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Re-existências: notas de uma antropóloga negra em meio a concursos públicos para o cargo de magistério superior

Re-existences: notes from a black female anthropologist in the middle of public tenders aplying for positons of higher education teaching

RESUMO

Graças às políticas de ações afirmativas com reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras vivemos atualmente um período de visibilidade de negros/as, indígenas, pessoas de baixa renda, quilombolas, populações LGBTT+, dentre outras. Essas presenças diversas no contexto universitário nos convidam ao exercício reflexivo sobre o ser/fazer universidade. Ao concluir nossas formações em nível superior, nos encontramos nas lutas cotidianas de buscar oportunidades profissionais que abarquem esses/as sujeitos/as em um sistema capital que continua estruturado por várias perspectivas opressivas, como o racismo e o sexismo. Assim, a partir das propostas teóricas de Alberto Guerreiro Ramos sobre a relação entre o negro-tema e o negro-vida e do amor como prática de liberdade de bell hooks, este artigo pretende tecer algumas grafias de re-existências diante da participação de uma antropóloga negra em concursos públicos para o cargo de magistério superior em universidade pública do sul do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Re-existências; concursos; negras

ABSTRACT

Thanks to affirmative action policies which guarantee vacancies in Brazilian public universities, we are currently experiencing a period of visibility of black, indigenous, low income, quilombolas, and LGBTTQIA populations, among others. These diverse presences within the university context invite us to put into practice the reflexive exercise of being/doing university. Once we finish our higher-level studies, we find ourselves in a daily struggle to seek professional opportunities that embrace these specific subjects, in a capital system that continues to be structured by various oppressive perspectives such racism and sexism. The article is based on the theoretical assumptions of Alberto Guerreiro Ramos on the relationship between the black-theme and the black-life, and also on bell hooks notion of love as a practice of freedom from bell hooks. It aims to comment on some lines of re-existences in face of the participation of a black female anthropologist in public tenders applying for positions of higher education teaching at a public university in the south of Brazil.

KEYWORDS:
Re-existences; public tenders; black people

INTRODUÇÃO

“Estuda pra ser alguém na vida!”. Eu ouvi essa frase durante toda a minha vida e segui ela à risca. Nos anos do ensino fundamental e médio de uma escola da rede pública de ensino sempre fui aprovada sem passar por nenhuma recuperação. Quando prestei vestibular para Jornalismo, graduação super concorrida da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) nos anos 2000, meus pais tiveram que me matricular em cursos pré-vestibulares particulares em busca de ter mais chance, e na quarta tentativa, ingressei na UFSC sendo a única estudante negra de cerca de 200 estudantes de todas as fases que existiam nesta graduação.

Estar nesse lugar de poder que é a universidade, me possibilitou, além do conhecimento proveniente de um curso superior, olhar para minha própria constituição como sujeito, bem como da própria universidade como instituição. Em sua obra “Da Relação com o Saber: Elementos para uma Teoria”, Bernard Charlot (2000CHARLOT, Bernard. 2000. Da Relação com o Saber: Elementos para uma Teoria. Tradução: Bruno Magne. Porto Alegre, Artmed Editora.) indica que não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo. Segundo o autor, as relações sociais no mundo oferecem aos sujeitos um conjunto de significados que são partilhados com outros indivíduos. O sujeito apropria-se do social, sob uma forma específica, compreendidas aí sua posição, ou seja, o sujeito não se constrói à distância, mas sim, com o social, porque tem acesso ao universo dos significados, ao “simbólico”. E, é neste universo simbólico, que são estabelecidas as relações entre os sujeitos; a relação consigo mesmo e, com os sistemas simbólicos.

Neste sentido, como é possível que o cânone do pensamento em todas as disciplinas das Ciências Sociais e Humanidades nas universidades ocidentalizadas se baseiem no conhecimento produzido por uns poucos homens de quatro países da Europa Ocidental (Itália, França, Inglaterra, Alemanha) e dos Estados Unidos?

Essa é uma das questões, ainda super atual, que o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel evoca em seu artigo A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI, publicado em 2016. Como resposta o autor aborda os genocídios/ epistemicídios ocorridos ao longo do século XVI contra muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus; contra povos nativos na conquista das Américas, denominados depois por colonizadores europeus de povos indígenas; contra povos africanos na conquista da África e a escravização dos mesmos nas Américas e; finalmente, contra as mulheres europeias queimadas vivas acusadas de bruxaria. Seu argumento é de que o privilégio epistêmico do homem ocidental foi construído à custa desses genocídios/epistemicídios, nos quais figurava inicialmente o racismo religioso que, em meio às viagens europeias de exploração e conquista, foi aos poucos sendo substituído pelo racismo de cor para o qual os “povos sem religião”, lidos à época como “povos sem alma”, ou seja, desprovidos de humanidade, são passíveis de processos de inferiorização e dominação.

A tese principal deste artigo é que a condição de possibilidade para o cartesianismo idolátrico dos anos 1640 que assume o olho de Deus arroga-se o direito de dizer “penso, logo existo” à custa do “extermino, logo existo”. Assim, no fim do século XVIII, quando as ditas universidades deixaram de ser cristãs e teológicas e se transformaram em seculares, utilizou-se a ideia antropológica kantiana de que a racionalidade está encarnada no homem branco ao norte dos Pirineus. A Península Ibérica foi relacionada ao estigma da irracionalidade, ao lado dos povos de pele negra, vermelha e amarela. As pessoas “sem racionalidade” foram epistemologicamente excluídas das estruturas de conhecimento das universidades e é a partir desta estrutura que o cânone da universidade ocidental é fundado. “Após 500 anos de colonização do saber, não existe qualquer tradição cultural ou epistêmica, em um sentido absoluto, que esteja fora da Modernidade eurocêntrica. Tudo foi afetado pela Modernidade eurocêntrica e muitos aspectos do eurocentrismo foram engessados nessas novas epistemologias” (Grosfoguel, 2016GROSFOGUEL, Ramón. 2016. “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/ epistemicídios do longo século XVI”. Dossiê: Decolonidade e perspectiva negra. RevistaSociedade e Estado , v. 31, n. 1: 25-49. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
: 44).

Contudo, o autor argumenta que se, por um lado, o projeto colonial ocidental de genocídio/epistemicídio foi, em alguma extensão, bem-sucedido, em espaços particulares do mundo, por outro, fracassou totalmente. O pensamento de indígenas, muçulmanos, judeus, negros e mulheres críticos deste projeto continua vivo, ao lado do pensamento de outros/as críticos/as do Sul.

Esses saberes subalternizados, no caso brasileiro, mas poderíamos estender a outras populações do mundo, começam a ter visibilidade à medida que as universidades vão implementando as políticas de ações afirmativas, que configuram reservas de vagas para negros/as, indígenas, de baixa renda, quilombolas, populações LGBTT+, dentre outras.

Num esforço de síntese e incorporando as diferentes contribuições, Sabrina Moehlecke (2002MOEHLECKE, Sabrina. 2002. Ação Afirmativa: História e Debate no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117: 197-217.) argumenta que podemos falar em ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, por meio da valorização social, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social. Ou seja, a ideia de uma restituição de uma igualdade que foi rompida ou que nunca existiu.

As políticas de ações afirmativas nas universidades não se fazem apenas com o ingresso desses e dessas estudantes. É necessária uma mudança epistêmica nos currículos e práticas de formação acadêmica que abarquem efetivamente essas diversidades.

O sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos faz em sua obra uma distinção conceitual importante para esta reflexão que é a do negro-tema e do negro-vida.

Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados “antropólogos” e “sociólogos”. Como vida ou realidade efetiva, o chamado negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é o negro-tema; outra, o negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistado, profético, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje (Guerreiro Ramos, 1955GUERREIRO RAMOS, Alberto. 1955. Patologia social do branco brasileiro. Jornal do Commercio.: 215).

Neste sentido no que se refere à presença negra na universidade procuro nas próximas linhas refletir de que forma, utilizando as palavras de Alberto Guerreiro Ramos (1955)GUERREIRO RAMOS, Alberto. 1955. Patologia social do branco brasileiro. Jornal do Commercio., o negro-tema vai sendo complementado com o negro-vida no espaço universitário.

