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O disciplinamento da gestão financeira do poder público

ARTIGO

O disciplinamento da gestão financeira do poder público

Eurico Korff

Professor Titular no Departamento de Contabilidade, Finanças e Controle da EAESP/FGV

1. AS RAÍZES HISTÓRICAS DO CONSENTIMENTO E DA PREVISÃO FINANCEIRA

O vulto da ação financeira do poder público, obviamente, mantém estreita ligação com as idéias e as expectativas predominantes sobre o papel que o Estado exerce - ou passou a exercer, muitas vezes a despeito das limitações que se pretendeu lhe impor.

Desde a época de preponderância do pensamento liberal irrestrito - "o melhor Estado é aquele que interfere e até administra menos" - até os dias de hoje - "quando o Estado comparece ou é chamado a comparecer (ou comparece até sem ser chamado) aos mais variados setores da nossa economia e sociedade" - foi percorrido um longo caminho.

O que, porém, sempre foi uma constante é que a atividade financeira do Estado, qualquer que fosse o seu vulto, nunca deixou de ser um ato eminentemente político, com a necessária legitimação do poder de arrecadar, tanto mais que o surgimento da sua expressão mais significativa - o orçamento público - se confunde com a origem dos próprios direitos do cidadão e das instituições de representação popular.

Já em nossa época, os técnicos e administradores, que encontraram a sua síntese na chamada "tecnocracia", procuram substituir os políticos no domínio da gestão financeira do Estado, com a reiterada invocação da "racionalidade" e, sobretudo, da "eficiência".

Diz Aliomar Baleeiro, com precisão, que o orçamento, na sua origem, "não se prende à elucubração de técnicos, nem à preocupação de racionalizar a máquina financeira" e que "uma penosa e multissecular cadeia de lutas políticas tornou a elaboração orçamentária indispensável ao equilíbrio dos interesses antagônicos em volta do poder".1 1 Baleeiro, Aliomar. Uma Introdução à ciência das finanças. 12. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. p. 398.

O consentimento da coletividade e a previsão das contribuições são elementos essenciais das definições mais aceitas do orçamento público, como a de Stourm - "ato contendo a aprovação prévia das receitas e das despesas públicas"; ou a de Bessaignet - "ato pelo qual são previstas e autorizadas as receitas e as despesas anuais do Estado"2 2 Ver Andrade, Sudá de. Apontamentos de ciência das finanças. 2. ed. Rio de Janeiro, José Konfino, 1960. p. 199. , mas sempre se confundiram com a natureza do próprio orçamento, desde as suas formas mais primárias.

Uma das manifestações precursoras é assinalada ainda na época do feudalismo, quando os monarcas, em face do fracionamento do poder, tiveram que reunir em assembléias os senhores feudais, seus vassalos, sempre que necessitassem arrebanhar recursos no interesse comum, geralmente para travarem a guerra; e só o conseguiram mediante o consenso e a fixação comum das contribuições. A instituição das "cúrias régias", em várias regiões da Europa, isto é, de conselhos constituídos por nobres e sacerdotes, foi uma forma de associação encontrada para legitimar resoluções de interesse coletivo, geralmente com conotação financeira. Na Espanha, quando os representantes do comércio e dos ofícios se juntaram aos do clero e da nobreza, a "cúria espanhola" se transformou nas "Cortes", convocadas por vezes para aprovarem tributos extraordinários solicitados pelo rei. Existe um documento de 1091, mediante o qual Afonso VI notificava a cobrança de um tributo extraordinário e se refere ao consentimento dos contribuintes. As chamadas "Cortes de Leão", de 1188, significaram algo como o reconhecimento de que os impostos não deveriam ser cobrados sem o consentimento dos delegados dos contribuintes.3 3 Ver Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 399-400.

Um dos documentos de maior importância na história política - a "Magna Carta" - é estreitamente ligado a aspectos fiscais: o Príncipe João sem Terra, depois de haver imposto uma série de tributos de forma violenta e extorsiva, sofreu a revolta dos barões ingleses, que, em 1215, o obrigaram a assinar aquela "Carta", com a restrição dos poderes reais, notadamente através do compromisso de não cobrar tributos sem o consentimento do "Conselho dos Comuns". Mais tarde, a já "Câmara dos Comuns", além do consentimento quanto à cobrança dos tributos, viria reclamar e obter também o direito de conhecer a aplicação dos recursos.4 4 Ver Barros Filho, Theotonio Monteiro de. Curso de direito financeiro. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Direito Financeiro, 1958. p. 12-3.

Ao querer sobrepor-se às restrições da "Magna Carta" para cobrar tributos não consentidos, por intermédio da Câmara dos Comuns, o rei Carlos I, em 1649, perdeu o poder e a cabeça.

E foi também por querer impor, sem procurar o consentimento, o tributo sobre o papel, o vidro e o chá, que os britânicos provocaram a rebelião e, com isto, a perda das suas 13 colônias da América do Norte que, por sinal, contra eles se levantaram sob a divisa No taxation without representation.

A casa real da França, por sua vez, que vinha, sem buscar consentimento, aumentando de forma crescente a carga tributária (concentrada no 3º estado, a burguesia, diante da isenção do clero e da aristocracia), se viu confrontada no século XVIII por sério impasse: com os cofres públicos exauridos, apesar da constante sangria, o rei Luiz XVI, em busca de recursos ainda maiores, não viu outra saída senão fazê-lo, já então na procura do consenso, com a convocação dos "estados gerais"; como sabemos, isto desencadeou o processo que desembocou na Revolução Francesa de 1789, que também a ele acabou custando o poder e a própria cabeça.

Hoje em dia, nos países ditos civilizados, os deslizes financeiros não mais fazem os governantes perderem propriamente as suas cabeças - a não ser em sentido figurado. Mas podem fazê-los perder a credibilidade e, como conseqüência, o poder...

Está aí o exemplo de Hugh Dalton, um dos maiores financistas de todos os tempos, autor da obra clássica Principles of public finance.5 5 Dalton, Hugh. Principles of public finance. 21. ed. London, Routledge & Kegan Paul. No Brasil: Princípios de finanças públicas. 4. ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1980. Pois bem, quando investido, por volta de 1950, no cargo de ministro da Fazenda da Grã-Bretanha, um simples vazamento de informações, causado por funcionário do segundo escalão e que teve alguma influência no mercado acionário, fez com que se sentisse levado a demitir-se de forma irrevogável.

