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Homoparentalidade feminina: laço biológico e laço afetivo na dinâmica familiar

Homoparentalité féminine: lien biologique et lien affectif dans la dynamique de la famille

Homoparentalidad femenina: lazo biológico y lazo afectivo en la dinámica familiar

Resumo

Este trabalho teve como objetivo estudar a dinâmica de famílias homoparentais compostas por duas mulheres com filhos que possuem vínculo biológico com somente uma delas. Foram entrevistadas nove mulheres, oito delas formando quatro casais e uma separada, com idades entre 33 e 45 anos, com filhos com idade entre 2 e 8 anos, pertencentes à camada média da população do estado do Rio de Janeiro, que fizeram conjuntamente o planejamento da maternidade por meio das novas tecnologias reprodutivas com sêmen de doador anônimo. As seguintes categorias de análise foram discutidas: terminologia de parentesco e relações afetivas; divisão de tarefas relacionadas aos cuidados com as crianças e busca por legitimidade. Verificou-se que nas constituições familiares estudadas, as crianças, de fato, identificam as duas mulheres como mães, quando ambas assim se assumem, demonstrando que o laço afetivo cumpriu o papel de vincular.

Palavras-chave:
homoparentalidade; reprodução assistida; mães

Résumé

Notre but dans ce travail est d’étudier la dynamique des familles homoparentales composées de deux femmes avec des enfants qui n’ont lien biologique qu’avec une d’entre elles. Neuf femmes, dont huit formant quatre couples et une séparée, âgées entre 33 et 45 ans, avec des enfants âgés entre 2 et 8 ans, appartenant aux classes moyennes de la population de Rio de Janeiro et qui ont fait ensemble la planification de la maternité par le moyen de nouvelles technologies de reproduction avec le sperme de donneurs anonymes, ont été interviewées. Les catégories d’analyse suivantes ont été discutées: terminologie de parenté et relations affectives; répartition des tâches liées aux soins des enfants et recherche de légitimité. Il a été constaté que dans les configurations familiales étudiées les enfants ont, en fait, identifié les deux femmes en tant que mères, quand toutes deux s’assument comme telles, ce qui démontre que le lien affectif a accompli le rôle d’agent de liaison.

Mots-clés:
homoparentalité; reproduction assistée; mères

Resumen

En este trabajo se propuso estudiar la dinámica de familias homoparentales compuestas por dos mujeres con hijos que poseen vínculo biológico con solamente una de ellas. Fueron entrevistadas nueve mujeres, ocho de ellas formando cuatro parejas y una separada, con edades entre 33 y 45 años que tienen hijos de 2 a 8 años de edad, son pertenecientes a la clase media de la población del estado de Rio de Janeiro y que hicieron conjuntamente la planificación de la maternidad mediante las nuevas tecnologías reproductivas con semen donante anónimo. Las siguientes categorías de análisis fueron discutidas: terminología de parentesco y relaciones afectivas; división de tareas relacionadas a los cuidados de los niños; y búsqueda de legitimidad. Se verificó que en las constituciones familiares estudiadas, los niños, de hecho, identifican las dos mujeres como madres, cuando ambas así se asumen, lo que demuestra que el lazo afectivo cumplió su papel de vincularlos.

Palabras clave:
homoparentalidad; reproducción asistida; madres

Abstract

This article aimed to study the dynamic of same-sex parenting families formed by two women with children who have a biological bond with only one of them. We interviewed nine women - eight of them formed four couples and one was divorced - with ages ranging between 33 and 45 years, with children aging from 2 to 8 years, who were middle-class residents of the state of Rio de Janeiro, and had planned motherhood together using new reproductive technologies with semen from an anonymous donor. The following evaluation categories were discussed: kinship and affective relationship terminology; division of childcare related tasks; and the search for legitimacy. We observed that in the family settings studied, the children, in fact, identified both women as mothers, when both assume the role, demonstrating that the affective bond fulfilled its binding role.

Keywords:
same-sex parenting; assisted reproduction; mothers

A contemporaneidade traz inúmeras modificações em nossa sociedade, sobretudo no que diz respeito às constituições familiares pluriformes. As famílias homoparentais por implicarem a parentalidade exercida por uma ou mais pessoas que se autodefinem como homossexuais se inserem no contexto social contemporâneo, gerando polêmicas e debates. O próprio termo “homoparentalidade”, neologismo criado em 1997 na França pela Associação de Pais e Futuros Pais/Mães Gays e Lésbicas, é controverso. Se por um lado confere visibilidade a esse arranjo familiar, por outro, remete à homossexualidade dos pais/mães (Gross, 2013Gross, M. (2013). Parent ou homo, faut-il choisir? Idées reçues sur l’homoparentalité. Paris: Le Cavalier Bleu.) e reforça o binarismo homo/heterossexualidade. Contudo, para que uma categoria exista é necessário que seja nomeada, e a nomeação acabou por auxiliar na construção de uma categoria social em todo o mundo (Gross, 2015Gross, M. (2015). Naissance de l’homoparentalité. Entretien avec Martine Gross. Mouvements des idées et des luttes, 82, 160-170.). Diante da importância ganha pelo neologismo em termos do significado que adquiriu e da visibilidade que traz em si, uma vez que assinala que homossexualidade e parentalidade coexistem, homoparentalidade será o termo que utilizaremos neste trabalho.

O Censo de 2010, realizado no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), incluiu pela primeira vez em seus cálculos os casais homossexuais que vivem em regime de união estável. Dentre os resultados encontrados, destaca-se a existência de 60.002 casais. No entanto, estima-se que hoje esse número seja maior.

Ainda assim, esses números retratam as uniões homoafetivas como uma realidade fática no Brasil. E foi essa realidade que o Supremo Tribunal Federal reconheceu em 2011 estendendo aos homossexuais os direitos de casais heterossexuais em regime de união estável. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução que obriga todos os cartórios do país a oficializarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o que caracterizou uma conquista judicial do casamento civil.

No que diz respeito às investigações realizadas por pesquisadores brasileiros são expressivas a quantidade e a qualidade de trabalhos que abordam a realidade homoparental. Dentre eles, podemos destacar: Tarnovski (2002Tarnovski, F. L. (2002). “Pais assumidos”: adoção e paternidade homossexual no Brasil contemporâneo (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Paraná., 2013Tarnovski, F. (2013). Parentalidade e gênero em famílias homoparentais francesas. Cadernos Pagu, 40, 67-93.) investigou a paternidade homossexual no Brasil contemporâneo e famílias homoparentais francesas em coparentalidade; Santos (2004Santos, C. (2004). A parentalidade em famílias homossexuais com filhos: um estudo fenomenológico da vivencia de gays e lésbicas (Dissertação de Mestrado em Psicologia). Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo.) pesquisou a parentalidade em famílias homossexuais com filhos; Medeiros (2004Medeiros, C. (2004). Sobre Deveres e Prazeres: estudo acerca de mulheres que se assumiram lésbicas depois de terem sido mães (Trabalho de Conclusão de Curso, Ciências Sociais). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina.) estudou mulheres que se assumiram lésbicas depois de serem mães; Farias e Maia (2009Farias, M., & Maia, A. (2009). Adoção por homossexuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba, PR: Juruá.) investigaram a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica; Zauli (2011Zauli, A. (2011). Famílias homoafetivas femininas no Brasil e no Canadá: um estudo transcultural sobre novas vivências nas relações de gênero e nos laços de parentesco (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.) abordou as realidades de famílias homoparentais no Brasil e no Canadá; Corrêa (2012Corrêa, M. E. C. (2012). Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade (Tese de Doutorado). Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo.) e Silva (2013Silva, D. (2013). Enfim mães! Da experiência da reprodução assistida à experiência da maternidade lésbica (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) desenvolveram pesquisas com lésbicas; Hernández (2013Hernández, J. (2013). Filhas de famílias homoparentais: processos, confrontos e pluralidades (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) realizou estudo com filhos(as) de lésbicas.

