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Quando o princípio do absurdo disparou a idéia psicanalítica: uma concepção da Teoria dos Campos

When the principle of absurd triggered the pschycoanalitic idea: a conception of the Theory of Fields

Resumos

O artigo trata da noção das origens da Psicanálise não como uma invenção sui generis de Freud, mas antes como uma apropriação da idéia interpretativa, cuja essência, a interpretação, ele transformou em método. Sob este ângulo evidencia-se claramente que a disciplina psicanalítica não se restringe a uma prática terapêutica, ainda que o momento histórico que engendrou seu aparecimento a tenha convocado a tratar da crise, o absurdo que se instalara no âmago da sociedade urbana do início do século, a princípio na forma das neuroses.

Psicanálise; Freud, Sigmund; Teoria psicanálitica; Interpretação psicanalítica; Metodologia; Psico-história


The article considers the notion of the origins of Psychoanalysis not as something that Freud actually invented, but as an appropriation of the interpretative idea, whose essence, the interpretation, he turned into a method. From this standpoint, it becomes obvious that Psychoanalysis as a discipline is not limited to a psychotherapeutic technique. The historic moment that required its appearance summoned it to heal the crisis, the absurdity, that had set up in the bosom of the urban society of the beginning of the century, crisis that at first presented itself in the shape of the neuroses.

Psychoanalysis; Freud, Sigmund; Psychoanalytic theory; Psychoanalytic interpretation; Methodology; Psychohistory


QUANDO O PRINCÍPIO DO ABSURDO DISPAROU A IDÉIA PSICANALÍTICA: UMA CONCEPÇÃO DA TEORIA DOS CAMPOS1 1 Teoria dos Campos é o nome que recebeu o pensamento que o psicanalista Fabio Herrmann desenvolve desde a década de 70 e que se caracteriza por uma revisão crítica da Psicanálise a partir de seus fundamentos metodológicos.

Andrea Giovannetti2 1 Teoria dos Campos é o nome que recebeu o pensamento que o psicanalista Fabio Herrmann desenvolve desde a década de 70 e que se caracteriza por uma revisão crítica da Psicanálise a partir de seus fundamentos metodológicos.

Laboratório de Psicologia da Arte do IPUSP

O artigo trata da noção das origens da Psicanálise não como uma invenção sui generis de Freud, mas antes como uma apropriação da idéia interpretativa, cuja essência, a interpretação, ele transformou em método. Sob este ângulo evidencia-se claramente que a disciplina psicanalítica não se restringe a uma prática terapêutica, ainda que o momento histórico que engendrou seu aparecimento a tenha convocado a tratar da crise, o absurdo que se instalara no âmago da sociedade urbana do início do século, a princípio na forma das neuroses.

Descritores: Psicanálise. Freud, Sigmund. Teoria psicanálitica. Interpretação psicanalítica. Metodologia. Psico-história.

Exatos cem anos depois da publicação do livro "Die Traumdeutung," que dá à luz a Psicanálise, ainda precisamos considerar atentamente em que consiste o essencial desta disciplina. Ocorre que a crescente difusão das teorias psicanalíticas e mesmo sua vulgarização concorrem, nem sempre com vantagem aparente, com as notícias de seu pranteado mas inevitável falecimento. Se por um lado a Psicanálise desbordou de muito os limites do gabinete freudiano, por outro os psicanalistas não têm refletido com o devido cuidado sobre as implicações deste quadro. Circulamos no meio de pessoas que oscilam entre um olímpico descaso com relação ao debate implícito, assim ignorando que a Psicanálise se insere no aqui e agora do mundo em que existe, e pessoas que, por falta de informação suficiente sobre o assunto, tendem a se persuadir da verdade dos obituários Fin de Siècle . Como nem mesmo os mais ortodoxos psicanalistas obtiveram êxito em atingir a transcendência espaço-temporal a que, por vezes, insinuam aspirar e que, por seu turno, os terapeutas menos convictos tampouco se aventuram a abandonar algumas das tiradas mais populares da Psicanálise, resta-nos amargar o decantado estado de crise (Herrmann, 1997, p. 12). Ou não.

