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Derrida: da razão pura à razão marrana

Derrida: de la raison pure à la raison marrane

Derrida: desde la razón pura a la razón mezclada

Resumo:

O pensamento político de Derrida testemunha as consequências da racionalidade logocêntrica de dominação e das guerras que fizeram dos indivíduos seres sem domicílio fixo. Este ensaio tem como objetivo discutir alguns elementos do pensamento filosófico e político do autor, observando especialmente suas relações com os conceitos de identidade e territorialização. Por fim, o ensaio discute a tarefa da desconstrução e sua relação com a ética e a política da amizade.

Palavras-chave:
Derrida; identidade; territorialização

Résumé:

La pensée politique de Derrida témoin des conséquences de la rationalité logocentrique de domination et de guerres qui ont fait des individus êtres sans-abri. Cet essai a pour but de discuter de certains éléments de la pensée philosophique et politique de l'auteur, en notant en particulier ses relations avec les concepts d'identité et de territorialisation. Enfin, l'essai traite de la tâche de déconstruction et de sa relation avec l'éthique et la politique de l'amitié.

Mots-clés:
Derrida; identité; territorialisation

Resumen:

El pensamiento político de Derrida es testigo de las consecuencias de la racionalidad logocéntrica de dominación y de las guerras que que hicieron de los individuos seres sin domicilio fijo. Este ensayo tiene como objetivo discutir algunos elementos del pensamiento filosófico y político del autor, teniendo en cuenta especialmente sus relaciones con los conceptos de identidad y territorialización. Por último, el ensayo discute la tarea de deconstrucción y su relación con la ética y la política de la amistad.

Palabras clave:
Derrida; identidad; territorialización

Abstract:

Derrida´s political thought witnesses the consequences of the logocentric rationality of domination and of the wars that have made homeless beings out of individuals. This essay aims to discuss some elements of the philosophical and political thought of the author, noting especially its relations with the concepts of identity and territorialization. Finally, the essay discusses the task of deconstruction and its relation to the ethics and politics of friendship.

Keywords:
Derrida; identity; territorialization

O livro de Jacques Derrida, O monolinguismo do outro: ou a prótese de origem, evoca a França vencida pelas forças de Hitler e ocupada pelo exército nazista a partir de 1940, bem como a política racista adotada pelo governo de Vichy. Com as leis de Nuremberg de 1934, judeus e ciganos perderam a nacionalidade alemã, o mesmo ocorrendo na França. Francês judeu nascido na Argélia, criança, Derrida só conhece a língua oficial do Território de Ultramar. Contrariando a ideia corrente de a língua natal ser propriedade originária de que se é o depositário ontológico, o autor reflete sobre a natureza desse laço patrimonial e da retórica do pertencimento. Na França ocupada, privados de cidadania, os franceses judeus falam uma língua que se torna a do Outro, produzindo-se uma distância particular, distância não do mais afastado, mas do mais próximo. O exílio, o isolamento e a solidão revelam o que o conforto sedentário e a adequação a si mesmo dissimulam. Essa perda repentina da cidadania e da língua desconstrói a ilusão identitária, afetiva ou territorial:

Imagine, pense em alguém que cultivasse o francês. O que se denomina francês. E que o francês cultivaria. E que, cidadão francês ainda por cima, seria este sujeito, como se diz, de cultura francesa. Ora, um dia, este sujeito de cultura francesa viria dizer a você, em bom francês: "Eu só tenho uma língua e ela não é minha." (Derrida, 1996Derrida, J. (1996). Le monolinguisme de l'autre. Paris: Galilée., p. 13, tradução nossa).

Entre 1940 e 1943 a comunidade judaica da Argélia foi privada de cidadania e nacionalidade "sem poder recuperar nenhuma outra. Nenhuma". Eis assim uma comunidade - que falava somente o francês "colonizado", sem manter praticamente laços com a tradição judaica e com as línguas locais, como o árabe e o kabyle - em desintegração.

Exilado na própria terra, vivendo um êxodo na imobilidade, o perseguido vê-se excluído do campo jurídico, reduzido ao homo sacer e à "vida nua". O estrangeiro não é mais quem vem de fora, mas aquele que não está em seu lugar em nenhum lugar. Em estado de "vazio radical", Derrida pôde compreender que a transmissão de uma língua não é nem natural nem artificial, e desenvolve suas reflexões em plena vigência da linguística de Saussure, do estruturalismo de Lévi-Strauss e, mais recentemente, do linguistic turn e da "virada semiológica". Do arbitrário do signo, passando pela língua como sistema até sua formalização em modelos, trata-se do que Derrida denomina "logocentrismo", a subordinação da língua em sua différance à sua oralidade, segundo uma "metafísica da presença". A oralidade - a fala e a voz - são consideradas a "verdadeira racionalidade", sendo a escritura uma extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia auxiliar inessencial com respeito à razão. Saussure observa que "a crítica filológica ainda é deficiente em um aspecto - ela segue servilmente a linguagem escrita e negligencia a linguagem viva. O efeito recíproco da escrita sobre a fala é errado, tais equívocos são realmente patológicos" (Saussure, citado por Derrida, 1967Derrida, J. (1967). L'ècriture et la diff'rence. Paris: Seuil., p. 38).