2. ORÇAMENTO PÚBLICO - PEÇA EMINENTEMENTE POLÍTICA

A efervescência política que caracterizou o século XIX, com o recrudescimento dos movimentos de reivindicação social em plena Revolução Industrial, teve o seu reflexo no questionamento da origem dos recursos extraídos da coletividade, ou seja, no lado da receita dos orçamentos.

Passou-se a discutir a oportunidade de se substituir mais ou menos intensamente uma tributação até então dominante, de natureza indireta, embutida no preço dos produtos consumidos e portanto calcada sobre as contribuições da grande massa, por outra que recolhesse recursos dos que estivessem em melhor situação de renda ou fortuna, ou seja, de acordo com a capacidade contributiva. Para isto o imposto de renda passou a ser considerado o melhor instrumento; instituído pela primeira vez e de forma ainda transitória pelo Gabinete de William Pitt para reforçar o tesouro britânico, durante as guerras napoleônicas, o novo tributo acabou se convertendo no objetivo de todos os movimentos de reivindicação social, como instrumento de justiça tributária, sendo um dos postulados do próprio Karl Marx.

O consentimento da representação popular para determinar o volume das contribuições da coletividade - uma das mais importantes, se não a mais importante tarefa do Poder Legislativo - passou a ser discutido também em termos de distribuição da carga tributária por toda a sociedade.

Já em nosso século, a escolha e a aplicação dos tributos ou outras formas de receita e o envolvimento de setores ou classes da sociedade na sua cobertura passaram a ser questão nuclear na discussão de qualquer orçamento, o que mais acentua o seu caráter político - a necessidade de discuti-lo com a participação mais ampla dos representantes de toda a sociedade envolvida, tarefa na qual estes dificilmente poderiam ser substituídos por elementos da burocracia ou por decisões estreitas de gabinete.

Teoricamente, o outro lado do orçamento, a despesa pública, se reveste de caráter não menos político do que a receita pública, pois justifica um interesse e participação da sociedade na destinação dos recursos arrecadados não menores do que na determinação da origem da receita.

Aqui, ao componente "consentimento", tão essencial nas decisões sobre a origem e composição da receita, se reúne decisivamente o da "previsão", uma vez que é o volume da despesa que, em última análise, suscita o da receita, desde que, obviamente, a obtenção da receita seja viável em termos de volume e composição. O estreito inter-relacionamento receita/despesa ainda mais se acentua uma vez que se queira estender a influência fiscal sobre a distribuição de renda, sempre presente na constituição da receita pública, também à despesa.

É o caso, por exemplo, das intenções do III PND, no Brasil, quando se propôs suplementar a renda das classes mais carentes com benefícios sociais proporcionados através da despesa pública. Como bem lembra James O'Connor, a respeito de tal tipo de benefícios, tais como transportes coletivos subsidiados ou gratuitos, os seus propósitos só se efetivam desde que não sejam distorcidos por um sistema regressivo de receita, que faça com que a conta seja paga pelos próprios supostos beneficiários.6 6 O'Connor, James. USA - a crise do estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

3. O CONFRONTO DO "TÉCNICO" COM O "POLÍTICO"

Em termos práticos, porém, não obstante o caráter eminentemente político da despesa, tão indiscutível quanto o da receita, é o lado da despesa que tem sofrido investidas mais constantes e erosivas; é a brecha por onde tem penetrado, com mais facilidade, a tecnocracia, sob a invocação da racionalidade e da eficiência, na permanente disputa entre o técnico e o político.

A penetração e o predomínio que o "técnico" acabou por alcançar sobre o "político" nas decisões sobre a despesa pública, por fim, não se limitou apenas a esta, mas extravasou a ponto de transferir para o Executivo e, por extensão, à tecnocracia, a formulação do orçamento no seu todo, fazendo com que se marginalizasse a representação política não só quanto à destinação dos recursos, mas quanto à sua própria origem dentro da sociedade, deixando de atender plenamente ao "consentimento" e à própria "previsão".

A maciça expansão da despesa pública, neste século, em função das tarefas grandemente ampliadas do poder público, sob a pressão dos fatos sociais e econômicos, e em termos tanto estruturais como conjunturais, rompeu, uma por uma, todas as restrições e controles.

Assim, foram levados de roldão os tabus remanescentes da chamada era victoriana - o da limitação das despesas ao mínimo e o do equilíbrio orçamentário; quanto ao primeiro dos dois aspectos, já previsto por Adolf Wagner, no fim do século passado - com a formulação da sua "lei de dilatação crescente da despesa pública,"7 7 Wagner, Adolf. Lehr - und Handbuch der Politischen Oekonomie. Publicada na Alemanha, a partir de 1983. e, quanto ao segundo, como reflexo inevitável das seqüelas da crise de 1929 e da irrupção da teoria keynesiana.

Mas também foram sendo ultrapassados os preceitos clássicos que, segundo Àliomar Baleeiro,8 8 Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 420. seriam básicos para qualquer orçamento público e que, traduzindo em termos práticos as várias vezes referidas características de "consentimento" e "previsão", seriam sintetizados na "anualidade", na "unidade" e na "universalidade" do orçamento.

Para José Afonso da Silva, a evolução já teria até sacrificado o próprio "orçamento tradicional". Este "limitava-se, fundamentalmente, a uma relação das receitas e fixação das despesas", sendo "ato de previsão e autorização", tendo como "seu objetivo básico, historicamente, ... sempre o de assegurar o controle político das atividades governamentais, controle que se fazia através dos órgãos legislativos sobre atividades financeiras dos órgãos do Executivo", sendo "um orçamento político, contábil e financeiro apenas".

Segundo o mesmo autor, "com a intervenção estatal na ordem econômica e social, o orçamento passou a ter novas funções, passou a ser um instrumento de programação econômica, de programação da ação governamental, em consonância com a economia global (...), um instrumento de política fiscal, quando procura criar condições para o desenvolvimento; por isto, "as exigências do planejamento das atividades do poder público determinaram a necessidade de adoção de novas técnicas orçamentárias" e "daí surgir a técnica do orçamento por programa ou orçamento-programa, que é um tipo de orçamento vinculado ao planejamento das atividades governamentais".9 9 Silva, José Afonso da. Orçamento - Programa no Brasil. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 40-41

Aí está, com a invocação de critérios "técnicos" de necessidades do planejamento e do desenvolvimento econômico, com a pretendida substituição do "orçamento tradicional" por "novas técnicas orçamentárias", algo para justificar o deslocamento das decisões orçamentárias para dentro do poder executivo e da própria "tecnocracia". Os argumentos seriam válidos?

