que, no momento em que um historiador procura reconstituir eventos passados dos quais não foi testemunha ocular, todas as palavras então em uso já serão antigas. Todas já terão tido seus significados socialmente difundidos, consolidados e muito provavelmente registrados em dicionários e publicações congêneres. Todas, portanto, poderão receber o mesmo tratamento dado a documentos estáticos, que registram um momento do passado, como fotos ou qualquer tipo de material escrito. Do ponto de vista de Hobsbawn, por conseguinte, pode não haver diferença de peso (a não ser de ordem etimológica) entre uma palavra que foi inventada para dar conta de um novo conceito, coisa, estado ou processo e uma então já existente que teve seu significado alterado para fazer o mesmo.

Palavras novas, inventadas para dar conta de uma nova realidade, bem como palavras antigas, cujos significados sofrem modificações pelo mesmo motivo, são também muito importantes para um pesquisador em psicologia que estuda as consequências pessoais de um presente em constante transformação, como é o nosso caso nos dias de hoje. Da ótica deste pesquisador, contudo, essas duas categorias de palavras são bastante distintas. Examinemos por quê.

Em um contexto de mudança acelerada como o atual, a entrada de palavras novas no discurso cotidiano é imediatamente visível e revela o grau em que uma nova visão de mundo está sendo difundida, adotada e internalizada5 5 Durante os primeiros tempos de difusão da Internet, por exemplo, a profusão de palavras novas foi tão grande que fez surgir vários dicionários especializados, além de glossários em jornais de grande circulação e até mesmo em livros (Nicolaci-da-Costa, 1998). . Em contrapartida, quando ainda em curso, a atribuição de novos significados a palavras antigas é no mais das vezes invisível e, portanto, de difícil detecção6 6 As dificuldades de detecção de mudanças semânticas ainda em curso se encontram registradas na literatura lingüística, a exemplo de Mair (2006). . Por isso mesmo, sua captação, quando possível, minimamente denuncia que a adoção de uma nova visão de mundo não é nada simples na medida em que esta tem que vencer a resistência a ela oferecida pelos conjuntos de valores, crenças, comportamentos etc. da antiga ordem. E, como não poderia deixar de ser, esses valores, crenças e comportamentos antigos encontram fortes aliados para sua sobrevivência nos antigos significados das palavras.

É evidente que tal resistência e o processo de transformação que ocorre até que seja vencida são extremamente interessantes para o já mencionado pesquisador em psicologia que, como nós, estuda um momento de mudança acelerada que ocorre diante de seus olhos. Se passíveis de serem captados, tanto essa resistência quanto esse processo de transformação (no caso aqui estudado, o de mudança de significado) podem se constituir em importantes vias de acesso às transformações internas que inevitavelmente ocorrem em todos os homens e mulheres cujas vidas se desenrolam durante períodos de grande mudança social.

O problema que se coloca para este pesquisador é o de como ganhar acesso a esses processos internos na medida em que eles são invisíveis e geralmente não conscientes. O propósito deste artigo é o de mostrar que, embora difícil, tal acesso é possível. Pôde, por exemplo, ser alcançado em algumas pesquisas nas quais foi utilizado o Método de Explicitação do Discurso Subjacente – MEDS (Nicolaci-da-Costa, 2007a). Para apresentar ao leitor como isso se deu, serão primeiramente expostos os principais pressupostos e procedimentos do MEDS e, a seguir, alguns dos resultados por ele produzidos no que diz respeito à captura de mudanças de significado ainda em curso. Por último, será discutida a importância dessa captura.

O uso cotidiano da língua como uma via de acesso ao psicológico e o MEDS

A psicanálise e outras formas de psicoterapia há muito estabeleceram o emprego do discurso – ou da " língua em uso" – como uma importante via de acesso à esfera do psicológico. Emprego análogo do discurso também vem sendo feito por diversos métodos de pesquisa qualitativa em psicologia, principalmente por aqueles que fazem uso de entrevistas (Nicolaci-da-Costa, 2007a).

Partindo da mesma premissa de que o discurso faculta o acesso ao domínio do psicológico, um desses métodos – o MEDS – foi intencionalmente desenvolvido de modo a tornar possível a investigação dos conflitos e incoerências internos gerados por processos de mudança social radical. Seu sucesso na execução dessa tarefa deve-se tanto aos seus pressupostos teóricos quanto aos seus princípios operacionais, todos eles já detalhadamente descritos anteriormente (Nicolaci-da-Costa, 2007a).

No que diz respeito aos pressupostos teóricos, pelo menos três são dignos de breve menção no presente contexto: (a) alinhado com as teorias da construção social da realidade (Berger & Luckmann, 1967) e da subjetividade (Bernstein, 1977; Foucault, 1966), o MEDS atribui ao discurso um importante papel na construção da organização psicológica dos membros da sociedade na qual é emitido, veiculado e recebido; (b) como consequência, o MEDS pressupõe que mudanças discursivas podem gerar a emergência de novas características psicológicas (e até mesmo de novas configurações psíquicas) e/ou ajudar a sedimentá-las; (c) o MEDS adota o ponto de vista de que, se o discurso tem o poder de construir ou transformar características psicológicas, também deve ter o poder de revelar como se dá essa construção ou transformação.