Para Saussure, a escritura é "não-relacionada. . . ao sistema interno da linguagem" (Derrida, 1967Derrida, J. (1967). L'ècriture et la diff'rence. Paris: Seuil., p. 57). Derrida mostra, pela "desconstrução", pela différance e pelo "traço", como a linguística e o estruturalismo operam segundo a oposição binária entre um núcleo interno puro ou origem (da linguagem, da voz) e a mediação externa desse cerne ou origem que seria a escritura. Para Derrida, a própria possibilidade de suplementação da linguagem oral expõe uma carência essencial no coração mesmo desse sistema linguístico autossuficiente e "autônomo". Como, para Derrida, não há origem pura, a questão "quando começa a escritura?", o autor responde "sempre já". Postular uma origem da escritura é desconsiderar que a escritura é a estrutura de todos os sistemas complexos em todos os seus níveis. A escritura ocupa um campo mais amplo do que o do estruturalismo, pois é a própria condição de possibilidade da escritura empírica e da linguagem em geral1 1 A "virada linguística" e semiológica são as figuras finais dos processos de formalização do pensamento e seu ideário de cientificização do pensamento. (Derrida, 1967Derrida, J. (1967). L'ècriture et la diff'rence. Paris: Seuil., p. 227). Assim, toda língua materna não é "natural", mas procura de si e tarefa do pensamento, um estar a sós consigo mesmo e um extroverter-se em direção ao Outro com as aporias que isso implica. Derrida (1967)Derrida, J. (1967). L'ècriture et la diff'rence. Paris: Seuil. revisita Ulisses de Joyce, reavendo a questão: "Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas quem, nós? Somos primeiro Judeus ou primeiro gregos?"2 2 Ser grego ou judeu requer refletir sobre a origem e assim a questão remete à Filosofia e à Teologia. Para Derrida a "ciência primeira" é a Filosofia; para Benjamin, a Teologia. Judeu-grego, o Messias lhe é um operador essencial, enquanto que, para Derrida, um "grego-judeu", a "origem" é objeto da desconstrução. Filosofia e teologia assim concebidas tratam da natureza do logos e das línguas. Para Benjamin há uma língua originária que é, antes de mais nada, um "palácio ancestral" que não é um simples sistema de signos, nem instrumento de comunicação, mas um medium, um âmbito em que se dá toda a comunicação, em suas inscrições mais ou menos densas, e a passagem de uma a outra é a tradução: "para além da consciência de que o conhecimento filosófico é absolutamente certo e apriorístico, para além da consciência destes aspectos da filosofia que a identificam à matemática, Kant negligenciou completamente o fato que todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem, não em fórmulas e números" (Benjamin, 1981, p. 168). Kant descuidou da metafísica da linguagem, da "língua pura" (reine Sprache), que reenvia não apenas à língua adamítica que, na Bíblia, pré-existe à dispersão das línguas pós-Babel, pois a reine Sprache é correlata à reine Vernunft. Essa língua anterior às línguas empíricas e que faz delas línguas é a língua da verdade, a que torna possível a tradutibilidade, mas em um sentido específico: "que a tradutibilidade seja essencialmente própria a certas obras, isto não quer dizer que sua tradução seja essencial para elas mesmas, mas que uma significação determinada, inerente ao original, exprime-se em sua tradutibilidade. Que uma tradução, por melhor que seja, não significa nada para o original, é uma evidência" (Bernjamin, 1981, p. 170). Porque o essencial de uma obra jamais se transfere para a tradução, Benjamin enfatiza a esterilidade da tarefa quando traduzia. Em carta a Hofmannsthal, escreve: "é claro para mim que todo trabalho de tradução, a menos que seja empreendido para fins práticos bem evidentes e constrangedores (cujo modelo é a tradução da Bíblia) ou com a intenção de estudos estritamente filológicos, contém necessariamente um quê de absurdo". Daí, talvez, serem suas traduções de Baudelaire, formalistas e "escolares" (carta a Scholem de 13 de janeiro de 1924). (Essa formulação é feita por Eli Schonfeld (2005)Shonfeld, E. (2005). Hommage à Jacques Derrida. Cahiers d´Études Lévinasssiennes, (4), 130-132., referindo-se à relação entre Derrida e Lévinas). Eis a questão que é a da "origem" que Derrida desconstrói e, com ela, a ideia de Nação, compreendendo-a não a partir da política, mas a partir da língua, na diferença (différance) entre Nação política e Nação cultural, desconstrução que interroga a natureza da hierarquia política das Nações e do poder de que seu prestígio é portador. A desconstrução não é a passagem da estabilidade - garantida pela ideia de centro - para a "modernidade líquida", mas é a apreensão da flexibilidade e do descentramento. Eis por que a différance não se refere mais ao logos, mas a forças que não se estabilizam em uma identidade:

Aquilo que se deixa designar por différance não é simplesmente ativo nem simplesmente passivo, antes anunciando ou reclamando algo como a voz média, dizendo uma operação que não é uma operação, que não se deixa pensar como paixão nem como ação de um sujeito sobre um objeto, nem a partir de um agente nem de um paciente, nem a partir nem em vista de algum destes termos. (Derrida, 1991Derrida, J. (1991). Margens da filosofia (J. Torres Costa, trad.). Campinas, SP: Papirus. , p. 35).

A différance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung - deformação e deslocamento. Com efeito, em Moisés e o monoteísmo, Freud desenvolve a concepção de um Moisés egípcio, tanto por sua nacionalidade quanto por sua cultura, e que - tendo adotado a religião monoteísta de Akenaton e Athon e sendo essa fé impopular no Egito - procurando difundir suas crenças entre os judeus, introduziu entre eles o costume egípcio da circuncisão. Nesse sentido, para Freud, não se pode ser judeu sem de alguma forma encarnar o Egito ou um "espectro do Egito". Os judeus seriam neoegípcios que realizaram o egipcianismo com meios judaicos. Essa Entstellung (deformação, deslocamento e desfiguração) protege o egípcio deixando-o incógnito e, uma vez conquistado o objetivo, o chefe do judaísmo não poderia mais dizer a si mesmo se era egípcio ou judeu. Dado que seu projeto era mais importante que sua origem, torna-se hetero-egípcio, pois a "défiguration" diz respeito a uma incerta territorialização. Diferença e diferenciação, presentes no diferir, no adiamento, envolvem o tempo. É este o percurso derridiano em Fichus, discurso de recepção do prêmio Adorno em Frankfurt. Nele, Derrida refere-se aos significados da palavra fichu que, como substantivo, é o lenço feminino que cobre a cabeça, é echarpe, xale. Se adjetivo, "fichu" é o " dar-se mal", estar sem saída, ou então o verbo "se ficher" é "zombar de alguém", ou mesmo o sentido escatológico de fundo sexual. Além disso, o próprio Fichus é a narrativa derridiana deslocada de um sonho de 1939 de Walter Benjamin, quando foragido do nazismo e exilado em Paris. Derrida desenvolve uma segunda Traumdeutung do sonho de Benjamin, que será interpretado por Derrida, que não o sonhou. Não sendo do próprio sonhador, esse outro que não sonhou esse sonho e que o relata o faz em um limiar conceitual, ultrapassando as convenções do gênero "interpretação dos sonhos":

neste exato momento, dirigindo-me a vocês, de pé, de olhos abertos, prestes a agradecer-lhes do fundo do coração, com gestos unheimlich ou espectrais de um sonâmbulo, até mesmo de um assaltante vindo para açambarcar um prêmio que não lhe estava destinado, tudo se passa como se eu estivesse sonhando. Até mesmo confessar: em verdade, lhes digo, ao saudá-los com gratidão, penso estar sonhando. (Derrida, 2001aDerrida, J. (2001a). Fichus. Paris: Galilée., p. 11).

