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A mal-assumida profissão de sociólogo

NOTAS E COMENTÁRIOS

A mal-assumida profissão de sociólogo* * Este comentário foi escrito logo após um simpósio que a TV Cultura, de São Paulo, organizou sobre a profissão de sociólogo, em fins de 1983, e destinava-se à publicação em jornal. Como, todavia, ele assumiu extensão muito acima das especificações do jornal, optou-se por preservá-lo para outro veículo. A problemática de que ele trata está sempre se retirando, razão por que não se há de pôr em dúvida sua atualidade.

José Carlos Durand

Sociólogo da Fundação Getúlio Vargas

Faz poucas semanas, a TV Cultura reuniu sociólogos para discussão ao vivo sobre seu ofício. O programa compôs a série "Mercado de Trabalho", destinada a divulgar profissões ao público jovem. Houve dinamismo, disputou-se a palavra e a apresentadora soube retirar, em meio às questões de princípio, muita informação acerca do que fazemos e onde trabalhamos. Os ecos do programa no meio da categoria foram favoráveis, e ainda continuam.

Mas o tempo de debate foi curto, dada a variedade de situações de trabalho ali representadas; ademais, como de longa data não se debatia o assunto, algumas posições não se explicitaram devidamente. Vale a pena retomar a polêmica.

1. NOVA SITUAÇÃO E VELHA RETÓRICA

Depois de 15 ou 20 anos de formação de um público numeroso de sociólogos nas escolas superiores, os espaços de trabalho aumentaram e multiplicaram-se. Já não dá para conhecer pessoalmente a maioria dos colegas: os diplomados são 12 mil só no estado de São Paulo. Os sociólogos distribuem-se hoje em pelo menos cinco áreas distintas de atividade: a pesquisa comercial, o magistério secundário, o magistério superior (que comporta, para muitos, atividade de pesquisa acadêmica) e uma série de postos no aparelho de Estado onde ele é tido por "técnico em planejamento". Aí ele acompanha programas ou ajuda a definir políticas, e nas mais das vezes aproveita para estudar a quantas ainda o papel do Estado nas frentes "sociais", tais como a educação, a saúde, a habitação e urbanismo, etc. Circulam, por fim, nos meios de comunicação, em editoras e jornais e em outras agências do campo da cultura e da indústria cultural.

Esses domínios de atividade não têm equivalência em termos de legitimidade, de remuneração, de horizontes de carreira e de participação nas entidades da categoria. Ao contrário de outros ramos de ensino superior, em sociologia o estudante é formado quase exclusivamente por pessoas que partilham apenas um dos espaços de atividade: o magistério superior e a pesquisa acadêmica. Assim, é fácil passar-lhe uma definição de sociólogo que aponta para uma idéia de trabalho intelectual muito impregnada dos maneirismos, das exigências e das recompensas das hierarquias universitárias e da cultura acadêmica: presença em simpósios, congressos e conferências, titulação e publicações. É por meio dela que a comunidade dos sociólogos, centrada nesse modelo, distingue quem a ela pertence ou não. As demais frentes de trabalho não se representam no magistério das ciências sociais, mantendo-se em relação a elas atitude que vai da complacência à hostilidade, em nome do militantismo político e/ou do pensar teórico.

Aqueles que, por qualquer razão ou necessidade, construíram seu destino em um dos demais domínios aludidos, e que não contam com as (ainda fortes) barreiras de proteção da estatutária universidade, vêm buscando arregimentar-se em associações profissionais. Para eles foi oportuno que a ditadura tivesse motivado gente do meio acadêmico a juntar-se aos demais e fundar associações para enfrentar o estado totalitário de 12 ou 13 anos atrás, como foi o caso da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo. De longa data, eles alentam expectativas de ampliação e preservação de espaços de trabalho mediante regulamentação profissional: necessitam de sindicato para pendências trabalhistas e demandam cobertura para uma luta que recupere oportunidades usurpadas, como é o caso dos famigerados cursos de estudos sociais, e daí por diante.

Essas demandas não transitam facilmente no meio interno dos sociólogos, nem repercutem minimamente junto ao público estudantil. No programa de TV Cultura pôde-se ouvir o surrado argumento de que a regulamentação da profissão de sociólogo é pleito disparatado e reacionário, enfim, manifestação de nefando corporativismo. Ela não passaria de escudo para defender o pão dos medíocres que não conseguem perceber que no campo da cultura o que vale é o talento e não o diploma. E tome lá o velho exemplo dos jornalistas, que antes precisavam saber escrever e que hoje apenas precisam do diploma em "comunicações e artes". Os que assim pensam esquecem-se do fato de que nas profissões masculinas (não é o caso da sociologia) não se brinca em serviço quando se trata de conquistar ou preservar legalmente privilégios de mercado. Mesmo os partidos de esquerda aí não abrem mão de lutar por regulamentação, por pisos salariais e por tudo que diga respeito a dinheiro. Eles não percebem também que as reservas que sustentam em relação à regulamentação profissional se firmam em uma visão fantasiosa de suas conseqüências no plano político. Tudo se passa como se ordenar legalmente a profissão e administrar minimamente oportunidades de mercado criassem de súbito poder corporativo intolerável. Ora, tendo em conta a histórica interferência estatal na representação trabalhista e na política de educação, o brutal e anárquico crescimento do terciário e a recessão, é ingênuo pensar que qualquer categoria - mesmo as masculinas - venha conseguindo exercer poder corporativo. Aliás, não há prato mais apetitoso para os sociólogos, no capítulo das classes médias, do que cantar sua proletarização.