Reconhecida a atmosfera ambivalente de que são testemunhas os profissionais desta área, verificamos que a produção escrita se pauta pelos mesmos sintomas. Uma miríade de contribuições parciais e, não raro especiosas, povoa nossas revistas especializadas. Carecem aquelas de sínteses norteadoras, o que as sujeita às escolhas por simpatia ou afinidade pessoal. O leitor menos avisado, para não mencionar o público em geral, desiste de tentar fazer sentido do interminável léxico em vários idiomas teóricos que lhe é apresentado. Apegamo-nos, pois assim é a condição humana, ao que permanece, no caso, o divã, emblema de alguma coisa que não sabemos, psicanalistas e leigos, bem o que é. Ícones desgastados pela crítica, o divã, as quatro sessões semanais, a neutralidade do analista remetem-nos ao fato, mais significativo do que a opinião de nossos detratores, de que grassa entre nós uma respeitosa ortodoxia de enquadre cujos efeitos mais nefastos centram-se no mais ordinário desconhecimento das operações eficazes envolvidas no processo analítico.

Impomos deste modo à Psicanálise a camisa-de-força de uma identidade inessencial, qual seja, a do setting , cuja relevância para a técnica é irrefutável, mas que nada ou muito pouco deve ao método.

A idéia de uma revisão panorâmica dos eventos que gestaram o nascimento da Psicanálise insere-se, conseqüentemente, neste espírito, isto é, no espírito inaugurado pela Teoria dos Campos de explorar esta lacuna fundamental que é o estabelecimento do núcleo duro da Psicanálise. Ao estabelecermos este núcleo duro, capacitamo-nos a empregá-la legítima e eficazmente em ambientes que o divã não costuma freqüentar sem alguma, ou muita, desconfiança por parte dos defensores do rito tradicional. Do contrário, temos sempre a opção de um enterro digno...

Considerar um problema significa levantar perguntas sobre algo (Langer, 1989, p. 16-17). Este procedimento, de fato, implica a primeira forma de expressão do problema. O modo pelo qual uma pergunta é proposta limita e assenta os meios pelos quais qualquer resposta a ela possa ser dada, seja esta resposta certa ou errada. Se nos perguntam "Quem fez o mundo?", podemos responder "Deus" ou "o acaso," mas se respondermos "ninguém," já contestamos os fundamentos da pergunta feita. Se aí replicarem "Bom, então como o mundo se tornou o que é?", poderíamos redargüir que "o mundo não ‘se tornou’ de modo algum," o que repudiaria toda a estrutura de pensamento do interlocutor: tudo se tornou o que é, tudo possui uma causa, o mundo é uma coisa, o mundo foi produzido por meio de uma ação, o mundo foi produzido a partir de uma matéria-prima original. Estas são maneiras naturais do pensamento, ensina-nos Susanne Langer, e normalmente não são motivo de análise do homem comum que apenas as aceita e emprega. São princípios tácitos que sustentam suas ações e argumentos que, mesmo não declarados, encontram expressão nas formas com que formula suas questões a respeito da experiência vivida.

Bem, como professores numa sala de aula ou mesmo como psicanalistas num consultório, nós não nos podemos portar como o homem comum e tomar por dados os princípios que regem nossas ações, que conformam o horizonte de nossa experiência. É esta disposição que erigimos mais ou menos precisamente como competência profissional, é esta capacidade para a indagação sistemática e para o encaminhamento de respostas que nos distingue do leigo ou do charlatão que compra títulos universitários ou que fotocopia diplomas alheios e com eles adorna falsamente as paredes de alguma sala suspeita. Não são nossas roupas, nosso consultório ou mesmo nossos certificados que fazem de nós profissionais. É nossa atitude de constante espanto frente àquilo que os outros entendem como normal e corriqueiro e nossa busca ativa por compreensões mais abrangentes e consistentes.

Tudo isto, contudo, não se dá em meio ao nada. Refletimos em interlocução constante com nossos pares, psicólogos, psicanalistas, em meio a colegas de outras formações, médicos, engenheiros, físicos, imersos em uma comunidade intelectual que compreende as ciências naturais, as ciências humanas, as artes, que por sua vez está inserida em uma sociedade datada e localizada, com seus usos e costumes. Estes conjuntos constituem o horizonte de nossa experiência, horizonte que limita os termos em que nossas teorias são concebidas, dá origem a nossas questões específicas e suas possibilidades de articulação. A estes termos Susanne Langer chama de idéias geradoras que são perspectivas de nosso modo de pensar. Uma maneira muito simples de se compreender a que nos referimos é lembrar do mundo das revistas em quadrinhos ou mesmo do cinema.