É exatamente essa revelação que o MEDS procura propiciar por meio de seus procedimentos de pesquisa, dentre os quais serão destacados apenas aqueles mais relevantes para os objetivos da presente discussão.

Comecemos pela coleta de dados. Essa é feita por intermédio de entrevistas abertas e informais, nas quais os participantes falam livremente em resposta às questões que lhes são colocadas pelo(a) entrevistador(a) a partir de um roteiro único. Esse roteiro tem pelos menos duas características importantes no contexto deste artigo: (a) embora sua aplicação seja flexível de modo a respeitar o fluxo de raciocínio dos participantes, é um roteiro estruturado, cujos itens (transformados em perguntas sempre durante as entrevistas a fim de manter a informalidade de uma conversa natural) devem ser abordados por todos os participantes; (b) nesse roteiro, questões abstratas (opiniões, sentimentos etc.) são contrastadas com questões que procuram coletar informações objetivas de modo a tornar possível a emergência de inconsistências ou contradições que podem ser importantes indicadores de transformações e/ou conflitos internos gerados por processos de mudança social.

A análise dos depoimentos coletados também é feita de modo a propiciar a emergência do que está nas suas entrelinhas, ou seja, do discurso subjacente. Para tanto, essa análise é realizada em dois níveis complementares. Em primeiro lugar, são analisadas as respostas de todos entrevistados a cada um dos itens do roteiro (as respostas são comparáveis porque todos os participantes fornecem respostas a todos os itens). A partir dessa visão de conjunto, que já indica o que há de comum nos depoimentos dos participantes da pesquisa, cada uma das entrevistas é analisada individualmente em busca de contradições, inconsistências, novos usos de linguagem etc. Caso uma inconsistência, contradição ou novo uso de linguagem seja detectado, retorna-se à primeira etapa e procura-se ver se tal inconsistência/contradição/uso de linguagem é um evento isolado ou se está presente nos demais depoimentos. A presença de uma inconsistência/contradição disseminada geralmente constitui um importante indicador da co-existência interna (e, no mais das vezes, inconsciente) de valores contraditórios que vêm à tona e dão visibilidade a conflitos internos que têm origem social. Já a presença disseminada de novos usos de linguagem quase sempre dá visibilidade ao processo de internalização de novos valores, conceitos, formas de pensar e sentir, formas de estar no mundo etc. Em ambos os casos, tornam-se visíveis processos de absorção e adaptação psicológica a mudanças de origem social.

Ao longo de anos, como atestam diversas pesquisas (e.g., Abreu, 2003; Di Luccio, 2005; Ramalho, 2005; Romão-Dias, 2007), o conjunto de procedimentos proposto pelo MEDS vem tendo muito sucesso nessa tarefa de tornar visíveis transformações internas invisíveis. Recentemente, no entanto, o MEDS provou ser capaz de gerar ainda um outro importante resultado, desta feita inesperado. Seu emprego em pesquisas que visavam investigar os impactos psicológicos da chamada " revolução digital" tornou possível a captura de pelo menos alguns momentos da mudança de significado de palavras de uso corriqueiro no português falado no Brasil.

Visualizando redefinições de antigas palavras

A capacidade do MEDS de captar processos de redefinição dos significados de palavras de uso cotidiano se tornou evidente na análise dos depoimentos coletados durante a realização de três pesquisas independentes (Nicolaci-da-Costa, 2002, 2004, 2006), cujos objetivos eram distintos e os participantes tinham perfis bastante diferentes.

Cada um dos processos captados será descrito a seguir, após uma breve apresentação da pesquisa na qual foi detectado. As seções em que serão apresentados terão como títulos a(s) palavra(s) cujas redefinições puderam ser capturadas.

O " vício"

O primeiro vislumbre de que um processo de mudança de significado fora captado pelo MEDS veio de uma pesquisa sobre o uso intensivo da Internet. No que se segue, deixando de lado detalhes e referências que constam do texto original (Nicolaci-da-Costa, 2002), é descrita a sua fundamentação e contextualizado seu objetivo para o leitor deste artigo.

Quando, em meados da década de 1990, a Internet começou a se difundir vertiginosamente, seu poder de atração era tão grande que fazia com que milhões de pessoas ao redor do mundo passassem incontáveis horas de seus dias e noites a ela conectadas. Encantadas com o inédito potencial que a rede internacional de computadores tem de facultar o acesso de qualquer um a qualquer tipo de informação, bem como o contato entre quaisquer de seus usuários, essas milhões de pessoas haviam partido para a exploração de um novo mundo à frente de seus computadores. E isso tomava tempo, principalmente em uma época em que as conexões – discadas – eram extremamente lentas.