Sono e vigília, "rêve" e " reveil" associam-se em um "transe sonambúlico", na partilha incerta entre o sonho e seus restos diurnos, entre a "inércia" do sono e a atividade diurna, entre a consciência sonolenta e a vigília do inconsciente que vela e vigia todos os estados da consciência desperta. Transe sonambúlico dos insones, esses "estados segundos" da consciência trazem a marca de uma atividade passiva, como as fotografias das ruínas de Atenas, em que o fotógrafo se fotografa fotografando, em meio "ao dia e da noite do inconsciente", da arqueologia e da psicanálise que trazem à memória derridiana "Uma perturbação da Memória na Acrópole", de Freud. Perguntando-se em que pensava o fotógrafo ao

arquivar a velocidade da luz com a própria velocidade da luz: ele pensava na Atenas de todos os dias, na Atenas de hoje ou na Atenas eterna? Já estaria assombrado pela estratificação de todas as memórias de Atenas que ele teria desejado, nesse dia, hoje, sob este sol, trazer aos olhos? . . . . É o mesmo que perguntar o que ocorre quando, fotografado (se) fotografando, fotografado-fotografando, ativo e passivo ao mesmo tempo - que sempre seria essa experiência autoafetiva de passatividade. (Derrida, 1996Derrida, J. (1996). Athènes à l'ombre de l'acropole. Atenas: Oikos., p. 4, tradução nossa).

Para considerar esse estado e desenvolver suas análises, Derrida "refigura" palavras, desloca um substantivo ou um adjetivo para um verbo, mas um verbo em sua forma simultaneamente ativa e passiva: "eu sonambulo", diz Derrida. Com isso, o filósofo não somente transgride, desestabilizando-os, o estado de sono e o estado de vigília, como espectraliza - decompondo-os e fantasmando - estados de consciência, sonhando de olhos abertos e dormindo de pé.

Se Fichus é um sonho que Derrida herdou de um outro, a questão é saber se quem sonha o sonho é aquele que o sonha ou aquele que o interroga. Questão que se desvia para uma outra, a da diferença entre sonho e realidade. Nas palavras do filósofo:

"o sonhador pode falar de seu sonho sem acordar?" Possíveis respostas, Derrida as encontra no âmbito da filosofia, da literatura e seus afins. Na filosofia, o "imperativo racional da vigília", "do eu soberano", pois "o que é a filosofia para o filósofo? O acordar e o despertar". (Derrida, 2001aDerrida, J. (2001a). Fichus. Paris: Galilée., p. 13).

Mas "a resposta do cineasta, do dramaturgo, do escritor, do músico, do pintor e mesmo do psicanalista" (p. 18) poder ser outra: "não responderiam não, mas sim, talvez, às vezes. . . . Há pois uma lucidez, uma Aufklãrung do discurso sonhador sobre o sonho. . . . Hesitando entre o 'não' e o 'sim, às vezes, talvez', [acolhe-se] os dois." (p. 18)3 3 Benjamin refere-se a Adorno e aos "sonhos" que são danificados, mutilados, prejudicados pelo despertar, como se o sonho "fosse mais vigilante que a vigília, o inconsciente mais reflexivo que a consciência, a literatura ou as artes mais filosóficas, mais críticas, em todo caso, que a filosofia" (Derrida, 2001a, p. 18).

O sonho de Benjamin interrogado por Derrida é a hermenêutica de um sonho que é de um outro, como a língua que não é a sua. E entre os sonhos e os sonhadores, como entre as línguas, estabelecem-se alianças, senhas, passagens e "traços". Essa não-coincidência de uma coisa consigo mesma não significa que ela está fora de si, pois ela é "uma negatividade sem negação", inscrições sem espessura, expressões de um "entre-dois", aparição e desaparecimento em um intervalo incerto entre a ausência de uma presença e a presença de uma ausência. Por isso, Derrida indica os "espectros", espectros da desconstrução, da "fantomologia" (hantologie). "Je suis hanté" é ser assediado por algo do passado, por rastros obsessivos cuja arquiescritura são as ambivalências judaico-egípcias de Moisés.

A "fantasmologia" diz respeito à não-identidade de toda identidade, na qual não há o retorno a uma especificidade anterior, mesmo que desejada, pois no mais profundo do que é específico grava-se a marca indelével do Outro, por mais esgarçada que esteja: "o espectro", escreve Derrida,

é uma incorporação paradoxal, o tornar-se-corpo, uma certa forma fenomenal e carnal do espírito: nem alma nem corpo, mas também um e outro. Pois a carne e a fenomenalidade, eis o que dá ao espírito sua aparição espectral, mas que desaparece já na aparição, na própria vinda do fantasma ou retorno do espectro. Há algo do desaparecido na própria desaparição, como reaparição do desaparecido. O espírito, o espectro, não é a coisa mesma . . ., mas [o que] têm em comum, não se sabe o que é, o que é presentemente. É alguma coisa que não se sabe, justamente, e não se sabe se, precisamente, isto é, se isto responde por um nome e corresponde a uma essência. Não se o sabe: não por ignorância, mas porque este não-objeto, este presente não presente, este ser-aí de um ausente ou de um desaparecido não procede mais do saber. (Derrida, 1993Derrida, J. (1993). Spectres de Marx. Paris: Gallilée., pp. 25-26).