AS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS E PRESENÇA NEGRA NA UFSC

Na minha trajetória acadêmica eu não ingressei na universidade pelas políticas de ações afirmativas, mas acompanhei na UFSC todo processo de defesa e implementação de tais políticas durante a graduação em Jornalismo e a transformação desta instituição durante a pós-graduação na qual cursei o mestrado e doutorado em Antropologia Social.

Ao longo de mais de uma década, entre meu ingresso na graduação (2002) e a realização de pós-doutorado na UFSC (2019) fui percebendo que essas presenças diversas no contexto universitário brasileiro nos convidam ao exercício reflexivo crítico das experiências plurais provenientes das relações constituídas entre esses sujeitos e a universidade.

Em dez anos de implantação das políticas afirmativas na UFSC (2008-2018), por meio da adoção de cotas para estudantes oriundos de escolas públicas, negros/as e indígenas, perspectivas e novos desafios se configuram no contexto do acompanhamento, permanência e êxito de estudantes pertencentes a grupos historicamente marginalizados ou pouco representados. Medidas institucionais corporificam relações dinâmicas de conflitos e negociações que envolvem a comunidade acadêmica de gestores/as, servidores/as e estudantes, bem como movimentos sociais organizados por representações dos respectivos segmentos beneficiados.

Nesse sentido as políticas de ações afirmativas promovem uma diversidade em termos de presença que afeta a estrutura universitária, permeada pelos efeitos da colonização proposta para essa região do país e visibiliza a necessidade de repensar tal instituição em seu tripé constitutivo de ensino, pesquisa e extensão, pelo princípio normativo da diversidade, referenciado aqui principalmente pelas vozes de estudantes negros e negras da UFSC ingressos por ações afirmativas, garantido desta forma o amplo exercício dos direitos humanos em uma perspectiva de educação intercultural2 2 A interculturalidade crítica, nos termos de Catherine Walsh (2009), se constitui como projeto político, social, ético e epistêmico que questiona a racionalidade ocidental que se arroga como único caminho epistemológico constitutivo de conhecimento legítimo. Exige-se criticidade dos processos de exclusão, naturalização e inferiorização. Trata-se de questionar as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos sócio-culturais, étnico-raciais, de gênero, orientação sexual, entre outros. Parte-se da afirmação de que a interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e seja capaz de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos sócio-culturais, o que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados. Desta forma, entende-se que o processo de socialização no contexto das instituições de ensino brasileiro necessita se transpor a limitada noção de interiorização de conteúdos e perceber que os indivíduos, na contemporaneidade, são sujeitos de sua própria história e que, do ponto de vista das instituições, cabe considerar o sentido dos saberes, bem como as relações estabelecidas ou não com eles, objetivando um reavaliar das seleções dos saberes nesses espaços. e decolonial.3 3 Por perspectiva decolonial, nos termos de Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), entendo uma rede de investigadores principalmente formada por intelectuais latino-americanos, que tem como foco as fronteiras não só como espaço onde as diferenças são reinventadas, mas como lócus enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos. O que está implícito nessa afirmação é uma conexão entre o lugar e o pensamento.

A UFSC, assim como a sociedade catarinense, é atravessada por um processo histórico de invisibilidade negra estruturado pela ideologia do racismo. Segundo Ilka Boaventura Leite (1996LEITE, Ilka Boaventura (Org.). 1996. Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Ilha de Santa Catarina, Ed. Letras Contemporâneas.) o fato de Santa Catarina possuir um menor número de população negra, comparado com outros estados do país, fortaleceu as seguintes imagens: Santa Catarina como Estado branco; a Europa incrustada no Brasil; um Estado com superioridade racial; um Estado com desenvolvimento e progresso. Tais imagens dão a entender que houve um processo de concretização do projeto imigrantista implantado desde meados do século XIX visando o branqueamento do país.

A justificativa para isso, segundo a autora, é que Santa Catarina tem e teve presença rara, inexpressiva ou insignificante de população negra atribuída historicamente pela ausência de um grande sistema escravista voltado para exportação. Isso demonstra que apenas o passado explica o presente, ignorando fluxos recentes migratórios. A outra justificativa sugere que Santa Catarina teve relações democráticas ou igualitárias de escravidão. Essas relações seriam decorrentes, sobretudo do modelo econômico implantado (minifúndio) e de um menor contingente de escravos.

Assim a invisibilidade dos negros e negras pode ser identificada em diferentes tipos de práticas e representações. Tal noção foi utilizada pela primeira vez por Ralph Ellison em 1952 nos Estados Unidos. O autor do romance Homem InvisívelELLISON, Ralph. 1990. Homem Invisível. São Paulo, Marco Zero. descreve os mecanismos de manifestação do racismo nos EUA, sobretudo, na entrada de ex-escravizados e seus descendentes no mercado de trabalho assalariado e as relações sociais decorrentes de suas novas condições e status. Ellison procura demonstrar que o mecanismo de invisibilidade se processa por certo tipo de olhar que nega sua existência como forma de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade.

Esses processos de invisibilidade podem ser observados em relação aos negros, mas também em relação a outros tipos de sujeitos sociais (pessoas com deficiência, mulheres, povos indígenas, população LGBTT+, moradores de rua, dentre outros). A invisibilidade pode ocorrer tanto no âmbito individual, coletivo, em ações institucionais, oficiais e em textos científicos. Pode ser provocada por setores dominantes da sociedade, mas também pelos próprios sujeitos marginalizados. Novos mecanismos sutis ou explícitos de exclusão dos negros são revelados em pesquisas recentes. Por outro lado, estratégias utilizadas pelos negros ao longo deste século lidam diariamente com a invisibilidade, com o racismo e as mais diferentes formas de segregação. Nesse processo de reivindicação de políticas públicas de visibilidade e valorização surgem os protagonismos negros.

Mas como é se sentir ao mesmo tempo negro e universitário? Para W. E. B. DuBois, sociólogo, historiador, ativista e editor norte-americano que já escreve em 1903 sobre a condição do negro americano, que passa a exercer o direito civil de votar nos Estados Unidos, o argumento parte da pergunta como é sentir-se um problema? Para o autor, o negro é uma espécie filho renegado onde o mundo americano não lhe concede uma consciência verdadeira de si, mas apenas vê-se a si mesmo por meio da revelação do outro mundo. Tal sensação gera a noção de dupla consciência,

esta sensação de se estar sempre a olhar para si mesmo através dos olhos dos outros, de medir a nossa alma pela bitola de um mundo que nos observa com desprezo trocista e piedade. Sempre esta dualidade - um Americano, um Negro; duas almas, dois pensamentos, dois anseios irreconciliáveis; dois ideais em contenda num corpo escuro que só não se desfaz devido à sua força tenaz (Du Bois, 2011DU BOIS, William E. B. 2011. “Do nosso esforço espiritual”. In: SANCHES, Manuela Ribeiro (Org.). As Malhas que o Império tece: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa, Edições 70.: 51).

Por meio desta perspectiva podemos observar como ainda é latente esse sentimento na população negra, em várias partes do mundo, como estudante negra universitária que já fui acrescento a dupla consciência de Du Bois outras dimensões, pois quando interseccionamos4 4 A noção de interseccionalidade se propõe a pensar sobre as intersecções que existem entre os marcadores de gênero, raça e classe. O termo feminismo interseccional surge nos anos de 1980 e sua criação é atribuída a professora de Direito Kimberlé Crenshaw, que afirma que o termo surge de sua tentativa de refletir sobre como determinadas leis antidiscriminatórias não davam conta da relação que existia entre gênero e raça, sendo que se identificava a necessidade de pensar os efeitos das interações desses marcadores (Crenshaw, 1989). Mesmo que o termo mesmo que o termo interseccionalidade seja atribuído a Crenshaw, outras escritoras da época também estavam pensando essas intersecções, como bell hooks e Audre Lorde. bell hooks em Mulheres Negras: moldando a teoria feminista, vai afirmar que o feminismo até então teria sido hegemônico, de modo que, o pensamento feminista produzido apenas dizia respeito a um grupo muito seleto de mulheres, que seriam as mulheres brancas estadunidenses, casadas, com formação universitária, de classe média e alta. bell hooks, assim como outras pensadoras da época, afirmam como feministas brancas também não possuiriam consciência de como por vezes suas perspectivas refletem seus preconceitos de classe e raça. Desse modo, a noção de interseccionalidade se propõe a pensar os complexos efeitos das interações entre a discriminação sexista, o classicismo e o racismo (hooks, 2017). as dimensões de gênero, de classe e de capacitismo a essas consciências, complexificamos ainda mais a análise.