No mundo dos quadrinhos é plenamente legítimo que cidadãos comuns que transitam pelas ruas de uma metrópole americana dos anos 30, ao verem algo grande voando no céu se perguntem se aquilo é um pássaro ou um avião e concluam, sem maiores problemas, que se trata, na verdade, do Super-Homem. Ou que, em um desenho animado, um gato, depois de ter levado um piano na cabeça, ter explodido uma bomba na própria cara e ter caído do alto de um arranha-céu, continue perseguindo um passarinho falante. Tais eventos constituem o horizonte de experiências dos personagens daquela ficção que prevê determinadas possibilidades e não inclui outras, como por exemplo, o Super-Homem apaixonar-se por uma alemã, casar-se com ela, mudar-se para Alemanha da Segunda Grande Guerra e passar a defender a causa nazista. O mesmo se poderia dizer do dia em que o negro gato finalmente se refestelasse com o passarinho.

A Teoria dos Campos destaca a noção de idéia geradora porque assim concebe a Psicanálise, ou seja, primeiramente como uma idéia, uma forma de pensar, de compreender o mundo, de tratar intelectualmente qualquer dado de qualquer experiência ou de qualquer objeto. A idéia psicanalítica é uma idéia geradora, pois é determinada pela natureza de nossas indagações. Bem, as indagações de natureza específica que durante muito tempo vaguearam pelo pensamento ocidental, até que Freud, em sintonia com elas, legitimou-as na esfera científica, constituem a idéia psicanalítica. Portanto, a idéia psicanalítica, que tomou forma no que convencionamos chamar de Psicanálise, em muito ultrapassa a prática terapêutica e no futuro pode vir a sobrepujar a própria Psicanálise como disciplina. Isto porque a partir deste ponto de vista a Psicanálise não é fruto de uma grande invenção tresloucada, mas antes resultado de uma fértil apropriação. Observemos que indícios há nesta direção: a Psicanálise é atualmente um fenômeno cultural que impregna diversas correntes de pensamento teórico das ciências humanas, como, por exemplo, a pedagogia; que atravessa movimentos artísticos como o surrealismo na pintura de Dali, o dadaísmo, nas obras de Marcel Duchamp, na literatura introspectiva de Borges ou no realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez, no hiper-realismo do cinema de Fellini; que está presente como baliza, ou mesmo como jargão, em nosso dia-a-dia em palavras como complexo, neurótico, castrar, trauma; que tanto se espraiou a ponto de atrair estudiosos de outras áreas para investigar-lhe sejam os pressupostos filosóficos, seja seu processo de difusão cultural, sua história ou os fenômenos sociais decorrentes de sua influência nos diversos domínios teóricos e práticos.

A que atribuímos tamanho êxito da Psicanálise? Por que este movimento de encarnação da idéia psicanalítica, que se iniciou como o sonho de um homem só, espraiou-se tão notavelmente para a maior parte dos centros urbanos do mundo, com incontáveis instituições afiliadas, e não cessa de recrutar novos adeptos? Segundo a Teoria dos Campos, porque a crescente experiência do que podemos denominar genericamente como experiência humana da modernidade insistia em exigir o escrutínio de uma de suas principais facetas, a saber, a sensação geral de crise da realidade cotidiana.

Quando Freud em 1885 viajou para Paris atrás de conhecimentos mais consistentes do que os disponíveis em Viena sobre doenças nervosas, não podia certamente antever a revolução intelectual que deflagaria em poucos anos. Homem sensível e sintonizado com sua época como era, não pretendia dedicar-se a explorar o que gradualmente se infiltrou por seu olhar, ou melhor, por sua escuta científica.

Detenhamo-nos alguns momentos neste aspecto, ou seja, que movimento acabo de descrever e o que implica? Refiro-me ao caminho de um homem movido por inclinação própria e necessidade material - pois o estudo de anatomia cerebral e neurofisiologia a que Freud se dedicara desde sua formatura não remunerava muito bem na virada do século. Ele era um homem inteligente e disciplinado, que ambicionava prestígio e reconhecimento social, mas que, tocado pela tradição romântica presente em sua educação, começava a revolver um terreno fértil o bastante para que algo muito maior do que uma técnica terapêutica germinasse em seu trabalho com pacientes comprometidos psicologicamente. Freud tropeçou na idéia interpretativa e apropriou-se dela, empregando-a deliberadamente, isto é, transformando-a em método. Estamos, deste modo, em presença de um salto qualitativo do saber acumulado no Ocidente. E isso explica porque a Psicanálise alastrou-se como fogo em capim seco, seu aspecto de ruptura radical com os procedimentos tradicionais, uma mudança de pressupostos, aqueles termos que há pouco mencionei e sobre os quais se funda nosso pensamento.

