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Uma analista do discurso no espectro de tratamentos do autismo

Une analyste du discours dans le spectre de traitements de l’autisme

Una analista del discurso en el espectro de los tratamientos del autismo

Resumo

Este artigo apresenta a análise de discurso como possibilidade de atendimento clínico a crianças com diagnóstico de autismo, o que pode parecer paradoxal, dadas as conhecidas dificuldades de fala nesses casos. O campo conceitual que sustenta essa discussão é o da análise institucional do discurso, que parte do pressuposto de que a clínica é uma instituição em que se exercem lugares de enunciação e se movem expectativas entre os parceiros da cena discursiva, ocasião de análise. Os sentidos se constituiriam, também por suposto, no contexto concreto desse dispositivo, que é, por filiação ao pensamento de Foucault, tomado como discurso-ato. Deriva daí a tese que permitiria atingir pacientes com autismo: mesmo que não falem, fazem o discurso da sessão, assim como o terapeuta. O brincar, por implicação, será então considerado como ato discursivo: procedimento a delimitar lugares no exercício da enunciação. Discute-se, ainda, sua ação terapêutica.

Palavras-chave:
análise institucional do discurso; autismo; brincar; tratamento

Résumé

Cet article présente l’analyse du discours comme possibilité de soins cliniques aux enfants atteints d’autisme diagnostiqué, ce qui pourrait sembler paradoxal, étant donné les connues difficultés de parole dans ces cas. Le champ conceptuel qui soutient cette discussion est l’analyse institutionnelle du discours, celle-ci suppose la clinique comme une institution où sont exercés les lieux d’énonciation et où les expectatives entre les partenaires se modifient dans la scène discursive, occasion de l’analyse. Les sens se constitueraient, également, dans le contexte concret de ce dispositif qui est, grâce à une affiliation à la pensée de M. Foucault, entendu comme discours-acte. On arrive donc à la thèse qui nous permet de soigner les patient atteints d’autisme : même si eux ne parlent pas, ils font le discours de la session, ainsi que le thérapeute. L’acte de jouer, par implication, sera alors considéré comme un acte de discours : la procédure qui délimite les lieux dans l’exercice d’énonciation. Et plus : on présente son action thérapeutique.

Mots-clés:
analyse institutionnelle du discours; autisme; jeu; traitement

Resumen

Este artículo plantea el análisis del discurso como una posibilidad de la atención clínica a los niños diagnosticados con autismo, lo que podría parecer paradójico, teniendo en cuenta las dificultades conocidas del habla en esos casos. El campo conceptual que apoya esta discusión es el del análisis institucional del discurso, que parte del supuesto de que la clínica es una institución en que se ejercen lugares de enunciación y se mueven las expectativas entre los aliados de la escena discursiva, ocasión de análisis. Los sentidos también se constituirían, por supuesto, en el contexto especifico de este dispositivo. Dispositivo, que es, por una afiliación al pensamiento de M. Foucault, tomado como acto discursivo. De ahí deriva la tesis que permitiría llegar a pacientes con autismo: aunque no hablen, realizan el discurso de la sesión; del mismo modo que el terapeuta. El jugar, por implicación, se considerará como acto discursivo: el procedimiento para delimitar lugares en el ejercicio de la enunciación. Incluso más: se discute su acción terapéutica.

Palabras clave:
Análisis institucional del discurso; Autismo; Jugar; Tratamiento

Abstract

This article evinces discourse analysis as a possibility for the clinical care of children diagnosed with autism, which may seem contradictory given the known speech difficulties present in these cases. The conceptual field on which this discussion is based is the institutional analysis of discourse, starting from the assumption that a clinic is an institution where utterance and expectations shift between partners of the discursive scene, which is the context analyzed. The senses would also supposedly be part of the material context of such apparatus, which is, using Foucault’s thinking, considered a speech-act. From there arises the thesis that would allow reaching patients with autism: even though they do not speak, they take part in the session’s discourse, just as the therapist. Playing, consequently, will be considered a speech act: a procedure outlining places during the practice of utterance. Its therapeutic action is also discussed.

Keywords:
institutional analysis of discourse; autism; playing; treatment

“Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar” (Gilberto Gil)

O ato de fé da epígrafe, no nosso caso, não está num alvo à nossa frente, e sim numa aposta declarada nos pontos de partida de certo modo de pensar e produzir conhecimento. Não no horizonte, mas na fonte. Aliás, fé talvez seja um termo um tanto forte e comprometido com certo contexto. Mas não nego que, pela aleatoriedade e pelo acaso que ronda o discurso tal como o entendemos, creio que diz bem o que se quer ora dizer…

Alguns fatos, nada desinteressados: em minha carreira profissional de docente e pesquisadora tenho voltado a atenção para o exercício da psicologia como instituição onde quer que ela se faça. Isso me levou por caminhos que não cabe aqui comentar, excessivamente intricados que são, a desenvolver certo modo de pensar e intervir nas situações concretas; um modo de pensar balizado pelas fronteiras entre a nossa e outras disciplinas do conhecimento. Assim, uma psicologia se definirá, em princípio, aproximada da psicanálise de Freud e pela interface desta, mas, pontualmente, com a sociologia das instituições concretas, a análise pragmática do discurso e as ideias de Michel Foucault. Sempre uma psicologia como instituição, como exercício que se pode configurar pelo campo conceitual que destaca os termos: instituição, discurso, subjetividade e análise, na herança dos saberes indicados.

É assim que instituição não se identificará com normas, com estabelecimentos ou com algo exterior ou acima das cabeças de pessoas que seriam submetidas a grupos de mando, mas será entendida como conjunto de relações sociais, como a ação dos próprios atores institucionais, que ao se repetir legitimam-se, ganham caráter de naturalidade e perdem a relatividade ao modo e contexto de sua produção.

Quando, na virada da década de 1980 Guilhon Albuquerque, inspirado nas ideias de Foucault, destacou-se por algumas iniciativas na área de saúde mental entre psicólogos e sociólogos, foi esse o mote de uma compreensão política importante que implicava os agentes institucionais em seus atendimentos.

Trouxemos para o âmbito do ensino e da pesquisa em psicologia na Universidade de São Paulo (USP) esse recurso, e o desdobramos nas aproximações com a linguística pragmática de Maingueneau e com discussões sobre a ordem do discurso, relações de poder, produção de verdade e questão do sujeito e da subjetividade em Foucault. Outros termos/conceitos revelaram-se como de importância indiscutível para definir um objeto institucional à psicologia: discurso como ato, instituição, acontecimento, relações de poder como correlação de forças, ação de um sobre ação do outro, produção de verdade e subjetividade referidas ao contexto, o que exige que a análise seja o ato de restituir ao discurso seu caráter de acaso, exatamente na medida em que aponta para as condições de enunciação.

Pontualmente, a psicanálise como ideia de fato psíquico, relação transferencial, cena onírica e sua análise facilita produtivas interfaces, desde que se aquietem os arroubos da vontade de verdade metapsicológica.