Logo, contudo, surgiram gritos de alerta em relação ao número de horas gasto acessando a Internet. Um novo " vício" – análogo, dizia-se então, ao vício em cocaína ou ao vício em jogo – havia sido identificado por psicólogos e psiquiatras: o " vício" na Internet. Aqueles que alardeavam o novo " vício" afirmavam que, tal como as demais manifestações desse tipo de patologia, essa também gerava compulsão, dependência e isolamento, entre outras consequências negativas. A mídia – nacional e internacional – tornou-se (e ainda é) incansável em sua divulgação. Para tanto, baseava-se nos resultados – sempre sombrios – de investigações conduzidas por pesquisadores de várias nacionalidades.

Pouco tempo depois, começaram a emergir as primeiras críticas – também internacionais – a esses estudos. Algumas indagavam se o rótulo de " vício" era o mais adequado para se referir ao novo comportamento de despender horas navegando ou batendo papo online. Outros, a exemplo de Giddens (2000), afirmavam que, nos dias de hoje, dependendo da intensidade com que nos dedicamos a certas atividades (algumas das quais, certamente, socialmente percebidas como positivas), podemos facilmente ser vistos como " viciados" em trabalho, em exercícios, em comida, em sexo, ou até mesmo em amor.

Dado esse confuso contexto e a ausência de menção a estudos nacionais, resolvemos investigar o que estava acontecendo entre nós. Com essa finalidade, levamos a cabo um estudo em profundidade com usuários brasileiros (de várias idades) que tinham em comum o fato de passarem várias horas por dia na Internet. Os resultados obtidos também lançaram sérias dúvidas a respeito da aplicação generalizada do rótulo de " vício" (com o significado de um comportamento patológico caracterizado por dependência e compulsão) a essa exploração de uma nova realidade. Mostravam claramente como esses usuários, embora não contestando a legitimidade das pesquisas divulgadas pela mídia (sendo leigos, como poderiam fazê-lo?), intuíam essa inadequação. Por isso mesmo, embora recorrendo a fórmulas diferentes, quase todos se distanciavam do significado patológico difundido pela mídia e dos demais significados negativos da palavra " vício" registrados por Ferreira (1999).

Sem terem contato uns com os outros, cada um deles dizia que, ao menos no seu caso (que a análise dos resultados revelou ser o de praticamente todos os entrevistados), a coisa era diferente. Uma das fórmulas que empregavam para expressar seu distanciamento e atribuir valor positivo ao hábito de despender muito tempo online consistia em fazer afirmações jocosas, que serviam para qualificar, relativizar e até mesmo ridicularizar a severidade e seriedade do rótulo patológico que era atribuído ao seu comportamento. Alegavam, por exemplo, que seu uso intensivo da Internet era um " vício" " socialmente aceito" , " não nocivo" , " não maléfico" e outras qualificações congêneres. Muitas vezes, também tentavam estabelecer analogias dando outros exemplos de " vícios não nocivos" como o " vício" em coca-cola, em música, em malhação etc.

Durante a análise dos depoimentos dos diversos participantes da pesquisa, chamava imediatamente a atenção o fato de que esses recorriam aos mesmos procedimentos, usados concomitantemente, para usar a palavra " vício" contextualizadamente no presente. Por um lado, qualificavam-na de modo a se distanciarem de seu significado patológico. Por outro, atribuíam-lhe um novo significado – o de comportamento excessivo – já desvinculado de qualquer conotação patológica (ou simplesmente negativa) e em sintonia com as inúmeras caracterizações da contemporaneidade como uma era de excessos (Bauman, 2000/2001; Giddens, 2000; Sennett, 1998/1999). Não faziam, contudo, reflexões explícitas quer a respeito do distanciamento, quer a respeito do novo significado, o que sugere que tinham somente consciência parcial do que estavam fazendo.

A " urgência" e a " emergência"

Esse primeiro vislumbre da vocação inesperada do MEDS para permitir a visualização de um processo de transformação de palavras comuns foi ratificado em outra pesquisa sobre os impactos subjetivos da " revolução digital" , que se propunha a investigar o que estava acontecendo com jovens das camadas médias cariocas, entre 18 e 25 anos de idade, em decorrência da difusão da telefonia celular. Esse estudo (Nicolaci-da-Costa, 2004) produziu interessantes resultados no que diz respeito à redefinição das palavras " urgência" e " emergência" , evidenciando um processo bastante semelhante àquele que vem incidindo sobre a palavra " vício" . Esse processo e suas origens já foram anteriormente descritos em detalhes no referido estudo. Mais uma vez, no entanto, é necessário que deles façamos um pequeno relato no presente contexto para que o leitor deste artigo possa com eles travar contato. Vejamos.

Diferentemente do que aconteceu no caso da Internet, inicialmente a difusão dos celulares foi relativamente lenta. Em seus primeiros tempos, os aparelhos eram muito caros e difíceis de conseguir. Os serviços (primordialmente de contato de voz, pois os celulares ainda não eram digitais) também tinham custo alto. Em consequência, as poucas pessoas que tinham celulares usavam-nos quase exclusivamente para casos de " emergência" – definida como uma situação fortuita que envolve perigo (Ferreira, 1999) –, a exemplo de um pneu furado numa estrada, um acidente, um mal-estar súbito etc. Preocupados com seus filhos jovens, pais que dispunham de recursos financeiros equipavam-nos com os novos telefones móveis de modo que, estando fora de casa, esses jovens a eles pudessem recorrer em casos de " urgência" – ou seja, em casos de emergência nos quais algo tivesse que ser feito com rapidez (Ferreira, 1999). Enfatizavam para os filhos que eles podiam usar o celular sempre que houvesse uma " urgência" .

