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Franchetto, Bruna & Heckenberger, Michael: Os povos do Alto Xingu-história e cultura

Franchetto, Bruna & Heckenberger, Michael (org.). Os povos do Alto Xingu–história e cultura, Rio de Janeiro, UFRJ, 2001.

Carlos Machado Dias Jr. e Marina D. Cardoso

Doutorando do Departamento de Antropologia – USP

Professora do Departamento de Ciências Sociais – UFSCar

O livro organizado por Bruna Franchetto e Michael Heckenberger vem suprir e atualizar uma importante lacuna na etnologia brasileira contemporânea: os povos do Alto Xingu, objetos de estudos realizados desde as expedições de Karl Von de Steinem, em 1884, até as etnografias acumuladas, particularmente, nas décadas de 1960 e 1970, logo após a criação, em 1961, do Parque Nacional do Xingu. Esses povos têm, entretanto, estado ausentes de uma discussão etnográfica e de políticas indigenistas atuais, principalmente, tendo em vista o importante processo de transformações que tem ocorrido no Parque durante a última década, com a retirada progressiva da Funai da prestação de serviços assistenciais às suas comunidades, que vêm se reorganizando para fazer face às novas formas de relação com a sociedade nacional que hoje se lhes apresentam.

Três são os principais aspectos que norteiam a organização do livro como um todo.

O primeiro deles está presente na própria concepção interdisciplinar da coletânea, enriquecida com a discussão de matérias e argumentos distintos (antropologia, ecologia cultural, arqueologia, etnohistória, linguística), os quais procuram dar conta dos vários temas que a diversidade cultural alto-xinguana oferece. Temos, assim, na primeira parte do livro: os estudos arqueológicos e etnohistóricos mais recentes de Heckenberger ou linguísticos de Franchetto; um panorama da bioantropologia local, feito por Ricardo Santos e Carlos Coimbra; a geografia política realizada por Maria Lúcia Pires Menezes; os dados preliminares para uma iconografia no Xingu por Aristóteles Neto; Dole e a difusão de práticas culturais; Gregor fundamentando a "paz intertribal" tomando o casamento como artifício de pacificação do inimigo. Na segunda parte, textos etnográficos, referentes a alguns dos grupos altos xinguanos (Waurá, Kuikuro, Kalapálo, Bakairi, Kamayurá, Aweti, Trumai), tratam da multiplicidade dos aspectos da história local, tanto do ponto de vista da sua "localidade" quanto da sua reconstituição etnográfica e arqueológica. Deve-se também salientar a presença, nesse livro, de dois precursores da etnografia alto-xinguana, Thomas Gregor e Ellen Basso, cujos livros sobre os Mehinako e os Kalapálo, respectivamente, são referências obrigatórias para todos os pesquisadores da região do Alto Xingu.

O segundo aspecto, também presente na fértil concepção do livro, que nos leva ao seu subtítulo, refere-se à articulação entre os diversos capítulos e as duas partes. Trata-se de uma discussão cara à antropologia em torno do tema história e cultura, procurando-se, por meio das várias formas de "história" (arqueológica, documental e etnográfica), estabelecer as possibilidades de suas relações internas, porque localizadas em diferentes planos de pesquisa e de registro. Neste ponto, o leitor é apresentado a duas vertentes distintas para visualizar o Alto Xingu. Primeiramente, iluminado pelos estudos interdisciplinares, e sobretudo arqueológicos, a sociedade alto-xinguana revela-se organizada por um processo "fechado", mesmo que dinâmico, cuja linha estrutural de base é aruak, formada antes mesmo do período do contato ocidental.

Sahlins, ao lado de Steinen e Schaden, são as referências centrais, ao serem apresentadas as teses principais desse livro sobre a formação do "sistema alto-xinguano". Por um lado, como já observamos, "fechado em si mesmo", formado por sucessivas levas migratórias dos povos de língua Aruak (800-900 D.C.), Karib (em torno de 1500) e Tupi (entre 1700-1800), que teriam absorvido ou se amalgamado com outros grupos que ali já se encontravam. Por esse aspecto, a sociedade alto-xinguana teria sido formada em período anterior à ocupação ocidental e à própria formação do Parque, constatando-se uma notável permanência desse sistema em face dos processos históricos de mudanças pré e pós-contato. De acordo ainda com essa visão, a sociedade xinguana pauta-se pela adoção de uma origem mítica comum que evidencia a natureza do convívio pacífico, ao mesmo tempo que se perpetuam cosmologias e ideologias distintas. Esta seria a condição moral necessária para a comunidade alto-xinguana, que revela sua essência no ciclo do ritual da chefia, representado pelo cerimonial Kuarup.

Por outro lado, e em segundo, na visão alternativa, temos o conflito situado na essência da sociedade xinguana, entendido também como fator constitutivo do sistema. Tanto quanto o Kuarup, o faccionalismo, o xamanismo e a feitiçaria constituem elementos primordiais da ação política, revelando concepções distintas quanto à natureza da estrutura social local. Por esse aspecto, tal como a leitura alternativa proposta por Marcela Coelho ilustra a segunda, para ficarmos com dois pontos altos da coletânea.

De fato, a bibliografia sobre os alto-xinguanos parece ser unânime em considerar que, a despeito das diferenças lingüísticas e socioculturais locais, os grupos identificados como pertencentes à sociedade alto-xinguana (Yawalapiti, Mehinako, Waurá, Kamayurá, Aweti, Kalapálo, Kuikuro, Matipu, Nahukwá e Trumaí) fazem parte de um sistema integrado no que diz respeito à sua forma de organização sociopolítica, padrões de aldeamento, parentesco e chefia. O partilhamento de rituais, sistemas cosmológicos, trocas cerimoniais, econômicas, matrimoniais, assim como, comportamentos belicosos entre facções, xamãs e feiticeiros têm sido também fundamentais para a continuidade desse sistema até nossos dias, remetendo a um conjunto de relações intertribais pelas quais eles se definem e se situam diferencialmente dentro do mesmo. Desse modo, o terceiro aspecto a ser destacado sobre o livro diz respeito ao esforço de alguns de seus autores em desvendar a "lógica alto-xinguana" de diferenciação interna (linguísitca, etnohistória, especialização técnica, iconográfica e musicológica), pela qual eles preservariam ainda aspectos de sua identidade cultural dentro desse sistema intertribal mais amplo de trocas (pacíficas e belicosas), cooperação e conflito.

Trata-se, assim, de uma coletânea exemplar para mostrar como as dinâmicas societárias articulam-se por meios de processos díspares: semelhança/alteridade, continuidade/descontinuidade, permanência/mudança, o que recoloca, sem dúvida, a relação entre história e cultura, ou a pesquisa histórica e a etnográfica, em significativos patamares de discussão e cooperação. O problema maior é uma certa "indefinição" conceitual de história (ou "histórias"), assim como de estrutura (ou "estruturas"). No que diz respeito ao primeiro ponto, faz-se freqüentemente, menções a "períodos pré-históricos", isto é., referentes ao período anterior ao contato ocidental e à existência de documentação sobre os grupos alto-xinguanos, o que parece incompatível, senão "não-resolvido", pela discussão que precede o livro na "Introdução", que reafirma o uso de dados arqueológicos e etnográficos locais, além das histórias orais, nos capítulos subseqüentes, como parte do mesmo registro histórico e cultural, apesar de em diferentes planos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    2002
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