Quando Derrida afirma ter uma única língua e que ela não é a sua, mas de um Outro, dá sequência, deslocando-a, à interpretação de Freud sobre a questão da identidade e da origem. Nessa refiguração da língua encontra-se o sentimento "perturbante", a situação próxima à do pária, no paradoxo da impossível inclusão e da impossível exclusão. Derrida elabora a condição daquele que está à margem, sem uma referência a uma comunidade política. Na sequência da Primeira Guerra Mundial, a queda do Império Russo, do Império Austro-Húngaro e do Império Otomano, bem como os reordenamentos políticos do Leste europeu, as leis raciais, sob o nazismo e a guerra civil espanhola, disseminaram na Europa uma população de refugiados como fenômeno de massa contínuo. O apátrida e o refugiado, embora comportem diferenças com respeito a pertencimentos legais e simbólicos, dizem respeito, nos Estados industrializados, a "residentes não-estáveis" e não-cidadãos, que não podem nem ser naturalizados nem repatriados. Nesse sentido, a desconstrução derridiana do sonho e do fichu detecta sua heterogeneidade, tornando manifesta a fragilidade e a vulnerabilidade de Benjamin (e de Adorno) em meio à ascensão do nazismo e, simultaneamente, a do animal, no que este reconduz à animalidade do homem, que o expõe à condição de "vítima sacrificial". A "interpretação dos sonhos" de Derrida vem a ser um "Para além de Para o além do princípio do prazer", uma outra maneira de relacionar-se com a crueldade, com a Soberania do Estado e com a morte, cuja hermenêutica ultrapassa a "pulsão de morte":

afirmarei que há - ou deve haver - uma referência ao incondicional, um incondicional sem soberania e, assim, sem crueldade [como uma afirmação originária] a partir da qual e, portanto, para além da qual as pulsões de morte e de poder, a crueldade e a soberania se determinam como um 'além' dos princípios. . . . Esta afirmação originária do além do além se dá a partir de inúmeras figuras do incondicional impossível . . .: a hospitalidade, o dom, o perdão. (Derrida, 2000Derrida, J. (2000). États d´âme de la psychanalyse. Paris: Galilée., pp. 82-83).

A desconstrução derridiana busca o que na marginalidade é marginal e não o é, suscitando a aporia da proximidade na distância e da distância na proximidade. E Derrida o faz pela personagem interposta de Espinosa e Flaubert. Em Une idée de Flaubert, Derrida trata das relações do romancista com a filosofia e sua "hiperbólica admiração" por Espinosa: "Quel homme! quel cerveau! Quelle science et quel esprit!" (Derrida, 1987Derrida, J. (1987). Psyché: invention de l´autre. Paris: Galilée., p. 310). Se Flaubert dirige-se à potência crítica do Tratado teológico-político - em que Espinosa discorre sobre Moisés e o monoteísmo, a profecia e a eleição do povo -, evoca, também, a Ética e a "ideia da ideia", a reflexão:

É exatamente da mesma maneira que se ordenam e se concatenam os pensamentos e as ideias das coisas na mente que também se ordenam e se concatenam as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas no corpo. . . . À medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela tem maior poder sobre os seus afetos, ou seja, deles padece menos. (Espinosa, 2013Espinosa, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., pp. 373-375).

Fazendo da razão um afeto, rompendo com a ideia do perfeito e do imperfeito e da hierarquia que implicam, refletindo sobre a potência de ser, agir e pensar que se encontra na paixão e na ação, Espinosa se diferencia do logos metafísico. Ao considerar a "ideia" espinosana - nem platônica nem cartesiana (tampouco hegeliana ou marxista) - Derrida escreve:

a ideia de Espinosa . . . não dá lugar a nenhuma representação, mimética ou não . . . e Espinosa se opõe à tradição, principalmente à ideia cartesiana, o ato ou a afirmação [opondo-se] à cópia reprodutiva, ou até mesmo a seu modelo (Derrida, 1987Derrida, J. (1987). Des Tours de Babe. In J. Derrida, Psyché: l'invention de l'autre. (pp. 320-370). Paris: Galilée., pp. 323-324).

Sem muitas referências a Espinosa, Derrida não obstante encontra-se "impregnado" de sua presença, como Flaubert: "Embora Flaubert, admirador de Espinosa, não se refira nunca à ideia espinosana enquanto tal", o próprio silêncio faz pensar que a força afirmativa dessa ideia confundiu-se, de alguma maneira, "com o ato de sua escritura, com a literatura, com sua própria obra" (Derrida, 1987Derrida, J. (1987). Psyché: invention de l´autre. Paris: Galilée., pp. 323-324).

Com isso, Derrida indica sua aproximação da filosofia de Espinosa, o filósofo crítico do "logos" dualista e mimético, o "filósofo da vida". Porque o conceito espiniosano de conatus é o esforço de autopreservação e de crescimento de sua vitalidade, dele se diferencia Freud que opõe drasticamente a "pulsão de morte" ao conatus. Em Espinosa, trata-se da felicidade que nasce da alegria e da companhia, da amizade:

como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que cada um ame a si próprio; que busque o que lhe seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente, conduza o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que cada um se esforce por conservar, tanto quanto está a seu alcance, o seu ser. . . . É totalmente impossível que não precisemos de nada que nos seja exterior para conservar o nosso ser, e que vivamos de maneira que não tenhamos nenhuma troca com as coisas que estão fora de nós. . . . Dentre elas, não se pode cogitar nenhuma outra melhor do que aquelas que estão inteiramente de acordo com nossa natureza. . . . Disso se segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução da razão o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os outros e são, por isso, justos, confiáveis e leais. (Espinosa, 2013Espinosa, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., pp. 287-289).