Com a posterior difusão dos celulares (agora já digitais), os jovens começaram a usá-los para praticamente tudo, o que gerava contas astronômicas a serem pagas pelos pais. Como estes começaram a reclamar, os jovens passaram a se valer da ênfase, antes atribuída à " urgência" por seus genitores, para legitimar o uso bastante variado e pouco comedido que faziam de seus celulares. Com isso, as palavras " urgência" e " emergência" passaram a ganhar significados bastante diferentes dos tradicionais.

Bons exemplos desses novos significados proliferam nos depoimentos coletados por Nicolaci-da-Costa (2004). Quase todos os entrevistados afirmam usar seus celulares somente para casos de " emergência" . E o que é uma " emergência" para eles? É " quando eu tô fora de casa, ligar pra minha mãe, avisar alguma coisa..." . É " a gente ter que encontrar [alguém] em algum lugar, alguma hora, prá entregar um trabalho" . É " tipo, avisar pra minha mãe onde eu tô, pra onde eu vou, (...) ou se eu tiver passando mal mesmo." Podemos observar que, nesses três depoimentos, " emergência" adquire um significado peculiar que rompe com sua definição tradicional (de situação crítica ou de acontecimento perigoso, vale repetir). Como revela o último dos depoimentos acima, por vezes o novo significado já está tão distante do tradicional que torna um mal-estar – clássico exemplo da " emergência" tradicional – surpreendentemente menos importante do que avisos.

Outros dois depoimentos são particularmente felizes em revelar o confuso processo de redefinição pelo qual estão passando as palavras " urgência" e " emergência" . De acordo com um deles:

depois que apareceu o celular [a gente] tem essa... vontade de falar com a pessoa naquele segundo, mesmo que não seja uma coisa imediata, nada especial (...) Às vezes não é nem uma coisa de emergência, mas, por exemplo, aconteceu uma coisa comigo e eu quero falar com a minha amiga urgentemente.

Já segundo o outro, o uso do celular é hoje " mais emergência, mais necessidade, o uso numa necessidade, não emergência que parece que aconteceu alguma coisa. Assim, às vezes um avisar alguém de alguma coisa é uma necessidade."

Em outras palavras, a vontade de falar com os outros imediatamente para contar uma fofoca, saber das novidades ou simplesmente manter o contato acaba ditando uma urgência não urgente. De modo análogo, a necessidade de avisar alguém de alguma coisa se constitui em uma " emergência" que não é uma " emergência que parece que aconteceu alguma coisa" . Embora bastante confusas, tais qualificações mostram claramente que tanto " emergência" quanto " urgência" – palavras que antes tinham significados pouco ambíguos – estão sendo usadas com um distanciamento crítico apenas parcialmente consciente, análogo ao do " vício em coca-cola" visto anteriormente. Dito de outro modo, para os jovens entrevistados, essas palavras já não têm somente seus significados tradicionais (que eles conhecem e registram em suas falas). Às " emergências" e " urgências" tradicionais agora se somam outras concepções de " emergências" e " urgências" , desta feita ditadas por desejos cuja satisfação não pode ser adiada dentro da visão de mundo imediatista, característica da contemporaneidade. (Bauman, 2000/2001; Giddens, 2000; Sennett, 1998/1999).

O " controle" e a " segurança"

Os últimos processos de redefinição de significado a serem apresentados no presente artigo foram gerados por uma pesquisa realizada de modo a esclarecer um achado da pesquisa com jovens usuários de celulares que acaba de ser apresentada. Tendo em vista que esses reclamavam muito que suas mães (os pais não eram mencionados) os controlavam o tempo todo, resolvemos verificar o que estava ocorrendo do ponto de vista de mulheres que tinham perfil análogo ao das mães desses jovens (Nicolaci-da-Costa, 2006, 2007b). Queríamos saber como essas mulheres usavam seus celulares e se nesse uso estava incluído o controle à distância dos filhos. Foi, portanto, uma pesquisa realizada exclusivamente com mulheres maduras, dado que um dos principais critérios para o recrutamento das participantes era o de que fossem mães de jovens entre 18 e 25 anos de idade (faixa etária à qual, como já visto, pertenciam os jovens da pesquisa relatada na seção anterior).

Para os propósitos da presente discussão, essa pesquisa gerou resultados de inestimável valor. Isso porque, em contraste com o que aconteceu nas duas pesquisas já relatadas, revelou diferenças no processo de redefinição de palavras. E o fez em um contexto no qual tais diferenças não podem ser atribuídas a fatores intervenientes (como, entre outros, o pertencimento a faixas etárias ou classes sociais distintas), pois foram detectadas nos depoimentos das mesmas entrevistadas.