Freud, como homem do horizonte cultural de então, aspirava a um saber dentro dos cânones científicos. Seu momento histórico exigia que a razão triunfante do Iluminismo obtivesse êxito em classificar e explicar todas as facetas da experiência cotidiana de seus contemporâneos, mas a loucura teimava em insubordinar-se. Como médico honesto que era, ele devotava-se a tratar os doentes que o procuravam e não a denunciar o absurdo que permeia o encontro do homem com o mundo. Em busca de modos de desenvolver uma terapêutica, ele deu forma à idéia psicanalítica - o método interpretativo da maneira como o pratica a Psicanálise.

Interpretar, evidentemente, não é privilégio da Psicanálise, pelo contrário, a interpretação de objetos e eventos constitui uma prática tão antiga quanto o ser humano. Lembremo-nos da famosa passagem bíblica em que José interpreta os sonhos de prosperidade e pragas do faraó egípcio, do mito de Édipo decifrando, para seu próprio infortúnio, o enigma da esfinge, das famosíssimas profecias de Nostradamus, chegando aos nossos dias em que basta discar um número telefônico para conversar com um tarólogo, uma cartomante etc. Se estas práticas parecem distanciar-se da nossa por seu aspecto pouco científico, não nos esqueçamos que também um médico interpreta uma radiografia, um economista interpreta os índices da bolsa de valores, uma mãe interpreta o choro de seu bebê. Nada nos é dado em transparência. Assim interpretar é uma necessidade humana diante de um mundo que para nós se apresenta em perfis, em perspectivas e enigmas, de um mundo que apreendemos como absurdo. O que fez a Psicanálise foi encampar o método interpretativo e, teorizando a partir de seus resultados, sistematizar seu uso de maneira a produzir efeitos de revelação do absurdo. A repetição disciplinada deste exercício gerou quadros de compreensão de fenômenos vitais antes insondáveis. Tais quadros constituem nosso corpus teórico, sendo, por conseguinte, produto e não condição para nossas interpretações.

Como já podemos começar a suspeitar a partir deste desenvolvimento, a Psicanálise não descende diretamente de nenhum dos ramos das ciências naturais ou da filosofia geral estabelecidas na época. Sabemos, em contrapartida, que a Psicanálise não surgiu do nada, portanto que matrizes e práticas estão no âmago da idéia psicanalítica?

Defendemos a tese de que a Psicanálise teria surgido do resto do sonho científico-tecnológico, das bordas da fantasia pragmático-racionalizante que de tanto sucesso alcançado marginalizaram dramaticamente todas as idéias geradoras alternativas. Estas, no entanto, sobreviveram nas artes, na prosa literária e na poesia, em alguns momentos da reflexão filosófica crítica, nas crendices populares, na interpretação vulgar dos valores éticos e nos mitos. Nestas atividades podemos localizar o cerne da idéia psicanalítica, isto é, uma forma peculiar de interpretação. A Teoria dos Campos tem-se, por conseguinte, dedicado a explicitar que forma peculiar é esta de interpretar da Psicanálise, isto é, que unidade operacional mínima garante a eficácia do método, de modo que se diferencia de outras práticas interpretativas em que tal operação ocorre apenas acidentalmente.

Afirmamos, deste ponto de vista, que o núcleo duro da Psicanálise, a interpretação, não se filia aos grandes ramos da Ciência ou da Filosofia do século passado. Como posicionar a Psicanálise em relação ao nosso panorama cultural então?

Se não hovesse parentesco algum entre certos campos da Ciência e a Psicanálise, não faria sentido contrastá-la com eles como o seria contrastá-la com a astronomia, a matemática ou a química. É porque ela apresenta alguma semelhança com certos setores do conhecimento humano sistematizado que podemos compará-los.

Da Psicologia nos aproximamos por ser a Psicanálise também um campo de estudo organizado do indivíduo e do indivíduo em coletividade, porém especializado, porquanto restrito às manifestações do inconsciente seja como desejo seja como real.