Neste trabalho tivemos como objetivo estudar alguns aspectos da dinâmica da família homoparental, composta por duas mulheres com filho(s), em coabitação, com planejamento conjunto da maternidade. Especificamente, aspectos que dizem respeito à mulher do casal que não gerou a(s) criança(s). Assim sendo, nos interessou interrogar sobre possíveis implicações provenientes de distinções entre as duas mulheres do casal, no que diz respeito aos vínculos biológicos de apenas uma delas com a(s) criança(s), as implicações desse fato na dinâmica familiar e como lidam com elas, numa sociedade em que a parentalidade biológica é muito valorizada e reconhecida como o “verdadeiro” vínculo. Vale ressaltar que os achados que serão aqui apresentados dizem respeito ao ponto de vista das mães entrevistadas.

Famílias, homossexualidades e homoparentalidades

Ao longo da história ocidental, a família vem sofrendo significativas mudanças, e a partir do século XX tornam-se mais rápidas e intensas. Ela é impactada pelas grandes transformações sociais, políticas, culturais e econômicas no último século, principalmente pela maior inserção das mulheres na esfera pública e pela conquista de direitos civis da população de modo geral, o que afronta a ordem hierárquica sexual encontrada em organizações societárias regidas pelo androcentrismo (Mello, 2005Mello, L. (2005). Novas famílias. Rio de Janeiro, RJ: Garamond.).

Apesar dessas inúmeras mudanças ocorridas, parecia que o heterocentrismo compulsório se mantinha inquestionável. Até que houve o ingresso dos homossexuais na cena política, principalmente na década de 1990 (Mello, 2005Mello, L. (2005). Novas famílias. Rio de Janeiro, RJ: Garamond.). O ideário de família é perturbado pela possibilidade da troca afetiva, sexual e do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, assim como da homoparentalidade.

Apesar de desde os anos 1960 figurarem ao lado da família nuclear as famílias monoparentais, recompostas e homoparentais (Neirinck & Gross, 2014Neirinck, C., Gross, M. (2014). Parents-enfants: vers une nouvelle filiation? Paris: La Documentation Française.), a coexistência dessas diferentes configurações não tem ocorrido sem grandes conflitos. Esses conflitos relacionam-se com a resistência que grande parte da sociedade ainda tem em aceitar os homossexuais fora do lugar de doentes. Contextualizar e problematizar a noção de homossexualidade é de grande importância para refletirmos sobre as homoparentalidades e as resistências que encontram.

É importante ressaltar que a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo passou a ser uma categoria psicológica, psiquiátrica e médica a partir de 1870 (Miskolci, 2005Miskolci, R. (2005). Do desvio às diferenças. Teoria e Pesquisa, 47, 9-41. Recuperado de https://goo.gl/GHIB7t
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). Segundo Foucault (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I. A vontade de saber (19a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.), a homossexualidade surge, então, como uma figura da sexualidade, deixando de ser apenas uma prática sexual.

A psiquiatria, a sexologia e a psicanálise colaboraram na regulação e na normatização da sexualidade, auxiliando na definição das formas aceitáveis de expressá-la, enquadrando, assim, a sexualidade num modelo hegemônico, o heterossexual, em oposição ao homossexual, este último reunindo tudo aquilo que é indesejável, patológico. Os discursos de especialistas criaram “verdades”, validaram saberes e permitiram que um sistema de regulação e de poder fosse exercido a serviço da norma vigente, que trabalha para a manutenção da instituição familiar heterossexual e reprodutora.

Foucault (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I. A vontade de saber (19a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.) aborda a sexualidade como construção social e histórica, problematizando-a. Assim, constrói uma análise crítica sobre o discurso da sexualidade e seus atravessamentos por mecanismos de saber e poder. As instâncias saber, poder e subjetividade se entrelaçariam, constituindo uma trama formada por vários discursos e práticas, produzindo “verdades”. Essas construções de “verdades” alimentam argumentos contrários à parentalidade homossexual e reforçam questionamentos sobre os reflexos para o desenvolvimento das crianças que são criadas em lares por duas mulheres ou por dois homens.

Alguns estudos que vêm sendo realizados com filhos de homossexuais há décadas incidem principalmente sobre quatro tipos de questões: a identidade sexual; o desenvolvimento pessoal; as relações sociais com seus pares e com os adultos; e o risco de abuso sexual (Fulcher, Sutfin, & Patterson, 2008Fulcher, M., Sutfin, E., & Patterson, C. (2008). Individual differences in gender development: Associations with parental sexual orientation, attitudes, and division of labor. Sex Roles, 58, 330-341. doi: 10.1007/s11199-007-9348-4
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; Golombock et al., 2003Golombok, S., Perry, B., Burston, A., Murray, C., Mooney-Somers, J., Stevens, M., & Golding, J. (2003). Children with lesbian parents: A community study. Developmental Psychology, 39(1), 20-33. doi: 10.1037/0012-1649.39.1.20
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; MacCallum & Golombock, 2004MacCallum, F., & Golombock, S. (2004). Children raised in fatherless families from infancy: a follow-up of children of lesbian and single heterossexual mothers at early adolescence. Journal of Psychology and Psychiatry, 45, 1407-1419. doi: 10.1111/j.1469-7610.2004.00847.x
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). Esses estudos demonstram que nenhuma diferença significativa foi revelada no que diz respeito aos quatro principais temas estudados entre as crianças criadas em um lar heterossexual e aquelas criadas por pais do mesmo sexo (Gross, 2013Gross, M. (2013). Parent ou homo, faut-il choisir? Idées reçues sur l’homoparentalité. Paris: Le Cavalier Bleu.).

As referidas pesquisas e sua divulgação foram e são de grande importância. Contudo é importante que não se reduza o peso destes estudos à busca pela comprovação de que filhos de homossexuais não apresentam diferenças em relação aos dos heterossexuais, como se houvesse um padrão a ser seguido.