Comecemos a apresentação com o relato do que pudemos perceber estava acontecendo com a palavra " controle" , relato cujos detalhes podem ser examinados em Nicolaci-da-Costa (2006).

Até pouco tempo atrás, quando referido a pessoas, entendia-se por " controle" uma fiscalização exercida sobre seus comportamentos para que estes não se desviassem de normas socialmente estabelecidas (Ferreira, 1999). Embora esse certamente ainda seja um dos seus significados, a palavra " controle" vem passando por um processo de redefinição que apresenta similaridades com os processos de redefinição discutidos anteriormente, mas também importantes diferenças em relação a estes. Segue-se uma breve apresentação tanto dessas similaridades quanto dessas diferenças, tal como reveladas pela análise dos depoimentos das mães entrevistadas.

Ao falarem sobre o uso dos celulares – e sem que lhes fosse feita nenhuma pergunta sobre controle –, todas as entrevistadas admitiram que, para elas, a maior utilidade do celular era a possibilidade de " controlar" seus filhos.

Quase invariavelmente, no entanto, tal como aconteceu nos casos dos processos de redefinição relatados anteriormente, essas mães qualificavam o que queriam dizer quando se referiam a " controle" . Foi, contudo, detectada uma importante diferença entre as qualificações que essas mulheres faziam da palavra " controle" e aquelas que haviam sido feitas das palavras " vício" , " urgência" e " emergência" pelos participantes das investigações relatadas nas seções precedentes. Um re-exame dos processos de redefinição de " vício" , " urgência" e " emergência" mostra que essas palavras eram qualificadas de duas formas principais, sendo que ambas eram indicativas de um baixo nível de consciência e muita intuição: (a) de forma passageira, por meio de exemplos (" vício saudável como o vício em coca-cola" , [emergência é] " quando eu tô fora de casa, ligar pra minha mãe, avisar alguma coisa" ), ou (b) por meio de afirmações bastante confusas (" emergência que não é uma emergência que parece que aconteceu alguma coisa" ).

Já " controle" , foi possível constatar, era alvo de qualificações mais cuidadosas, que muitas vezes envolviam redefinições explícitas e, portanto, conscientes. Seguem-se alguns depoimentos que exemplificam essas redefinições. Uma mãe diz que usa o celular para " controlá-lo [o filho]" . E, imediatamente acrescenta: " controlá-lo não por achar que ele está fazendo alguma coisa errada, mas controlar para saber se ele já chegou em casa (...) essas coisas assim." Outra hesita ao usar a palavra " controle" antes de explicitar a que se refere. Diz: " Rola esse (...) digamos, controle." E deixa claro o que quer dizer: " Eu sou liberal, não proíbo de nada, elas [as filhas] têm liberdade pra sair, voltar quando quiserem. Mas eu gosto e faço questão de estar informada (...) porque se acontece alguma coisa eu estou mais ciente da situação, entendeu?" .

Várias fazem comparações entre o tipo de " controle" que vigorava quando eram jovens e aquele que vigora hoje. Uma delas, por exemplo, afirma:

[Na minha geração] (...) o controle era para saber se fumava baseado. (...) Mas [agora] se tem algum meio de alguém da sua família, (...) saber onde você está não é para controlar sua vida, mas é para ter segurança porque se surgir um perigo, ocorrer um acidente (...), alguém pode te socorrer.

De acordo com outra:

(...) quando falo de controle, não é um controle rígido [típico da época em que era jovem]. Eu sou assim, sou mãe coruja (...) eu gosto de ser a galinha, os filhos debaixo da asa. Mas com a liberdade deles. Não sou de ficar perguntando toda hora. Só quero saber o seguinte, vai dormir em casa, tem previsão de chegada?

Para marcar a diferença entre o " controle" normativo e coercitivo, ao qual elas próprias foram submetidas quando jovens, e o " controle" de ter ciência do que está acontecendo, ao qual submetem seus filhos, este último chega a ser compacta e eficazmente batizado de " controle entre aspas" por algumas mães.

Tal fórmula compacta, aliada às explicações mais extensas citadas acima, revela o alto grau de consciência que as mães entrevistadas nessa pesquisa tinham a respeito das transformações sofridas pela palavra " controle" . Em si mesmo, esse resultado já era inesperado dado que, como já foi apontado, nas pesquisas anteriores os distanciamentos pareciam ser mais frutos da intuição do que de alguma reflexão consciente.

Os depoimentos dessas mesmas mães, no entanto, guardavam ainda uma surpresa maior. Esta emergiu quando foram analisados os significados por elas atribuídos à palavra " segurança" , que aparecia espontaneamente em praticamente todas as entrevistas (Nicolaci-da-Costa, 2007b). Vejamos.

É bastante popular o discurso de que os celulares são importantes na manutenção da " segurança" pessoal. Tal crença se baseia na definição clássica de " segurança" , que remete a proteção e garantias (Ferreira, 1999). Subsídios para essa crença não faltam, pois proliferam os exemplos de acidentes, mal-estares súbitos ou outros acontecimentos inesperados que envolvem algum risco, nos quais os celulares possibilitaram um pedido de ajuda ou socorro.