Da Filosofia herdamos a busca inaugurada por Sócrates no pensamento ocidental pela essência e pela racionalidade dos objetos e fenômenos. Para os povos primitivos não existia a consciência de que a forma de organização da sociedade, por exemplo, era produto do homem. Foi só com os sofistas que a ordem social foi desvinculada da ordem física. A instauração do desligamento entre nomos e physis , isto é, a ordem social da ordem das coisas do universo, a lei humana da lei natural implicou que a virtude, em grego antigo areté , não era hereditária, mas podia ser ensinada. A compreensão do que é o universo deslocou-se, já naquela época, do reino dos fenômenos naturais para o reino da conduta humana. A ação humana passa a ter uma racionalidade, uma lógica.

Finalmente, a Psicanálise relaciona-se com a Psiquiatria pela vertente clínica por meio da qual passou a ser mais conhecida, pela prática da cura.

Por outro lado, a Psicanálise não se filia à tradição de pesquisa em Psicologia do último quartel do século XIX, época de sua origem. A tradição da pesquisa psicológica fundava-se nas tentativas cientificistas de pesquisadores como Theodor Fechner, que pretendia estabelecer as relações funcionais de dependência entre o mundo físico e o psíquico. Ou às tentativas também experimentais, porém estruturalistas, de outro fisiólogo, Wilhelm Wundt, que pensava poder medir os fenômenos mentais em si, mas já antecipava o reconhecimento da natureza complexa dos fenômenos da experiência imediata, noção que mais tarde seria desenvolvida pelos gestaltistas. Ou seja, a Psicanálise não se originou do experimentalismo psicológico contemporâneo a seu surgimento, tampouco do esforço psicométrico de homens como Binet.

A Psicanálise também não é tributária direta da Filosofia, pois rompe inexoravelmente com a tradição cartesiana da consciência como centro da subjetividade do homem, rompe com o império Iluminista da racionalidade. Não que o conceito de inconsciente não existisse na Filosofia, ele ali figurava com certa freqüência até, mas jamais tomado como uma maneira de se compreender o absurdo como propôs a Psicanálise. A noção de recalque e a importância do impulso sexual, ao que consta, também já tinham sido destacados por Schopenhauer. Entretanto, Freud atribui a estes conceitos valores completamente inusitados, fundando um corpo de conhecimento distinto, cuja diretriz crucial era a cura das psicopatologias, num primeiro momento, e a compreensão das regras do inconsciente e do real, no momento seguinte.

Finalmente, não poderíamos assimilar a Psicanálise à Psiquiatria convencional, que objetivava a doença mental num afã de classificar tipologias estanques a partir de uma compreensão naturalista e biologizante da medicina somática, que prescrevia uma gama de tratamentos que ia de banhos a eletrochoques, de preparados à trepanação.

A faceta da disciplina psicanalítica, que justamente a distingue radicalmente dos setores do conhecimento que acabamos de mencionar como aqueles mais próximos de uma possível paternidade, reside em sua tentativa, a princípio não programada, de comprender o absurdo. E este é o segundo grande eixo de nossa discussão.

Que vem a ser o absurdo? No encontro do homem com o mundo, o árduo trabalho que visa tornar o mundo mais confortável para os homens nunca cessa, nunca é considerado satisfatório, gerando eterna busca e novas condições de sofrimento causadas por esta interminável produção material e cultural que acaba por gerar efeitos inesperados e muitas vezes nefastos. O homem, claro está, não se reconhece nestes produtos que ele mesmo criou e os repele como criaturas totalmente destacadas de si.

O que gera tal estado de coisas é o desejo humano, uma porção de absurdo individualizada. O desejo é uma espécie de querer estranho, alheio, que, com freqüência, se desentende de nós mesmos. Assim, um homem estuda com afinco para formar-se e deste modo ter maiores oportunidades de sucesso econômico de que seu pai, que era lavrador. Diplomado, monta empresa e família e, em poucos anos, os ventos favoráveis a sua empreitada, já goza de confortos antes nem conhecidos. Mais algumas décadas, contudo, e as regras do mesmo mercado que o levou ao sucesso voltam-se vorazes contra suas numerosas conquistas. Assim também as mesmas regras de seu desejo, ambicioso e voraz, impedem-no de se contentar com menos do que o grande sonho que nunca chegou por ter sempre sido empurrado para mais longe a cada novo grão acumulado. A bancarrota inelutável do que quase foi uma aposentadoria tranqüila assemelha-se a ele obra de algum inimigo desconhecido, má sorte infernal, cruel injustiça, tudo menos a conjunção de seu desejo que jamais se satisfez com o desejo capitalista que jamais se satisfaz .

