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GUSDORF, Ciência e poder

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Professor no Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação da Unesp (Araraquara)

Gusdorf, Georges. Ciência e poder. São Paulo, Convívio, 1983. 199 págs.

Nascido em Bordeaux em 1912, formado na Escola Nacional Superior (1937), prisioneiro de guerra na Alemanha de 1940 a 1945, e docente na Universidade de Estrasburgo (1948-76), o Prof. Gusdorf vem-se dedicando, desde a década de 40, ao estudo de vários problemas que preocupam o homem moderno: "a liberdade, a religião, a ciência, a fé, o declínio de nossa civilização" (p. 189). Autor de dezenas de livros, no Brasil é mais conhecido por A Agonia de nossa civilização.

Entretanto, nos últimos anos é possível observar uma certa indiferença (quando não um torcer de nariz) dos acadêmicos brasileiros para com o professor francês, acusado de ser positivista ou de se dedicar a temas meio embolorados, com relação às ciências humanas que se desenvolvem nos dias de hoje. Evidentemente, marxista é que Gusdorf não é, pois muitos de seus trabalhos foram publicados pela insuspeita Editora Convívio que, além do presente e de A Agonia..., editou Mito e metafísica e Impasses e progressos da liberdade, preparando-se para lançar Tratado da consciência moral. Além disso, uma nota da editora esclarece que desde 1976 o autor visita regularmente o Brasil, e que "seus artigos vêm sendo publicados desde há vários anos pela revista Convivium" (p, 190).

Após tais observações, cuidemos agora de Ciência e poder. Em primeiro lugar, chama a atenção do leitor a ausência de qualquer referência acerca da versão original francesa (sabe-se apenas que a tradução é de Homero Silveira), desconhecendo-se portanto se o livro foi lançado diretamente para o português, sem ser editado em francês - uma pequena observação a respeito seria bem recebida por todos. Em seguida, é aconselhável que os interessados em adquiri-lo tenham muita paciência, pois, ao que consta, a Convívio distribui precariamente sua produção (meu exemplar foi comprado diretamente da editora, após infrutíferas andanças e telefonemas a várias livrarias).

Ciência e poder está dividido em sete capítulos, nos quais Gusdorf destila seu desalento com relação às "conquistas científicas" alcançadas nos últimos tempos. Apesar de todo o "progresso" científico-tecnológico, os problemas cruciais contemporâneos continuam à espera de um equacionamento: a fome mata milhares de pessoas diariamente; a natureza é cada vez mais abalada pela ação predatória do homem; o contingente de desempregados chega a ser praticamente incalculável; o perigo da guerra (nuclear) é cada vez mais iminente. Nesse sentido, será que se pode falar em qualquer tipo de progresso, principalmente se se voltar os olhos para o passado? Sim, porque, de acordo com o autor, basta examinar as relações entre a política e as ciências para se perceber que "o poder não está a serviço da justiça; procura a potência e a dominação. E as ciências como são praticadas propõem-se apenas secundariamente à pesquisa da verdade; ciências do real e ciências do homem estão ligadas por exigências imperiosas do seu financiamento. A orientação do trabalho científico depende, pois, de finalidade e de prioridades impostas pelo Estado, que utiliza em vista de seus próprios interesses os resultados obtidos pelos cientistas" (p. 185). Acrescenta, mais pessimista ainda, que "é preciso um verdadeiro ato de fé para crer na possibilidade de uma política do espírito e de uma ciência racional, todas as duas cooperando para o bem da humanidade. A vida humana absolutamente não se manifesta nas incertezas do tempo presentes". E conclui sua argumentação deixando o destino da humanidade nas mãos do Criador: "resta esperar contra toda esperança, se é verdade que Deus escreve certo por linhas tortas" (p. 187).