Tanto a literatura sobre os impactos sociais e pessoais do uso de celulares (discutida em Nicolaci-da-Costa, 2007b) quanto os resultados da pesquisa com jovens usuários da telefonia celular relatada anteriormente nos levavam à mesma expectativa. Achávamos que a " segurança" (clássica) dos filhos em situações de perigo seria maciçamente mencionada pelas mães quando essas fossem perguntadas sobre as razões pelas quais haviam comprado telefones celulares para seus filhos. A análise dos depoimentos coletados, contudo, mostrou um quadro bastante diferente.

Explicitamente foram poucas as mães que admitiram haver comprado os celulares de seus filhos para a " segurança" deles. Quando o fizeram, de fato relacionaram essa " segurança" principalmente a casos de emergência como o carro enguiçar, um pneu furar, haver um acidente... Uma das entrevistadas, por exemplo, diz que deu um celular para sua filha porque " ... [ela] dirige, às vezes viaja, pega o carro sozinha à noite, né? Então acho que o celular traz mais segurança. Se o carro quebra, ela pode ligar" . Outra dá um exemplo concreto: " Ela [a filha] bateu com o carro no sábado. Eu tava até viajando, ela pegou e ligou pro tio" .

Na esmagadora maioria das vezes, no entanto, apesar de deixarem claro que estavam sempre preocupadas com os filhos, as mães surpreendentemente afirmavam que os celulares geravam " segurança" para elas mesmas. Qual o significado de " segurança" nesse contexto?

Sem que houvesse hesitações, qualificações ou quaisquer outras manifestações de distanciamento de seu significado tradicional, a palavra " segurança" era insistente e consistentemente empregada pelas mães entrevistadas em contextos nos quais claramente remetia a tranquilidade, paz, sossego, descanso, alívio e outros sentimentos semelhantes que a ela anteriormente não estavam vinculados. Do ponto de vista das entrevistadas, os celulares lhes propiciavam " segurança" porque as liberavam da angústia de não saberem onde estavam seus filhos. Examinemos alguns exemplos.

Uma entrevistada revela como o celular aplaca suas preocupações. Afirma se sentir " bem mais segura [em relação aos filhos] ... nesse mundo meio doido, né? Assim, [liga] 'ah! tá onde?', 'tô no trânsito', 'tô chegando em casa'. Então isso me dá mais segurança" . Outra diz:

... é muito raro eu ligar. Por exemplo, a C [filha]. ... sai pros programas dela. Muito raro eu ligar, 'C., onde você tá?'. Não, mas eu tenho a segurança comigo que ela está com celular, e que numa necessidade eu vou saber onde ela está ...

Uma terceira explicita: " [Com o celular] eu fico bem mais tranquila, porque eu sei que posso falar com ele [o filho] ou ela [a filha] a qualquer hora... Minha preocupação é com os dois, né? Dá tranquilidade, acho uma maior segurança, você saber..."

Como podemos constatar, nesses depoimentos (apenas alguns dentre vários com o mesmo teor), essas mães falam não sobre a " segurança" (no sentido tradicional de proteção) que os celulares proporcionam para seus filhos, mas sim sobre a " segurança" (no sentido de tranquilidade ou paz de espírito) que eles trouxeram para suas próprias vidas.Na realidade, " segurança" e " tranquilidade" são palavras cujo significado parece ter se tornado intercambiável para a grande maioria das entrevistadas. Claro está que, para essas mães, tal como " controle" , " segurança" passou a ter um novo significado.

Há, porém, uma grande diferença entre o tratamento por elas dado à palavra " controle" e aquele por elas mesmas empregado em relação à palavra " segurança" . No primeiro caso, como foi visto acima, elas sinalizavam claramente a mudança de significado por meio de vários tipos de qualificação, a exemplo da compacta fórmula " controle entre aspas" . Já a mudança ocorrida com a palavra " segurança" não encontra qualquer marcação, qualificação ou distanciamento crítico (como uma hesitação ou uma referência jocosa) no discurso dessas mulheres. A julgar pela firmeza, espontaneidade e consistência com que a usavam, poder-se-ia pensar que, para elas, " segurança" sempre havia estado vinculada a estados de espírito como " tranquilidade" , " alívio" ou " paz" , o que sabemos não ser verdadeiro (Ferreira, 1999). Não é de todo improvável que o alívio de poder alcançar os filhos em qualquer lugar e a qualquer hora tenha sido tão grande que essas mulheres abraçaram esse novo significado sem quaisquer restrições (o que não quer dizer que o significado anterior não continue sendo por elas usado em outros contextos). Essa, contudo, não passa de uma conjectura no atual estágio do nosso conhecimento.