As mães

Dependendo da maneira como a família homoparental é constituída, encontram-se famílias em que uma das mulheres do casal possui vínculo biológico e a outra vínculo legal com a(s) criança(s); famílias em que ambas possuem laços legais, mas não biológicos com o(s) filho(s); e ainda famílias em que uma das mulheres do casal não possui nem vinculação biológica, nem legal com o(s) filho(s).

Independentemente da forma, quando a maternidade é planejada conjuntamente por um casal de mulheres, em muitos casos ambas consideram-se mães da(s) criança(s), constituindo-se assim uma família de duas mães. Nos casos em que a criança foi gerada por uma das mulheres do casal, e estes são os casos aqui estudados, surge uma série de questões que vão desde a forma como as mães serão chamadas pelas crianças, passando pela construção desses lugares de mães, até a falta de direitos da “mãe não biológica”, reflexos de uma sociedade onde impera um modelo ideal de família com homem, mulher e filhos biologicamente concebidos. A vinculação biológica entre pais/mães e filhos tem um importante significado: o tipo de vínculo considerado como o “verdadeiro”. De acordo com Luna (2005Luna, N. (2005). Natureza humana criada em laboratório: biologização e genetização do parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. História, Ciências, Saúde, 12(2), 395-417.), o biológico, o “natural”, o bom e o verdadeiro estariam associados.

Sendo o laço biológico aquele que rege a “verdadeira” relação parental, numa sociedade marcada por regulações sociais de todo tipo, surgem questões específicas no centro da família homoparental composta por duas mulheres, sendo que apenas uma delas possui vinculação biológica com a(s) criança(s). Como as famílias homoparentais assim constituídas lidam com as forças que a “verdade” do vínculo biológico exerce sobre elas, e quais meios são construídos para isso? Mais especificamente, como as companheiras das “mães biológicas” lidam com isso?

As próprias formas diversas de denominações da mãe que não gerou a(s) criança(s) revela algo “novo”, que não tem seu lugar predeterminado, que depende de negociações e que se constrói na relação do casal e na relação com a(s) criança(s). Segundo Grossi (2003Grossi, M. (2003). Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, 21, 261-280. Recuperado de https://goo.gl/fSkECQ
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), não existe uma concordância nas famílias homoparentais em relação à forma de denominar seus integrantes. Em alguns casos, conforme a autora, os filhos de casais de mulheres referem-se a elas como “mãe” ou “mãinha” ou algo que se assemelhe. Em outros casos, usa-se o prenome das mães, após o termo de apelação, conforme ocorre para nomear os avós em nossa cultura, indicando que, na rede de parentesco, aceita-se mais de um indivíduo num mesmo lugar. A autora esclarece ainda que a nominação diz respeito ao espaço ocupado na rede de parentesco, referindo-se à posição social de determinada pessoa.

De acordo com Cadoret (2014Cadoret, A. (2014). Des parentes comme les autres: homosexualité et parenté (2e ed.). Paris: Odile Jacob.), a terminologia de parentesco nos revela uma espécie de quadro que classifica os indivíduos em posições estruturais diferenciadas, de acordo com cada sociedade que elabora seu sistema e princípios de categorização dos parentes, dos mais próximos aos mais distantes. Segundo a autora, algumas denominações podem corresponder a apenas uma pessoa, como no nosso vocabulário, o termo “mãe”; todos os outros termos englobam várias pessoas: “avós”, “avôs”, por exemplo. Além disso, quanto menos os termos são precisos mais facilmente são desviados de sua significação primeira.

Na literatura, a companheira da “mãe biológica” é referida de formas diversas, com variações dos termos utilizados para sua designação: les mères non statutaires e coparent (Descoutures, 2010Descoutures, V. (2010). Les mères lesbiennes. Paris: Presses Universitaires de France.) e social mother (Almack, 2005Almack, K. (2005). What’s in a name? The significance of the choice of surnames given to children born within lesbian-parent families. Sexualities, 8(2), 239-254. doi: 10.1177/1363460705050857
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). Neste trabalho, os termos utilizados serão “mãe biológica” e “mãe não biológica”, uma vez que o estudo diz respeito às implicações devidas às diferenças entre possuir, ou não, laços biológicos com os filhos.

As terminologias múltiplas e a diversidade dos vínculos possíveis refletem a própria face das famílias não tradicionais, com aquilo que trazem de revelador e de transgressor. A própria noção de que deva existir no casal um homem e uma mulher com tarefas específicas desempenhadas por cada um deles, de acordo com o gênero, corresponde a uma ideia de linearidade entre sexo biológico e gênero que é culturalmente produzida. Essa linearidade, segundo Butler (2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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), refere-se a uma matriz cultural que heterossexualiza o desejo e “institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ‘feminino’ e ‘masculino’, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ‘macho’ e de ‘fêmea’” (p. 39). O casal homossexual de antemão já não corresponde a essa linearidade, demonstrando, assim, uma incoerência segundo essa visão linear.

De acordo com Zambrano (2006Zambrano, E. (2006). Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, 12(26), 123-147. Recuperado de https://goo.gl/peykxX
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), o exercício das funções parentais ocorre tal qual a predileção de cada um, não encontrando entre casais homossexuais uma divisão rígida de atribuições correspondentes aos papéis de gênero. Quanto à companheira da “mãe biológica”, inexistem papéis predefinidos. Ela pode assumir distintos níveis de compromisso e distintos papéis na relação com a(s) criança(s) e, à medida que são duas mulheres no casal, a distribuição das tarefas e dos cuidados com a(s) criança(s) também não correspondem à tradicional divisão de gênero (Herrera, 2007Herrera, F. (2007). La otra mamá: madres no biológicas en la pareja lésbica. In M. Grossi, A. P. Uziel, & L. Mello (Org.), Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (pp. 213-232). Rio de Janeiro, RJ: Garamond.).

Em relação a uma divisão não tradicional das tarefas, vale ressaltar que na camada média da população brasileira alguns valores se encontram presentes, por exemplo, o ideal de igualdade, além da busca de realização pessoal pelo trabalho e a valorização da individualidade. Esse ideal de igualdade seria claramente a expressão “da vigência de uma ideologia igualitária que ganhou espaço na sociedade brasileira” (Heilborn, 2004Heilborn, M. (2004). Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro, RJ: Garamond., p. 107). A uniformidade na divisão das tarefas domésticas é considerada fundamental no casal moderno da camada média da população. Assim, de acordo com a autora, no casal homossexual prevalece a ideia da divisão igualitária das finanças e o desejo da independência financeira de cada um(a).

Especificamente no caso das “mães não biológicas” em casais de mulheres, essa divisão das tarefas pode auxiliar na construção de seu lugar na rede de parentesco. Estudo de Hequembourg e Farrell (1999Hequembourg, A., & Farrell, M. (1999). Lesbian motherhood. negotiating marginal-mainstream identities. Gender & Society, 13(4), 540-557.) indicou que os casais de mulheres buscam realizar a divisão de tarefas relacionadas aos filhos de maneira que cuidados como alimentação, banho, passeio e outros relacionados à criança sejam administrados pela “mãe não biológica”, para que esta se aproxime do(a) filho(a) e que essas vivências sirvam de ajuda na construção de sua identidade de mãe.