O que aqui parece um arranjo harmonioso de palavras que despista mais do que esclarece sentidos, encontra em outras escrituras (às quais remeto o leitor neste momento) o que lhe permitiria identificar, de próprio juízo, as condições de enunciação de nosso discurso, aquele dos pontos de partida e das fontes que mencionávamos no primeiro parágrafo (Albuquerque, 1978Albuquerque, J. A. G. (1978). Metáforas da desordem: o contexto social da doença mental. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.; Foucault, 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola. (Trabalho original publicado em 1970), 1976/1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade: a vontade de saber (6a ed., Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Graal. (Trabalho original publicado em 1976), 2004Foucault, M. (2004). Ditos e escritos: ética, sexualidade, política (2a ed., Vol. 5). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária .; Maingueneau, 1989Maingueneau, D. (1989). Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes.; Maingueneau & Charaudeau, 2004Maingueneau, D., & Charaudeau, P. (2004). Dicionário de análise do discurso. São Paulo, SP: Contexto.; Guirado, 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo, SP: Annablume; Fapesp.).

Os trabalhos com instituições de educação, promoção social e saúde, nessa ordem, ofereceram desafios concretos para que se afinassem os estudos e as preocupações com conceitos que pudessem responder pelas questões que se colocavam ao fazer, na pesquisa, nas intervenções diretas, na docência. Com o tempo, a clínica da psicanálise ocupou lugar de destaque e avanços se verificaram nas possibilidades de pensar/fazer a psicologia com esse método.

Seu nome? Análise institucional do discurso (AID).

Em pesquisas orientadas, livros escritos, aulas, sessões clínicas, supervisões, pareceres, posições em reuniões, eventos da vida universitária e várias outras ocasiões “me pego pensando” por esse viés. Então, basta parar por um momento e buscar as balizas do pensamento para que as expectativas se acalmem. A fé nas origens não falhou! Mesmo que as direções dos resultados estejam longe de se repetir. Das mais intrincadas e despistadas maneiras se relacionam estratégia de pensamento e especificidade de contexto (Guirado, 1995Guirado, M. (1995) Análise do discurso e psicanálise: matrizes institucionais do sujeito psíquico. Curitiba: Appris.) .

Nesses múltiplos sentidos e contextos, as perguntas que me vejo respondendo, sobretudo no âmbito acadêmico, são dignas de nota, pois representam para mim um desafio muito caro. Especial.

Por uma dessas situações acabei adentrando os mistérios de um tema que jamais julguei sequer sondar: o autismo. Por via da análise dos discursos de psicólogos, psicanalistas e comportamentalistas que atendiam crianças com autismo, na orientação da dissertação de mestrado de Luisa Guirado (2013Guirado, L. (2013). Autismo: uma análise institucional do discurso dos tratamentos. (Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), bem como pelo acompanhamento informal dos trabalhos da Equipe Novo Olhar1 1 A Equipe Novo Olhar é formada por psicólogos e, há alguns anos, atende crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno do espectro autista ou outros “distúrbios do desenvolvimento”. e das experiências de acompanhamentos que Luisa fazia com uma criança, que agora segue com Felipe Martins-Afonso (orientando de doutorado), fui (re)conhecendo esse terreno completamente estranho aos meus estudos e interesses até então.

Como é automático o ato de enlaçar experiência a “considerações sobre seu modo de produção”, inevitavelmente tenho constituído uma espécie de discurso casual, sem amarras e sem referência a teorias mais organizadas sobre essas condições. Um discurso iniciático, sem especificidade teórica e de procedimentos que meus colegas de profissão professam, que, no entanto, de forma alguma padece de relativismo absoluto, o que seria uma leviandade intelectual e profissional. Um discurso que, ao alçar as condições de produção da experiência, procede de acordo com os princípios da estratégia de pensamento da análise institucional do discurso que parte da atenção ao contexto, à cena discursiva, para atribuir sentidos ao que acontece, às relações que se fazem, ao que se reconhece como verdade. O que as crianças encenam, bem como a maneira como são atendidas pelos profissionais, as teorias que rondam suas falas em atendimento e sobre seu atendimento ou aos pais, os próprios pais e as histórias que contam sobre si, seus filhos, o problema deles e o périplo pelos diagnósticos e tratamentos, tudo constitui o contexto, a cena discursiva, a ocasião para o desenho de algumas hipóteses sobre o que pode estar em jogo na configuração “daquele caso de autismo” em particular. Sobre os sentidos das ações, das falas, dos olhares e suas direções, dos estranhamentos nas relações e assim por diante.

Pois bem. Nenhuma novidade quanto à análise de qualquer outro discurso ou prática institucional. O surpreendente fica por conta dos pontos de chegada!

Desse comentário podem derivar outros, talvez de natureza menos pontualmente factual. Com frequência ouvimos que há poucas certezas sobre o quadro de autismo, suas causas biológicas, psíquicas, relacionais, ou ainda sobre alcances dos tratamentos. Mais se pode contar com a eficácia de tratamentos que se iniciam quando a criança tem pouca idade, pais colaboradores e condições de vida favoráveis. Entretanto o leitor há de convir que isso é pouco e tem causado profundo sofrimento aos pais e àqueles que, já crescidos, têm autismo “em condições desfavoráveis”.

O que muito impressiona a escuta desta analista de discurso é a força de verdade professada nas falas de colegas que, por teoria (as diversas psicanálises) ou por método (a análise aplicada do comportamento), atestam conhecimento inconteste sobre razões e motivos da conduta e dos problemas de seus pacientes (psicanalistas), bem como sobre os procedimentos para mudança de seus comportamentos e aprendizagem de novos (Análise de Comportamento Aplicada - ABA). Isso quando se referem a atendimentos concretos2 2 A dissertação de mestrado de Luisa Guirado que orientei e foi defendida no Instituto de Psicologia da USP, com arguições de uma banca de examinadores que são, ao mesmo tempo, expoentes no trabalho e na pesquisa com tratamentos de autismo, em ABA e psicanálise, foi a ocasião concreta para sustentar o que ora enuncio. Esse trabalho, com alguns acréscimos, foi também publicado em livro, em coautoria, sob o título: Tratamentos do autismo: a direção do olhar (Guirado & Guirado, 2014). .

Não só, mas até pelo fato de a indeterminação geral da etiologia do autismo nos discursos das ciências ser ultrapassada por certezas estabilizadoras dos discursos de práticas institucionais de tratamento, a AID parece contribuir com sua única certeza: a da parcialidade do conhecimento que construiu por ora. Ainda muito relacionada a poucas experiências, é dependente de análises em ato e do exercício disciplinado de manter-se analisando, com campo conceitual mínimo, sem apelar a estereotipias ou teorias prontas sobre o autismo.

É que dá para andar, “que a fé não costuma falhar”!

Penso, inclusive, que um jeito de prosseguir com este texto é no formato de perguntas e respostas. À moda dos desafios que são feitos a mim e a outros que começam já a trabalhar com a análise institucional do discurso, com pessoas que se encontram, segundo diagnóstico médico oficial, no espectro do autismo.

Vamos ver como funciona!

Análise de discurso com quem não fala?

A primeira e mais esperada pergunta é: como trabalhar com análise de discurso com pessoas que apresentam problemas de comunicação? Desde não falar até sensíveis dificuldades de entrar no “código de linguagem”, na compreensão e emissão de falas?

Ao considerar uma respeitável maioria dos pequenos de dois ou três anos de idade, pode-se dizer que seu acolhimento em um ambiente em que o brincar, acompanhado de um adulto atento a seus movimentos, estancamentos, direções de olhar, ocupação do espaço e uso de materiais, será a ocasião de se colocarem em posições sugestivas do interesse e da demanda que apresentam para nosso trabalho. Um modo de discursar sem palavras, em ato, literalmente dispondo-se em cena a partir de lugares com mobilidade maior ou menor, diante de seu assim instituído interlocutor. Este, sim, pode falar-lhe com palavras se essa regra também se instituir para o conforto e o andamento produtivo do trabalho dos parceiros de enunciação, de jogo, de cena. As condições para o reconhecimento e a legitimidade da relação que se criam estão dadas, são as balizas do “contrato” terapêutico estabelecido na e pela relação concreta entre o terapeuta e seu pequeno cliente, com a participação de ambos na determinação de lugares e pautas de conduta.