SER ESTUDANTE NEGRO E NEGRA NA UFSC

A partir da análise das entrevistas com estudantes negros/as que compuseram o Projeto Observatório das Ações Afirmativas, realizado pelo Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI) da UFSC5 5 Tal projeto financiado pelo edital PROEX/MEC, realizado entre 2012 a 2014 tinha por objetivo, dentre outras ações construir um banco de dados e depoimentos de histórias de trajetórias juvenis e escolares de estudantes ingressantes pelo Programa de Ações Afirmativas na UFSC, em particular os segmentos indígenas e negros. é possível perceber que a universidade se revelou como uma abertura de possibilidades, proporcionando para alguns/algumas estudantes para além do conhecimento, diploma e inserção no mercado de trabalho, também experiências como intercâmbios. Contudo para alguns/algumas estudantes, principalmente em cursos onde a presença negra era algo praticamente inexistente antes do Programa das Ações Afirmativas como graduações vinculadas à área das exatas ou mesmo na área do Direito, o cotidiano acadêmico é marcado por situações cotidianas de racismos, como a dificuldade no acompanhamento dos conteúdos, provocada por professores e colegas que negligenciam tais demandas por acharem que estudantes negros “não tem nível”, logo não precisam de atenção no processo de aprendizagem, ou a conjugação da necessidade de trabalhar e estudar para poder dar continuidade à formação, propiciando pouco tempo para dedicação aos cursos de formação.

Como exemplos temos uma das entrevistadas6 6 De acordo com o termo assinado pelos/as entrevistados/as, o Projeto Observatório das Ações Afirmativas pode utilizar o conteúdo das entrevistas, desde que seja preservada a identidade dos envolvidos/as. , estudante de Engenharia que relata a ocasião, na qual um professor em classe disse “ser a favor” das cotas, mas que para ele depois “disso” estava muito difícil dar aulas na UFSC. Que os/as estudantes que estavam entrando “não eram preparados para UFSC”, este professor acredita que os/ as estudantes já deveriam entrar na Universidade sabendo como este passo interage e é vivenciado pelos acadêmicos, e não “se fazendo de coitados”.Tal estudante relata que havia no mínimo cinco cotistas negros na sala de aula e que todos, inclusive ela, infelizmente não conseguiram concluir a disciplina: “Bem preconceituoso a fala dele. Só que também não falei nada, mas acabei saindo dessa matéria também.”

Outra estudante de Engenharia fala sobre as dificuldades de permanecer dentro da Universidade e lembra de outros colegas que também entraram por cotas na Universidade e tiveram muita dificuldade em permanecer.

Várias pessoas que eu conheço e que entraram por cotas não conseguiram ficar. Porque não tem condições, normalmente o curso que elas querem é integral, não tem condições de estudar e trabalhar. Ou de trabalhar e estudar. Não tem como é uma ou outra. Então muita gente não ficou. Porque não sentiram que aqui é o lugar deles. Teve gente que eu conheço que nunca entrou na biblioteca, mesmo estudando aqui. Um outro amigo da minha irmã, ele entrou este ano, mas não ficou. Ele disse que as pessoas olhavam torto para ele. E teve o problema da greve no começo do ano e daí ele não podia pegar livros na biblioteca. Daí todo mundo comprou os livros, sabe? E ele não tinha o livro daí ficava com vergonha. Chegava lá na sala e todo mundo tinha (Estudante de Engenharia) [grifos meus].

Assim por mais que a universidade, como instituição, se coloque comprometida com a erradicação do racismo, ele persiste de diversas formas nas relações sociais, pois estrutura nossa sociedade. Para o jurista e filósofo negro Silvio Luiz de Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. 2019. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra.) o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a qual pertençam. Tal racismo é percebido pelo autor a partir de três concepções: individual, institucional e estrutural. A concepção individual é quando se limita o olhar sobre o racismo e os aspectos comportamentais, deixando de lado o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e considerados “homens de bem”. Já na concepção institucional, o racismo pode ter sua forma alterada pela ação ou omissão dos poderes institucionais - Estado, universidade, escola, etc. - que podem tanto modificar a atuação dos mecanismos discriminatórios, como também estabelecer novos significados para raça. Por fim temos a concepção estrutural na qual as instituições são apenas uma materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. “Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. 2019. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra.: 47).

Na experiência e produção de conhecimento de um/a universitário/a negro/a, tal racismo vai sendo visibilizado e serve também como fonte de reflexão dentro da academia. Assim o então pós-graduando William Conceição, ingresso pelo Programa de Ações Afirmativas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFSC, em nível de mestrado, em artigo que compõe a coletânea produzida pelo Núcleo de Estudos de Relações Interétnicas (NUER) da mesma instituição, intitulado Cadernos de Textos e Debates nº 15, cujo tema era Ações Afirmativas, Cotas e Formação Acadêmica, publicado em 2017, argumenta que a importância das Ações Afirmativas são evidentes, mas não suficientes pela permanência ainda latente em nossa sociedade da ideologia do racismo.

Temos que conseguir extrapolar as cotas somente enquanto uma vaga institucional. As ações afirmativas estão aí para reiterar a necessidade de Abertura, e isso nos mais diversos graus, principalmente na necessidade de descolonizar. Não basta entrarmos, devemos ser reconhecidos enquanto sujeitos de direito, sem lugares marcados ou reflexões destinadas. O racismo brasileiro tem se constituído, bem sabemos, a partir da retórica da ideologia da mestiçagem, do jeitinho e do tapa nas costas, em que se escondem as práticas racistas que estão por trás de argumentos tais quais: ‘não sou racista porque estudo’, ‘tenho um amigo’, ‘namorei um negro ou uma negra’, ou agora ‘porque apoio o Programa de Ações Afirmativas (Conceição, 2017CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2017 [2016]. Quando os “nativos’” ocupam a antropologia: experiências de lugares e entrelugares nas Ações Afirmativas. Cadernos Textos e Debates, vol. 9, n. 15: 41-55.: 54).

Yérsia Souza de Assis, doutoranda em Antropologia na UFSC e também autora desta coletânea argumenta que no momento que passamos a acionar esses novos espaços sociais se questiona sobre o quanto ainda temos dificuldade em discutir no ambiente acadêmico os tensionamentos que circundam os debates sobre raça, racismo e relações raciais. De igual forma a autora também se questiona em que medida garantindo um modelo de reserva de vagas na Pós estamos assegurando uma discussão, senão coerente, mas honesta sobre o tema.

Nesse quesito considero muito importante o meu ingresso, e a garantia da minha permanência por parte do meu programa ao conceder bolsa desde o início, pois, para mais do que a minha satisfação pessoal em passar numa seleção de doutorado, e assim continuar minha trajetória acadêmica, o meu ingresso aciona itens representacionais, e aqui, rapidamente, cito o item da raça e do gênero como elementos constitutivos dessa experiência. Afinal, eu faço parte de uma parcela sub-representada elevada à máxima potência: mulheres negras nordestinas pós-graduandas. O reflexo disso é o número quase zero de professoras universitárias com essas características (Assis, 2017ASSIS, Yérsia Souza de. 2017. 2017 [2016]. “Fala Preta!’: das experiências de uma aluna cotista de Pós-Graduação na Universidade Federal de Santa Catarina. Cadernos Textos e Debates , v. 9, n. 15: 11-24.: 17).