As “mães biológicas” desempenhariam um importante papel na construção dos laços entre a “mãe não biológica” e a criança, além da forma como a partilha das referidas tarefas é feita. De acordo com relatos obtidos por Herrera (2007Herrera, F. (2007). La otra mamá: madres no biológicas en la pareja lésbica. In M. Grossi, A. P. Uziel, & L. Mello (Org.), Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (pp. 213-232). Rio de Janeiro, RJ: Garamond.), a ênfase nos cuidados com a(s) criança(s) cumpre a função de diminuir o peso do vínculo biológico nessa busca de reconhecimento da “mãe não biológica”.

Em pesquisa de campo realizada em Campinas e Toronto, Souza (2005Souza, E. (2005). Necessidade de filhos: maternidade, família e (homo)sexualidade (Tese de Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.) demonstrou que “mães não biológicas” que adotaram os filhos biológicos de suas companheiras, ainda que com vínculo legal estabelecido com as crianças, abdicaram de suas profissões para dedicar-se em tempo integral às crianças. Isso demonstra, segundo a autora, a busca por igualdade com a “mãe biológica” por meio da dedicação aos afazeres relacionados às crianças.

Outro elemento importante no que diz respeito à situação da “mãe não biológica” é a consequente falta de reconhecimento legal entre ela e a(s) criança(s), o que gera consequências em diversos níveis. Segundo Butler (2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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), a falta de legitimidade dos casais não heterossexuais pelo poder público contribuiu para sua permanência na invisibilidade, o que provocaria formas de “desempoderamento” dos entes dessas relações.

Ainda nesse mesmo viés, Hernández, Silva e Uziel (2012Hernández, J., Silva, D., & Uziel, A. (2012). A luta pelo amor e o amor pela luta: notas sobre a cerimônia coletiva de uniões homoafetivas no Rio de Janeiro. Sociedade e Cultura, 15(2), 369-377.) expõem as tensões entre aqueles(as) que possuem posições favoráveis à aquisição de direitos entre pessoas do mesmo sexo e aqueles(as) que consideram haver uma reprodução da heteronormatividade e um movimento de domesticação heterossexista.

Contudo, um dos meios que as “mães não biológicas” buscam para enfrentar situações de falta de legitimidade é o ajuizamento de ação de adoção da criança, a chamada adoção unilateral. Essa adoção deixaria intactos os direitos da “mãe biológica” e criaria um status parental legalmente reconhecido para a “mãe não biológica”, constituindo-se, assim, uma dupla maternidade.

A adoção seria uma compensação para a lacuna que a falta de vínculo biológico deixaria, e uma vez garantido a ênfase da biologia seria minimizada na relação com os demais familiares (Hequembourg, 2004Hequembourg, A. (2004). Unscripted motherhood: lesbian mothers negotiating incompletely institutionalized family relationship. Journal of Social and Personal Relationship, 21, 739-762. doi: 10.1177/0265407504047834
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). A adoção unilateral pode possibilitar mudanças de atitude por parte dos parentes da “mãe não biológica”, uma vez que os laços entre a “mãe não biológica” e a criança passariam a ser validados legalmente, e a companheira da mãe pode ser vista, de fato, como mãe.

Método

Participantes

Participaram deste estudo nove mulheres, oito delas formando quatro casais e uma separada; com idade entre 33 e 45 anos; com filhos com idade entre 2 e 8 anos; com terceiro grau completo; pertencentes à classe média; moradoras de diferentes cidades do estado do Rio de Janeiro; com profissões como: defensora pública, médica, psicóloga, comerciante, comissária de bordo, advogada e promotora de justiça. As participantes planejaram a maternidade conjuntamente pela utilização das novas tecnologias reprodutivas.

Dentre as nove participantes, oito se autodenominaram mães (cinco são “mães biológicas” e três são “mães não biológicas”, e uma “madrinha” das crianças. Assim, na Tabela 1, na qual os nomes das mães são fictícios, temos as configurações familiares homoparentais estudadas neste trabalho: “mãe biológica”/ “mãe não biológica”/filho(s) e mãe/“madrinha”/filho.

Tabela 1
Configurações familiares homoparentais das participantes

Procedimentos

Esta investigação obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada. Todas as entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo as pesquisadoras se comprometido a garantir o sigilo de suas identidades e utilizar nomes fictícios na divulgação dos resultados.

As participantes foram entrevistadas individualmente, com exceção de duas delas que foram ouvidas conjuntamente, tendo em vista que moravam no interior do estado e estavam de passagem pela cidade para uma consulta médica para uma delas que se encontrava no oitavo mês de gravidez. A duração das entrevistas variou entre 54 minutos e 1h32 minutos. Cinco delas foram realizadas nas próprias residências das entrevistadas, uma delas no consultório da entrevistada, e outra no consultório da primeira autora deste trabalho. Já a entrevista realizada com o casal teve a duração de 1h50 e foi realizada em um restaurante. Todas as entrevistas foram realizadas no período entre novembro de 2009 e maio de 2010.

Devemos considerar algumas particularidades em relação à entrevista realizada em conjunto. As colocações feitas na presença da parceira possivelmente não são as mesmas na presença somente da entrevistadora. Sabemos que ocorre uma interação, contudo, não é possível identificar aquilo que influencia as narrativas das entrevistadas.

O procedimento utilizado para a seleção da amostra foi do tipo snowball sampling, ou amostragem por “bola de neve”. Para a obtenção da amostra utilizada, duas participantes foram apresentadas por pessoas da rede social da primeira autora deste trabalho. A partir daí as próprias entrevistadas apresentaram as demais participantes. Ao todo foram realizadas dez entrevistas, contudo optou-se por incluir nove participantes na análise, uma vez que essas nove mantinham perfis semelhantes, qual seja a de mulheres em coabitação e que planejaram a maternidade conjuntamente. Em relação ao número de sujeitos, foi utilizada a técnica de saturação para estipular o número de participantes.

No primeiro contato com cada participante, realizado por telefone, foi explicado o objetivo do trabalho e a importância de que a entrevista fosse gravada. Realizado o agendamento do encontro, este ocorreu em local da escolha da participante. Todas assinaram o Termo autorizando a gravação e a utilização do material para fins de estudo, pesquisa e publicação, com o comprometimento de que suas identidades seriam preservadas em qualquer dessas situações. As entrevistas, então, foram gravadas e sua transcrição foi feita na íntegra.

Instrumento

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, individuais, com perguntas a respeito da história das entrevistadas, relacionadas, sobretudo, à questão da maternidade e com espaço disponível para que cada uma pudesse falar sobre o que julgasse importante.