Para responder a esta questão, nada melhor do que analisar a evolução da própria gestão orçamentária.

4. AS NOVAS TÉCNICAS ORÇAMENTÁRIAS

A primeira brecha no "orçamento tradicional", através da superação de um dos critérios básicos anteriormente referidos, o da "anualidade", ocorreu com a instituição das chamadas "leis de programa". A expansão da despesa pública, muito além das limitações dos liberais apenas voltadas para a simples manutenção do aparelho estatal, condicionou a divisão da despesa, a partir de iniciativas pioneiras dos países escandinavos, em "corrente" e "de capital", conforme significassem "consumo" ou "investimentos" do governo. A ampliação dos investimentos do governo, notadamente das obras públicas, sujeitas freqüentemente a programas de execução por vários anos, sugeriu a instituição daquelas "leis de programa", para a previsão de determinadas "despesas de capital" por mais de um exercício. Os franceses foram os precursores, com a lei destinada a permitir a construção da malfadada "Linha Maginot", na década de 1920. No Brasil, tivemos, com o Plano Salte, uma tentativa do Governo Dutra de programar além do seu próprio período administrativo (malsucedida, em face da pouca disposição do sucessor de cumpri-la) e outra do Governo Carvalho Pinto, em São Paulo (mais bem-sucedida, porque limitada exclusivamente ao próprio período governamental).10 10 Ver Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 417-8; e Silva, José Afonso da. op. cit. p. 31 e segs.; atualmente o assunto encontra atendimento nos "orçamentos plurianuais", que coexistem com os anuais, como previsto na própria Constituição brasileira vigente.

Depois surgiu, como antecessor do "orçamento-programa", o chamado "orçamento funcional" ou "de desempenho", técnica que, segundo Alberto Deodato, teria como "preocupação o custo, por unidade do serviço dado".11 11 Deodato, Alberto. Manual de ciência das finanças. São Paulo, Saraiva, 1961. p. 372-3.

O "orçamento-programa", introduzido nos EUA a partir da década de 1950 e em seguida difundido pelo mundo, sendo legalmente adotado no Brasil através da Lei nº 4.320, de 7 de março de 1964, é, segundo José Afonso da Silva, "antes de tudo, um instrumento de execução de planos e projetos de realização de obras e serviços (...), um documento em que se designam os recursos de trabalho e financeiros destinados à execução dos programas, subprogramas e projetos de execução da ação governamental, classificados por categorias econômicas, por função e por unidades orçamentárias".12 12 Silva, José Afonso da. op. cit. p. 41.

Finalmente, a última novidade, o "orçamento base 0" - introduzido na administração pública norte-americana pelo Presidente Cárter e instituído, ao menos formalmente, no estado de São Paulo - se destaca como técnica de reavaliação e questionamento de cada despesa, a partir da "estaca 0", e estabelecimento prévio de três níveis de dispêndio para cada unidade de gastos, aplicáveis de acordo com a evolução da receita. Conforme um dos seus divulgadores, Peter A. Pyhrr, trata-se de "um instrumento administrativo prático para avaliação das despesas".13 13 Pyhrr, Peter A. Orçamento base 0. São Paulo, Interciência/USP, 1981.

É significativo que todas essas "técnicas orçamentárias" demonstram concentrar-se na "despesa". Ora, orçamento é despesa, mas também é, necessariamente, receita - e quanto à receita, à sua origem e composição, à distribuição da carga tributária etc, esses orçamentos não oferecem nem poderiam oferecer qualquer resposta que, não sendo técnica, mas sobretudo política, só poderia ser encontrada em termos políticos, nos moldes orçamentários tradicionais.

Essas "técnicas orçamentárias" podem facilitar o trabalho da burocracia e melhorar os seus resultados em termos de racionalidade e eficiência, mas não justificam o obscurecimento dos aspectos políticos, no que dizem respeito não só à receita, mas à própria despesa; até pelo contrário, quando por exemplo surgiu o "orçamento-programa" no Congresso norte-americano, isto não significou uma abstenção, mas a persistência do próprio Legislativo para obter uma previsão mais completa e detalhada dos gastos públicos e do seu entrosamento com a orientação econômico-financeira global.

Embora autores como Procópio G. O. Belchior apontem uma diferença básica entre o "orçamento tradicional" - com "os recursos (...) consignados sem que seja explicitada a sua destinação" - e o "orçamento-programa" - "conjunto de programas, subprogramas, projetos e atividades, para cuja execução são solicitados e posteriormente consignados os meios necessários"14 14 Belchior, Procópio G.O. Novo orçamento-programa. 2. ed. Rio de Janeiro, Pallos, 1976. p. 16. parece que o "orçamento-programa" ou outros semelhantes mais trouxeram uma complementação ou aperfeiçoamento técnico ao instrumento essencialmente político que sempre foi o "orçamento tradicional", cujos princípios fundamentais, apesar dos arranhões que sofrem, continuam a ter validade e até força de lei. Tanto isto é verdade que a referida Lei nº 4.230, de 1964, ao estabelecer as bases para a introdução de critérios de "orçamento-programa" no Brasil, dispondo no seu art. 2º que "a lei de orçamento conterá a discriminação da receita e da despesa de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do governo", timbrou em acrescentar: "obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade."

5. A "COMPETÊNCIA LIMITADA" EM MATÉRIA ORÇAMENTÁRIA

Se os tradicionais aspectos políticos do orçamento não devem ser obscurecidos por novas técnicas, que mais devem complementá-los, mas não substituí-los, para que não haja o predomínio do técnico sobre o político - a substituição do "consentimento" pelo "paternalismo" ou a "tutela" - não existiria, por outro lado, o risco dos excessos ou das imprudências do Poder Legislativo, desde que não contidos institucionalmente - e com o concurso do próprio Poder Executivo?

Sucede que é norma generalizada em todo o mundo que a formulação do projeto do orçamento cabe ao Poder Executivo, considerado entre os três poderes o mais qualificado para fazê-lo, uma vez que a ele cabe a administração, são dele os contatos mais estreitos e constantes com a população por intermédio dos seus agentes, dele também os meios para colher e interpretar dados e analisar as repercussões. A administração cabe, pois, sempre a primazia de desencadear e encaminhar o processo orçamentário, papel que a ninguém ocorre lhe disputar e onde pode utilizar a melhor técnica disponível e traçar as diretrizes e objetivos que lhe pareçam mais adequados.