Implicações para a psicologia

Tendo em vista que os resultados analisados no presente trabalho foram acidentalmente gerados por pesquisas que não tinham por objetivo analisar mudanças de significado, não dispomos de subsídios para explicar as diferenças de menor ou maior porte que constatamos existir entre os processos que acabam de ser relatados7 7 Na realidade, embora tenhamos feito referência genérica a processos ao longo deste artigo, também não temos suficientes dados para determinar se captamos diferentes processos ou diferentes fases de um ou mais processos. Para tanto, serão necessárias pesquisas que tenham as próprias mudanças de significado como objeto de estudo e sejam levadas a cabo com o auxílio de lingüistas. .

Do nosso ponto de vista, no entanto, mais importante do que as diferenças é o que há de comum nas mudanças que tivemos a felicidade de captar. E o que todas elas têm em comum é o fato de terem tido início quando as palavras " vício" , " emergência" , " urgência" , " controle" e " segurança" , ainda com seus antigos significados, começaram a ser usadas em contextos sociais que estavam, eles próprios, passando por um profundo processo de transformação. Essa transformação social, por sua vez, também tinha uma origem em comum: a difusão do uso das novas tecnologias da informação e telecomunicação (especialmente da Internet e dos celulares). A partir daí, em sintonia fina com a fluidez que se tornou um dos aspectos distintivos da contemporaneidade (Bauman, 2000/2001; Deleuze & Guattari, 1980/1997), cada uma dessas palavras, a seu jeito, sofreu um processo que poderia ser chamado de " deslizamento semântico" , que ampliou o campo de significados ao qual dava cobertura para melhor atender às novas necessidades daqueles que delas fazem uso.

Toda essa trajetória de mudança tem sérias implicações para a psicologia. Para que essas sejam devidamente avaliadas e compreendidas, é, no entanto, necessário que tenhamos em mente que os velhos e novos significados estudados denotam muito mais do que parecem. São legítimos representantes das diferentes visões de mundo, valores, formas de pensar e modos de ser aos quais estão vinculados. Feito esse registro, podemos afirmar que, por intermédio dos novos significados que pudemos captar, nossos entrevistados revelaram claramente o grau em que já tinham sofrido transformações internas em decorrência da absorção da visão de mundo e conjuntos de valores contemporâneos.

Mostraram, também, que absorver o novo não implica a erradicação imediata do velho. Disso dão testemunho os antigos significados que os participantes de nossas pesquisas tinham tão presentes dentro de si que deles quase sempre tinham que se distanciar verbalmente antes de redefinir as palavras estudadas neste artigo. Velhos e novos significados, vinculados a velhas e novas visões de mundo, a velhas e novas formas de pensar, a velhos e novos afetos evidentemente estavam, na maior parte das vezes, presentes lado a lado no íntimo dos nossos entrevistados (como certamente estão presentes em nosso próprio íntimo também). Tal coexistência de dois conjuntos de valores oriundos de realidades e épocas diferentes, por sua vez, tem outras consequências de peso para a psicologia.

A primeira delas já é uma antiga conhecida tendo sido minuciosamente investigada no contexto de outros processos de mudança social, como o de modernização ocorrido no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 (Nicolaci-da-Costa, 1987). Diz respeito ao potencial de conflito subjetivo gerado pela convivência interna de dois (ou mais) conjuntos de valores, crenças, sentimentos etc. que podem se contradizer ou se opor em diversos pontos. No que foi apresentado, esse potencial pôde ser visualizado somente no que diz respeito ao rótulo de patologia (tão divulgado pela mídia) atribuído à palavra " vício" por diversos profissionais e à desqualificação geralmente jocosa que dele faziam os entrevistados (desqualificação essa que pode ter sido uma solução por eles encontrada para o sofrimento e mal-estar gerados pelo conflito). Esse conflito, embora não parecendo ter se configurado como grave (ao menos para nossos entrevistados), pode ser tomado como um bom indicador da possibilidade de existência de outros embates internos entre o velho e o novo em áreas da experiência não cobertas pelas pesquisas nas quais nos baseamos.

A segunda importante consequência dos achados apresentados neste trabalho é a consciência de que o novo pode ser facilmente camuflado pelo velho. Ficou claro que " vício" , " emergência" , " urgência" , " controle" e " segurança" são palavras mutantes, que denotam posturas, modos de pensar e sentimentos em transformação, dentro de um contexto também mutante como aquele que caracteriza os dias de hoje. Quantos de nós, no entanto, nos dávamos conta disso antes de termos contato com a análise empreendida neste trabalho? Nós mesmos, que levamos a cabo todas as pesquisas que lhe servem de base, sequer suspeitávamos que delas poderiam emergir tais resultados. E a razão para tanto é simples: o uso de uma palavra com um novo significado pode facilmente passar despercebido em discursos isolados, que são a maioria daqueles aos quais somos expostos cotidianamente. Foi a análise de sua presença no discurso de um conjunto de pessoas que estavam falando sobre um mesmo assunto em contextos análogos, como aconteceu nas pesquisas que realizamos, a responsável por tornar essas transformações visíveis e apreensíveis.