Assis (2017ASSIS, Yérsia Souza de. 2017. 2017 [2016]. “Fala Preta!’: das experiências de uma aluna cotista de Pós-Graduação na Universidade Federal de Santa Catarina. Cadernos Textos e Debates , v. 9, n. 15: 11-24.) também destaca que este debate também se configura com uma perspectiva reversa e

aqui, atenho-me ao racismo institucional, que por vezes vai relegar a pessoas como eu, por exemplo, que estudam cotas e ações afirmativas, (...) um espectro “militantesco”, no sentido que não conseguindo mais desqualificar as trajetórias de inserção e permanência dos alunos cotistas, outra via é desqualificar as pesquisas às quais estamos vinculados (Assis, 2017ASSIS, Yérsia Souza de. 2017. 2017 [2016]. “Fala Preta!’: das experiências de uma aluna cotista de Pós-Graduação na Universidade Federal de Santa Catarina. Cadernos Textos e Debates , v. 9, n. 15: 11-24.: 18).

Sobre a visibilidade dos privilégios que constituem a estrutura da universidade Conceição (2017CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2017 [2016]. Quando os “nativos’” ocupam a antropologia: experiências de lugares e entrelugares nas Ações Afirmativas. Cadernos Textos e Debates, vol. 9, n. 15: 41-55.) ressalta que dentro desse processo de descolonização os estudos de branquitude podem ser profícuos, dentro dos seus limites teóricos e metodológicos, uma vez que situam o homem branco, pelo menos como homem comum, apresentando-o dentro das teias das relações humanas. Onde seu corpo antes entendido e unificado como universal, passa agora, a ser esquadrinhado como qualquer outro, e posto em relação com outros corpos.

Digamos, com certo exagero e uma dose de provocação que os estudos de branquitude pretendem trazer o branco para o campo da realidade, afogando-os, tirando-o de sua pretensa universalidade. Neste caso, se afogássemos os brancos nas relações interétnicas, assim como os cientistas fizeram com outros grupos, talvez, veríamos emergir de seus corpos as vossas branquitudes e o poder que resulta dela em toda sua potência (Conceição, 2017CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2017 [2016]. Quando os “nativos’” ocupam a antropologia: experiências de lugares e entrelugares nas Ações Afirmativas. Cadernos Textos e Debates, vol. 9, n. 15: 41-55.: 49).

Nesse sentido, pensando em trazer outros saberes para construção do conhecimento acadêmico, tentei ao longo dessa reflexão, procurar também outras formas de apreender tais conhecimentos, fazendo não só uma teoria, mas também uma metodologia decolonial.

Assim ministrei em 26 de outubro de 2018, a “Vivência Xirê: sentidos criados no fazer” no Espaço Cultural de Gênero e Diversidade da UFSC, numa edição especial que teve como foco apenas a participação de estudantes negros e negras da UFSC. A proposta era não só compreender suas trajetórias acadêmicas e situações de racismos sofridas, mas principalmente por meio de atividades corporais refletir sobre suas estratégias diárias de re-existências, a construção de seus protagonismos e suas práticas de bem-estar.

Tal vivência existente desde 2016, é o resultado de minha docência como professora de danças afrobrasileiras somado as minhas pesquisas junto às práticas culturais negras. Durante o encontro desenvolvo uma série de atividades corporais coletivas que remetem às características dos orixás, propondo desta forma um fomento a uma noção de bem estar calcado em valores afrobrasileiros como respeito à ancestralidade, à religiosidade, à oralidade, à coletividade, dentre outros. O termo xirê significa a ordem em que são tocadas, cantadas e dançadas as músicas aos orixás, em rituais dentro de algumas práticas religiosas de matriz africana.

Na ocasião, reunimos oito participantes dentre eles/elas: uma graduanda em Matemática, uma graduanda em Geografia, um mestrando em Direito, um doutorando e uma doutoranda em Física, uma mestranda em Saúde Pública, uma participante do Maracatu Arrasta Ilha, grupo que ocupa o espaço público da UFSC aos domingos semanalmente e realiza sua prática cultural desde 2002 neste espaço público, e uma outra mulher negra que não estudava na UFSC, mas frequentava esta instituição por ter vários amigos e amigas desta instituição.

Durante a vivência que priorizava a presença integral, ignorando qualquer divisão existente entre corpo e mente percorremos a encruzilhada do orixá Exu, montada neste espaço com o posicionamento de cadeiras, chamando pra caminhada nossos ancestrais, dentre eles/elas estavam os/as familiares, mestres/as da cultura popular e militantes do movimento negro local. No papel escrevemos nossas lutas, fazendo referência ao guerreiro, orixá Ogum, e neste dia apareceram: igualdade de direitos, a educação como ferramenta de transformação, afeto, necessidade de auto-sobrevivência, diversidade, conhecimento, liberdade, representatividade preta, mulheres no poder, dentre outras. Já realizando movimentos de caçadores, como o orixá Oxóssi, buscamos por meio do lançamento de flechas, compartilhar coletivamente nossos alvos: a profissão, a educação, o conhecimento, o compromisso com a sociedade e a felicidade foram alguns dos destinos que nossas flechas tentaram alcançar. Então a partir daí ingressamos num ritual de cura, fazendo referência a potência do orixá Obaluaê e a sensação é que o tempo passou muito rápido para aqueles momentos necessários de cuidado. Já imersos na vivência e um pouco desprovidos das couraças da vida cotidiana falamos sobre o que é ser um corpo negro na UFSC, utilizando a potência da escuta nos ensinada pela orixá Nanã. Das histórias partilhadas, uma contada por uma das participantes nos mostra que para muitos/as a universidade é um lugar impensável para o corpo negro enquanto estudante. “Minha mãe trabalhava de faxina próximo à UFSC e naquele momento eu pensava: - Este lugar não era pra mim. Só depois que comecei a fazer maracatu fui percebendo que era possível ser estudante”. Outra história partilhada nos mostra uma estudante africana que vem de uma realidade onde toda sociedade é negra, mas também permeada por desigualdades “Demorei um pouco a entender a questão do racismo, e hoje espero, através dos meus estudos, contribuir um pouco na transformação desta realidade”. E mais histórias vieram à tona, assim como o cansaço corporal e partilhas de doenças por conta dos preconceitos existentes no cotidiano da instituição. Nos abraçamos na potência do colo da mãe Iemanjá e brincamos feito Ibejis com nossas crianças interiores e saímos resolutos da necessidade de mais momentos como esse que priorizem o bem-estar, ou nos termos de bell hooks (2017hooks, bell. 2017. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª edição. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes.) uma auto-atualização.

Poderíamos expor outras inúmeras visões sobre o que é ser um/uma estudante negro/a universitário/a ingresso/a pela política de ações afirmativas, em nível de graduação, mestrado ou doutorado, mas gostaria de ir além e situar nossa reflexão no depois. O que acontece com os/as egressos/as negros/as que se formam nas universidades públicas brasileiras, que ingressaram ou não pelas políticas de ações afirmativas?

NEGRAS INSERÇÕES NO MERCADO DE TRABALHO

De acordo com a dissertação em Sociologia de Wagner Lemes do Nascimento, defendida na UFRGS em 2018NASCIMENTO, Wagner Lemes do. 2018. O vestibular pra nós nunca acaba: trajetória acadêmica e inserção profissional de diplomados da UFRGS beneficiados pela política de cotas 2018. Porto Alegre, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul., intitulada O vestibular pra nós nunca acaba: trajetória acadêmica e inserção profissional de diplomados da UFRGS beneficiados pela política de cotas, de maneira geral, o término da graduação e busca por inserção profissional é fonte de anseios e inseguranças. Mesmo com a maior qualificação decorrente da obtenção do diploma, o ingresso no mercado de trabalho em uma área correspondente com a formação pode levar anos.

Dentre os 24 profissionais, apenas 10 estavam atuando em suas respectivas áreas quando entrevistados, o que não significa satisfação profissional. Os demais entrevistados estão distribuídos entre os que postergaram o ingresso no mercado de trabalho em busca de maior qualificação, mudaram de área de atuação e os que não conseguiram se inserir no mercado em uma posição condizente com sua área de formação (Nascimento, 2018NASCIMENTO, Wagner Lemes do. 2018. O vestibular pra nós nunca acaba: trajetória acadêmica e inserção profissional de diplomados da UFRGS beneficiados pela política de cotas 2018. Porto Alegre, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.: 89-90).