Tal como é tarefa incontestada do Poder Executivo elaborar a proposta do orçamento, é da essência do regime representativo e do equilíbrio dos poderes a competência do Legislativo para submetê-la a debate amplo e público e, finalmente, aprová-la, rejeitá-la ou modificá-la.

A extensão da capacidade para introduzir modificações na proposta do Executivo é que define a competência plena ou limitada do Poder Legislativo em matéria orçamentária.

A competência plena dá ao Legislativo a condição de aprovar a proposta orçamentária no seu todo ou em parte, inclusive para modificá-la para mais ou menos, sem qualquer restrição.

Já a competência limitada impõe ao congressista restrições quanto às modificações, geralmente no que diz respeito ao aumento da despesa, numa ou noutra forma.

Theotonio Monteiro de Barros Filho, discorrendo em 1956, portanto em plena vigência da Constituição de 1946, apontava o caráter limitado daquela competência: "Aqui, o congressista (...) não pode introduzir no orçamento certo tipo de emendas (...), não pode, por exemplo, ter a iniciativa de criar cargos ou aumentar despesas em conseqüência da criação de cargos em serviços já organizados ou aumentar vencimentos" e "há uma série de proibições, que são estabelecidas, algumas constitucionalmente, outras através do próprio Regimento Interno das duas Casas do Congresso e que limitam a conduta do legislador, ao discutir o plano orçamentário".

Naquela altura, justifica aquele autor "esta tendência para limitar a autonomia de ação do Congresso Nacional", por obedecer "a preocupação de evitar (...) enxertos, adição de coisas que não são, nem tecnicamente, nem legalmente, matéria orçamentária e que, entretanto, são levadas ao corpo do orçamento por preocupações demagógicas, para fins eleitorais", observando que, "se me pedissem uma opinião a respeito da escolha feita pelo nosso legislador constituinte, eu responderia que estou de acordo com a mesma, porque se visa, com o regime de competência limitada, a restrição da demagogia através do plano orçamentário".

Concluía Theotonio Monteiro de Barros Filho aquelas suas considerações de 1956 que, no tocante a possíveis interferências demagógicas, "o regime de competência limitada do Congresso", nos termos da Constituição de 1946, "se não elimina completamente essa possibilidade, pelo menos a atenua grandemente e evita, em boa parte, os males que daí podem decorrer".15 15 Barros Filho, Theotonio Monteiro de. op. cit. p. 22 e 27-8.

6. A CENTRALIZAÇÃO ORÇAMENTÁRIA NO PODER EXECUTIVO

A atual Constituição, de 1967/9, entretanto, vai muito além daquelas, cautelas que Monteiro de Barros Filho julgava razoáveis e satisfatórias.

Assim, a Constituição de 1946, no seu art. 67, atribuía à Câmara dos Deputados e ao presidente da República "a iniciativa da lei de fixação das Forças Armadas e a de todas as leis sobre matéria financeira" (§ 1º), dando ao presidente da República competência exclusiva apenas no caso já citado de "iniciativa das leis que criem empregos em serviços existentes, aumentem vencimentos ou modifiquem (...) a lei da fixação das Forças Armadas" (§ 2º).

A Constituição vigente já não atribui à Câmara dos Deputados, juntamente com o presidente da República, a iniciativa das leis sobre matéria financeira, uma vez que estabelece no seu art. 65 que "é da competência do Poder Executivo a iniciativa das leis orçamentárias e das que abram créditos, fixem vencimentos e vantagens dos servidores públicos, concedam subvenção ou auxílio ou, de qualquer modo, autorizem, criem ou aumentem a despesa pública", dispondo ainda no § 1º que "não será objeto de deliberação a emenda de que decorra aumento de despesa global ou de cada órgão, fundo, projeto ou programa, ou que vise a modificar-lhe o montante, a natureza ou o objetivo". Mesmo que uma emenda ao orçamento ultrapasse as restrições desse § 1º, ela terá a sua tramitação dificultada nos termos do § 2º, enquanto que o art. 66 da Constituição tende, por sua vez, a limitar sensivelmente a extensão do debate parlamentar em torno do orçamento e das suas eventuais modificações.

Se a Seção VI da Constituição ("Do orçamento"), nos arts. 65 e 66, não mais dá ao Legislativo a iniciativa das "leis orçamentárias", a Seção V ("Do processo legislativo"), na forma do art. 57, estabelece que "é da competência exclusiva do presidente da República a iniciativa da lei que: I - disponham sobre matéria financeira; II - criem cargos, funções ou empregos públicos ou aumentem vencimentos ou a despesa pública; III - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas", dispondo ainda no § único que "não serão admitidas emendas que aumentem a despesa prevista (...) nos projetos cuja iniciativa seja de exclusiva competência do presidente da República".16 16 O grifo é do autor.

É diante de todas essas restrições que deve ser entendida a competência que a Constituição, no seu art. 43, confere ao Congresso Nacional para "dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente: I - tributos, arrecadação e distribuição de rendas; II orçamento anual e plurianual; abertura e operação de crédito; dívida pública, emissões de curso forçado."17 17 A respeito da ampliação da autoridade do Executivo em assuntos financeiros, citem-se ainda o art. 51, § 3º, que tem em vista a aprovação por decurso de prazo, e o art. 55, que prevê a utilização de decretos-leis em "casos de urgência ou de interesse público relevante", inclusive em matéria de "finanças públicas".

Aí está, traduzido no texto constitucional, a efetiva centralização do "poder orçamentário", em mãos do Poder Executivo, quando antes esteve repartido na forma da "competência limitada".

É o que explica também por que o debate em torno da origem e destinação dos recursos orçamentários se deslocou totalmente da tradicional arena legislativa para os gabinetes da administração, onde efetivamente se tomam as decisões e se arbitram os interesses - tais como, por exemplo, as controvérsias mais recentes entre os setores do planejamento e da educação ou da previdência social, ou anteriormente entre o de transportes e de organismos regionais para a retomada parcial dos incentivos fiscais da pessoa jurídica, com o fim de sua aplicação na construção da "Transamazônica".

A freqüente tomada de decisões em ambiente fechado priva a coletividade de participar da destinação dos recursos que gera - e o que é mais significativo em economia subdesenvolvida - no estabelecimento de prioridades que a escassez de meios inevitavelmente requer ou dos limites para o gasto público, condicionados pela capacidade contributiva e pela necessidade de se conciliar o dispêndio do Estado, notadamente o seu investimento, com a preservação da capacidade privada de formar poupança (é o caso, por exemplo, de que uma tributação excessiva dos lucros das empresas privadas, para atender o investimento público, esgote a sua capacidade de capitalizar-se, isto é, de desenvolver o seu auto-financiamento, que é a base do crescimento de qualquer sistema capitalista).