Análise e discussão dos resultados

O Método de Explicitação do Discurso Subjacente (Nicolaci-da-Costa, 2007Nicolaci-da-Costa, A. (2007). O campo da pesquisa qualitativa e o método de explicitação do discurso subjacente (MEDS). Psicologia Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73.) foi o instrumento utilizado para a análise das entrevistas. A partir dos discursos das entrevistadas, emergiram as seguintes categorias de análise: 1) maternidades: desejo naturalizado de filhos; 2) como concretizar?; 3) maternidades biológicas e a questão das tecnologias reprodutivas; 4) ilegitimidade/desamparo legal; 5) busca por legitimidade; 6) mães, “madrinha” e as crianças; 7) divisão de tarefas relacionadas aos cuidados com as crianças; 8) divisão de tarefas relacionadas à casa e divisão financeira dos gastos; 9) posicionamentos das famílias de origem em relação à “mãe não biológica”.

Para apresentar e discutir neste trabalho, escolhemos apenas as categorias: “mães, ‘madrinha’ e as crianças” e sua subcategoria “terminologia de parentesco e relações afetivas”; “divisão de tarefas relacionadas aos cuidados com as crianças” e “busca por legitimidade”. Essas categorias foram escolhidas para que, a partir delas, pudéssemos explorar as possíveis implicações provenientes das diferentes vinculações, biológicas ou não, entre mães e filhos(as); e as maneiras encontradas pela família para lidar com essa situação. É importante ressaltar que todos os dados referentes às crianças devem ser relativizados, uma vez que dizem respeito à percepção das mães sobre seus filhos.

Mães, “madrinha” e as crianças: terminologia de parentesco e relações afetivas

A percepção da concretização da maternidade por meio de laços biológicos apareceu como prioridade para as mulheres entrevistadas, mesmo que para isso tivessem que enfrentar dificuldades como diversas tentativas frustradas de inseminação artificial e/ou fertilização in vitro, grande gasto financeiro e desgaste emocional. Talvez assim, seja reproduzido, de certa forma, um modelo idealizado e tradicional de família, ainda que concomitantemente a maternidade realizada ao lado de outra mulher dê origem a uma configuração familiar controversa constituindo-se, necessariamente, como algo inovador (Pontes, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015Pontes, M., Féres-Carneiro, T., & Magalhães, A. (2015). Famílias homoparentais e maternidade biológica. Psicologia & Sociedade, 27(1), 189-198. https://goo.gl/80eYDh
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). A escolha pelo uso das tecnologias reprodutivas não é apenas uma tendência nacional. Pesquisa de Gross, Courduriès e Federico (2014Gross, M., Courduriès, J., & De Federico, A. (2014). Morphologie des familles homoparentales en France en 2012. In J. Courduriès, A. Fine (Org.), Homosexualité et parenté. Paris: Armand Colin.) realizada na França em 2012 com a participação de 405 mães lésbicas e 139 pais gays, indica aumento das famílias homoparentais tanto de mulheres quanto de homens, que se constituíram com o auxílio das novas técnicas reprodutivas, mesmo que na França esse procedimento seja proibido.

No Brasil, recentes estudos desenvolvidos com casais de lésbicas mostram uma preferência pela escolha da maternidade através do uso de técnicas reprodutivas (Corrêa, 2012Corrêa, M. E. C. (2012). Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade (Tese de Doutorado). Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Silva, 2013Silva, D. (2013). Enfim mães! Da experiência da reprodução assistida à experiência da maternidade lésbica (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Outros trabalhos (Machin & Couto, 2014Machin, R., & Couto, M. T. (2014). “Fazendo a escolha certa”: tecnologias reprodutivas, práticas lésbicas e uso de bancos de sêmen. Physis, 24(4), 1255-1274. Recuperado de https://goo.gl/6nXFNi
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; Vitule, Couto, & Machin, 2015Vitule, C., Couto, M. T., & Machin, R. (2015). Casais do mesmo sexo e parentalidade: um olhar sobre o uso das tecnologias reprodutivas. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 19(55). Recuperado de doi: 10.1590/1807-57622014.0401
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) demonstram ainda a demanda frequente pela recepção de óvulo da parceira (ROPA).

Apesar de todas as participantes optarem pelo uso das novas tecnologias reprodutivas, sem utilizarem ou demonstrarem interesse pela ROPA, o que difere de dados apresentados por Machin e Couto (2014Machin, R., & Couto, M. T. (2014). “Fazendo a escolha certa”: tecnologias reprodutivas, práticas lésbicas e uso de bancos de sêmen. Physis, 24(4), 1255-1274. Recuperado de https://goo.gl/6nXFNi
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) e por Vitule, Couto e Machin (2015Vitule, C., Couto, M. T., & Machin, R. (2015). Casais do mesmo sexo e parentalidade: um olhar sobre o uso das tecnologias reprodutivas. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 19(55). Recuperado de doi: 10.1590/1807-57622014.0401
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), elas apresentam diferentes tipos de vinculação com a(s) criança(s): cinco delas possuem vínculo biológico; duas possuem vínculo legal e duas não possuem vinculação nem biológica nem legal com a(s) criança(s).

Vejamos, então, quais termos são utilizados pelas crianças, segundo relatos de suas mães, para se dirigirem àquelas que as criam:

Os dois me chamam de mamãe e os dois chamam ela de mãezinha. Deixamos eles escolherem. (Bianca)

A gente achou que ele não tendo pai era muito ter duas mães, mas a gente sabia que era só uma nomenclatura: ‘madrinha’. Se eu não tivesse aqui, ela seria a mãe que era ‘madrinha’. (Joana)

Nos relatos da maioria das entrevistadas, foi encontrada a utilização do nome “mãe”, assim como suas pequenas variações, para referirem-se tanto às “mães biológicas” quanto às “não biológicas”. Segundo a maioria delas, a forma escolhida para serem chamadas foi estabelecida pelas crianças, mas de antemão existia, entre os membros do casal, a intenção de que ambas ocupassem o lugar de mãe sem hierarquização entre a mãe que gerou a(s) criança(s) e a que não gerou. A exceção foi encontrada no caso das entrevistadas Paula e Joana, em que a primeira é “madrinha” e a segunda é mãe: a relação principal é aquela estabelecida entre a mãe e o filho.

Vale relembrar que o lugar e a nomeação da “mãe biológica” não oferecem qualquer tipo de dúvida ou questionamento, tanto pelo Direito quanto pela sociedade de modo geral, uma vez que ser mãe para quem gera e concebe um filho corresponderia a uma lógica “natural”. Já em relação às suas companheiras, estas sem um lugar socialmente reconhecido e sem denominação definida (Almack, 2005Almack, K. (2005). What’s in a name? The significance of the choice of surnames given to children born within lesbian-parent families. Sexualities, 8(2), 239-254. doi: 10.1177/1363460705050857
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; Descoutures, 2010Descoutures, V. (2010). Les mères lesbiennes. Paris: Presses Universitaires de France.), isso não ocorre. Ainda que o planejamento da maternidade tenha sido conjunto, como foi o caso das participantes ouvidas, o papel da companheira da “mãe biológica” e seu reconhecimento são pouco claros, muitas vezes, incertos.