O interessante é que, se do lado do adulto-terapeuta existe regularidade maior de manifestações e ações (afinal, seu ofício já o preparou para um leque de possibilidades não tão irrestrito de reações por parte de seus parceiros), não há (pelo menos não deveria haver), entretanto, um engessamento de suas habilidades de observação e acompanhamento do modo como cada cliente ocupa seu lugar na relação com ele. Ainda, do lado da criança-paciente, não se pode duvidar: o matiz afetivo dá o tom de como cada uma exerce seu lugar no discurso da(s) sessão(ões). Os mais ruidosos em seu silêncio, os mais entristecidos e/ou agressivos pelo olhar e pelo gesto, os mais indiferentes ao contato, os mais isolados, os que convidam para o brinquedo puxando pela mão, os que se aninham no colo e nos braços do terapeuta, fazendo do corpo deste uma extensão do seu e de suas direções, de suas demandas e orientações e (por que não?) de seu desejo, e assim por diante: são todos personagens que com maior ou menor controle do movimento e da atenção, ou com maior ou menor consciência da funcionalidade de sua comunicação, seguem dizendo, seguem discursando em ato e afetos. A sessão assume caráter de acontecimento, de acaso, no interior da instituição terapêutica.

Pensar assim uma sessão é confrontar uma dimensão dessas práticas, a dos procedimentos e falas regulados pelo que pode ser dito, quem pode dizer, como pode dizer, como qualquer ordenamento de discurso (Foucault, 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola. (Trabalho original publicado em 1970)). É confrontar regramentos e controles que excluem ora certas possibilidades de dizer, ora certos sujeitos de enunciação, ora certos conteúdos que por ventura e acaso poderiam ser ditos.

Pensar assim uma sessão é fazê-la com uma disposição analítica que, em ato, suspende os lugares canônicos que tornam os rituais, quaisquer que sejam, disciplinas sagradas para a consecução de efeitos.

O que se sabe, entretanto, é que mesmo que não se digam, as terapias, por marca de ofício, mostram-se ritualísticas pelas exigências prévias de posturas do analista, definidas ainda nos procedimentos que organizam o trabalho clínico. Tudo acontece, como diria Foucault, em relações “intencionais e não subjetivas”, ou seja, em ações que se pautam por alvos de estratégicas relações de poder e não por planejamento consciente de um sujeito nessas estratégias (Foucault, 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola. (Trabalho original publicado em 1970)). Digamos que tudo acontece para que se cumpram as finalidades propostas por antecedência e exteriores à situação daquela sessão em particular; avesso aos sentidos que possam se construir em função das particularidades do contexto que ali se cria, relativo a arranjos de exercício de lugares, histórias e expectativas, das parcerias concretas3 3 A dissertação de mestrado de Luisa Guirado apresenta vários contextos clínicos em que isto ocorre. São narrativas dos próprios terapeutas a respeito de seu cotidiano, que mostram esse movimento das vozes no discurso, das atribuições de lugar e de direito à escuta e à “palavra” ou ao “dizer”. Convidamos o leitor a consultar esse material analítico. Ver Guirado & Guirado (2014). .

A disposição analítica a que nos referimos, em princípio, rompe com a primazia de teorias e métodos que impediriam o trabalho de fato terapêutico, antepondo-se às indeterminações, ao acaso como ocasiões em que tanto a criança quanto o adulto podem surpreender.

De nosso lado, e no âmbito de nosso tema, uma palavra pode ter a força de uma imagem: “bagunçar” o lugar ungido do terapeuta pode ser uma saída interessante.

Temos a sensação de que os parágrafos anteriores mais defenderam do que descreveram a ideia de que o confronto a uma ordenação ritualística e a um controle do acaso e do acontecimento nas práticas clínicas não se faz senão por uma decisão concreta que dispõe desde o ambiente físico até a escuta do terapeuta. Anteriormente havíamos tratado dessa concepção de discurso como ato na esteira do pensamento de Foucault (1976/1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade: a vontade de saber (6a ed., Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Graal. (Trabalho original publicado em 1976), 1995Foucault, M. (1995). Sujeito e poder. In D. P. Rabinow, & H. Dreyfus (Eds.), Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola. (Trabalho original publicado em 1970), 1969/1997Foucault, M. (1997). Arqueologia do saber (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária . (Trabalho original publicado em 1969), 2006Foucault, M. (2006). Ditos e escritos: estratégia, poder-saber (2a ed., Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária .).

Mas trabalhar assim não é improvisar demais? Como justificar?

Para que se possa resgatar a dimensão conceitual do que dizemos, de maneira que nossas palavras não caiam no lugar comum de um “ensaio convocatório militante ao fazer sem pensar”, algo imperdoável em escritos que pretendem ser argumentativo-demonstrativos como este, insisto em retomar alguns termos para reunir ainda mais argumentos em favor da proposta que ora fazemos. Esses termos refazem a discussão que temos desenvolvido em torno dos conceitos de contexto, práticas, cenas e gêneros discursivos e de análise, com apoio mais direto em D. Maingueneau, um dos autores que muito contribuiu para as interfaces constituintes da AID.

Para o linguista, gêneros discursivos são um vetor de análise que toma o discurso não apenas em sua dimensão linguística, mas também como dispositivos sociais de emissão e recepção das falas. Como se pode perceber, temos aqui um termo que permite alguma articulação, se bem avaliadas as diferenças entre as áreas do conhecimento com o que entendemos como práticas institucionais/discursivas. Sem fazer, neste momento, os ajustes, e contando com a confiança do leitor, prosseguimos com o que escrevemos em outro espaço sobre conceitos da análise do discurso francesa de Maingueneau.

Gênero de discurso [GD] é a condição de possibilidade para que a comunicação aconteça, com determinadas ações que possam, então, ser desencadeadas em função da expectativa em relação ao outro, acalmando nele as incertezas das direções da ação e ajudando a “fechar” um sentido para o que se faz/fala. O gênero discursivo é o que, em linhas gerais, responde pelo contexto. Ou melhor, é o quadro ou a moldura a partir de que se fala, que é constitutivo dessa fala, de seu conteúdo . . . . As cenas discursivas, a rigor, são níveis de análise do gênero de discurso. Na medida em que este é uma idealidade, seu estudo será feito por meio de analisadores. Serão, então, a cena genérica e a cenografia (nome atual para cena discursiva) esses analisadores: as duas maneiras para poder, de volta, caracterizar um gênero de discurso . . . . A cena genérica configura-se no plano dos papéis formais, concretamente implicados pelos gêneros de discursos, como por exemplo, o vendedores e compradores no comércio, professores e alunos na escola, terapeuta e paciente na clínica . . . . A cenografia é o plano mais imediato da relação que caracteriza o GD. É seu nível mais concreto e complexo, porque é o nível da relação face-a-face que reconstrói o GD. Quando um professor, em seu lugar genérico de professor o ocupa como amigo dos alunos, terá um discurso diferente de um intelectual ou de um cientista impessoal; ou, ainda, de uma “personalidade francamente autoritária” . . . . Por fim. . . . E o contexto? É esse jogo todo de construção de discursos e sentidos, assentado nas negociações que a relação concreta assim o exigir. (Guirado, 2015Guirado, M. (2015). Clínica e transferência na sombra do discurso: uma analítica da subjetividade. Psicologia USP, 26(1), 108-117. doi: 10.1590/0103-656420140022
https://doi.org/10.1590/0103-65642014002...
, p. 113)

Tendo feito esse percurso pelos exteriores do âmbito de nossa disciplina, de nosso saber, cremos ter reunido mais palavras para tratar da situação de trabalho com crianças com autismo, que muitas vezes não falam.