Eis o absurdo em ação, em sua forma de resultado das regras estruturantes do real, aqui denominado econômico, e em sua forma de regras estruturantes do desejo, concretizado na ganância desmedida. A combinação de nossa necessidade de trabalhar para comer e sobreviver, com uma capacidade pensante, laborativa e simbolizadora que em muito excede os requisitos da produção de alimento e abrigo, cria as condições para que se instale a pretensão de construir um mundo na medida humana. O homem é simultaneamente natural e cultural, feito da mesma matéria do mundo e criador de um mundo à semelhança de seu desejo. Nesta sanha construtiva, as forças culturais são chamadas a regulamentar, e não raro a regularizar, os elementos naturais que se avolumaram em número e em eficácia, realizando mais do que prometiam.

A Idade Moderna configura-se como um fenômeno de amplas e penetrantes repercussões para as hoje denominadas ciências histórico-culturais, especialmente para a Psicanálise: a partir do século XVII pode-se observar claramente uma redefinição das relações entre sujeito e objeto, seja no plano da ação, seja no plano do conhecimento.

A razão contemplativa, orientada desinteressadamente para a verdade e concebida sob o modo receptivo de uma apreensão empírica ou racional da essência das coisas, cede lugar, progressivamente, à razão e à ação instrumental. Isto implica que o experimento, um procedimento ativo, acrescenta-se à mera observação, e a finalidade utilitária emerge como justificativa e legitimação da ciência, ao lado da tradicional busca da verdade objetiva. (Figueiredo, 1991, p. 13)

Este novo modo de existência prático-teórico aparece de forma suficientemente sistematizada e nítida para caracterizar o surgimento de uma nova era. Como vimos no segmento anterior, esse processo expulsou outras idéias geradoras que não estas, que, no entanto, ressurgirão com força no mundo modernizado ocidental, sobretudo nas grande cidades, onde a ruptura com a natureza se mostra mais. A revolução capitalista inverteu a relação entre o abstrato e o concreto, isto é, a abstração deixa de ser a expressão de um mundo sensível para ser a concretude da figura reificada do dinheiro. O tempo é função do trabalho produtivo, o espaço transformou-se em espaço funcional e ergonômico do capital, vida pessoal e lazer são função do tempo livre corporativo. Assim também a natureza passa a existir apenas como fornecedora de víveres ou de refúgio ocasional.

Bem, tal estado de coisas gerou, paulatinamente, uma sensação generalizada de estranhamento, de um mundo extremamente fabricado, onde o homem não sabe mais com tanta certeza quem é ou o que são as coisas. Aos poucos, as fábricas que deviam produzir bens em larga escala para que todos pudessem gozar de determinados confortos ao invés de contratar mão-de-obra, que remunerada viesse a consumir tais bens, demitem-na, devido à automatização. A inflação consome os salários e o próprio consumo não é livre, mas ditado por modas. Instituições e objetos adquirem intenções que perseguem mesmo os mais céticos dentre nós. Quem não teve medo alguma vez de mexer em dada máquina ou acreditou na previsão do tempo em detrimento da própria percepção? Por outro lado, as representações figurativas e as narrativas independentes multiplicam-se interminavelmente: são novelas que se confundem com a realidade, notícias que parecem fantasias, figuras públicas cuja vida privada sofre microscópico escrutínio e indivíduos obscuros que de tudo fazem por se dar a conhecer por infinitos outros indivíduos obscuros. Confusão geral, mistura de fronteiras, erosão da realidade. O ser humano citadino moderno parece não poder ter mais certeza de nada e pressente a todo o instante que pode ser tornado obsoleto de uma tacada só, fatorado. Além disso, o avanço das tecnologias e explicações científicas parece implicar que para tudo há que se depender da opinião de um especialista, os únicos intérpretes autorizados.