Do mesmo modo que a liberdade de Espinosa é a consciência da necessidade e, assim, é o devir ativo de uma paixão transformando-se em ação, em Derrida há no conceito de différance uma "conciliação", a paixão não é só passiva, a diferença não é mais referida a um logos, porque diferença e diferenciação de forças não poderiam ser neutralizadas em uma identidade ou síntese. Se Espinosa critica a noção de "povo eleito" e de "identidade judaica" que, como toda "eleição" e identidade fixa, engendram, ao excluir o outro, a própria exclusão, Derrida reflete sobre a colônia e a metrópole para além do binômio centro-periferia, judeu-gentio, argelino-francês.

Que se pense em Espinosa na Holanda e Derrida na Argélia, no marrano seiscentista e no "apátrida" sob as leis de Vichy (Agamben, 1994Agamben, G. (1994). Au dela dês droits de l'homme:exile t citoyenneté europeenne. Revue Tumultes, (5), 123-131.), na différance entre Derrida e Espinosa. Na proposição 17 do Livro III da Ética, Espinosa define a "flutuação da alma" como a "estrutura do Espírito que nasce de dois afetos contrários", base da ambivalência de quem se vê dilacerado entre dois polos contraditórios, entre um desejo de pertencimento (ou de repertencimento) ao povo judeu enquanto povo eleito e, por outro, a reticência, o recuo crítico com respeito ao retorno à comunidade judaica de Amsterdã, quer dizer, à instituição do judaísmo rabínico. Abensour reflete sobre a condição do judeu enquanto "cristão novo" e como "judeu novo". Para compreender o marrano, Abensour considera-o como duplo em si mesmo.

De início, o marrano foi o "cristão novo" sob as leis da conversão forçada na Espanha católica de 1492 e, depois da imigração para a Holanda, com a liberdade de culto, pôde reaver sua identidade de judeu e de praticante da lei mosaica, tornando-se, os marranos então, "judeus-novos". Sabe-se com Weber que o povo judeu, até certo ponto, poderia ser definido como "povo pária", uma comunidade-hóspede em um meio estrangeiro do qual se diferencia formalmente, ritualmente e efetivamente. Sob os constrangimentos de uma conversão forçada, a condição marrana é a de viver em dois planos simultâneos, na vida pública, externamente, como novos cristãos, e na vida privada e na comunidade judaica continuando a recusar a lei de Cristo. Nesse sentido, encontra-se nos marranos um "cripto-judaísmo", cedo "deformado", "deslocado", "desfigurado", "reconfigurado":

Uma outra dualidade surgia em suas vidas: a da essência e da existência, da realidade da vida e do que deveria ser seu sentido profundo. Assim, o marrano judaizante não vivia apenas a alienação de seu meio católico mas também uma íntima, em seu próprio ser, que ele não podia expor à luz do dia; assim sua vida e sua essência permaneciam perpetuamente opostas. (Yovel, 1991Yovel, Y. (1991). Spinoza et autres hérétiques. Paris: Seuil., p. 42).

Os marranos novamente judeus não reencontraram uma identidade plena, que pudesse ultrapassar a divisão interna vivida antes por seus antepassados. Se a oscilação do cristão novo se dava entre uma existência pública cristã e uma clandestina mosaica, a do judeu novo é outra, pois flutua entre seu novo pertencimento ao povo eleito e uma irreprimível distância crítica face a um judaísmo que agora não é mais imaginário e fantasmado, mas real. Essa relutância e essa resistência produziram-se na interiorização do cristianismo e da influência do epicurismo com respeito à ideia de religião revelada, o epicurismo aplicado agora ao judaísmo. Assim, a luta contra a Inquisição é substituída pelo conflito com as autoridades rabínicas do "judaísmo real":

o conteúdo do judaísmo desaparecera do horizonte dos marranos e não poderia ser de outra forma: seus laços com o judaísmo eram suficientemente fortes para lhes ser difícil viver ingenuamente no interior do mundo cristão, mas fracos demais para tornar possível a vida no interior do mundo judaico. (Strauss, 1996, p. 34).

Essa tensão entre duas religiões - o judaísmo e o cristianismo - produz dúvidas, idas e vindas, afastamento cético, mas também interferências, hibridizações, "duplas sinceridades" (Wachtel, 2001Wachtel, N. (2001). La foi du Souvenir. Paris: Seuil., p. 15). A relação com o Outro se realiza como "traço", como "rastro" do Outro em mim, como presentificação "espectral" ou "conciliação", como nas línguas. Nas Margens da Filosofia trata-se da différance que não é um processo de "propriação" em nenhum sentido da palavra, pois, ao contrário da "propriação" heideggeriana (Heidegger, 1968Heidegger, M. (1968). Identidade e diferença. In M. Heidegger, Questions I (A. Préau, trad., pp. 267-270). Paris: Gallimard.), não há "propriação" que não implique em si mesma a dimensão mais originária ainda da "despropriação". Por isso, para Derrida, a différance tem os sentidos de diferir, de ser a raiz comum das oposições, de produzir oposições e desdobramentos da diferença (Derrida, 1972Derrida, J. (1972). Positions. Paris: Minuit., p. 17). Assim também nas línguas.

No judaísmo, a língua do paraíso, a língua originária anterior a Babel, era o hebraico que, como tal, era uma e una. A multiplicidade das línguas foi, para Benjamin, sua queda; já para Derrida, a língua anterior a Babel era já múltipla em si mesma. Diferenças que comunicam diferenças, a língua da origem é Pentecostes avant-la-lettre, em que todos falavam línguas diversas, mas em que todos se entendiam em uma espécie de "tradução simultânea".

Derrida, "grego-judeu", aproxima-se do mundo grego. Se, para este, a língua da Idade de Ouro era o grego, ela o era por razões diversas do hebraico, pois Atenas procurava na origem a différance, sua potência alucinatória e surreal, a diversidade dos sentidos, enquanto Jerusalém encontrava na língua do Paraíso uma origem unitária e essencial. Do heteros ao allii, a língua, para Derrida, é mista, "contaminada", híbrida. Se o "heteros" é o outro do "Um", em si mesmo inalterado, "allii" são os outros no Mesmo. Se Babel é condenação divina e perda da "língua universal", agora disponível à tradução, esta dá início à desconstrução da torre como língua universal e à violência: "[Deus] dispersa a filiação genealógica. Ele rompe a linhagem. Impõe e interdita, simultaneamente, a tradução" (Derrida, 1998, p. 207). Necessária e impossível, a tradução diz impropriamente o próprio, Babel significando, justamente, "confusão".