O autor ainda destaca que dentre as estratégias mobilizadas para o ingresso na esfera laboral estão: entrega de currículos, cadastros em sites de emprego, realização de concursos públicos e/ou busca por maior qualificação por meio da realização de uma segunda graduação ou realização de uma pós-graduação. A exemplo do ocorrido ao longo do percurso acadêmico, há diferenças significativas entre a trajetória profissional dos entrevistados ao levarmos em consideração sua pertença racial. Mesmo com a maior qualificação, os profissionais negros continuam enfrentando o racismo, através de atos discriminatórios, em sua busca por emprego.”

Aqui me reporto para um dos momentos mais difíceis da minha trajetória de vida que foi o desemprego após a defesa do doutorado. Sim a frase inicial dos meus pais referente às consequencias de uma vida melhor para quem se dedicava aos estudos caíram por terra. Enfrentei sete processos seletivos para o cargo de magistério superior desde 2015, além de tentar o envio de currículo para diversas empresas em busca de oportunidades de trabalho, mas em todas não obtive aprovação.

Sobre as empresas em que busquei trabalho, me lembro do dia que consegui chegar à etapa de entrevista para uma vaga de secretária na sede do Ministério Público Estadual de Santa Catarina e o entrevistador, servidor do órgão em questão, comentava comigo que eu era muito qualificada para a vaga e que tinha medo que eu abandonasse o cargo na primeira oportunidade. Ou seja: eu era qualificada demais para um cargo de secretária, mas estava muito aquém, para um cargo de professora universitária.

Já sobre os concursos em cada processo consegui tirar aprendizados que reverteram individualmente para minha formação acadêmica: como a necessidade de ter mais publicações de artigos, pois isso é bastante valorizado em concursos, e a experiência docente, principalmente em nível de graduação. Mas também aos poucos fui percebendo que havia coisas para além do mérito. Na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), por exemplo, um dos primeiros concursos que fiz ainda cursando o final do doutorado, havia inscrição gratuita para uma vaga de antropologia das relações étnico-raciais. Fui para cidade de Foz do Iguaçu e chegando na prova escrita do concurso, constatei que era eu e mais duas candidatas. Uma foi reprovada nesta etapa, e seguimos eu e outra candidata até o fim do processo. No dia da divulgação dos resultados, a banca examinadora chamou nós duas na sala e disse que não havia classificado ninguém, pois não éramos o perfil que eles procuravam. Fiquei perplexa com o gasto de dinheiro público para realizar um concurso que não serviu para o seu propósito. E quando questionamos então qual era o perfil que eles procuravam, um dos membros da banca comentou que trabalhos acadêmicos de orientandos de um determinado professor da USP estavam dentro do que eles procuravam. Na época como nem doutorado eu havia concluído e nunca tinha feito um concurso para docente, achei estranho, mas naturalizei o processo, e não entrei com recurso. Porém com o tempo, e juntando essa experiência a outros concursos vividos, comecei a refletir sobre esses processos seletivos e a própria universidade como instituição de ensino público.

Assim foram muitos meses de tentativas, que foram comprimindo minha auto-estima e até minha crença na minha capacidade profissional, fora a necessidade pungente de pagar as contas, enfim de sobreviver. Estaria eu vivendo o meu devir-negro? O qual nos termos de Achille Mbembe (2014MBEMBE, Achille. 2014. Crítica da Razão Negra. Tradução: Marta Lança. Lisboa, Antígona.), pouco tem a ver com a cor da pele, mas essencialmente com a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável.

Embora não obtenha resposta para pergunta, ao longo deste processo, com certeza menos doloroso que a trajetória de outros/as tantos/as, tive o apoio da minha família que reafirmava continuamente o meu potencial, e aos poucos fui considerando a possibilidade de voltar para a universidade para realização de um pós-doutorado. Participei de três editais e obtive aprovação para um estágio de pós-doutoramento de dez meses, supervisionado pela Profª Drª Miriam Pillar Grossi, vinculado ao “Projeto Direitos Humanos, Antropologia e Educação: experiências de formações em Gênero e Diversidade”, aprovado no edital promovido pela CAPES e a antiga Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão vinculada ao Ministério da Educação (SECADI/MEC) que me proporcionou um imenso aprimoramento profissional.

Hoje percebo que precisava trilhar este caminho para o meu fortalecimento individual e profissional, pois o estágio pós-doutoral, assim como a contratação para docente substituto, são experiências que fazem ponte entre a formação doutoral e o mercado de trabalho acadêmico na antropologia mundial. Contudo, a constatação de que não há lugar para todos/as doutores/as em antropologia desse Brasil em universidades públicas é cada vez mais evidente. Prova disso é que nos sete concursos que fiz, sempre foi oferecida uma vaga para professor docente e o número de candidatos variou de 03 chegando ao número de 104 candidatos/as para uma única vaga. E nessa peneira o peso do racismo que estrutura nossa sociedade só aumenta, como observei no meu penúltimo concurso para o cargo de magistério público superior para o Departamento de Antropologia da UFSC, na área de Teoria Antropológica, ocorrido em setembro de 2018.

MOMENTOS LIMINAIS: OS PROCESSOS DE REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE MAGISTÉRIO SUPERIOR

De acordo com a noção de liminaridade de Victor Turner (1974TURNER, Victor. 1974. O Processo Ritual. Petrópolis, Vozes .) vivemos nos concursos públicos para o cargo de magistério superior um momento liminal. Os/as candidatas tem por cerca de uma semana, às vezes mais, a separação do seu fluxo de experiência cotidiana, experienciam as extremidades de sentimentos como dor, cansaço, ansiedade, medo, dentre outros, mas também são reenergizados e estimulados pelos laços de solidariedade que acontece na communitas que se forma dentro deste processo liminal, onde temos o apoio da família, amigos, professores/as e colegas de áreas, formando uma rede que participa indiretamente deste processo seletivo.

De maneira geral, as etapas de um concurso público para cargo de professor efetivo de uma universidade, com algumas especificidades dependendo do edital, consistem nas seguintes etapas: prova escrita, prova didática, prova de títulos, prova de defesa do memorial e projeto de atividades acadêmicas.

Dentro deste processo ritual permeado de regras, há a prova didática, que tem de ser preparada em apenas 24 horas. Um dos pressupostos, previsto em alguns editais desta prova, é o não diálogo verbal dos integrantes da banca com a/o candidato/a. Assim sendo, os/as membros/as da banca ficam exercendo as dimensões do trabalho do antropólogo propostos por Roberto Cardoso de Oliveira (1996OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 1996. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. Revista de Antropologia, v. 39, n. 1: 12-37. DOI: https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.1996.111579
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
) “olhando, ouvindo e escrevendo”, enquanto o/a canditado/a tenta dar a melhor aula da sua vida.

Neste sentido, as regras existentes nos regulamentos, regimentos, como técnicas disciplinares, nos termos de Michael Foucault (2002FOUCAULT, Michel. 2002. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes.), vão deixando nossos corpos mais dóceis e nós vamos aceitando sem refletir sobre esses processos, ou pior, sem a possibilidade de perceber formas outras de concebê-lo e aceitamos. Afinal, queremos a aprovação no cargo público e a oportunidade de poder fazer diferente.

E isso para mim, como antropóloga negra ficou ainda mais evidente em um dos últimos concursos que fiz na área de Teoria Antropológica. Na oportunidade dos 104 inscritos, 48 candidatos/as realizaram a prova escrita, desses/as a banca aprovou apenas 08 candidatos/as para a prova didática e restante do processo. Para minha inicial felicidade, eu estava entre esse último grupo e era a única mulher negra dentre os candidatos e as candidatas.

Fiz a prova didática, a qual muitos participantes do público que vieram assistir a minha aula, entre eles professores/as e estudantes de graduação, disseram o quanto aprenderam e que queriam ter aulas comigo em seus cursos de formação. Sai bem motivada e realizei a última etapa de defesa do memorial e projeto de atividades acadêmicas, as quais fiz pela primeira vez, uma vez que nos demais processos seletivos que tinha realizado não pedia essa etapa. Assim, na divulgação dos resultados, não obtive a classificação, pois tive média inferior a 7,00 na prova didática e tal nota culminou na minha desclassificação.