Quando parecia que a tudo que nos cercava podíamos controlar, o próprio homem começa a despontar como um desafio à compreensão científica. Se o corpo já fora domado pela medicina, o psiquismo ainda teimava em escapar-nos. A crise do real cotidiano intensifica-se em grande escala, notadamente nos centros urbanos europeus e passa a exigir explicações objetivas. Importa destacar que não são as representações distintas e contrastantes que ameaçam a credibilidade do real, é a proliferação infinita das mesmas, a sobrecarga de enredos que podem denunciar a invenção de nossas próprias histórias pessoais. É o excesso, segundo a Teoria dos Campos, que delata a fabricação do cotidiano. Isto porque o real cotidiano é, na verdade, uma construção muito complexa sujeita a profundas alterações, mas ao longo do tempo histórico, não individual. Cada um de nós tem como que um ponto cego histórico, região que visaria as regras de constituição do real presente, inapreensíveis para nós no momento em que as vivemos, porque vivemos dentro de tais regras.

Este ato de estar presente na própria história é chamado de rotina em nosso referencial teórico. A rotina é, pois, uma força redutora que nos guia por certos caminhos do pensar e nos proíbe outros. Sua função é tornar opacas as regras ocultas do discurso cotidiano, do absurdo. Este, por sua vez, são as regras ocultas que organizam o real humano e o desejo. Estas regras, normalmente não as percebemos disfarçadas que estão pela rotina, uma espécie de força normalizadora. Imagine assim uma equipe que constrói uma casa: chega, cava o terreno, lança as fundações e os pilares que sustentarão as vigas onde se apoiará o telhado. Se, ao final, pronta a obra e entregue a casa, o que era anteriormente o canteiro de obras é visitado, podemos ali encontrar indícios do modo com que se erigiu a estrutura desta moradia. Se, no entanto, ao fim de cada tarefa, uma outra equipe, esta de faxina, tem acesso ao local e cuidadosamente retira todos os vestígios deixados, dificilmente saberíamos dizer qual dos pilares da sala foi erguido inicialmente, com que técnica e assim por diante. O mesmo vale para as regras de construção do real submetidas à força redutora da rotina.

Compreendemos deste modo que o que é real é sempre real, essas regras que organizam o nosso ser psíquico, mas o significado da noção de realidade pode variar largamente ao longo do tempo ou do espaço, caso fosse possível imaginar um observador fora do tempo e da cultura, um ser de outro planeta. Em alguns momentos críticos ou em alguns setores da produção intelectual ou artística, contudo, a natureza do conceito de realidade costuma ser posta abertamente em questão; o que ocorre é que tais indagações permanecem bastante restritas e separadas do cotidiano.

Voltemos a nosso simplório exemplo das equipes de construção e limpeza e imaginemos que, por um motivo qualquer, a alta vertiginosa do déficit habitacional, num país ideal onde fosse possível construir ininterruptamente, infinitas casas ou prédios fossem feitos um atrás do outro e que a Secretaria de Habitação não tivesse limite de gastos, mas sim a Limpeza Pública. Talvez, depois de algum tempo as equipes de faxina não conseguissem acompanhar o ritmo de seus colegas construtores e começassem a deixar à mostra certos indícios do processo de construção: a noção imediata de real cotidiano. Instala-se a crise em muitos desdobramentos. Em outras palavras, exigida ao máximo em sua capacidade obscurecedora, a rotina exacerba-se, enfraquecendo-se e patenteando as regras de construção do real. A esta reviravolta - esse fenômeno que implica que quando algo chega ao seu limite e ultrapassa-o, transforma-se em seu contrário - chamamos princípio do absurdo.

Um destes desdobramentos é o que nos interessa do ponto de vista da Psicanálise. A Ciência que tudo estava tentando explicar, como vimos acima, passou a carecer de uma forma de compreensão que desse conta do absurdo evidenciado pela crise. Urgia que se domesticasse o resto deixado a descoberto pela rotina da Ciência, sobretudo no que dizia respeito à loucura, à insanidade mental que insitia em resistir a qualquer das suas tentativas racionalizantes. Mas a loucura era apenas o colarinho borbulhante do caldeirão de absurdo em fervura. O problema mantinha-se incólume diante da classificação taxionômica de Kräpelin, da anatomofisiologia, da psicofísica e de outros modelos. Foi preciso esperar que o método interpretativo desabrochasse como Psicanálise para que algo nestas paragens começasse a fazer sentido.