Para Derrida, o "marrano" sem melancolia, o desenraizamento originário encontra-se no interior das próprias línguas,4 4 Quer se trate de palavras antes inexistentes e que Derrida acrescenta à língua literária e filosófica, o filósofo também desloca e desvia seus significados, fazendo-as liberar novas significações, como a différance, o Pharmakon, chaîne, marca, re-marca, trace, dissémination, supplement, greffe, ex-orbitant. as palavras contendo, como pharmakon, pelo menos duas significações, solidária uma da outra ou das outras, não admitindo qualquer divisão interna ou externa, uma vez que só se conhece a própria língua se nos relacionamos com ela como língua estrangeira:

se amo a língua francesa como amo minha própria vida, às vezes mais do que a ama um francês de origem, é porque a amo como um estrangeiro que foi bem acolhido e se apropriou dela como se para ele fosse a única possível. . . . Todos os franceses da Argélia compartilham isto comigo, sejam ou não judeus. . . Tenho apenas uma língua, mas, ao mesmo tempo, de maneira singular e exemplar, esta língua não me pertence. . . . Uma história singular exacerbou em mim esta lei universal: uma língua não pertence. Não pertence por essência. (Derrida, 2006Derrida, J. (2006). Aprender por fin a vivir (N. Bersihand, trad.). Buenos Aires: Amorrotu., pp. 35-36).

A ideia de "eleição" e "origem" de uma língua acarretam os particularismos da "eleição-exclusão". Nesse sentido, não há línguas particulares que se hierarquizam entre si, nenhuma língua eleita por natureza, em sentido próximo ao que Espinosa, no capítulo "Sobre a vocação dos hebreus. Ou se o dom de profecia lhes é próprio", de seu Tratado teológico político, questionou na ideia de eleição do povo judeu, segundo a qual existiriam duas leis naturais diversas, uma para os judeus, outra para os gentios, pois "a verdadeira felicidade e a verdadeira beatitude consistem para cada um apenas no gozo do bem e não nesta vanglória de desfrutar sozinho de um bem, os outros sendo excluídos" (Espinosa, 1999, p. 50). Política da amizade, subjaz às reflexões de Espinosa e Derrida a consideração do que constitui uma sociedade e os laços entre os homens, devendo-se observar o que há em comum e não o que os separa: "o bem supremo daqueles que procuram a virtude é comum a todos, e todos podem igualmente desfrutar dele" (Espinosa, 2013Espinosa, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., pp. 401, 403). Nesse sentido, a eleição tem por efeito produzir distância e fratura entre aqueles que a eleição congrega e os que não são chamados, a eleição expressando um "orgulho coletivo":

vemos assim que facilmente acontece que o homem faz de si mesmo e da coisa amada uma estimativa acima da justa e, contrariamente, de quem odeia, abaixo da justa. Essa imaginação, quando diz respeito ao homem que faz de si mesmo uma estimativa acima da justa, chama-se soberba e trata-se de uma espécie de delírio. (Espinosa, 2013Espinosa, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 193).

Essa ilusão de superioridade arruína a convivência e a felicidade, sendo contrária à beatitude. A felicidade não seria menor "se Deus houvesse chamado todos os homens para a salvação da mesma maneira". Por isso, quando Moisés dá a Lei aos judeus, ele os instrui "como os pais têm o costume de ensinar as crianças desprovidas de bom-senso". Eleição e origem não atestam a sabedoria de um povo, são sintomas de puerilidade, como a xenofobia, os nacionalismos, os chauvinismos. A busca do "universal" espinosano do conatus e seus devires, a différance de Derrida e suas semantizações desfazem a existência condenada ao acosmismo do pária (Arendt, 2000Arendt, H. (2000). Origens do totalitarismo (R. Raposo, trad.). São Paulo, SP: Cia das Letras., p. 562), abrindo-se para o acolhimento do Outro, para a amizade e a hospitalidade. Assim, se "eu só tenho uma língua e ela não é a minha", é por ser ela, simultaneamente minha e não minha, como na cidade não há dualismo entre o residente e o estrangeiro. Um é um e outro, sempre hóspede e estrangeiro.

Derrida inicia seu Hospitalidade, indagando: "a questão do estrangeiro não seria uma questão de "fora", vinda de um "fora"? A "universalidade" não é uma ideia abstrata porque ela não se submete aos critérios do logos? Por isso, ao analisar o pensamento de Lévinas, Derrida destaca um sentido peculiar da " eleição" de Israel como estranhamento absoluto e exemplar de um povo sem terra de origem. Entre a Grécia e Jerusalém, entre Ulisses e Abraão, a diferença é a que existe entre nostos e êxodos duas formas de viagem e de partida. Se a primeira vive à luz do retorno a Ítaca, a segunda aspira uma pátria onde não se nasceu e cada passo dado em sua direção não aproxima uma terra, não é uma casa que já pertencia: "a afirmação da verdade nômade", observa Blanchot, "distingue o judaísmo do paganismo. . . . O nomadismo é a resposta a uma relação para a qual a posse não basta. Este movimento nômade afirma-se não como privação perene de uma sede, mas como um modo autêntico do habitar" (Blanchot, 1961Blanchot, M. (1961). L'enttretien infini. Paris: Gallimard., p. 170).

Assim, a questão do que vem de fora e o que é de dentro é sempre algo que provém do estrangeiro, o portador da questão. Com efeito, no Sofista de Platão, é o estrangeiro que

propondo a intolerável questão, a questão parricida, contesta a tese parmenidiana, põe em questão o logos de nosso pai Parmênides. . . . O estrangeiro abala o ameaçador dogmatismo do logos paterno: o ser que é, o não-ser que não é. Como se o estrangeiro devesse começar contestando a autoridade do chefe, do pai, do senhor, da família, do "dono da casa", do poder de hospitalidade. (Derrida, 1997bDerrida, J. (1997b). De l'hospitalité. Paris: Galilée., p. 165).