Segundo as entrevistadas Paula e Joana, que escolheram o uso do termo “madrinha” para a companheira da “mãe biológica”, esse termo não significa muito, é apenas um nome que não define papéis. Contudo, os membros do referido casal vivem de fato, em relação à criança, posições diferenciadas de mãe e segunda mãe. Sendo assim, a declaração de que a nomeação a ser utilizada não faz diferença parece não corresponder ao que é vivido, até porque Joana é bem explícita quando diz “se eu não tivesse aqui, ela seria a mãe”, “o mais próximo de segunda mãe” ou que “depois de mim é ela”.

Para Grossi (2003Grossi, M. (2003). Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, 21, 261-280. Recuperado de https://goo.gl/fSkECQ
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), a nomeação refere-se ao lugar e à posição social de determinada pessoa na rede de parentesco, sendo o termo escolhido para tal, de grande significado. Ou seja, “madrinha” não é apenas um nome escolhido dentre muitos, mas sim o que mais se aproximou da realidade familiar. Essa escolha tem relação com a própria história do casal em relação ao desejo pela maternidade, uma vez que Joana sempre desejou engravidar; já Paula concordou em acompanhá-la nessa realização.

O lugar da companheira da “mãe biológica” não está predefinido. Aliás, esse lugar não existe numa constituição tradicional de família, ele é uma subversão das normas. Ele é construído no dia a dia familiar, na dinâmica da relação entre as mulheres e delas com a(s) criança(s), por meio de negociações e pode ser constituído de diversas formas.

Alguns relatos das entrevistadas demonstram indiferenciação, por parte das crianças, em relação ao vínculo estabelecido com a “mãe biológica” e a “mãe não biológica”:

Pra ele não importava ter saído da minha barriga. A gente acha que o vínculo vem da barriga. . ., mas eles são muito grudados com ela [“mãe não biológica”]. (Gabriela)

Parece que pra ele tanto faz. É claro que tem alguns momentos que a gente até sabe quem ele quer. (Valentina)

Não existe uma preferência. Às vezes ele tem as preferências dele, não quer vir comigo de jeito nenhum, só quer ela. (Olívia)

Observam-se situações em que as mães não percebem diferenças nas demandas das crianças em relação a elas. Importante salientar que, nesses casos, o tempo que essas mães dedicam e dedicaram à criança é equivalente.

Dados distintos são apresentados por Gabb (2004Gabb, J. (2004). Critical differentials: querying the incongruities within research on lesbian parent families. Sexualities, 7(2), 167-182. doi: 10.1177/1363460704042162
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) em seu estudo com mães lésbicas e seus filhos. A autora mostra que, em muitos casos, é a mãe biológica que figurativa e literalmente “segura o bebê”, ou seja, responsabiliza-se pelos principais cuidados com a criança, e que a “mãe não biológica”, algumas vezes, sente-se excluída. Inclusive algumas crianças entrevistadas relataram que “a outra mãe” não estaria diretamente relacionada a elas, sendo assim excluídas do que consideram seus familiares imediatos.

Nas narrativas a seguir das entrevistadas Flávia e Cláudia, que formam um casal em que uma delas passa a maior parte do tempo trabalhando fora de casa, encontrou-se alguma diferença na demanda dos filhos em relação a uma ou outra:

Eles sabem que ela vai trabalhar. Ficam chorando que querem ficar com ela. [Quando] ela fica um tempo mais prolongado convivendo, vai equilibrando mais. (Flávia)

Os relatos de Flávia (“mãe não biológica”) e Cláudia (“mãe biológica”) demonstram a existência de uma maior solicitação das crianças em relação à Cláudia. É ela quem sai de casa diariamente de manhã e só volta à noite. Quando Cláudia está em casa, a solicitação das crianças em relação a ela é muito grande. Esta seria a principal explicação encontrada por elas para a diferença de demanda por parte dos meninos. Contudo, também observam que à medida que Cláudia passa mais tempo convivendo com eles, em situação de feriados e férias, por exemplo, a tendência é a demanda se equilibrar.

Por sua vez, Goldberg, Downing e Sauck (2008Goldberg, A., Downing, J., & Sauck, C. (2008). Perceptions of children’s parental preferences in lesbian two-mother households. Journal of Marriage and Family, 70(2), 419-434. doi: 10.1111/j.1741-3737.2008.00491.x
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) apontam, em estudo com sessenta mulheres, que a preferência de seus filhos, de quase 4 anos de idade, era pelas “mães biológicas”, devido ao aleitamento materno e ao tempo maior gasto com os cuidados com a criança. Apesar dessa preferência inicial, a maioria delas perceberam modificações ao longo do tempo, de tal forma que as crianças passaram a preferir ambas as mães igualmente.

Já nos relatos de Paula (“madrinha”) e Joana (mãe) observou-se uma diferença mais significativa no que se refere às demandas da criança: “Tem certas situações que ele só quer realmente saber da Joana, mas eu consigo. . . pensar nele como meu filho”. (Paula)

Há uma diferença entre as solicitações da criança em relação à Joana e à Paula. Além do fato de Joana ter deixado de trabalhar para cuidar em tempo integral do filho, ela é a figura principal na relação com a criança, posteriormente vem a “madrinha”. A relação entre a “madrinha” e o menino é relatada como muito boa e eles estão se aproximando ainda mais.

Os achados apontados neste estudo, a partir da perspectiva das mães, indicam indiferenciação por parte das crianças em relação ao vínculo afetivo estabelecido com as mães, exceto no caso em que, desde os primeiros anos, os principais cuidados em relação a elas foram realizados pela “mãe biológica”, como ocorreu no caso de Joana. Nos demais casos os cuidados básicos e principais com as crianças foram feitos por ambas as mães, assim como não foi relatada clara predileção por parte das crianças, o que já indicaria uma desconstrução de “verdade” relacionada ao que deve ser considerado como uma família.

Contudo, alguns estudos apontam diferenciações (Gabb, 2004Gabb, J. (2004). Critical differentials: querying the incongruities within research on lesbian parent families. Sexualities, 7(2), 167-182. doi: 10.1177/1363460704042162
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; Goldberg, Downing, & Sauck, 2008Goldberg, A., Downing, J., & Sauck, C. (2008). Perceptions of children’s parental preferences in lesbian two-mother households. Journal of Marriage and Family, 70(2), 419-434. doi: 10.1111/j.1741-3737.2008.00491.x
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). Talvez possamos considerar que quando as entrevistadas planejaram a maternidade, ambas de antemão definiam-se como mães, com exceção do casal Joana e Paula. Importante levarmos em conta esse aspecto para interrogarmos a visão de igualdade das crianças, em relação ao vínculo afetivo estabelecido com as mães, do ponto destas últimas.