A princípio Freud pretendia desenvolver uma Ciência regular, aplicar a lógica positiva ao psiquismo de suas pacientes e com ela conquistar os caminhos insondados ainda da desrazão. Da mecânica de quantidades esboçada no Projeto de uma Psicologia para Neurólogos , texto escrito em 1895, à hidráulica das hipóteses econômicas ou do jogo de forças pulsionais à tópica geométrica do aparelho psíquico são clássicos os exemplos da sedução dos modelos calcados na física sobre o pai da Psicanálise. Tudo no mais correto jargão científico. Contudo, a bom tempo, o grão de absurdo inseriu-se pelos interstícios da prática freudiana semeando indelevelmente uma ruptura radical com os procedimentos tradicionais. Ocorre que Freud não apenas inventou um método para interpretar o inconsciente, mas topou com toda a loucura da crise do real, indo do estudo da histeria aos sonhos, destes aos lapsos e atos falhos e daí ao psiquismo do homem são como um todo também. É como se uma vez puxado o gatilho interpretativo não houvesse mais como parar, e além da loucura, escancarou o desejo humano que deseja o que quer e o que não quer, o que o caracteriza como absurdo para si mesmo. As regras do desejo ficam divididas pela ação da rotina, que as apresenta como sujeito perceptivo e mundo dos objetos, harmonizados entre si numa crença do sujeito de que a realidade é dada. Porém, esta harmonia não resistiu à crise que descrevemos.

A necessidade de ir do patológico ao normal descortina a noção de que o normal é apenas um caso dentre várias possibilidades, sem maior legitimidade particular, situação que descostura ainda mais os já frágeis cerzidos do cotidiano e a tentativa de remendar os rasgões reveladores de real acaba por expô-lo mais inapelavelmente. Ao avesso deste tecido roto a Psicanálise chamou de inconsciente. O inconsciente denuncia que é mentirosa a divisão consciência/objeto da consciência; revela que nossa apercepção rotinizada é, de fato, um engodo, pois constrói o mundo do mesmo ato em que o percebe. E nesta operação de descoberta propõe solução à crise através das teorias decorrentes da aplicação legítima do método psicanalítico, por um lado, e a função terapêutica, por outro.

Em resumo, para terminar nossa exposição, diria que a Teoria dos Campos concebe a Psicanálise como algo que em muito ultrapassa a terapia psicanalítica, com uma vocação muito mais abrangente por tomá-la em sua característica de idéia geradora, a saber, a interpretação que andava banida das teorias e práticas mais prestigiosas do Ocidente. A crise de exposicão da fabricação do cotidiano, gerada pelas pressões rotinizadoras exigidas em excesso pela instalação da modernidade, chama dos bastidores um saber capaz de domar o absurdo que vem à tona e efetivamente traz consigo contribuições para resolver a crise. No entanto, por suas próprias características, ao invés de trancafiá-la num asilo para alienados, aponta sua insurgência por toda a parte.

Giovannetti, A. (1999) When the Principle of Absurd Triggered the Pschycoanalitic Idea: A Conception of the Theory of Fields. Psicologia USP, 10 (2), 101-116.

Abstract: The article considers the notion of the origins of Psychoanalysis not as something that Freud actually invented, but as an appropriation of the interpretative idea, whose essence, the interpretation, he turned into a method. From this standpoint, it becomes obvious that Psychoanalysis as a discipline is not limited to a psychotherapeutic technique. The historic moment that required its appearance summoned it to heal the crisis, the absurdity, that had set up in the bosom of the urban society of the beginning of the century, crisis that at first presented itself in the shape of the neuroses.

Index terms: Psychoanalysis. Freud, Sigmund. Psychoanalytic theory. Psychoanalytic interpretation. Methodology. Psychohistory.

2 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Laboratório de Psicologia da Arte. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900. E-mail: praxispsi@zipmail.com.br

  • Figueiredo, L. C. (1991). Matrizes do pensamento psicológico. São Paulo: Vozes.
  • Herrmann, F. (1997). Psicanálise do cotidiano. São Paulo: Artes Médicas.
  • Langer, S. (1989). Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva.
  • 1
    Teoria dos Campos é o nome que recebeu o pensamento que o psicanalista Fabio Herrmann desenvolve desde a década de 70 e que se caracteriza por uma revisão crítica da Psicanálise a partir de seus fundamentos metodológicos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
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