7. O ENTRELAÇAMENTO DA POLÍTICA FINANCEIRA/FISCAL COM A POLÍTICA MONETÁRIA E CAMBIAL

O que é ainda pior é que, sendo as medidas de ordem monetário-creditícia e cambial ordinariamente decididas por órgãos do Executivo, no dia-a-dia de uma ação voltada para a conjuntura do momento, as medidas fiscais, prestando-se a outro tipo de decisão, de debate e de participação, poderiam constituir um fator de equilíbrio, mas deixam de usar esta oportunidade quando passam elas para o virtual domínio das autoridades administrativas.

A fixação da taxa de câmbio e de outros dispositivos do comércio exterior, de aplicação imediata, bem como a utilização dos clássicos instrumentos de política monetária - taxa de redesconto, recolhimento compulsório da rede bancária e open market - teria que ser, de fato, objeto de atuação permanente, flexível e veloz, própria dos órgãos executivos.

A rigor, a ação das autoridades monetárias e do comércio exterior, embora enquadradas no âmbito do Poder Executivo e sem prejudicar a sua desenvoltura, não teria que excluir a participação da coletividade.

Quando foi criado, pela Lei nº 4.595, de 1964, o Conselho Monetário Nacional, "para formular a política da moeda e do crédito", para "adaptar o volume dos meios de pagamento às necessidades reais da economia e ao seu processo de desenvolvimento", para "a melhor utilização dos recursos da moeda estrangeira, buscando o equilíbrio do balanço de pagamentos e regulando o valor da moeda", o foi como órgão colegiado. Neste, ao lado dos ministros da área econômica, do presidente do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários e dos representantes das instituições financeiras oficiais, está assegurada a presença de três membros oriundos da iniciativa privada, de nomeação do presidente da República, com mandato de cinco anos.18 18 Ver Introdução ao mercado de ações. 2. ed. Rio de Janeiro, Comissão Nacional de Bolsas de Valores, 1980. p. 34-5

Entretanto, trata-se, quanto à presença dos representantes da iniciativa privada no Conselho Monetário Nacional, de uma participação mais de ordem consultiva, uma vez que pelo próprio número tenderiam a ser superados pelos representantes do poder público de ação habitualmente uniforme e orquestrada com antecedência.

O Banco Central, criado pela mesma lei, nº 4.595, de 1964, é o órgão executivo, formalmente subordinado ao Ministério da Fazenda, devendo "cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas emanadas do Conselho Monetário Nacional".19 19 Id. ibid. p. 36. A sua diretoria é composta de um presidente e cinco diretores, nomeados diretamente pelo presidente da República. Falta-lhe a autonomia e estabilidade, em relação às autoridades governamentais, que tradicionalmente têm caracterizado a atuação dos bancos centrais de outros países, como é o caso do Sistema de Reserva Federal, nos EUA, do Banco da Inglaterra e do Bundesbank da República Federal Alemã.

Com a execução da política monetária e cambial inteiramente dominada pela administração, a ação fiscal se ressente mais ainda de uma participação mais ampla e efetiva da coletividade.

Seria até uma espécie de counterweighing power a política fiscal-financeira, mais controlada por intermédio do Legislativo, exercer uma influência reguladora sobre a esfera menos estreitamente controlável da moeda, do crédito e do câmbio.

Isto faz mais sentido quando se considera o estreito entrelaçamento, na prática, da política do comércio exterior (via impostos de importação, de exportação, de operações financeiras, reduções e isenções fiscais, etc.) e da política monetária (via crédito público, carga tributária e despesa pública) com a política fiscal.

Perdendo a efetividade da sua influência sobre a ação fiscal, a coletividade lamentavelmente também perde a oportunidade de interferir por seu intermédio na própria política monetária e do comércio exterior.

8. O GRANDE PROBLEMA: A DESPESA FORA DO ORÇAMENTO

Se o consentimento e a previsão, características essenciais de um orçamento convincente, são sacrificados pela forma como a peça orçamentária é levada à aprovação, com as limitações da sua discussão e modificação, ainda assim o Poder Legislativo tem a autoridade de aprová-la ou rejeitá-la.

O que, entretanto, tornou a situação mais crítica é que a evolução do dispêndio público efetivo tem rompido todas as molduras convencionais do orçamento e derrubado todos os preceitos básicos, não só do consentimento e da previsão, mas também da anualidade, unidade e universalidade. E - se a reclamação contra a atual tramitação parlamentar tem em vista que ao Congresso só resta aprovar ou rejeitar a proposta orçamentária - a realização de vultosa despesa fora e além do orçamento público subtrai tais valores à própria aprovação.

Somente assim se explica como, por exemplo, no exercício fiscal de 1981, com uma receita e despesa públicas, como de hábito aparentemente equilibradas, de Cr$ 2,3 trilhões cada, o poder público tenha gasto efetivamente não apenas os Cr$ 2,3 trilhões da despesa pública orçamentária, mas o total de Cr$ 3,6 trilhões, gerando um déficit público real de cerca de Cr$ 1,3 trilhão.

Esse déficit de Cr$ 1,3 trilhão, decorrente de gastos excedentes ao orçamento público, constitui portanto despesa a descoberto sem qualquer aprovação legislativa, nem mesmo nas condições mais restritas da atual estrutura constitucional.

O excesso do gasto público real sobre a receita orçamentária atingiu mais de 50% no referido exercício fiscal de 1981, foi mais ou menos da mesma ordem no exercício anterior, de 1980, e, segundo consta, se manteve em nível semelhante nos exercícios subseqüentes de 1982 e 1983, o que atualmente pode ser considerado recorde universal, prevendo-se para 1983, além dos Cr$ 10 trilhões da execução orçamentária, mais Cr$ 5 trilhões de despesas fora do orçamento fiscal, continuando o déficit real de 50% sobre a receita fiscal.20 20 Os dados aqui mencionados sobre a gestão financeira do Governo são provenientes de publicações da FIBGE, SEST/Seplan e Conjuntura Econômica.