Nesse horizonte, o estrangeiro é o "terceiro", alguém que é sempre e apenas um intruso, aquele que "chegou primeiro", que "nos priva da segurança e faz advir o provir". Esse "convidado" ou "visitante inesperado" vem do futuro, contrariando a noção segundo a qual o que nos acontece é determinado em relação ao passado: "acontecimento inesperado e imprevisível de quem chega, em qualquer momento, adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, sem ter sido convidado, sem avisar, sem horizonte de espera" (Derrida, 2001bDerrida, J. (2001b). Lê príncipe d´hospitalité. In J. Derrida, Papier machine (pp. 273-277). Paris: Galilée., p. 296).

Se uma língua é nossa, ela o é como uma casa, "só possuída porque é desde sempre lugar de hospitalidade" para seu proprietário. Nesse sentido, o espaço que hospeda é sempre de um outro e para outros, não havendo um retorno a uma propriedade originária. A hospitalidade precede a propriedade:

o anfitrião que acolhe e que acredita ser o proprietário do lugar é, em verdade, hóspede recebido em sua própria casa. Ele recebe a hospitalidade que oferece na própria casa, recebe-a da própria casa que no fundo não lhe pertence. . . . Quem convida é convidado do seu convidado. Aquele que recebe é recebido, recebe [a hospitalidade] no lugar que considera ser sua própria casa e assim a própria terra. (Derrida, 1997bDerrida, J. (1997b). De l'hospitalité. Paris: Galilée., pp. 103-104).

Nessa proximidade, dá-se o enigma dos contrários, como ospis e hostis, a hospitalidade e a hostilidade, a proximidade na distância e a distância na proximidade. Desconstruindo philia e neikos, amor e ódio, amigo e inimigo, Derrida descontrói a dualidade, toda a oposição que prematuramente certifica a oposição, para encontrar o "exceto", a "excedência" dessa oposição, o "acordo", que é, para Derrida, a paz. A recusa da partilha abrupta, de procedência metafísica, não convém a épocas que se encontram sob uma lei de decisão imediata, sempre violenta, lei do aqui e agora: "a decisão passiva", escreve Derrida,

condição do acontecimento, é sempre em mim, estruturalmente, um ato de decisão dilacerada como decisão de um outro. Do outro absoluto em mim, do outro como absoluto que decide por mim em mim. Absolutamente singular em princípio, segundo seu conceito mais tradicional, a decisão não é apenas e sempre excepcional, ela faz uma exceção de mim. Em mim. Eu decido, eu me decido e soberanamente. Isto quer dizer: o outro de mim, o outro eu como outro e outro de mim, faz ou faz exceção do mesmo. Norma suposta de toda decisão, esta exceção normal não exonera de nenhuma responsabilidade. Responsável por mim diante do outro, sou primeiramente e também responsável pelo outro diante do outro. (Derrida, 1994Derrida, J. (1994). Politiques de l´amitié. Paris: Galilée., pp. 87-88).

Todas as vezes que se toma uma decisão, sente-se a injustiça cometida contra a opção desconsiderada, fechando-se uma armadilha ao nosso redor: "quando se elege alguma coisa", escreve Peter Sloterdijk, "expõe-se ao risco de identificação, e evitá-la sempre foi a inquietação imperiosa de Derrida. Seria preciso considerar a desconstrução, antes de tudo, como um procedimento destinado a defender a inteligência contra as consequências da unilateralização" (Sloterdijk, 2007Sloterdijk, P. (2007). Derrida, um egípcio: el problema de la pirâmide judia (H. Pons, trad.). Buenos Aires: Amorrortu., p. 55). Eis por que Derrida inverte o enunciado atribuído a Aristóteles - "ó, meus amigos, não há nenhum amigo" - seguindo o paradoxo de Nietzsche - "Inimigos, não há inimigos". E isso no sentido em que Montaigne anotou: "ame-o - dizia Chilon - como se você devesse um dia odiá-lo; odeie-o como se devesse amá-lo". Ou, nos versos de William Blake citados por Derrida: "tua amizade muitas vezes me feriu o coração / sê meu inimigo por amor à amizade". Formulação que deve ser oposta àquela de Nietzsche quando escreve: "quem vive da luta contra um inimigo tem interesse que ele continue vivo" (Nietzsche, 2000Nietzsche, F. (2000). A vida do inimigo. In F. Nietzsche, Humano demasiado humano (P. C. Souza, trad.). São Paulo, SP: Cia das Letras., p. 176). Derrida compreende essa afirmação nos termos de uma "amizade superior", no oximoro: o "inimigo fiel", Ética hiperbólica aqui, como a do dom5 5 "O dom é inteiramente estranho ao horizonte da economia, da ontologia, do conhecimento, dos enunciados constatativos e julgamentos teóricos." (Derrida, 1992, p. 9) que, no limite de sua impossibilidade, não pode se saber doação, dom que não opera no registro da retribuição, que se esquece no próprio ato de dar, como pura gratuidade e graça. Como a hospitalidade, o acolhimento incondicional do visitante, do "suplicante". Como Édipo que, deposto, cego e envelhecido, chega a Colono, e é recebido pelo rei, Édipo que não é mais Édipo, mas a quem se diz como a todo visitante inesperado e suplicante: "Entre, quem quer que sejas e qualquer que seja teu nome, tua língua, teu sexo, tua espécie, que sejas humano, animal ou divino (. . . ).

Nessa indecidibilidade das fronteiras, da delimitação de um território estável, a condição de Édipo é exemplar: para oferecer hospitalidade é preciso partir da existência certa de uma morada ou então apenas a partir do deslocamento do sem-abrigo, do sem casa que pode se abrir a autenticidade da hospitalidade?" (Derrida, 1997bDerrida, J. (1997b). De l'hospitalité. Paris: Galilée., p. 56).