Contudo olhando mais detidamente as notas dos/as avaliadores/as notei algumas disparidades que me levaram a algumas reflexões: na prova escrita eu obtive 7,5/ 7,0/ 8,0 e na prova didática que é eliminatória e a primeira prova que a banca tem contato com o/a candidato/a eu tirei 5,0/ 6,0/ 9,0. Assim essa disparidade entre as notas da banca examinadora na prova didática, diante dos mesmos critérios de avaliação, sem nenhuma descrição dos motivos que levaram tal examinador/a a atribuir tal nota me levaram a redigir um recurso pedindo revisão da nota e reconsideração da minha classificação. Tal recurso foi indeferido pela banca examinadora, sem o mínimo de retorno descritivo do porquê da atribuição das notas frente aos critérios de avaliação.

Então comecei a cogitar a hipótese de racismo velado, tendo em vista que eu era a única candidata mulher e negra, e isso passa a ser um fator também presente na avaliação de uma prova em que a banca me enxerga pela primeira vez.

bell hooks (2019hooks, bell. 2019. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução: Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo, Elefante.) quando reflete sobre o lugar da mulher negra na pós-graduação argumenta que mudanças nas práticas de contratação têm significado que há mais professores negros em universidades predominantemente brancas, mas a presença deles pouco suaviza o racismo e o machismo de professores brancos. Na sua experiência na graduação e pós-graduação a autora conta que esses professores comunicavam suas mensagens racistas e machistas de modo sutil esquecendo os nomes de alunas quando liam a lista de presença, evitando olhar para os/as estudantes, fingindo que não ouvia quando esses/as falavam e às vezes até ignorando-os/as completamente. E essa falta de olhar era algo que eu senti durante este processo seletivo na UFSC. “Quando eu falava para professores mais solidários sobre comentários racistas ditos a portas fechadas, durante horários de atendimento ao aluno, havia sempre uma expressão de descrença, surpresa e suspeita sobre o rigor do que eu estava reportando” (hooks, 2019hooks, bell. 2019 [1952]. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra . Tradução: Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo, Elefante.: 129). Por isso creio nas dificuldades, até para nós negros/as, apontarmos o racismo, pois ele é sempre tido como um problema do outro/a.

Nos termos de hooks (2019hooks, bell. 2019. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução: Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo, Elefante.), o racismo e o machismo, especialmente no nível da pós-graduação moldam e influenciam tanto o desempenho acadêmico quanto a empregabilidade de mulheres negras acadêmicas. Pois muitas vezes a única mulher negra que professores brancos e brancas encontram é uma trabalhadora doméstica em suas casas.

Assim conversando sobre a hipótese de racismo institucional, com os e as presentes na aula essa possibilidade ganhou força, e os e as estudantes da pós-graduação, após o término do concurso, levaram um pedido de reconsideração da avaliação da minha prova didática, agora para a instância do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), ressaltando a necessidade urgente do Departamento de Antropologia da UFSC não só de descolonizar seu currículo, abordando as temáticas de gênero e raça, mas também ter em seu corpo docente professores/as negros/as.

O pedido foi indeferido, mas em abril de 2019, outro edital de concurso para UFSC, para o Departamento de Antropologia foi lançado. O cargo era de professor efetivo na área das Relações Raciais. O que na minha leitura, só foi possível, graças à visibilização do racismo institucional, ocorrido no último concurso e da repercussão deste episódio no corpo docente e discente de tal instituição de ensino superior. Então novamente, estava eu vivendo tal estado liminal, experienciando este processo seletivo.

Contudo as condições agora eram outras, eu estava grávida, e esse “estar” me colocava a prioridade de passar por esse processo da forma mais saudável possível, a fim de que preservasse a minha saúde emocional e física e a do meu bebê. Foram quatro meses entre estudar os tópicos, ganhar o filho em junho de 2019 e realizar o concurso em agosto de 2019. Confesso que o ser mãe de um recém-nascido, ao mesmo tempo que me dava força, também me proporcionava um cansaço desmedido, e uma preocupação sobre a logística de como seria fazer um concurso com um bebê com quase dois meses, totalmente dependente de mim, no que tange à alimentação. Por vezes, violentei a mim e a ele, tentando regrar os horários de mamadas para na prova escrita, sair o menos possível da sala para amamentar, mas com apoio do meu companheiro abdiquei desta ideia.

Segundo Patricia Hill Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo.) até o florescimento do feminismo negro moderno na década de 1970, as análises da maternidade negra eram feitas por homens tanto negros como brancos e em sua maioria tais perspectivas acusavam as mães negras de não disciplinar seus filhos, de castrar seus filhos homens e tornar suas filhas pouco femininas, bem como de retardarem as conquistas acadêmicas de seus filhos. Análises feministas dos anos de 1970 e 1980 sobre maternidade produziram críticas a essa visão, mas não abordaram os recortes de classe e de raça. Para a autora, historicamente, o conceito de maternidade é central nas filosofias afro-descendentes. Nas comunidades afro-americanas essa ideia era associada a uma vida de sacrifícios, sem abordar os problemas enfrentados pelas mães negras.

Em geral, as afro-americanas precisam de uma análise feminista negra revitalizada a respeito da maternidade, uma análise que desconstrua a imagem de “escrava feliz”, seja ela oriunda da ideia de “matriarca” criada pelos homens brancos, seja da ideia de “mãe negra superforte” perpetuada pelos homens negros (Collins, 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo.: 295).

Ao final do processo seletivo, percebi a maternidade, nos termos de Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo.) para quem:

a maternidade pode ser um espaço no qual as mulheres negras se expressam e descobrem o poder de autodefinição, a importância de valorizar e respeitar a si mesmas, a necessidade de autonomia e independência, assim como a crença no empoderamento da mulher negra (Collins, 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo.: 296).

E isso me mostrou que independente do meu desempenho no processo seletivo eu tinha algo de extrema importância em casa, que me daria realizações pessoais e força para vencer as adversidades, continuando minha caminhada nesta difícil tarefa que é viver.

Assim as provas aconteceram, a banca examinadora também tentou implementar o princípio da diversidade com a presença de uma professora mulher e dois professores negros avaliando os e as candidatas - embora houve ainda a preponderância do julgamento masculino neste concurso - e havia 14 candidatos negros e negras realizando o processo seletivo.

Dos 37 inscritos, cerca de 20 realizaram a prova escrita e passaram 10 pessoas para a prova didática, prova de títulos e defesa de memorial e projeto de atividades acadêmicas. Realizei todo processo seletivo, contando com a ajuda dos meus pais para ficar com meu bebê, enquanto eu estava nas provas. Na divulgação dos resultados estava com minha consciência tranquila de ter dado o meu melhor, dentro do que era possível, e consegui obter a classificação, ficando em segundo lugar. Também fiquei muito feliz de mesmo não sendo eu a aprovada para vaga, o Departamento de Antropologia ter aprovado a sua primeira professora negra no quadro docente.

Contudo, na oportunidade, me lembrei da frase de Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. 2019. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra.: 110) na qual “o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real”. Assim o fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos, que a população negra esteja no poder.

Nesse sentido, embora a representatividade seja um passo importante na luta antirracista, pois propicia abertura de um espaço político para que as reivindicações dessas populações à margem possam ser repercutidas, especialmente quando a liderança conquistada for resultante de um projeto político coletivo; e também por desmantelar as narrativas discriminatórias que sempre colocam essas populações em lugares de subalternidades, é preciso refletir em que termos acontecem essas representatividades e de que forma elas afetam o sistema burocrático, meritocrático e competitivo que se tornaram as universidades públicas brasileiras. A professora de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Janine Sattle, em palestra7 7 Comunicação oral realizada na Mesa Educação e Diversidade durante o 6º Curso de Curta Duração em Gênero e Feminismo ocorrido de 01 a 03 de agosto de 2018 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). , fala da importância de se fazer uma “ocupação curricular”, pois o currículo é político e precisa ser construído a partir do princípio formativo da diversidade.