9. SUBSÍDIOS E INVESTIMENTOS PÚBLICOS

A primeira observação que se pode fazer a respeito é que o destino desses gastos fora do orçamento fiscal, em 1981, foi a cobertura dos "subsídios" (ao crédito, abastecimento e petróleo), no valor de Cr$ 1,3 trilhão, e dos investimentos das empresas estatais, no valor de Cr$ 1,2 trilhão, sendo para a soma dos dois itens, de Cr$ 2,5 trilhões, destinados apenas Cr$ 1,2 trilhão por transferência do orçamento público, o que então deixou a descoberto a diferença de Cr$ 1,3 trilhão como o referido déficit real (com proporções semelhantes nos demais exercícios até o presente).

A segunda observação é que, tanto uma como a outra despesa se enquadrariam normalmente nos moldes do orçamento público: a dos subsídios entre as despesas de transferência, subdivisão da despesa corrente, e a dos investimentos das empresas estatais na despesa de capital ou até eventualmente também entre as despesas de transferência.21 21 No caso de uma empresa do tipo Rede Ferroviária Federal S.A., por exemplo, o suprimento de fundos públicos pode ocorrer tanto como despesa de capital (para subscrição de aumento de capital) quanto como despesa de transferência (subvenção para cobertura do déficit operacional). Desde que esses valores, como despesa pública que realmente são, fossem totalmente incorporados à despesa orçamentária, o orçamento fiscal, ao invés de aparecer equilibrado, apresentar-se-ia com o seu déficit efetivo para, inclusive, permitir a previsão da despesa e o consentimento para a realização necessária da receita.

Deixada fora do orçamento fiscal uma cifra correspondente a 50% da despesa orçada, esta acaba não sendo objeto de debate nem de aprovação legislativa, não sofre análise mais ampla, nem em termos de prioridades, nem quanto à sua cobertura, seja através da tributação, seja por meio do crédito público ou mesmo mediante a emissão de papel-moeda, o que afinal vem constituir um ônus mais ou menos generalizado sobre toda a coletividade, sem que esta seja chamada a opinar.

Diante da coexistência prolongada de orçamentos fiscais aparentemente equilibrados e de déficits reais da ordem de 50% da receita pública, a coletividade e os seus órgãos de representação não poderiam ser excluídos da aprovação de despesas, cuja conta, mais cedo ou mais tarde, lhes seria apresentada. Isto é tanto mais importante quando se trata de despesas cuja oportunidade é muito controvertida: é o caso dos subsídios, por sinal extintos em 1964/5, como já referido, e que foram mais tarde restabelecidos em condições questionadas, inclusive no tocante aos setores beneficiados ou onerados;22 22 Além dos subsídios que constituem saída como despesa, a rigor deveriam ainda ser considerados aqueles, de natureza indireta, que como "incentivos fiscais" constituem redução de receita. é também o caso dos investimentos das empresas públicas, cuja expansão suscita discussão de prioridades em face de recursos escassos, bem como da capacidade de sustentá-la sem deprimir o investimento privado por via tributária ou outras formas de captação de recursos.

Em tais circunstâncias, é mister admitir que o crescimento maciço de gastos tão controvertidos se deve, também, à forma extra-orçamentária da sua cobertura: torna mais fácil a sua realização porque contorna o consentimento ou a resistência dos que um dia são chamados para pagar a conta.

10. CRÉDITO PÚBLICO - VÁLVULA PARA A EXPANSÃO DA DESPESA

Na origem de tudo isto se encontra outro recurso, cada vez mais utilizado a partir de 1964/5 - o crédito público.

Data daquela época a recuperação do crédito público, uma vez que, por falta de "correção monetária" em fase de inflação, ele havia praticamente estagnado. Foi com a introdução da instituição da correção monetária que passou a reativar-se o crédito público, bem como se permitiu a crescente formação de poupança privada.23 23 Foi indispensável remover, pelo menos para os títulos públicos e os papéis das instituições financeiras privadas, os tão prolongados efeitos da lei de usura e da proibição da chamada cláusula-ouro, até então contornados somente e em condições limitadas pelo uso do "deságio".

A criação das "Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN) " foi, aliás, justificada então como instrumento para assegurar a cobertura "não-inflacionária" do déficit público. Com a utilização deste instrumento, um aumento ainda que transitório da receita pública e a supressão dos subsídios, as autoridades econômicas da época conseguiram efetivamente equilibrar o orçamento público e conter a inflação.

O que veio depois, entretanto, foi o crescimento desmedido da dívida pública e o seu descontrole. O saldo positivo de colocação/resgate dos títulos do governo não mais concorre para equilibrar as contas do orçamento fiscal. Este, como mencionado, já se apresenta equilibrado - não porque a despesa efetiva seja, mesmo, igual à receita orçamentária, mas porque a despesa, como demonstrado no tocante a 1981, aparece no orçamento menor do que é na realidade, com o estouro não sendo coberto pela receita normal do orçamento público, mas sujeita à cobertura pelo chamado orçamento monetário - e é neste que entra como receita aquele saldo proveniente da colocação de títulos.

Além das distorções que o aumento maciço dos papéis públicos causou em termos de instrumentalidade dentro da política monetária (caso principalmente das Letras do Tesouro Nacional (LTN), surgidos após a criação das ORTN's, como instrumento precípuo da política do open market e não propriamente de captação de recursos), o vulto da sua circulação com pressão sobre o mercado de capitais e sobre a taxa de juros anula aquele apregoado efeito de cobertura não-inflacionária do déficit público, e, pelo contrário, realimenta a inflação - como é, quase que por definição, também o caso das emissões, condicionadas pelo volume do déficit.

11. A DIVERSIDADE DO "ORÇAMENTO MONETÁRIO"

Em busca de uma solução para o controle e cobertura das despesas fora do orçamento fiscal, sugere-se um reexame do "orçamento monetário" - que, entre outros fluxos, abrange o ingresso e o dispêndio dos recursos oriundos dos papéis da dívida pública - e o seu possível acoplamento ao orçamento fiscal, para completar o controle da receita e despesa do governo.

Deve-se admitir, todavia, que o chamado "orçamento monetário" é de natureza totalmente diversa do orçamento fiscal: não possui os contornos rígidos e a razoável previsibilidade que distinguem tradicionalmente os orçamentos. Pelo contrário, é uma das principais características do "orçamento monetário" a elasticidade e, portanto, a sua imprevisibilidade, pelo menos relativa, resultante da flutuação dos recursos que administra. É ainda mais ponderável que o uso do "orçamento monetário", nas atuais circunstâncias, pois não permite ou encobre uma visão irrestrita de parte substancial da despesa pública.