Podemos dizer que, quando alguém nessas condições adentra um consultório, mais que cruzar uma porta, dá um start up para um conjunto de relações bem concretas em que terá ações, direções de olhar, movimentos, vocalizações, expressões e escolhas de atividades e posições inevitavelmente capturadas por uma rede de sentidos em que ocupa um lugar prenhe de expectativas em relação a quem a espera na qualidade de terapeuta e deste em relação a ela. Acrescente-se que, de si, tem notícias ainda não reveladas ou atuadas, mas seu parceiro de cena tem dela, no mínimo, as informações médicas, as dos familiares e as das teorias que professa.

Assim, o setting, mais do que poderia pensar um psicoterapeuta, é uma cenografia e, como tal4 4 Não nos repetiremos, mas que fique marcado que é o recorte conceitual-metodológico da AID que nos permite fazer tais afirmações. Assim como as que seguem. , uma ocasião concreta em que a instituição clínica repõe seus lugares em exercício, faz das falas e dos procedimentos discursos-ato. Compreender dessa forma a relação criança/terapeuta implica operar na suspensão das teorias e dos métodos habituais de tratamento intencionalmente por procedimento e método, por admitir que há uma função enunciativa em jogo a se (re)criar, a partir dos lugares institucionais de criança/paciente e adulto/terapeuta, parcerias particulares, em grande medida, pelo gesto, pela direção do olhar e pela palavra (quando houver). Os brinquedos, os materiais expressivos gráficos ou plásticos bem como aqueles mais imediatamente imaginativos (roupagens de teatro, livros de história) e a presença atenta e interessada do adulto são o contraponto, a provocação constante para que algo aconteça, para que os pequenos se movam no cenário discursivo, indicando a orientação a seguir.

Não deixa de ser um trabalho intenso, o desses atores - nada amadores -, no ato de brincar e, com isso, produzir o discurso da sessão a várias vozes e vários corpos, organizando múltiplos sentidos que o contexto permitir reinventar e fazer avançar.

E, nisso tudo, brincar é preciso. Falar não é, necessariamente, preciso. Até porque, por suposto, pelo modo como o apresentamos, o brincar é discurso-ato.

O leitor deste texto mais afeito à psicanálise lacaniana deve ter sentido falta de referências à constituição de um sujeito do inconsciente, que, no caso das crianças com autismo que não falam ou que apresentem uma fala ecolálica, estaria ausente. É que, pela AID, ter um lugar de enunciação no discurso não implica essas teorias sobre o sujeito e muito menos a palavra como discurso.

Ainda pode ter parecido estranha a esse profissional (ou a outro psicanalista, mesmo que não lacaniano), a ênfase dada a um ambiente físico onde grassam brinquedos e uma presença ativa do terapeuta no brincar, provocando-o até certo ponto orientado pelas “dicas” que lhe dá seu pequeno parceiro, ao invés de delegar uma tarefa interpretativa, silenciosa ou pronunciada.

Reiteramos que, pela AID, faz todo sentido preparar um contexto material que favoreça características que se costumam denunciar como falhas na conduta dessas crianças, tais como: problemas com a integração sensorial e proprioceptiva, com a fala, a comunicação, a imaginação e assim por diante. Ora, esperar que o paciente “fantasie”, fale, constitua-se sujeito do inconsciente, do desejo, a partir de meia dúzia de objetos que se reapresentam (os mesmos!) a cada sessão, à espera de que o pequeno paciente crie situações imaginativas, de interação verbal, logo, social, com uma fala a partir de uma posição subjetiva simbólica, é apostar todas as fichas na mágica que a dobradinha tempo/teoria pode providenciar. É apostar, inclusive, que o paciente não precisa ter prazer para se mover numa outra dobradinha, a do tempo/relação terapêutica.

Insistimos: o brincar é o fazer, é o trabalho, é o exercício do lugar de paciente na sessão-discurso-ato. O prazer que pode ter enquanto brinca é, inegavelmente, a ocasião de exercer seu lugar confortavelmente, explorando no limite suas possibilidades de movimento, comunicação, criação e sua autonomia. Reequilibram-se as relações de poder na prática clínica. As tensões que se criam, se consideradas parte de todo esse trabalho (da criança e do adulto), são produtivas. Prestam-se a desafiar, inclusive, o pensamento e o conhecimento do terapeuta: (a) afinal, o que teria sido motor de tais ou quais mudanças de cenas, de posições de seus protagonistas (das crianças e seus personagens imaginários?), de avanços e retrocessos reais ou aparentes?); (b) como entender certos acontecimentos, considerando os procedimentos discursivos em jogo?; (c) como contribuir para o entendimento sobre a instituição do autismo e de seus tratamentos?; (d) como a psicologia do desenvolvimento e outras áreas do conhecimento como a neurologia, a fonoaudiologia e a oftalmologia, por exemplo, por meio de suas intervenções e diagnósticos, podem contribuir? As respostas não estão prontas numa ou noutra teoria ou método.

Em que pese esse exercício disciplinado e consciente de se recusar a operar com explicações já elaboradas, diz a experiência que as crianças, nessas condições, acabam falando ou se comunicando amplamente. Dentro de suas possibilidades, exigindo maior ou menor acompanhamento especializado em fonoaudiologia, em ritmo e tempo que guardam singularidades. Mas o que mais interessa é que: antes, durante e depois do rompimento da “bolha linguística”, uma visível potência de produção de sentidos, de interlocução em ato, foi (e é) o terreno sobre o qual se edificou (e continua se edificando) a fala possível.

Em outra vertente, um analista do comportamento (ABA) também poderia interpelar nossas justificativas à proposta de análise institucional do discurso, nas terapias de crianças com autismo. Em princípio, curiosamente, sua crítica recairia sobre o ambiente físico: com tanta estimulação, como isolar variáveis para proceder aprendizagens - por procedimentos de observação regrados pelo método - definidas como básicas? Recairia também sobre o fazer do analista/terapeuta: como agir tão erraticamente, sem linhas de base de comportamentos existentes e sem previsões progressivas de comportamentos adequados?; como não estabelecer um programa de reforçamento? E assim por diante.

Cremos que, pelas argumentações relativas à AID já apresentadas à psicanálise, ficam esclarecidos dois aspectos importantes que diferenciam nossa proposta. O primeiro: nem teorias nem métodos que predeterminem as ações dos parceiros na cena clínica! O segundo: o ponto de partida para uma relação terapêutica é a garantia do lugar de enunciação àquele que, mesmo em sua dificuldade ou impossibilidade de fala, demanda tratamento!