Apenas aquele que perdeu uma morada, que fez a experiência da "desolação", da perda de todo pertencimento, pode oferecer a hospitalidade. Esta hospitalidade sem reivindicações é o sentido da hospitalidade que não faz qualquer referência à soberania: "para uma tal experiência [da hospitalidade], que se deixa atravessar por aquilo que chega e por quem chega, por aquilo que vem e por quem chega, do outro por vir, uma certa renúncia incondicional à soberania é solicitada a priori" (Derrida, 2003Derrida, J. (2003).Vouous. Paris: Galilée., pp. 12-13). Essa hospitalidade radical, absoluta, é, simultaneamente, inviável e necessária, permite ao outro ser outro, porque acolhe o apelo daquele que está "sem mundo", aquele que não fala nossa língua. Deve ser recebido, não na lógica da razão de Estado e dos direitos humanos universais, não por ser um homem como nós, mas porque ele traz consigo aquilo que nele não se reduz ao gênero e ao cálculo do necessário, tampouco à lógica da doação e da gratidão: "o convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento passam. . . . pelo dirigir-se ao outro". Mas, "o que sempre está à espreita é o dilema entre a hospitalidade incondicional que vai além do direito, do dever e mesmo da política, por um lado e, de outro, a hospitalidade circunscrita pelo direito e pelo dever." (Derrida, 1997bDerrida, J. (1997b). De l'hospitalité. Paris: Galilée., p. 119).

A hospitalidade não pede ao outro traduzir-se em nossas tradições e nossa língua. Assim Derrida pode então dizer " eu só tenho uma língua e ela não é a minha", e ter iniciado seu discurso em Frankfurt com as palavras: "eu peço desculpas, estou prestes a saudá-los em minha língua. A língua será de resto meu tema: a língua do outro, a língua do hóspede, a língua do estrangeiro, até mesmo do imigrante, do emigrado ou do exilado" (Derrida, 2001bDerrida, J. (2001b). Lê príncipe d´hospitalité. In J. Derrida, Papier machine (pp. 273-277). Paris: Galilée., p. 9). Na periferia do Império, judeu e sem cidadania, na condição de estrangeiro sem pátria, Derrida se vê privado da língua que não lhe pertence mais. Ao tê-la como língua estrangeira, pôde dizer amá-la e conhecê-la, pois só se conhece a própria língua quando a recebemos como língua estrangeira.

Discursando em francês, na língua em que encontrou hospitalidade, nessa língua do Outro que é seu ethos, Derrida reconhece um "dom sem restituição, sem apropriação e sem jurisdição". Ética hiperbólica, para além do "para além", para além da jurisdição e do direito, é a política da amizade.

Referências

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  • 1
    A "virada linguística" e semiológica são as figuras finais dos processos de formalização do pensamento e seu ideário de cientificização do pensamento.
  • 2
    Ser grego ou judeu requer refletir sobre a origem e assim a questão remete à Filosofia e à Teologia. Para Derrida a "ciência primeira" é a Filosofia; para Benjamin, a Teologia. Judeu-grego, o Messias lhe é um operador essencial, enquanto que, para Derrida, um "grego-judeu", a "origem" é objeto da desconstrução. Filosofia e teologia assim concebidas tratam da natureza do logos e das línguas. Para Benjamin há uma língua originária que é, antes de mais nada, um "palácio ancestral" que não é um simples sistema de signos, nem instrumento de comunicação, mas um medium, um âmbito em que se dá toda a comunicação, em suas inscrições mais ou menos densas, e a passagem de uma a outra é a tradução: "para além da consciência de que o conhecimento filosófico é absolutamente certo e apriorístico, para além da consciência destes aspectos da filosofia que a identificam à matemática, Kant negligenciou completamente o fato que todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem, não em fórmulas e números" (Benjamin, 1981Benjamin, W. (1981). Über programm der kommenden Philosophie"! In W. Benjamin, Gesammelte schriften (band II) (pp. 160-180). Frankfurt: Suhrkamp., p. 168). Kant descuidou da metafísica da linguagem, da "língua pura" (reine Sprache), que reenvia não apenas à língua adamítica que, na Bíblia, pré-existe à dispersão das línguas pós-Babel, pois a reine Sprache é correlata à reine Vernunft. Essa língua anterior às línguas empíricas e que faz delas línguas é a língua da verdade, a que torna possível a tradutibilidade, mas em um sentido específico: "que a tradutibilidade seja essencialmente própria a certas obras, isto não quer dizer que sua tradução seja essencial para elas mesmas, mas que uma significação determinada, inerente ao original, exprime-se em sua tradutibilidade. Que uma tradução, por melhor que seja, não significa nada para o original, é uma evidência" (Bernjamin, 1981, p. 170). Porque o essencial de uma obra jamais se transfere para a tradução, Benjamin enfatiza a esterilidade da tarefa quando traduzia. Em carta a Hofmannsthal, escreve: "é claro para mim que todo trabalho de tradução, a menos que seja empreendido para fins práticos bem evidentes e constrangedores (cujo modelo é a tradução da Bíblia) ou com a intenção de estudos estritamente filológicos, contém necessariamente um quê de absurdo". Daí, talvez, serem suas traduções de Baudelaire, formalistas e "escolares" (carta a Scholem de 13 de janeiro de 1924).
  • 3
    Benjamin refere-se a Adorno e aos "sonhos" que são danificados, mutilados, prejudicados pelo despertar, como se o sonho "fosse mais vigilante que a vigília, o inconsciente mais reflexivo que a consciência, a literatura ou as artes mais filosóficas, mais críticas, em todo caso, que a filosofia" (Derrida, 2001a, p. 18).
  • 4
    Quer se trate de palavras antes inexistentes e que Derrida acrescenta à língua literária e filosófica, o filósofo também desloca e desvia seus significados, fazendo-as liberar novas significações, como a différance, o Pharmakon, chaîne, marca, re-marca, trace, dissémination, supplement, greffe, ex-orbitant.
  • 5
    "O dom é inteiramente estranho ao horizonte da economia, da ontologia, do conhecimento, dos enunciados constatativos e julgamentos teóricos." (Derrida, 1992, p. 9)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2016
  • Revisado
    03 Jun 2016
  • Aceito
    30 Jun 2016
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