Gusdorf procura explicitar todo o seu ceticismo com relação à real contribuição da ciência para uma "melhoria" da "qualidade de vida" da humanidade, no capítulo 3 de seu trabalho, intitulado "Desmitização da ciência", Comenta que no século passado (e em larga medida ainda hoje) acreditava-se que a massa de conhecimentos científicos acumulados seria capaz de fornecer à política algumas diretrizes, "uma certeza de que ela própria estaria desprovida. Esta reabilitação da política pela ciência é o fundamento da nova mitologia (...)" (p. 88). Isto porque, permanecendo intacto o prestígio dos cientistas e das ciências, ambos se beneficiam de um respeito generalizado "(...) no naufrágio universal das autoridades e das crenças" (p. 94), cujo exemplo significativo pode ser localizado no esplendor que desfrutam os prêmios Nobel científicos, em especial os de química, de física e de medicina. "Cientistas desconhecidos do grande público são, o mais das vezes, do dia para a noite, promovidos pelo júri do prêmio Nobel a uma celebridade universal. Daí por diante, enquanto viverem, (...) um ponto de vista sustentado por um comitê do prêmio Nobel acha-se por si mesmo promovido a uma espécie de sacralização, trate-se de pena de morte, de feminismo ou de poluição. Pouco importa que esses notáveis do saber (...) não tenham nenhuma competência particular na matéria; seu nome no frontispício de uma lista publicada nos grandes jornais do mundo inteiro fornece argumento decisivo a favor de uma opção política ou de um dentifrício (...). O prêmio Nobel (acabou se tornando) o equivalente de uma beatificação ou de uma canonização para quem o recebe" (pp. 94/96).

Procurando salientar a desordenada proliferação das ciências e suas inúmeras fragmentações, comenta que se observa nas universidades e centros de pesquisa uma "anarquia epistemológica tão grave quanto a anarquia moral e social característica da cultura contemporânea" (pp. 100/ 101). Para Gusdorf, o número de cientistas e de ciências não deixa de crescer em toda parte, e esta proliferação não é entendida como sinal de avanço: "trata-se antes de um esmigalhamento da percepção ligado ao desejo dos especialistas de se criar um pequeno reduto que lhes pertença propriamente no vasto conjunto da enciclopédia. Criar uma "ciência", dando-lhe um nome, é, acreditamos, assegurar-se um espaço próprio, em que o cientista será senhor absoluto. Resta assegurar-se das subvenções, fundar um laboratório munido de aparelhagem custosa o quanto for possível, sem esquecer a máquina de escrever (sic) e um pequeno computador. Depois disso garantir-se-ão alguns estudantes pagos pelo centro de pesquisa científica; criar-se-ão uma coleção de publicações e uma revista destinada à correspondência com os colegas estrangeiros (...) que terão feito o mesmo frutuoso cálculo e consagrado, também eles, 10 ou 20 anos de carreira para conseguir seus fins. Quanto ao objeto próprio da "ciência" assim criada, a importância é secundária: pode tratar-se de altas temperaturas ou de baixas, da guerra ou da paz, de plantas carnívoras ou de gafanhotos, da alimentação em zona deserta ou em meio polar; tudo pode ser utilizado. A matéria do saber não é uma finalidade, mas somente um meio usado por um indivíduo que aspira reserva-se um lugar ao sol na imensa organização feudal do saber contemporâneo" (pp. 101/102).

Contrariamente ao que pensa um "homem do povo", Gusdorf explicita que "quanto mais sábios em nosso universo, haverá menos ciência propriamente dita" (p. 102), pois nas universidades e instituições de pesquisa os vários grupos de trabalhadores intelectuais, aglutinados em disciplinas, departamentos ou projetos específicos, lutam ferozmente para a tomada do poder e, em conseqüência, fazer valer a sua "verdade científica". Não é por outra razão que, em dois de seus textos - "Campo intelectual e projeto criador" e "O mercado de bens simbólicos" - o sociólogo Pierre Bourdieu utiliza como epígrafe um trecho de Sodome et Gomorrhe, de Proust: "As teorias e as escolas se devoram reciprocamente, como os micróbios e os glóbulos, e asseguram por sua luta a continuidade da vida."

Assim, o mito da ciência não resiste melhor ao exame do que o mito da política: "O território da política concreta é o local de um combate sem quartel pela dominação, pela submissão, ou pela eliminação do concorrente. O território da ciência é paralelamente a aposta de tentativas para assegurar o controle do espaço total da enciclopédia" (pp. 104/105).

Alguns outros textos, entre os quais se destacam A Ciência como Atividade humana (em especial caps. 7 e 8), de George F. Kneller; "O campo científico", de Pierre Bourdieu; A Imaginação sociológica (cap, 5), de Wright Mills, e A Estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, têm preocupações semelhantes às de Gusdorf, além de fornecerem indicações e argumentos que complementam várias das lacunas existentes no livro do veterano professor francês. Entretanto, ao menos em um aspecto, os autores referidos parecem concordar, qual seja, o de que a ciência contemporânea liga-se ao poder por necessidade, pois só este é capaz de lhe fornecer os meios financeiros indispensáveis. Conseqüentemente, "o poder tem necessidade de desenvolver e de controlar o saber", pois ele acaba se constituindo num dos "maiores instrumentos da potência das nações" (p. 107).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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