Nesse sentido, a pesquisa de mestrado de Luisa Guirado (Guirado & Guirado, 2014Guirado, L., & Guirado, M. (2014). Tratamentos do autismo: a direção do olhar. Saarbrücken, Deutschland: Novas Edições Acadêmicas.) desenha resultados que causam certo impacto: apesar das diferenças eloquentemente pronunciadas pelos próprios profissionais, entre psicanálise e ABA, no atendimento a crianças com autismo, seus discursos os aproximam no que diz respeito ao fato de nenhum atribuir a seus pacientes lugar de enunciação. A silenciosa legitimação das teorias, no caso dos psicanalistas, e a do método experimental, no caso dos analistas do comportamento, produz efeito de anteposição do universo teórico/acadêmico/científico à relação que, num contexto concreto específico, se estabelece. Parecem não se dirigir àquele que, com sua singularidade histórica e sua “carreira diagnóstica”, chegou até ali. Dirigem-se mais à criança da teoria ou à do método ou das exigências de procedimentos técnicos; dirigem-se à criança caracterizada por esse contexto externo à relação que particularmente se cria nas sessões terapêuticas.

Em decorrência, pode-se afirmar que, na maioria das vezes, foi a direção do olhar da criança que se prestou a indicar autismo. No entanto, os tratamentos falham exatamente nisso: o terapeuta parece não ver, não olhar na direção da criança, e sim de seu método ou sua teoria, que têm supremacia.

De qualquer forma, é nessa trilha que fortalecemos nossos argumentos, que ganhamos impulso para prosseguir pensando… agora, num terreno tão contundente como este que foi se desenhando pela pesquisa e pela clínica… E uma pergunta que se coloca, por desdobramento daquela que vínhamos discutindo, é a do valor terapêutico do brincar. Pais, inclusive, costumam ser seus porta-vozes mais frequentes. Razões não lhes faltam para formulá-la: em meio à indefinição que ronda o diagnóstico e o prognóstico do autismo, afligem-se com os processos a que são submetidos seus filhos. Mas não só: alunos de quinto ano de psicologia, sobretudo quando atendem crianças consideradas “casos difíceis”, costumam afligir-se se nada lhes ocorre de mais “estruturado” para conduzir uma sessão senão as brincadeiras que não aceitam “intervalos reflexivo-interpretativos” do terapeuta. Já ouvi muitos pensarem essas situações como “fuga” de seu paciente (fuga = mecanismo de defesa, ora mais e ora menos admitidos como inconscientes).

Ensaiemos, portanto, respostas.

Pode-se fazer terapia “apenas” brincando?

Comecemos por uma análise dos pressupostos presentes na formulação de uma pergunta como essa.

Alguns deles: (a) terapia é coisa séria, equivalente a um trabalho (sobre si); (b) exigiria muito esforço e, (c) provavelmente, pouco prazer. Concluindo: terapia é algo “chato” e muito distante de brincar!

A pergunta carreia mais, entretanto, e o faz numa curiosa “torção” do discurso: (d) brincar é pouco, tem pouco valor diante da tarefa de fazer uma terapia, esta, sim, muito importante nos casos em que é exigida. Brincar é divertido e, justamente por isso, não é (ou será) terapêutico…

Deslegitimar esses pressupostos também não é tarefa fácil, mas, brincando de operar estrategicamente com a AID, pode até ser divertido fazê-lo. Tudo depende de “trabalhar com gosto” os equívocos das palavras e do pensamento, do discurso. Vamos lá!

É inegável que as terapias são coisa séria e que exigem trabalho e esforço. Mas não é certo que, por isso, excluam o prazer e que não deveriam, pelo menos, estabelecer uma proporção inversa de seriedade/prazer ou trabalho/prazer.

Sabemos também que é traço cultural, e não primordial, a dissociação entre trabalho e prazer, bem como a associação entre extremo esforço e trabalho. No dizer religioso, a máxima “ganharás o pão com o suor do teu rosto” indica uma herança de peso; e, nas práticas econômicas de uma formação social, a inserção no modo de produção e sua manutenção é árduo processo na garantia da sobrevivência para grande maioria das populações. Assim, o enredamento do desprazeroso e do trabalhoso é historicamente naturalizado, mas não é natural. Por isso é, sim, possível pensar em condições agradáveis e confortáveis em que um trabalho pode ser levado com seriedade, prazer e sentido intrínsecos ao próprio fazer que implica5 5 Freud não só o admite, como o situa na rota dos possíveis caminhos do cumprimento do programa do princípio do prazer, como a hipótese psicanalítica das razões e motivos da persistência humana na busca da felicidade. Em seu argumento, faz figurar a tendência do aparelho psíquico a reequilibrar as tensões a que é submetido pela civilização (Freud, 1930/1976g). .

É na esteira desse movimento que podemos lembrar de uma analogia que formulamos anteriormente entre o trabalho do adulto e o brincar da criança. Isso, pelo lugar que um e outro ocupam nos diferentes momentos da vida das pessoas, em vários sentidos, inclusive o da constituição da subjetividade. Apesar de inseridos em contextos de complexidades diferentes, o trabalho e o brincar têm efeito fundamental na organização das funções que respondem pela convivência com os outros e pelo desenvolvimento da relação com o mundo, lato sensu.

Destacando desse cenário e dessa analogia a capacidade de brincar acompanhada da “positividade séria da organização subjetiva envolvida pela diversão e pelo prazer”, podemos agora aproximá-la das terapias que portam as mesmas características. Podemos fazer uma pela outra, como um trabalho sobre si. Seriedade, positividade, (re)organizações de subjetividades que não estranham a possibilidade do prazer. Despimos as palavras de ambiguidades para investi-las em discursos de outra ordem. Por que não?

O leitor, porém, pode ainda nos perguntar o que tudo isso tem a ver com a situação concreta de um atendimento. A resposta é: muito! Se o terapeuta entra em cena e ocupa seu lugar com essa disposição imaginária, com esses pressupostos (inclusive o de ele brincar também), abre-se um palco que é ocasião para relações que ainda não foram definidas, escritas, nas teorias ou métodos que antecederam ambos os personagens.

Como isso pode ser terapêutico?

Bem, cabe-nos agora ultrapassar os limites das sessões e das cenografias, dos reconhecimentos básicos que investem o exercício do lugar do adulto/terapeuta e, por tabela, daquilo que se faculta ao exercício do lugar da criança/paciente, para reunir, novamente, justificativas conceituais. As análises que até o momento pudemos fazer, quer no plano das pesquisas acadêmicas, quer no do trabalho clínico ou com outras instituições, permitem-nos resgatar, sobretudo para o tema em discussão neste texto, alguns termos da rede de interfaces que constitui a AID, o que nos aproxima da psicanálise.

Escrevi, para uma palestra sobre acolhimento institucional (abrigos) na comemoração de 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre o direito que uma criança tem à narrativa de sua própria história quando em condições de abrigamento. Remeto o leitor ao livro (Guirado, 2016Guirado, M. (2016). Acolhimento em abrigos: direito à construção de narrativas da própria história. In J. O. Moreira, M. J. G. Salum, & R. T. Oliveira (Orgs.), Estatuto da Criança e do Adolescente: refletindo sobre sujeitos, direitos e responsabilidades (pp. 160-170). São Paulo: CFP.) em que o texto consta na íntegra e aproveito para chamar atenção ao fato de os argumentos, no plano conceitual, serem muito próximos dos que apresento ao falar da clínica. Nada que indique uma migração indevida desta para outros âmbitos e exercícios da psicologia. O que acontece é que a interface da psicanálise com outras disciplinas do conhecimento para a produção do recorte da AID forçou-a (a psicanálise) a ajustes conceituais importantes (aos quais já nos referimos, mas ainda não detalhamos). São eles que nos permitem um escopo de pensar que, do consultório a outras práticas institucionais, são referências e /ou vetores de análise.