Assim com intuito de desestruturar o cânone da universidade ocidental que exclui a presença e por conseguinte os saberes das pessoas “sem racionalidade”, como nos mostrou Grosfoguel (2016GROSFOGUEL, Ramón. 2016. “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/ epistemicídios do longo século XVI”. Dossiê: Decolonidade e perspectiva negra. RevistaSociedade e Estado , v. 31, n. 1: 25-49. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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) pretendo do meu lugar de fala como antropóloga negra e negra em movimento pretendo sempre utilizar esses processos de concursos como oportunidades de reflexão sobre o nosso fazer antropológico, afetando a universidade com a minha presença, removendo os centros e me colocando profissionalmente de coração aberto nas encruzilhadas8 8 A ideia de encruzilhada potência própria do orixá Exu cultuado dentro das religiões de matriz africana que nos permite encontrar, partilhar nossas experiências e nos deixar ser atravessar pelo outro/a. , tornando assim o ser e o fazer antropológico mais plural, permeado por amor, ou nos termos de Guerreiro Ramos (1955)GUERREIRO RAMOS, Alberto. 1955. Patologia social do branco brasileiro. Jornal do Commercio., tornando o negro tema, mais negro vida. O amor aqui expresso refere-se à noção tecida por hooks (2006)hooks, bell. 2006. Love as the Practice of Freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque, Routledge, pp. 243-250., como prática de liberdade e o olhar pedagógico para as diversidades.

Pois para teórica e ativista feminista negra norte-americana a cisão entre teoria e prática nos nega o poder da educação libertadora para a consciência crítica, perpetuando assim condições que reforçam nossa exploração e repressão coletivas. Segundo hooks, a teoria nasce do esforço de entender as experiências da vida cotidiana e dos esforços de intervir criticamente na própria vida e de outros. Só desta maneira as teorias que explicam as mágoas, podem também curar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta escrevivência, nos termos de Conceição Evaristo (2008EVARISTO, Conceição. 2008. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Belo Horizonte: Fundo Municipal de Cultura. (Série Releitura, n. 23)), buscou por meio da trajetória individual de uma antropóloga negra refletir as experiências coletivas de sujeitos e sujeitas negros que mesmo com ampliação da formação universitária re-existem todos os dias em busca de oportunidades profissionais em uma sociedade estruturada pelo racismo e pelo machismo.

Também por meio desse exercício reflexivo sobre como a universidade é constituída por um conhecimento acadêmico de orientação eurocêntrica que suprime outros saberes, podemos por meio das políticas de ações afirmativas visibilizar esses saberes, por meio de presenças diversas que afetam a estrutura universitária. Além disso, compreendendo esses outros saberes, temos a possibilidade de criar outras formas metodológicas de ensino. Como exemplo cito a Vivência Xirê9 9 O termo xirê significa a ordem em que são tocadas, cantadas e dançadas as músicas aos orixás, em rituais dentro de algumas práticas religiosas de matriz africana (Cacciatore, 1988). : sentidos criados no fazer.

Tal vivência existente desde 2016, é o resultado de minha docência como professora de danças afrobrasileiras somado as minhas pesquisas junto às práticas culturais negras. Ela é uma das atividades principais da Aláfia Casa de Cultura, produtora que mensalmente realiza ações de reconhecimento e valorização da população e cultura negra. A vivência desenvolve uma série de atividades corporais coletivas que remetem às características dos orixás, propondo desta forma um fomento a uma noção de bem estar calcado em valores afrobrasileiros como respeito à ancestralidade, à religiosidade, à oralidade, à coletividade, dentre outros. Durante o período de pós-doutorado, só dentro da UFSC, ela foi oferecida como aula dentro da disciplina História da Antropologia; como atividade de entrosamento da equipe organizadora e atividade de bem estar durante o 18º Congresso Mundial de Antropologia; como método de pesquisa com estudantes negros e negras para conhecer suas trajetórias pessoais e acadêmicas na UFSC, a fim de escrever o artigo apresentado durante a 31ª RBA, bem como vivência oferecida gratuitamente em mais de uma edição pelo Espaço Cultural de Gênero e Diversidade da UFSC (ECGD/UFSC).

Assim mais negros e negras ocupam espaços sociais que antes eram impensáveis. Mas há ainda muito por se fazer, como por exemplo aumentar o número de docentes negros e negras das instituições de ensino superior do país.

Segundo artigo dos sociólogos Flávia Rios (UFF) e Luiz Mello (UFG), intitulado Estudantes e Docentes Negras/os nas Instituições de Ensino Superior: em busca da diversidade étnico-racial nos espaços de formação acadêmica no Brasil10 10 https://boletimluanova.org/2019/11/15/estudantes-e-docentes-negras-os-nas-instituicoes-de-ensino-superior-em-busca-da-diversidade-etnico-racial-nos-espacos-de-formacao-academica-no-brasil/?fbclid=IwAR3JGqxHPxqCKBZFR08bfvFlTgQyqyBr95-UkIo-8PFcnyGHFcxoMHQrkgM , publicado no Boletim Lua Nova, em 15 de novembro de 2019, a história das Ações Afirmativas no Brasil nos mostra que o enfrentamento das severas e persistentes desigualdades raciais só se tornou viável na medida em que o País passou a produzir e divulgar dados institucionais sobre cor de forma transparente, periódica e sistemática. De acordo com os autores:

Apesar de avanços nas últimas décadas no que diz respeito à introdução do quesito cor/ raça nos formulários do Estado e à divulgação das informações coletadas, ainda é possível encontrar grandes lacunas que impedem o aprofundamento do combate ao racismo, e isso é particularmente notável no que diz respeito à carreira docente das Instituições de Ensino Superior (IES).

Em 2019, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou os resultados do Censo da Educação Superior 2018, a partir de três documentos principais: Divulgação de Resultados, Notas Estatísticas e Sinopse Estatística. Em nenhum deles é possível localizar a presença negra nos quadros docentes universitários, tampouco nos dados recém-divulgados pelo IBGE. A partir da caracterização proposta pelo Inep, sabemos, então, que o conjunto de docentes de nível superior no Brasil é basicamente masculino, na casa dos quase 40 anos, com prevalência de doutores em regime de trabalho integral nas instituições públicas e de mestres em regime de trabalho parcial nas privadas. Das informações acessadas sobre a cor do quadro docente a partir dos microdados do Inep. Por meio deles, sabemos que, em 2018, no conjunto do corpo docente de ensino superior público e privado do País, apenas 16,4% são pessoas autodeclaradas negras (2% são pretas/os e 14,4%, pardas/ os). Em contraste, a maioria é formada por brancas/os (52,9%).

Não custa lembrar que cerca de 1/3 do corpo docente das IES não declara a sua cor/raça nos formulários institucionais, de onde o Inep faz a coleta dos dados. Cabe aqui destacar agravidade dessa recorrente desvalorização do marcador social ou eixo de subordinação cor/ raça nos documentos públicos do Inep relativos aos censos anuais da educação superior (seja no momento da autodeclaração, seja na divulgação desses dados), especialmente no contexto de um País fraturado por racismo estrutural associado à violência e desigualdade social, além de conflitos étnico-raciais de toda ordem.

Voltando ao universo retratado pelo Inep por meio da Sinopse Estatística de 2018, os autores encontraram uma única e fundamental caracterização do conjunto de estudantes brasileiras/os a partir de sua cor/raça, que mostra uma expressiva mudança no perfil étnico-racial do corpo discente dos cursos de graduação. Nota-se que especialmente as universidades e institutos federais hoje já contam com um número maior de estudantes autodeclaradas/os negras/os (pretas/os e pardas/os) do que brancas/os, a despeito do alto índice de “não declaração” do quesito cor/raça (20% para o total de IES e 13% no caso específico das instituições federais). Tais percentuais, seguramente, seriam inconcebíveis se imaginados para outras variáveis de identificação pessoal, como idade e sexo, por exemplo.

Vale aqui salientar que, entre estudantes com cor/raça declarada, indígenas e amarelas/os ocupam posições muito minoritárias em todos os tipos de IES, enquanto brancas/os são maioria no conjunto das IES, bem como nas instituições estaduais, municipais e privadas, em níveis que podem ser até maiores que os identificados no Censo 2018 do Inep, considerando o alto índice de “não declaração”. Registramos, por outro lado, que o mencionado estudo do IBGE, baseado em dados da Pnad Contínua 2018, já apontava a prevalência de estudantes de graduação negras/os em relação aos brancas/os (50,3% e 49,7%, respectivamente) no conjunto das instituições públicas de ensino superior, sem fazer distinção entre federais, estaduais e municipais. Também merece ser ressaltado que os resultados apresentados pelo IBGE não contemplam informações específicas relativas a estudantes pretas/os e pardas/os (que reunidas/os constituem a categoria “negras/os”), bem como desconsideram os totais de estudantes indígenas, amarelas/os e que não declararam cor/raça.