Divisão de tarefas relacionadas aos cuidados com as crianças

Na maioria dos casos analisados neste estudo, ambas as mulheres do casal estiveram presentes nos cuidados com a criança, mesmo nos casos em que uma das mulheres trabalha fora e a outra não. De acordo com nossos achados, a divisão não se baseou em critérios predeterminados ou em papéis de gênero, mas estiveram presentes as habilidades e os talentos individuais no fundamento da divisão de tarefas relacionadas aos cuidados com a criança. Percebeu-se também uma satisfação no modo como a partilha foi feita.

Em alguns casos, ambas as mulheres do casal se dedicam a suas profissões. As entrevistadas Gabriela/Valentina e Patrícia/Olívia dedicam-se tanto às suas profissões quanto dividem as tarefas relacionadas aos cuidados com as crianças:

Valentina faz toda essa parte de brincadeira. Eu amamento, troco fralda, todas as compras, me preocupo com a alimentação, levo no médico, escola é dividido. (Gabriela)

Em outros casos como as entrevistadas Cláudia/Flávia e Joana/Paula apenas uma das mulheres do par trabalha fora de casa, enquanto a outra dedica a maior parte do tempo aos cuidados com a criança, o que não significou para elas uma divisão desigual das tarefas relacionadas às crianças:

Até 10h30 da manhã eu estou com eles, ajudo a trocar de roupa, escovar os dentes. Aí, depois que eu saio, a Flávia fica direto com eles. Vão almoçar para ir para escola. Quando eu chego eles já estão dormindo. (Cláudia)

Mesmo aquelas mulheres que trabalhavam fora, arcam com tarefas que dizem respeito aos cuidados com as crianças.

Vale ressaltar o contexto em que as entrevistadas estão inseridas, enquanto pertencentes à camada média da população. Essa camada tem passado por rápidas transformações nas grandes cidades brasileiras há algumas décadas, como a “redução da família em tamanho e significado, a ampliação da educação superior, surgimento do feminismo e um incipiente movimento de liberação homossexual” (Heilborn, 2004Heilborn, M. (2004). Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro, RJ: Garamond., p. 107). Dessa forma, certos valores como o ideal da igualdade na camada média da população brasileira passaram a ter forte presença na atualidade. E, no casal homossexual, em que a divisão de gênero não está estabelecida de antemão, a ideia da divisão igualitária prevalece. Os relatos das entrevistadas corroboram alguns estudos que apontam a existência de igualitarismo entre as mulheres do casal lésbico, no que diz respeito à divisão dos cuidados maternos (Fulcher, Sutfin, & Patterson, 2008Fulcher, M., Sutfin, E., & Patterson, C. (2008). Individual differences in gender development: Associations with parental sexual orientation, attitudes, and division of labor. Sex Roles, 58, 330-341. doi: 10.1007/s11199-007-9348-4
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; Patterson, Sutfin, & Fulcher, 2004Patterson, C., Sutfin, E., & Fulcher, M. (2004). Division of labor among lesbian and heterosexual parenting couples: Correlates of specialized versus shared patterns. Journal of Adult Development, 11(3). doi: 10.1023/B:JADE.0000035626.90331.47
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).

Dentre as nove mulheres entrevistadas, três são “mães não biológicas”, entretanto, somente uma (Flávia) dedica-se integralmente às crianças. Interessante pontuar que Flávia não possui vínculos legais com os filhos. Poderíamos cogitar aqui a hipótese dessa falta de vínculo legal entre a “mãe não biológica” e seus filhos repercutir como desigualdade entre “mãe biológica” e “não biológica”, de modo que esta última sinta a necessidade de reduzir essa distância, tornando-se mais presente no dia a dia das crianças, conforme dados demonstrados por Souza (2005Souza, E. (2005). Necessidade de filhos: maternidade, família e (homo)sexualidade (Tese de Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.), o que auxiliaria na apropriação de seu lugar.

De acordo com Hequembourg e Farrell (1999Hequembourg, A., & Farrell, M. (1999). Lesbian motherhood. negotiating marginal-mainstream identities. Gender & Society, 13(4), 540-557.), a divisão de tarefas relacionadas aos filhos muitas vezes realiza-se de maneira que cuidados, como alimentação, banho, passeio e outros relacionados à criança, possam ser administrados pela “mãe não biológica”. Assim, essas experiências serviriam também como auxiliares na construção de sua identidade de mãe. Segundo Herrera (2007Herrera, F. (2007). La otra mamá: madres no biológicas en la pareja lésbica. In M. Grossi, A. P. Uziel, & L. Mello (Org.), Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (pp. 213-232). Rio de Janeiro, RJ: Garamond.), para que cuidados possam ser divididos, é fundamental que a “mãe biológica” reconheça a “mãe não biológica” como mãe e deixe espaço para ela:

Cláudia fica um pouco com eles na parte da manhã, vai trabalhar e eu assumo. Normal. Almoçam e levo pra escola. Depois eu busco na escola. (Flávia)

Souza (2005Souza, E. (2005). Necessidade de filhos: maternidade, família e (homo)sexualidade (Tese de Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.) ressalta que muitas “mães não biológicas” que adotam os filhos biológicos de suas companheiras, ainda que com vínculo legal estabelecido com as crianças, abdicam de suas profissões para dedicar-se em tempo integral às crianças. Isso demonstra, segundo a autora, a busca por igualdade com a “mãe biológica”. Assim, os cuidados dispensados às crianças cumprem também a função de auxiliar na construção do espaço da “mãe não biológica” na família.

Busca por legitimidade

O tema da busca por garantias legais que amparassem as famílias das mulheres entrevistadas esteve presente em todos os relatos das participantes. Tanto no discurso daquelas que efetivamente buscaram alternativas na Justiça para legitimar sua situação (quatro entrevistadas) quanto no relato das que não efetivaram seu desejo por legitimação (cinco entrevistadas). A saída encontrada por algumas para lidar com a situação de desamparo legal foi por meio da adoção unilateral.

Os relatos das participantes demonstraram que a legalização da adoção unilateral legitimou uma realidade já existente entre “mães não biológicas” e filhos, fornecendo existência jurídica a uma relação afetiva já estabelecida. Segundo as entrevistadas, isso proporcionou coerência entre o que as crianças vivenciam em casa, o fato de terem duas mães, de se relacionarem afetivamente com ambas, e aquilo que vivenciam fora de casa:

Os dois filhos têm dupla maternidade na certidão e quando o Ricardo [filho] foi ouvido na Vara da infância, emocionou bastante, ele deixou muito claro que botar o nome da Valentina na certidão era só botar no papel uma coisa que pra ele já era fato. (Gabriela)

Como ele vai ter duas mães em casa e na rua vai ter uma só? Pra mim as coisas são interligadas. Era uma coisa que já estava em nossa mente, assim que possível ajuizar essa ação de adoção. (Patrícia)

Os direitos adquiridos pelas referidas entrevistadas por meio de ajuizamento de ação foram possíveis também pelo fato de elas possuírem recursos financeiros para realizá-lo. Não sendo ainda um direito constituído, e sim a ser conquistado, os componentes da família homoparental necessitam de investimento financeiro, emocional e ainda de uma batalha judicial.