A propriedade desses comentários, no momento, é de natureza conceitual-metodológica, epistemológica, mas também relativa ao aspecto particular de ser o trabalho do psicólogo exercido junto a crianças que, por seu lugar social mais amplo e institucional concreto, poderiam ter tido solapado seu direito a ocupar um lugar de enunciação nas cenas em que constitui parceria.

Mais ainda, são esses comentários que marcam a ética desses trabalhos: feitos na direção e ao bem de quem os demanda. Sempre, seja qual for o contexto (abrigos, escolas, consultórios), essa finalidade é invariável.

É assim que, quando inicia a terapia, ainda que não consiga expressar-se com clareza, ou pela idade ou por algum tipo de comprometimento, a criança, ao que nos conduzem pensar nossos pressupostos (AID), tem registros de uma história que não cabe, com justeza e transparência, nas previsões ou nos nomes e categorias que se lhes confere o discurso psicológico e/ou psicanalítico. Para além do diagnóstico que porta ou da queixa apresentada por aqueles que procuram o atendimento por ela, partimos do pressuposto de que tenha uma versão, um registro pessoal-afetivo-imaginário, uma memória de seu vivido real ou fantástico; e que isso a constitui subjetivamente. Ou seja, até o exato momento do seu encontro com o terapeuta, sob o império das relações familiares, construiu um complexo de experiências e, a partir dos lugares que nelas ocupavam, é que se faziam os registros dessas relações, de sua força e intensidade, do seu significado; faziam-se também registros de uma imagem de si e dos outros, de suas valias, de suas competências e limites, de seu lugar no mundo.

Cabe acrescentar que esses registros são cenas, marcas ora mais e ora menos claras e conscientes, ora mais e ora menos aproximadas da realidade vivida, mas sempre fruto do arranjo imaginário possível.

Nesse ponto, nossa estratégia de pensamento apoia-se no que Freud chamou de “bloco mágico”, um modelo de funcionamento da memória inconsciente: não se fixariam fatos tal como são isoladamente vividos, mas em composições que modificam sempre as novas experiências em função das anteriores, dispondo assim um terreno flexível e móvel para novos registros.

A memória, então, nunca faria registros fiéis e a imaginação estaria sempre afiliada de alguma maneira à realidade, ou melhor, à experiência vivida, produzindo-se conjuntamente num único e mesmo golpe (Freud, 1925/1976fFreud, S. (1976f). Uma nota sobre o “bloco mágico”. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 281-290). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1925), 1937/1976hFreud, S. (1976h). Construções em análise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 290-304). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1937)).

E que o leitor atente, aqui, para o destaque que foi dado a certa concepção de inconsciente no contexto da metapsicologia freudiana para produzir avanços na compreensão da questão da subjetividade; o que só foi possível porque a psicanálise já se encontra bastante modificada pelas interfaces com outras áreas do conhecimento (Guirado, 2015Guirado, M. (2015). Clínica e transferência na sombra do discurso: uma analítica da subjetividade. Psicologia USP, 26(1), 108-117. doi: 10.1590/0103-656420140022
https://doi.org/10.1590/0103-65642014002...
).

Por esse caminho, faz-se agora necessário esclarecer outro conceito resgatado da teoria psicanalítica e repensado, para agir na e pela AID: o de transferência. Dediquemos algumas palavras ao modo como tal termo do discurso psicanalítico foi reconsiderado.

Originalmente, quando Freud teoriza sobre transferência, o faz para dar conta de algo que se passa na relação (amorosa) do paciente com seu médico - ele mesmo, no início de seus escritos, às voltas com Dora, exemplar caso de histeria entre seus atendimentos (Freud, 1905/1976aFreud, S. (1976a). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 1-119). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)). Esse “algo” é da ordem de um vínculo que se expressa pela repetição, com o analista, de fantasias e manifestações psíquicas que trariam, como presente e atual, o que fora reprimido no passado, negando todas as diferenças de tempo, espaço e de características pessoais entre personagens primitivos (figuras parentais e/ou significativas das relações amorosas primordiais) e os que, hoje, são “eleitos”; ou melhor, tomados como seus substitutos. Tudo seria um processo inconsciente e, mais especificamente, seria a condição de “liga” para que a análise pudesse acontecer, uma vez que laços afetivos poderiam ser reeditados e resgatados das “profundas entranhas” a que tiveram de ser arremessados por insuportáveis que seriam à consciência. De responsabilidade total do paciente, o que se transfere na sessão é o que a moverá e moverá também seu oposto, as resistências às investidas interpretativas do analista. Do seu manejo, o sucesso possível da análise (Freud, 1905/1976aFreud, S. (1976a). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 1-119). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905), 1912/1976bFreud, S. (1976b). A dinâmica da transferência. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 129-143) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1912), 1912/1976cFreud, S. (1976c). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 146-159) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1912), 1913/1976dFreud, S. (1976d). Sobre o início do tratamento. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 163-190) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1913), 1915/1976eFreud, S. (1976e). Observações sobre o amor transferencial. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 205-223) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1915)).

Como se vê, apesar de ser um termo da teoria da técnica, carreia para o que se passa na sessão concreta, o carro-chefe da metapsicologia como operador da escuta do analista: inconsciente, pulsão, repressão, aparelho psíquico, resistência, catexia. Ao mesmo tempo, retira-o (o analista) da cena, pois, com exceção da possibilidade de “pontos-cegos”, o médico é personagem acima de suspeita transferencial de monta para Freud. A este é garantida uma possibilidade de lucidez (desatino, nessa situação) para interpretar (Guirado, 2000Guirado, M. (2000). A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo, SP: Annablume; Fapesp., 2015Guirado, M. (2015). Clínica e transferência na sombra do discurso: uma analítica da subjetividade. Psicologia USP, 26(1), 108-117. doi: 10.1590/0103-656420140022
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).

Tomamos, dessas considerações iniciáticas sobre “algo que se passa na relação paciente/terapeuta”, a ideia de que a transferência pode ser um nome dado ao “fazer do paciente” e interpretação (ou análise), o fazer do terapeuta/analista, já movendo os termos para o quadro conceitual com que trabalhamos. Mas tomamos mais: a ideia de que transferir é ato de repetir e reeditar em novos contextos, e acrescentamos: o lugar que nos vimos ocupando em relações e contextos anteriores, em que criamos expectativas (que nada têm de ativas à consciência) em torno de possíveis satisfações, interlocuções, respostas; um lugar que tendemos a reeditar, de pronto, em diferentes contextos e cujo exercício e efeitos “conhecemos bem”, quer dizer “reconhecemos” naturalmente, enquanto “desconhecemos” o próprio fato da repetição, suas razões.

Retiramos das considerações psicanalíticas, entretanto, a ideia de um vínculo primordial que passe ileso pelos demais, “aguardando” o analista/terapeuta para se atualizar, bem como a ideia de o último ser atópico na cena clínica. Jamais poderia sê-lo, na medida em que seus referenciais teóricos fazem o roteiro, o texto em análise é esse e não outro; são seus referenciais teóricos que ouvem um paciente que tem um inconsciente, que reprime, que resiste, que transfere; é sua escuta que lhe diz quem é, como é e o que sente aquele que se põe seu cliente.

A considerar por esses antecedentes da sessão concreta, os dois parceiros transferem!