Desta maneira Rios e Mello (2019RIOS, Flávia; MELLO, Luiz . 2019. “Estudantes e Docentes Negras/os nas Instituições de Ensino Superior: em busca da diversidade étnico-racial nos espaços de formação acadêmica no Brasil”. In: Boletim Lua Nova. Disponível em: Disponível em: https://boletimluanova.org/estudantes-e-docentes-negras-os-nas-instituicoes-de-ensino-superior-em-busca-da-diversidade-etnico-racial-nos-espacos-de-formacao-academica-no-brasil/ último acesso 05 de maio de 2021.
https://boletimluanova.org/estudantes-e-...
) questionam: Em que medida a mudança observada no perfil de cor/raça de estudantes de graduação está sendo acompanhada por alteração similar no perfil do conjunto de docentes? Como resposta, eles argumentam que esta é uma pergunta de resposta simples, uma vez que, nos censos anuais da educação superior do Inep, os índices de não declaração do quesito cor/ raça entre docentes de IES em geral e de instituições federais de ensino em particular são ainda mais altos do que os identificados entre estudantes, chegando a mais de 80% em alguns casos.

Em face da flagrante omissão e precariedade dos dados governamentais, pesquisadoras/es têm investido em estratégias alternativas de levantamento do perfil racial do quadro docente universitário, valendo-se para tanto da heteroclassificação, já que a maioria das/os docentes no País também não tem informado sua cor/raça na Plataforma Lattes. O trabalho realizado pela equipe de pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, o GEMAA, sediado no IESP/UERJ, reuniu exclusivamente as/os docentes vinculadas/os aos programas de pós-graduação na área de Ciências Sociais credenciados pela CAPES no ano de 2017. O grupo analisou o universo de 110 programas nacionais, nas áreas de Antropologia, Sociologia, Ciência Política e Relações Internacionais. Desse conjunto, descobriu-se que 77% do corpo docente é composto por pessoas brancas, contra 15% de negras e negros (com expressiva prevalência de pardas/os - 12% - em detrimento de pretas/os - 3% -, nesse subconjunto), sendo o restante composto por categoria indefinida. Esse levantamento revelou também que, embora as desigualdades de gênero sejam expressivas nas quatro disciplinas, as desigualdades raciais se apresentaram de forma bastante severa nas Ciências Sociais brasileiras: pelos menos oito programas são compostos exclusivamente por docentes brancas/os.

Nesse sentido que estejamos cada vez mais unidos/as e fortalecidos/as para essas re-existências e que possamos lutar para que a lógica individualista e competitiva do sistema acadêmico não torne nossas presenças marionetes de uma estrutura que docializa nossos corpos e provoca epistemicídios (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli; 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo.) aos nossos saberes.

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  • WALSH, Catherine. 2009. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época Quito, Ediciones Abya Yala.
  • 2
    A interculturalidade crítica, nos termos de Catherine Walsh (2009)WALSH, Catherine. 2009. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito, Ediciones Abya Yala., se constitui como projeto político, social, ético e epistêmico que questiona a racionalidade ocidental que se arroga como único caminho epistemológico constitutivo de conhecimento legítimo. Exige-se criticidade dos processos de exclusão, naturalização e inferiorização. Trata-se de questionar as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos sócio-culturais, étnico-raciais, de gênero, orientação sexual, entre outros. Parte-se da afirmação de que a interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e seja capaz de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos sócio-culturais, o que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados. Desta forma, entende-se que o processo de socialização no contexto das instituições de ensino brasileiro necessita se transpor a limitada noção de interiorização de conteúdos e perceber que os indivíduos, na contemporaneidade, são sujeitos de sua própria história e que, do ponto de vista das instituições, cabe considerar o sentido dos saberes, bem como as relações estabelecidas ou não com eles, objetivando um reavaliar das seleções dos saberes nesses espaços.
  • 3
    Por perspectiva decolonial, nos termos de Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016)GROSFOGUEL, Ramón. 2016. “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/ epistemicídios do longo século XVI”. Dossiê: Decolonidade e perspectiva negra. RevistaSociedade e Estado , v. 31, n. 1: 25-49. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    , entendo uma rede de investigadores principalmente formada por intelectuais latino-americanos, que tem como foco as fronteiras não só como espaço onde as diferenças são reinventadas, mas como lócus enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos. O que está implícito nessa afirmação é uma conexão entre o lugar e o pensamento.
  • 4
    A noção de interseccionalidade se propõe a pensar sobre as intersecções que existem entre os marcadores de gênero, raça e classe. O termo feminismo interseccional surge nos anos de 1980 e sua criação é atribuída a professora de Direito Kimberlé Crenshaw, que afirma que o termo surge de sua tentativa de refletir sobre como determinadas leis antidiscriminatórias não davam conta da relação que existia entre gênero e raça, sendo que se identificava a necessidade de pensar os efeitos das interações desses marcadores (Crenshaw, 1989CRENSHAW, Kimberle. 1989. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: a Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chiago Legal Forum, n. 1: 139-167.). Mesmo que o termo mesmo que o termo interseccionalidade seja atribuído a Crenshaw, outras escritoras da época também estavam pensando essas intersecções, como bell hooks e Audre Lorde. bell hooks em Mulheres Negras: moldando a teoria feminista, vai afirmar que o feminismo até então teria sido hegemônico, de modo que, o pensamento feminista produzido apenas dizia respeito a um grupo muito seleto de mulheres, que seriam as mulheres brancas estadunidenses, casadas, com formação universitária, de classe média e alta. bell hooks, assim como outras pensadoras da época, afirmam como feministas brancas também não possuiriam consciência de como por vezes suas perspectivas refletem seus preconceitos de classe e raça. Desse modo, a noção de interseccionalidade se propõe a pensar os complexos efeitos das interações entre a discriminação sexista, o classicismo e o racismo (hooks, 2017hooks, bell. 2017. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª edição. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes.).
  • 5
    Tal projeto financiado pelo edital PROEX/MEC, realizado entre 2012 a 2014 tinha por objetivo, dentre outras ações construir um banco de dados e depoimentos de histórias de trajetórias juvenis e escolares de estudantes ingressantes pelo Programa de Ações Afirmativas na UFSC, em particular os segmentos indígenas e negros.
  • 6
    De acordo com o termo assinado pelos/as entrevistados/as, o Projeto Observatório das Ações Afirmativas pode utilizar o conteúdo das entrevistas, desde que seja preservada a identidade dos envolvidos/as.
  • 7
    Comunicação oral realizada na Mesa Educação e Diversidade durante o 6º Curso de Curta Duração em Gênero e Feminismo ocorrido de 01 a 03 de agosto de 2018 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
  • 8
    A ideia de encruzilhada potência própria do orixá Exu cultuado dentro das religiões de matriz africana que nos permite encontrar, partilhar nossas experiências e nos deixar ser atravessar pelo outro/a.
  • 9
    O termo xirê significa a ordem em que são tocadas, cantadas e dançadas as músicas aos orixás, em rituais dentro de algumas práticas religiosas de matriz africana (Cacciatore, 1988CACCIATORE, Olga Gudolle. 1988. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Forense Universitária.).
  • 10
  • 1
    Este artigo foi escrito durante o pós-doutoramento no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC). Agradeço imensamente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento desta formação e a minha supervisora Profª Drª Miriam Pillar Grossi pelo incentivo desta escrita.
  • FINANCIAMENTO:

    O financiamento deste artigo se refere a bolsa de pós-doutorado realizada no âmbito do projeto “Direitos Humanos, Antropologia, Educação: experiências de formação em Gênero e Diversidades”, coordenado pelas professoras Miriam Pillar Grossi e Antonella Maria Imperatriz Tassinari, e contemplado no Edital CAPES Educação em Direitos Humanos 2017 (38/2017) por meio do convênio entre a CAPES e a antiga SECADI/MEC (dados se encontram na primeira nota do texto).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2020
  • Aceito
    12 Fev 2021
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