Os cursos de ciências sociais têm, desde sempre, recrutamento predominantemente feminino.1 1 O uso da condição de sexo nesse argumento tem o único e preciso fim de chamar a atenção para o fato de que as mais fracas disposições para encarar o diploma de ensino superior como trunfo para ingresso no mercado de trabalho são encontradas justamente entre as moças de famílias ricas e cultivadas que freqüentam ramos mais voltados à cultura erudita, tais como filosofia, ciências humanas e letras. Essa associação entre condição de sexo e de classe social, de um lado, e disposições culturais ou profissionalizantes, de outro, tem sido verificada em inúmeras pesquisas de sociologia educacional; basta mencionar, a respeito, estudos como Os Herdeiros, ou A Reprodução, de Pierre Bourdieu e colaboradores, onde se encontram abundantes exemplos. Até por volta dos anos 60 (quando o boom das novas faculdades alterou o perfil de extração social das clientelas universitárias) o seu público se recrutava nos segmentos cultivados das classes proprietárias. Muitas vinham de ramos recém-decaídos das classes proprietárias, mas bem implantados nas profissões liberais e na administração superior do Estado. Daí não ser difícil pegar o fio de explicação de um certo indiferentismo arrogante que aquele público disfarçadamente sustentou e sustenta quanto a encarar o diploma como meio de vida. No caso das ciências sociais da USP, as disponibilidades financeiras de família, do lado discente, caíram como sopa no mel no que esperava a influência francesa sob a qual o ensino de sociologia se implantou, reforçando a desatenção para com as contas de fim de mês. Desse casamento resultou uma espécie de pacto de bom-tom que teve o efeito de fazer silenciar duradouramente, em sala de aula, preocupações com salário e profissão. Depois foi chegando a rapaziada a meio caminho de diplomas que asseguravam oportunidades de emprego e carreira mais claras e seguras e que, portanto, não via razão para questionar o mencionado pacto. E chegaram também os já empregados e mais idosos, que igualmente se ajustaram à situação, definindo-se em busca de "formação cultural" nas pesquisinhas feitas sobre o assunto.

2. OS SOCIÓLOGOS, A PESQUISA DE MERCADO E A UNIDADE DA CATEGORIA

No vídeo, os sociólogos da pesquisa comercial reduziram-se ao silêncio, ao que parece acuados ao reconhecer um discurso que os exclui. Viveram lá o mal-estar por que passam todas as vezes que pretendem que o meio acadêmico encare sua atividade de pesquisa como qualquer outro campo especializado da sociologia. E saíram do estúdio um tanto ressentidos, ensaiando sem êxito fazer pouco dos que os acusam de um trabalho "não-crítico".

Para que a categoria dos sociólogos ganhe força, mesmo como categoria intelectual, deve aglutinar o maior número de participantes em suas entidades culturais e profissionais. É completamente inútil querer discutir, em última instância, se o que fazem os bacharéis em ciências sociais nos vários domínios de trabalho é ou não sociologia. Se eles crêem que assim seja, o movimento de preservação de identidade que a crença provoca já tem efeitos práticos positivos para a unidade do todo e para o jogo de cintura no mercado de trabalho. Justamente a melhor política para as entidades representativas de profissionais liberais que se dispersam em áreas diversas de práticas está em operar e administrar uma definição flexível do métier, evitando cisões que enfraquecem. É preciso tolerância em relação aos parceiros de diploma que trabalham em espaços onde o jogo de interesses se exprime em controle ideológico mais intenso. A questão não deve ser enfrentada com silêncios e reservas, mas antes com desafios.

Para que se alcance essa política de aglutinação, é útil que a convivência possa fazer-se sem excessivos estereótipos e sem muita hostilidade. A dificuldade maior a esse respeito parece localizar-se entre o pessoal da pesquisa comercial e o restante da categoria, em especial o do meio acadêmico. Afinal de contas, o magistério secundário é visto por todos como frente de trabalho e de luta, onde o interesse da categoria se confunde com o interesse geral (por melhores condições de educação): e os professores universitários vêm conhecendo a necessidade de luta coletiva contra o aviltamento salarial. Por sua vez, o planejamento social tem por detrás a inegável caução do interesse popular, não precisando de justificativas adicionais, muito embora - é claro - se vistas mais de perto as coisas não sejam tão simples assim.