Um comentário publicado sob a responsabilidade do ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, pondera que "o orçamento monetário seria importante se não escondesse uma gorda fatia do orçamento fiscal e se não estourasse sistematicamente" e que, "infelizmente, nesse orçamento, criam-se despesas: é o que acontece quando o Banco Central coloca no mercado LTN's e ORTN's e usa os recursos para conceder créditos subsidiados" e, "mais ainda, o custo da dívida pública não é contabilizado como despesa: pela Lei Complementar nº 12 ele é lançado no giro da dívida, dentro dos mesmos princípios financeiros da cadeia da felicidade". E prossegue: "Pois uma coisa é aumentar despesa mediante um pedido ao Congresso e que revela o novo foco de inflação a toda a sociedade; outra coisa é elevar subterraneamente a despesa por uma simples manobra das contas monetárias que, quando muito, exige apenas a aprovação do Conselho Monetário Nacional." "O ministro do Planejamento não se cansa de afirmar a mais incontestável das verdades econômicas: o Governo não cria recursos, apenas os redistribui. O fato, porém, é que o sistema brasileiro de contas só funcionaria adequadamente num mundo de ficção científica em que o Governo pudesse criar recursos do nada."24 24 Revista Simposium (dirigida por Mário Henrique Simonsen), Rio de Janeiro, Editorial, p. 3, jul.-ago. 1982.

12. A EXISTÊNCIA DE UM "ORÇAMENTO DAS EMPRESAS ESTATAIS"

Além do "orçamento monetário" fala-se também no chamado "orçamento das estatais", que, com objetivos semelhantes, se pretenderia articular com o orçamento fiscal.

Nos últimos exercícios, a SEST, órgão da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, tem preparado um "orçamento: das empresas estatais federais".

Tal como acontece com o orçamento monetário, a sua natureza difere da do "orçamento fiscal", motivo pelo qual também com este não pode ser simplesmente fundido. Assim, por exemplo, o orçamento das "estatais" inclui como principal cifra a receita e despesa da atividade empresarial dessas entidades da administração indireta: no referido exercício de 1981, foi de Cr$ 5,4 trilhões a receita corrente e de Cr$ 5,1 trilhões a despesa corrente dessas empresas. Não é propriamente essa despesa ou receita corrente que interessa incorporar ao orçamento fiscal.

Desde que do orçamento fiscal a empresa tenha recebido fundos (via "despesa de capital") para constituir ou reforçar o seu próprio "capital", ela passa a agir com autonomia quanto à sua receita/despesa operacional.

O que passa, entretanto, a interessar, e muito de perto, o orçamento fiscal é quando a receita dessas empresas é deficitária e, por isto, elas vão recorrer a recursos públicos para a sua cobertura, ou quando a existência de superávit operacional requer decisão sobre a destinação do excedente.

Atenção ainda maior merece a realização de investimentos que, não sendo cobertos pelo excedente operacional, necessitam de recursos cuja mobilização teria que ser objeto das previsões do orçamento fiscal e obter o consentimento da sociedade; na falta desta inclusão no orçamento fiscal, recorre-se ao orçamento monetário.

Foi o que sucedeu, por exemplo, em 1981, quando daquela receita de Cr$ 5,4 trilhões e despesa de Cr$ 5,1 trilhões de todas as empresas federais houve um excedente global de 0,3 trilhão; como os investimentos diretos daquelas empresas foram de Cr$ 1,5 trilhão, foi preciso mobilizar mais Cr$ 1,2 trilhão, o que, I somado ao Cr$ 1,3 trilhão dos subsídios já referidos, alcançou uma despesa de Cr$ 2,5 trilhões - esta, sendo coberta por apenas Cr$ 1,2 trilhão vindos do orçamento fiscal, causou aquele "estouro" de Cr$ 1,3 trilhão que, correspondendo a mais de 50% da receita pública orçamentária, teve de ser jogado para o orçamento monetário em busca da cobertura...

A própria composição dos investimentos das empresas estatais em 1981, de Cr$ 1,5 trilhão, apresenta uma concentração em apenas 10 empresas, com um investimento de Cr$ 1,3 trilhão, ou seja, 87% do total. Dessas 10 empresas se destacam cinco que, com um investimento da ordem de Cr$ 1 trilhão, perfazem 67% da inversão total.25 25 Com proporções semelhantes em 1982 e 1983.

Esta própria concentração demonstra que não seria difícil fazer uma análise prévia sobre a oportunidade e viabilidade de investimentos de tão grande alcance, o que seria facilitado pela sua incorporação ao orçamento fiscal.

A simples enumeração dessas cinco empresas, pela ordem de grandeza dos seus investimentos - Petrobrás, Eletrobrás, Siderbrás, Telebrás e Itaipu - assinala, por sua vez, a conveniência de se definirem prioridades, dada a escassez de recursos, que não permite geralmente o atendimento de todas as pretensões ao mesmo tempo, mas impõe opções, o que, além dos aspectos técnicos e econômicos, passa a ser assunto eminentemente político.

Nestas circunstâncias, o orçamento público, além de ser a fonte dos recursos que permitem formar a empresa pública ou acudi-la no caso de déficits, se liga a dois aspectos cruciais na vida da empresa pública: a destinação dos seus excedentes, que, sendo integrados na receita pública, permitem decidir sobre a sua melhor utilização, inclusive, se for o caso, a sua volta à empresa originária, via despesa pública, para reinvestimento; e a determinação da oportunidade e do volume dos investimentos das empresas estatais, os quais, no contexto do orçamento fiscal, poderiam ser prévia e muito mais amplamente conhecidos ou discutidos do que acontece dentro dos estreitos limites da burocracia.

O texto da própria constituição vigente alimenta esta expectativa quando, no seu art. 62, dispõe que "o orçamento anual compreenderá obrigatoriamente todas as despesas e receitas relativas a todos os poderes, órgãos e fundos, tanto da administração direta quanto indireta "; 26 26 O grifo é do autor. exclui "apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento", porém, como já ressaltado, é da própria essência da empresa pública que se constitua e se reforce com fundos recebidos do orçamento público.

Tudo está, pois, a indicar que o legislador constitucional, a despeito de todos os limites impostos ao Congresso Nacional, prefere incluir e não excluir do orçamento fiscal e, portanto, da aprovação legislativa, a gestão financeira também da administração indireta.