O destaque que demos à reconsideração do conceito de transferência para operar analiticamente no atendimento às crianças com autismo faz jus aos termos que assinalamos como importantes para a interface com outros saberes. Sobretudo, suspendemos, conforme havíamos antecipado no início deste texto, o lugar da metapsicologia do inconsciente e das pulsões, para dar espaço ao conceito de instituição, cena discursiva e discurso-ato. No rebote, sem avisar o leitor, colocamos o analista na cena como quem também transfere. Afinal, de alguma forma, ele porta expectativas em relação ao seu cliente. Mesmo na AID, na melhor das hipóteses (sem falsa modéstia, espero…) ele “escutaria” com os pressupostos dessa estratégia conceitual.

Agora, retomemos a cena da entrada de uma criança em terapia.

Se a cada nova experiência de vida os registros prosseguem, o primeiro movimento de um menino e/ou menina, nessa ocasião, será o de reproduzir seu modo de estar em situações como aquela, com pessoas que não conhece, adultas e que o recebem de tal jeito, com tal aspecto, tal expressão, tom de voz e postura corporal, num ambiente, igualmente pouco familiar e, ora mais ou ora menos, assemelhado ao conhecido. Deve-se supor, pelo avesso ou pelo direito, uma expectativa de acolhimento, no sentido amplo do termo, que implica a possibilidade de ser/agir como sempre se é ou age, e ter, da parte do outro, no novo contexto, respostas ou reações reconhecíveis, identificáveis, às quais possa dar prosseguimento pelo simples fato de poder prever o que vem depois. Toda sorte de afetos está aí em movimento: reasseguramentos, frustrações, decepções, sensações de potência ou impotência, angústia, desamparo, força, e assim por diante. Dos ajustes ou desajustes suportáveis vêm as primeiras possibilidades de a “dupla funcionar” e adquirir o perfil que o pacientezinho lhe atribuir.

Ou então, a terapia que se reproduzirá em bloco, tal qual num molde fixo, e sem feições minimamente particulares, será candidata a não ser terapêutica. A não ser terapia.

Porque atribuímos caráter terapêutico a uma relação desigual adulto/criança em que o primeiro, em princípio, é ocasião de acolhimento e segurança ao segundo a quem cabe, de saída, apenas a reedição de um lugar e de expectativas para que se ative a rede de suas memórias de vínculo, de possibilidades de imaginar, dizer, mover-se, fazer conquistas, falar, calar, comunicar-se, fracassar, frustrar-se, agredir e colaborar, entre outras.

É para isso que contam todas aquelas características do ambiente e da postura do terapeuta de que falamos ao tratar do brincar como discurso

O brincar em sessão é a cena discursiva, a cenografia que dispõe esses dois parceiros em suas posições para que as reedições logrem o efeito para que os registros, as expectativas e as marcas das histórias da criança se recriem e assumam, na tensão inevitável, outro rumo, outro movimento. Brincadeiras imaginativas, “leituras de livros a várias vozes e vários corpos”, como dissemos antes, teatros improvisados, jogos de montagem e personagens (mesmo de circulação corrente pela mídia) veiculam as histórias de cada um, emprestam-lhes palavras, lembranças, cenas, com maior ou menor habilidade motora ou linguística e prazer. Prazer de todo tipo, até de destruir um inimigo imaginário. Nesse cenário, inclusive, narrativas livres, com repetições de trechos, com retornos e avanços truncados, aquelas em que os personagens são vestidos com as histórias de quem as conta, surpreendentemente ou intencionalmente, podem ser recursos de alta potência para a reconstrução das próprias histórias.

Para algumas crianças, como aquelas que visamos neste texto, também faz parte de sua história, o autismo tecido na teia diagnóstica, nos atendimentos médicos e terapêuticos que, até então, exigiram delas e de suas famílias ações e reações das mais diversas e, muito provavelmente, desconfortáveis; faz parte o autismo tecido nas relações e sentimentos envolvidos na “carreira de paciente” e nas particularidades da comunicação nesse processo.

Para sermos coerentes com o que até aqui dissemos, quando recebemos uma criança em atendimento, nessas condições, é de se supor que seu primeiro movimento conosco é o de repetir essa história de que faz parte o modo como se construiu o “seu sintoma autístico” em afetos e atos. Como tal, terá lugar no fazer terapêutico das sessões pelos dois parceiros em cena.

A terapia acolhe, assim, o falar e o mostrar de si. É terapia e é brincar.

O terapeuta é aquele que, na cena viva com a criança, é o acompanhante e o provocador dessa voz que diz de si. Com isso, é, sem dúvida, interlocutor privilegiado.

Mas e as interpretações? Não são feitas?

A rigor, desde o nível dos pressupostos teóricos que constituem a escuta do terapeuta, a interpretação fica deslocada nessa clínica que ora delineamos e que nos habituamos a chamar de analítica da subjetividade. Buscamos demonstrar que tais pressupostos “antecipam verdades” nascidas na teoria, que tem características próprias e não, como se poderia pensar, diria do inconsciente ou do desejo e/ou realidade psíquica da pessoa que se submete à terapia. Nesse caso, proferir uma interpretação não faria o menor sentido.

Para quem trabalha na perspectiva que aqui delineamos, o que se faz são construções de cena, de jogo imaginativo, que, quando feitas pelo terapeuta, põem o discurso em movimento e se prestam a reorientações de rumo, de lugares, que os pequenos atores se viram e veem ocupando em suas vidas e relações. Diferentemente das interpretações, prestam-se a (re)sentir amores e desamores, alegrias e tristezas, desaforos e aconchegos. Prestam-se ainda a produzir imitações e criações, a refazer roteiros na ação e nas narrativas, modificando inícios, meios ou fins de história com personagens que investem o sentir, o fazer e o querer próprios.

Uma situação ilustra o que ora dizemos e o faz para todos os gostos e tendências, inclusive aqueles mais canônicos da psicanálise, para que não se possa pôr defeito em nossas hipóteses! Um paciente de seis anos com diagnóstico de autismo tem uma de suas sessões trazida para supervisão. Meninos, eu ouvi!

Em meio a dinossauros, personagens de desenhos conhecidos e bichos de pelúcia, Gustavo criava uma narrativa na qual esses “atores”, principalmente um dinossauro e uma porquinha, provocavam-se dizendo “É meu!” e o outro respondendo “Não, é meu!” sobre um objeto de disputa. Gustavo fazia as vozes desses personagens, alternando tons graves e agudos. O analista, acostumado a embarcar nessas histórias, pegou um dos dinossauros disponíveis na sala e o inseriu na cena, perguntando “O que está acontecendo?”. Ato contínuo, Gustavo vira-se para o dinossauro na mão do analista e solta “Nada, papai!”. A sessão continua, e ele traz à cena, além do papai, a mamãe e a namorada do dinossauro-filho. E o tema geral da história, que pegou de surpresa o dinossauro-analista, passou a ser: quem namora quem?

Se esse exemplo cênico guarda um estranho semblante de discurso psicanalítico, na voz da própria criança, num texto que até agora parecia questionar o estatuto de verdades teóricas e de técnicas aplicadas a situações clínicas, é bom que se afirme: o problema são as antecipações dessas verdades, no pensamento do terapeuta e nas interpretações que ele profere, bem como a aplicação generalizada e sistemática de técnicas. Aí é que se reapresentam e reencarnam os efeitos de reconhecimento e desconhecimento de uma prática legitimada e naturalizada, que mais tende a fortalecer a instituição discursiva do que a atender à demanda daquele que acompanhamos/tratamos. Nosso pequeno Gustavo conduziu as cenas e as falas para suas verdades, sem as interpretações antecipadas de seu analista e, mais que isto, deu voz aos matizes afetivos das lidas de sua vida nesse momento: surpreendido, amante, esperto, envolvido, envolvente e completamente à mercê de suas criações imaginativas, reorientando suas rotas na interlocução com seu novo parceiro de aventuras.