A pesquisa comercial é serviço indispensável para a empresa capitalista, em particular para as de bens de consumo imediato. É nestas que o conhecimento e domínio dos anseios e desejos de consumo são mais cruciais. A pesquisa comercial começou a ser regularmente praticada à medida que o grande capital estrangeiro difundiu no país a tecnologia do marketing, nos idos do período JK ou logo a seguir. Algumas pessoas diplomadas em psicologia, filosofia, estatística e ciências sociais criaram fama de competência e passaram a servir ao mundo do marketing, vendendo pesquisas em agências próprias (institutos), que depois vieram a multiplicar-se e especializar-se. Muitas empresas industriais, tendo demandas constantes de estudos, resolveram abrir seus próprios departamentos de pesquisa, gerando condições de circulação profissional para o pessoal que se formava nos institutos. A situação chegou ao ponto de pesquisa de mercado ser hoje campo de atividade dotado de relativa autonomia em relação ao campo do marketing e ao campo da publicidade. Os pesquisadores de mercado dispõem de sociedade que os representa e volta e meia promovem cursos de reciclagem onde são discutidas técnicas mais refinadas de amostragem, de observação "qualitativa", ou de classificação de populações em classes de consumo. Contam com hierarquia própria denotáveis e funcionam, para todos os efeitos, como um meio profissional especializado.

A remuneração compensadora que muitos conseguem (regulada pelos salários de executivos) contribui para reduzir expectativas de ingresso ou retorno ao meio acadêmico, com suas bolsas e salários modestos. Empregados em jornadas de tempo integral acabam por sucumbir ao ritmo agitado dos prazos de entrega de relatórios e à disputa pelos clientes mais pródigos. Daí resulta tamanha cumplicidade com o meio gerencial, que dificilmente se localiza pesquisador de mercado que tenha perguntas próprias a colocar aos públicos que entrevista. Eles são docilmente limitados ao que o cliente postula, acatando o princípio de que as informações que colhem são de propriedade exclusiva de quem as paga. Sua experiência profissional só é cumulativa em termos de tecnologia empírica e nunca de algum domínio substantivo de práticas sociais, mesmo a do consumo. Até mesmo quando conseguem desenhar investigações que dêem mais curso à imaginação e revelem dimensões desconhecidas da sociedade, não se estimulam a retrabalhar os resultados fora do meio e fora do discurso imposto pelo meio. Conheço pesquisa bastante comentada acerca da mulher como consumidora, que revelou razoável insatisfação feminina com o trabalho doméstico e com a propaganda bestificante dos materiais de limpeza. A agência publicitária que a patrocinou incumbiu-se da divulgação, "embalando" os resultados em audiovisuais sedutores e em linguagem amaneirada; com isso, ela conseguiu diluir os achados, de modo a tornar os resultados palatáveis pelo público conservador e machista dos executivos de empresa a quem ela pretendia vender estudos similares.

Parece inútil a tentativa dos pesquisadores de mercado de se imporem perante os demais colegas sociólogos pela tecnologia de pesquisa que dominam ou pelo diploma comum. Sem uma reanálise do material que colhem, destinada a pares interlocutores fora do meio, dificilmente se superará o mal-estar dos pesquisadores de mercado na comunidade dos sociólogos, embora dela oficialmente façam parte. Uma condição prévia para isso consiste em romper com as esperanças de que da parte da clientela imediata (homens de marketing e publicitários) possa vir qualquer estímulo ao trabalho intelectual, sob a forma de perguntas pertinentes e profundas.

Os sociólogos hoje fecham com unanimidade em torno da igualdade, da justiça e da democracia; quando a esse consenso se juntar cumplicidade real no terreno das várias áreas de trabalho, suas sessões de TV serão ainda mais atraentes e participadas.

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    Este comentário foi escrito logo após um simpósio que a TV Cultura, de São Paulo, organizou sobre a profissão de sociólogo, em fins de 1983, e destinava-se à publicação em jornal. Como, todavia, ele assumiu extensão muito acima das especificações do jornal, optou-se por preservá-lo para outro veículo. A problemática de que ele trata está sempre se retirando, razão por que não se há de pôr em dúvida sua atualidade.
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    O uso da condição de sexo nesse argumento tem o único e preciso fim de chamar a atenção para o fato de que as mais fracas disposições para encarar o diploma de ensino superior como trunfo para ingresso no mercado de trabalho são encontradas justamente entre as moças de famílias ricas e cultivadas que freqüentam ramos mais voltados à cultura erudita, tais como filosofia, ciências humanas e letras. Essa associação entre condição de sexo e de classe social, de um lado, e disposições culturais ou profissionalizantes, de outro, tem sido verificada em inúmeras pesquisas de sociologia educacional; basta mencionar, a respeito, estudos como
    Os Herdeiros, ou
    A Reprodução, de Pierre Bourdieu e colaboradores, onde se encontram abundantes exemplos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1984
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