Numa hora em que o País se debate com uma crise sem precedentes, enfrentando uma inflação cada vez mais desenfreada, esta certamente não poderá ser julgada sem um firme disciplinamento da gestão financeira do Estado, como aqui esboçado. O início de tudo isto envolve afinal um princípio elementar da inclusão ao orçamento fiscal de toda e qualquer despesa pública. Somente assim pode a opinião pública conhecer as perspectivas de um maciço déficit real em toda a sua crueza; e pensar nas opções que se lhe oferecem, tendo em vista também os interesses de uma economia que precisa crescer e não mais pode aceitar a recessão: seja aumentar a receita da maneira menos inflacionária possível e com o menor risco para a poupança e o investimento, seja com a redução da despesa - do investimento ou mesmo do custeio - com a possível preservação dos gastos de maior retorno econômico e social e com o menor efeito recessivo.

Tudo isto, obviamente, envolve opções do maior alcance político, cuja adoção requer o envolvimento de toda a sociedade.

Embora, como já foi dito, o disciplinamento mais rigoroso da gestão financeira do Governo encontre apoio até no texto restritivo da atual constituição, será imperativo, para ampliar o debate, que sejam removidos os entraves que atualmente atingem a formulação orçamentária, a fim de que a necessária reformulação dentro e fora do parlamento possa ganhar o interesse e o respaldo de toda a nossa opinião pública.

  • 1 Baleeiro, Aliomar. Uma Introdução à ciência das finanças. 12. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. p. 398.
  • 2 Ver Andrade, Sudá de. Apontamentos de ciência das finanças. 2. ed. Rio de Janeiro, José Konfino, 1960. p. 199.
  • 4 Ver Barros Filho, Theotonio Monteiro de. Curso de direito financeiro. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Direito Financeiro, 1958. p. 12-3.
  • 5 Dalton, Hugh. Principles of public finance. 21. ed. London, Routledge & Kegan Paul. No Brasil: Princípios de finanças públicas. 4. ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1980.
  • 6 O'Connor, James. USA - a crise do estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
  • 7 Wagner, Adolf. Lehr - und Handbuch der Politischen Oekonomie. Publicada na Alemanha, a partir de 1983.
  • 9 Silva, José Afonso da. Orçamento - Programa no Brasil. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 40-41
  • 11 Deodato, Alberto. Manual de ciência das finanças. São Paulo, Saraiva, 1961. p. 372-3.
  • 13 Pyhrr, Peter A. Orçamento base 0. São Paulo, Interciência/USP, 1981.
  • 14 Belchior, Procópio G.O. Novo orçamento-programa. 2. ed. Rio de Janeiro, Pallos, 1976. p. 16.
  • 18 Ver Introdução ao mercado de ações. 2. ed. Rio de Janeiro, Comissão Nacional de Bolsas de Valores, 1980. p. 34-5
  • 24 Revista Simposium (dirigida por Mário Henrique Simonsen), Rio de Janeiro, Editorial, p. 3, jul.-ago. 1982.
  • 1
    Baleeiro, Aliomar.
    Uma Introdução à ciência das finanças. 12. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. p. 398.
  • 2
    Ver Andrade, Sudá de.
    Apontamentos de ciência das finanças. 2. ed. Rio de Janeiro, José Konfino, 1960. p. 199.
  • 3
    Ver Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 399-400.
  • 4
    Ver Barros Filho, Theotonio Monteiro de.
    Curso de direito financeiro. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Direito Financeiro, 1958. p. 12-3.
  • 5
    Dalton, Hugh.
    Principles of public finance. 21. ed. London, Routledge & Kegan Paul. No Brasil:
    Princípios de finanças públicas. 4. ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1980.
  • 6
    O'Connor, James.
    USA - a crise do estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
  • 7
    Wagner, Adolf.
    Lehr - und Handbuch der Politischen Oekonomie. Publicada na Alemanha, a partir de 1983.
  • 8
    Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 420.
  • 9
    Silva, José Afonso da.
    Orçamento - Programa no Brasil. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 40-41
  • 10
    Ver Baleeiro, Aliomar. op. cit. p. 417-8; e Silva, José Afonso da. op. cit. p. 31 e segs.; atualmente o assunto encontra atendimento nos "orçamentos plurianuais", que coexistem com os anuais, como previsto na própria Constituição brasileira vigente.
  • 11
    Deodato, Alberto.
    Manual de ciência das finanças. São Paulo, Saraiva, 1961. p. 372-3.
  • 12
    Silva, José Afonso da. op. cit. p. 41.
  • 13
    Pyhrr, Peter A.
    Orçamento base 0. São Paulo, Interciência/USP, 1981.
  • 14
    Belchior, Procópio G.O.
    Novo orçamento-programa. 2. ed. Rio de Janeiro, Pallos, 1976. p. 16.
  • 15
    Barros Filho, Theotonio Monteiro de. op. cit. p. 22 e 27-8.
  • 16
    O grifo é do autor.
  • 17
    A respeito da ampliação da autoridade do Executivo em assuntos financeiros, citem-se ainda o art. 51, § 3º, que tem em vista a aprovação por decurso de prazo, e o art. 55, que prevê a utilização de decretos-leis em "casos de urgência ou de interesse público relevante", inclusive em matéria de "finanças públicas".
  • 18
    Ver
    Introdução ao mercado de ações. 2. ed. Rio de Janeiro, Comissão Nacional de Bolsas de Valores, 1980. p. 34-5
  • 19
    Id. ibid. p. 36.
  • 20
    Os dados aqui mencionados sobre a gestão financeira do Governo são provenientes de publicações da FIBGE, SEST/Seplan e
    Conjuntura Econômica.
  • 21
    No caso de uma empresa do tipo Rede Ferroviária Federal S.A., por exemplo, o suprimento de fundos públicos pode ocorrer tanto como despesa de capital (para subscrição de aumento de capital) quanto como despesa de transferência (subvenção para cobertura do déficit operacional).
  • 22
    Além dos subsídios que constituem saída como despesa, a rigor deveriam ainda ser considerados aqueles, de natureza indireta, que como "incentivos fiscais" constituem redução de receita.
  • 23
    Foi indispensável remover, pelo menos para os títulos públicos e os papéis das instituições financeiras privadas, os tão prolongados efeitos da lei de usura e da proibição da chamada cláusula-ouro, até então contornados somente e em condições limitadas pelo uso do "deságio".
  • 24
    Revista
    Simposium (dirigida por Mário Henrique Simonsen), Rio de Janeiro, Editorial, p. 3, jul.-ago. 1982.
  • 25
    Com proporções semelhantes em 1982 e 1983.
  • 26
    O grifo é do autor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1984
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