À terceira consequência, que é um complemento da que acabamos de ver, teremos que chegar após vencer uma objeção, imaginária, porém procedente. Poderia ser alegado que toda a discussão desenvolvida neste artigo está baseada nos processos de transformação de apenas cinco palavras. A tal alegação contra-argumentaríamos afirmando que essas cinco palavras são mais do que suficientes para nos colocar em estado de alerta, pois sinalizam que aquilo que está ocorrendo com elas também pode estar ocorrendo com muitas outras frequentemente usadas no nosso dia-a-dia. E saber disso é particularmente importante quando temos no discurso cotidiano a nossa principal fonte de informação e também a nossa principal via de acesso àqueles que são o nosso objeto de estudo: os processos psicológicos.

Essa tomada de consciência – a quarta consequência que gostaríamos de apontar – pode evitar que cometamos erros sérios, um dos quais seria o de sermos preconceituosos, julgando o novo como negativo simplesmente por ele não se encaixar em antigos parâmetros e, até mesmo, por vezes lhe atribuindo o status de patologia. Um bom exemplo desse tipo de preconceito é aquele que gera o potencial de conflito em relação à palavra " vício" visto acima. Diz respeito à insensibilidade demonstrada por alguns pesquisadores, psicólogos e outros profissionais quando rotulam de " vício" (com seu antigo significado patológico) o novo e bastante disseminado comportamento de usar a Internet intensivamente, sem levar em consideração que esta se tornou uma nova plataforma de vida para milhões de seres humanos ao redor do mundo (Nicolaci-da-Costa, 1998, 2002). É importante ter consciência de que o apego que alguns profissionais demonstram ter por rótulos antigos pode revelar o quanto estão distantes da nova realidade daqueles que supostamente desejam conhecer e/ou ajudar.

Evitar cometer erros, no entanto, não é o bastante. É também necessário que nos inspiremos em achados como os que foram descritos ao longo deste trabalho e procuremos cada vez mais dar visibilidade às mudanças internas que sabemos estar ocorrendo em todos nós. Somente a produção desse tipo de conhecimento poderá permitir que mantenhamos o contato com a realidade interna dos homens, mulheres e crianças do nosso tempo. Os processos de mudança de significado que puderam ser identificados podem nos ajudar nessa tarefa, pois, uma vez que são processos internos podem servir de modelo para pensar outras mudanças também de ordem interna (muitas das quais – como aquelas relativas aos modos de ver o mundo, de pensar e de sentir – a eles estão associadas). A fluidez com a qual foi constatado que um significado desliza para outro parece ser merecedora de atenção especial, tendo em vista que outros trabalhos apontam a fluidez como uma das principais características da subjetividade contemporânea (Bauman, 2000/2001; Deleuze & Guattari, 1980/1997; Romão-Dias, 2007). Esse pode ser um bom caminho para futuras pesquisas.

À guisa de fecho, cabe, ainda, uma última observação. Tal como Hobsbawn (1962/2006) fez em relação aos eventos do período imediatamente posterior à Revolução Industrial, um historiador que estude os dias seguintes à Revolução Digital em um futuro distante poderá achar que as palavras, que hoje são novas, equivalem às antigas, que hoje estão adquirindo novos significados. E, tal como Hobsbawn, terá razão, pois então as mudanças hoje em curso já terão se consumado. Do ponto de vista daqueles que, como nós, estão vivendo essas mudanças, no entanto, nada poderia estar mais longe da verdade da experiência vivida.

Recebido em 22.10.07

Primeira decisão editorial em 15.05.08

Versão final em 15.05.08

Aceito em 26.05.08

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  • 1
    Agradeço o apoio dado pelo CNPq, sob a forma de bolsa de produtividade em pesquisa. Agradeço, também, as contribuições de Helena Martins, Daniela Romão-Dias e Denise Portinari.
  • 2
    Endereço: Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica (PUC). Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea. Rio de Janeiro, RJ. CEP 22543-900.
    E-mail:
  • 3
    Denominação usada para estabelecer o contraste entre as línguas espontaneamente desenvolvidas e faladas por grupos sociais e sistemas artificialmente construídos, como o das línguas formais ou da linguagem de computadores (Crystal, 1980).
  • 4
    Barthes (1978, p. 13), por exemplo, dizia que a língua francesa proibia-lhe o neutro, obrigando-o a escolher entre o masculino e o feminino.
  • 5
    Durante os primeiros tempos de difusão da Internet, por exemplo, a profusão de palavras novas foi tão grande que fez surgir vários dicionários especializados, além de glossários em jornais de grande circulação e até mesmo em livros (Nicolaci-da-Costa, 1998).
  • 6
    As dificuldades de detecção de mudanças semânticas ainda em curso se encontram registradas na literatura lingüística, a exemplo de Mair (2006).
  • 7
    Na realidade, embora tenhamos feito referência genérica a
    processos ao longo deste artigo, também não temos suficientes dados para determinar se captamos diferentes processos ou diferentes fases de um ou mais processos. Para tanto, serão necessárias pesquisas que tenham as próprias mudanças de significado como objeto de estudo e sejam levadas a cabo com o auxílio de lingüistas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Revisado
      15 Maio 2008
    • Recebido
      22 Out 2007
    • Aceito
      26 Maio 2008
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