Um leitor mais rigoroso, no entanto, poderia ainda perguntar sobre o paradoxo sugerido no título do artigo e expresso em seu decorrer: como trabalhar com análise de discurso com crianças com autismo e que não falam?

Julgamos ter, pelo modo de organizar a escritura, mostrado que, uma análise institucional do discurso da clínica do autismo aponta para a urgência, não do estabelecimento de novos métodos, nem de novas compreensões e/ou interpretações para os tratamentos. Nossa proposta é, menos sistematizar-se como metodologia ou como teoria, e mais colocar algumas prescrições de prudência nesse contexto. O gênero discursivo das terapias ou dos tratamentos, em que incluo os de perfil psicanalítico, foi aqui situado de modo a poder ser pensado a partir de uma estratégia de pensamento que o resgatasse: (a) como instituição; (b) como discurso-ato-dispositivo; (c) para além e aquém da fala/palavra; (d) como exercício de lugares institucionais de enunciação em que adulto/terapeuta e criança/paciente são parceiros de uma cenografia que pode (e deve) ser lúdica pelas características de desenvolvimento da clientela; sobretudo, (e) tendo o brincar como o discurso-ato em análise; (f) sem antecipações guiadas por interpretações e ou procedimentos metodológicos rigorosamente definidos; (g) apenas acontecendo (o brincar) num ambiente físico-material com características preparadas e dispostas à escolha e ação da criança com a especial e indispensável atenção do terapeuta.

Tudo o que se buscou com essas observações foi marcar um perfil ético para a condução do tratamento de pessoas nessas condições, e não opor ao que já existe, outro método fechado e acabado. Afinal, teria sido um contrassenso.

Tudo o que se buscou foi marcar um conjunto de prescrições apoiadas num campo conceitual mínimo que se coloca sempre à verificação histórica e empírica de seus pressupostos. Quanto a isso, não cansamos de buscar ocasiões para continuar pensando e desafiando as certezas que insistem em se (des)estabilizar.

Encerremos, então, com uma situação exemplar, que nada mais é do que um trecho de sessão, absolutamente ordinária, que se presta a mostrar sem mistérios o que apontamos nos parágrafos anteriores.

Rafael é um menino de três anos que produz apenas determinados sons, raramente dirigidos à comunicação; cantarola algumas músicas que, depreende-se, sejam de filmes infantis de TV a que assiste. Costuma sinalizar pouco ou nada seu entendimento de que está entrando para a sessão, com exceção de quando está irritado, porque aí chora/grita a plenos pulmões.

Dia desses sua mãe queixou-se de que ele começara um novo ritual (ele tem vários, e nas sessões irrita-se muito quando, desavisadamente, o terapeuta intercepta algum deles): recusava-se a se alimentar; só aceitava banana e batata palha. Obviamente os adultos da família, preocupados, forçavam um pouco (não se sabe quanto) e ele respondia, violentamente, com esperneios e gritos. O terapeuta recomendou que não insistissem muito nessas horas.

Na sessão seguinte a essa conversa, Rafael entra, como sempre, na sessão: como um raio, meio cansado e meio certeiro, em direção aos brinquedos com os quais faz sua sessão acontecer. Entre eles há uma pequena turma de bonecos de Playmobil que ocupam uma casinha de madeira. Não foi com eles que deu início a “sua tarefa”; pegou a pista e os carrinhos com que vem, há mais de mês, brincando. Em paralelo, o terapeuta brincava e conversava com os bonecos, eventualmente, convidando Rafael a participar. Demorou, mas ele foi para lá e, por determinado tempo, produziu ações repetidas e novas com tais personagens. Até que reparou num pequenino cenário montado pelo terapeuta, especialmente para esse dia: um bonequinho sentado à mesa da cozinha. Rafael vai até ele, olha-o atentamente e, ato continenti, vira-o de costas para a mesa. O terapeuta lhe diz algo como: “Ah… ele não quer comer nada do que tá aí!”

Uma mera descrição da ação em cena e uma suposição da intenção do personagem no enredo tiveram efeito que não se pode acreditar: Rafael jantou melhor aquela noite na sua mesa de verdade.

Mais atenções, por parte de seu parceiro de cena clínica, poderão dar novos rumos para que os dias seguintes também o encontrem mais disposto com sua tarefa de se alimentar. Supomos que os sentimentos ou os desconfortos físicos envolvidos em sua recusa, ao seu tempo, podem ser trazidos para as ações desses personagens e, mesmo dele com o terapeuta. Aí é que a atenção se fará essencial para pôr, no discurso, alguns sentidos para gestos que buscam definição.

Por ora esta analista do discurso no espectro dos tratamentos do autismo nada mais tem a declarar.

Referências

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  • Guirado, M. (2016). Acolhimento em abrigos: direito à construção de narrativas da própria história. In J. O. Moreira, M. J. G. Salum, & R. T. Oliveira (Orgs.), Estatuto da Criança e do Adolescente: refletindo sobre sujeitos, direitos e responsabilidades (pp. 160-170). São Paulo: CFP.
  • Maingueneau, D. (1989). Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes.
  • Maingueneau, D., & Charaudeau, P. (2004). Dicionário de análise do discurso. São Paulo, SP: Contexto.
  • 1
    A Equipe Novo Olhar é formada por psicólogos e, há alguns anos, atende crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno do espectro autista ou outros “distúrbios do desenvolvimento”.
  • 2
    A dissertação de mestrado de Luisa Guirado que orientei e foi defendida no Instituto de Psicologia da USP, com arguições de uma banca de examinadores que são, ao mesmo tempo, expoentes no trabalho e na pesquisa com tratamentos de autismo, em ABA e psicanálise, foi a ocasião concreta para sustentar o que ora enuncio. Esse trabalho, com alguns acréscimos, foi também publicado em livro, em coautoria, sob o título: Tratamentos do autismo: a direção do olhar (Guirado & Guirado, 2014Guirado, L., & Guirado, M. (2014). Tratamentos do autismo: a direção do olhar. Saarbrücken, Deutschland: Novas Edições Acadêmicas.).
  • 3
    A dissertação de mestrado de Luisa Guirado apresenta vários contextos clínicos em que isto ocorre. São narrativas dos próprios terapeutas a respeito de seu cotidiano, que mostram esse movimento das vozes no discurso, das atribuições de lugar e de direito à escuta e à “palavra” ou ao “dizer”. Convidamos o leitor a consultar esse material analítico. Ver Guirado & Guirado (2014Guirado, L., & Guirado, M. (2014). Tratamentos do autismo: a direção do olhar. Saarbrücken, Deutschland: Novas Edições Acadêmicas.).
  • 4
    Não nos repetiremos, mas que fique marcado que é o recorte conceitual-metodológico da AID que nos permite fazer tais afirmações. Assim como as que seguem.
  • 5
    Freud não só o admite, como o situa na rota dos possíveis caminhos do cumprimento do programa do princípio do prazer, como a hipótese psicanalítica das razões e motivos da persistência humana na busca da felicidade. Em seu argumento, faz figurar a tendência do aparelho psíquico a reequilibrar as tensões a que é submetido pela civilização (Freud, 1930/1976gFreud, S. (1976g). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21. pp. 75-171). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1930)).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2017
  • Revisado
    08 Ago 2017
  • Aceito
    08 Ago 2017
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