A adoção pela “mãe não biológica” é importante porque concede uma série de importantes direitos a ela e à criança: o direito de guarda ou visitação, no caso de separação do casal; permissão de tomar decisões médicas; benefícios como herança em nome da criança, caso a “mãe não biológica” venha a falecer; permissão de ter o nome da criança em seu seguro-saúde, entre outros, além de conceder direitos legais e privilégios aos parentes da “mãe não biológica”. Tudo isso visa a equiparar os direitos das mães, independentemente do vínculo consanguíneo:

Eu fico pensando assim, porque se acontece alguma coisa, vai para um hospital, eu não tenho direito nenhum. (Paula/“madrinha”)

O pior de tudo é você estar na mão de outra pessoa que vai resolver sua vida. Eu fui registrar [os filhos] e eu não pude. Só pode parente, irmão, pai. Eu tava com toda a documentação ali, fiquei danada de não conseguir. (Flávia)

Os dados de Gartrell, Rodas, Deck, Peyser e Banks (2006Gartrell, N., Rosa, C., Deck, A., Peyser, H., & Banks, A. (2006). The USA national lesbian family study? Interview with mothers of ten years old. Feminism and psychology, 16(2), 175-192. doi: 10.1177/0959-353506062972
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) demonstram a importância e as consequências da regulamentação legal num estudo com 78 famílias de lésbicas nos Estados Unidos. Dentre os trinta casais separados que participaram, era mais provável que a guarda das crianças fosse compartilhada se a “mãe não biológica” tivesse previamente legalizado seus laços afetivos com as crianças, adotando-as. Segundo os autores, as mães adotivas sentiram intensamente que o relacionamento legalizado com as crianças assegurou-as do compartilhamento da guarda após uma separação, enquanto aquelas que perderam a guarda se ressentiram.

Embora a legalização não traga reconhecimento, pode auxiliar no processo de construção do lugar da “mãe não biológica” na família, e consequente inserção na rede de parentesco. De acordo com Descoutures (2010Descoutures, V. (2010). Les mères lesbiennes. Paris: Presses Universitaires de France.), a dificuldade de viver o cotidiano sem ser reconhecida como parente provoca sentimentos de injustiça que revelam a importância da legitimidade jurídica da companheira da “mãe biológica”, para a construção da identidade parental dos indivíduos.

Segundo Butler (2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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), a vida sem o reconhecimento do Estado causa uma série de perdas, contudo é imprescindível que mantenhamos uma visão crítica em relação ao que é, ou não, considerado como parentesco inteligível e reconhecido pelo Estado, do contrário estaremos buscando legitimação sem problematizar as normas de reconhecimento. Não existiriam “outras maneiras. . . inteligíveis ou mesmo reais, além da esfera do reconhecimento do Estado?” (p. 239). Do nosso ponto de vista, o reconhecimento do laço de filiação é tecido na interface das dimensões psicológicas, socioculturais e jurídicas.

Considerações finais

As crianças pertencentes às famílias aqui estudadas foram planejadas e criadas por duas mulheres, sendo uma delas quem as gerou, numa sociedade onde o valor dos laços biológicos é muito forte e reforçador de “verdades”. Nesse contexto, mesmo que na maioria dos casos ambas se considerem mães, constata-se uma diferença entre elas. A “mãe biológica” tem todos os seus direitos e deveres de mãe legitimados pelo Estado e é reconhecida pela sociedade, enquanto a “mãe não biológica” é invisibilizada pelo poder público e, muitas vezes, pela sociedade de modo geral.

Todavia, ao interrogarmos as mães sobre possíveis implicações relativas a distinções que a vinculação biológica entre mães e filhos(as) pode trazer e como lidam com isso, elas relatam que as crianças identificam as duas mulheres como mães, quando ambas assim se assumem. Constatamos, assim, que o laço afetivo cumpre o papel de vinculador. Por outro lado, encontramos também um arranjo familiar em que uma das mulheres era a mãe e sua companheira a “madrinha”, mostrando que a composição familiar homoparental pode se fazer de forma plural.

A legitimidade dos lugares de “mães não biológicas” nessas famílias é construída na dinâmica das negociações familiares entre seus membros, por exemplo, por meio da divisão das tarefas relacionadas às crianças. A realização dessas tarefas pode ser utilizada para auxiliar na assunção do lugar de mãe, no próprio ambiente familiar, por aquelas que não geraram a criança. Observou-se também que os modos de divisão de tarefas se basearam nas aptidões de cada membro do casal e não seguiu uma determinação preestabelecida que correspondesse aos papéis de gênero.

Outro ponto importante na luta por visibilidade e reconhecimento, por parte das “mães não biológicas”, constituiu-se na busca por regulamentação legal. É clara a dificuldade do dia a dia das famílias que não possuem o reconhecimento e o respaldo do Estado, o que deixa alguns de seus membros em situação de precariedade. Assim, algumas das entrevistadas ajuizaram ação de adoção unilateral e regulamentaram o vínculo entre elas e as crianças.

Essas seriam algumas das formas dessas mulheres encontrarem aceitação e legitimidade na construção de uma configuração familiar que não corresponde ao padrão vigente, não obstante a maioria das entrevistadas tenham deixado claro que a vinculação afetiva com seus filhos(as) ocorre sem distinção entre “mãe biológica” e “mãe não biológica”, e independe da regulamentação legal ou do reconhecimento social.

Ainda no que diz respeito à busca por regulamentação legal, não podemos fechar os olhos para os mecanismos que selecionam aquilo que será legitimado pelo Estado ou não, e quais sentimentos serão considerados inteligíveis ou não (Butler, 2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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) e suas implicações. Há toda uma visão construída e reforçada sobre a homossexualidade, por meio de mecanismos de saber e poder que alimentam a engrenagem que estipula normas de reconhecimento.

O desafio das famílias homoparentais é grande, especificamente no que concerne à tensão entre a reivindicação de direitos e a manutenção de múltiplas formas de existir. Do contrário, seria apenas mais um novo enquadramento (Butler, 2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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). Espera-se que este estudo contribua para um alargamento na forma de se enxergar as configurações familiares distintas das tradicionais, e não apenas a homoparental feminina. Pretende-se também que estudos como este, que nos aproximam da realidade cotidiana dos arranjos familiares compostos por não heterossexuais, possam fornecer subsídios para a clínica com casais e famílias em configurações diversas, contribuindo para que sejam percebidos em sua complexidade.

Referências

  • Almack, K. (2005). What’s in a name? The significance of the choice of surnames given to children born within lesbian-parent families. Sexualities, 8(2), 239-254. doi: 10.1177/1363460705050857
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  • Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. doi: 10.1590/S0104-83332003000200010
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  • Cadoret, A. (2014). Des parentes comme les autres: homosexualité et parenté (2e ed.). Paris: Odile Jacob.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2015
  • Revisado
    27 Fev 2016
  • Aceito
    24 Maio 2016
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