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Acidentes de trabalho: contribuição para uma análise

ARTIGO

Acidentes de trabalho - contribuição para uma análise* * Texto redigido em Lisboa, entre janeiro e fevereiro de 1985. Algum tempo depois de realizado este estudo o Diário Popular abandonou a publicação sistemática de notícias sobre acidentes mortais de trabalho, o que torna mais difícil ainda a obtenção de informações sobre as suas causas efetivas. Os dados que analisamos estão, portanto, datados e as suas limitações foram claramente expressas no texto. Sublinhamos ainda que, quanto à análise da importância relativa dos vários tipos de tecnologias na motivação dos acidentes de trabalho em Portugal, nomeadamente dos acidentes mortais, a nossa interpretação depende da aceitação como amostragem representativa das notícias publicadas no referido jornal.

João BernardoI; Rita DelgadoII

IAutor de Marx crítico de Marx, entre várias outras obras

IIProfessora no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, Portugal

1. INTRODUÇÃO

O texto que se segue não tem outras pretensões senão fornecer alguns dados sobre as conseqüências do sistema de exploração capitalista num país como Portugal. Não pretendemos esgotar o assunto mas, pelo contrário, estimular o debate sobre ele.

2. POLUIÇÃO E ACIDENTES DE TRABALHO

Fala-se hoje muito de poluição, na própria imprensa, na televisão e no rádio. Mas no geral é apenas a poluição no exterior das zonas fabris que é referida.

Na realidade, o próprio capitalismo, nas suas formas tecnologicamente mais avançadas, encarrega-se de resolver o problema da poluição no exterior das zonas fabris. No período de crise econômica que se atravessa constitui mesmo um importante estímulo para vários setores industriais a abertura de novos mercados para produtos antipoluentes e para meios de produção menos poluidores. Por seu lado, o urbanismo vai-se adaptando fielmente a este tipo de medidas contra a poluição: as áreas despoluídas tornam-se, por isso mesmo, mais caras, reservando-se à residência dos ricos; e é nas zonas mais poluídas, na imediata proximidade das instalações fabris, que a população trabalhadora pode habitar. Deste modo, as doenças e mortes devidas à poluição no exterior das fábricas escolhem as suas vítimas consoante um critério de classe cada vez mais rigoroso.

No problema da poluição a questão central é a de que o capitalismo pode satisfazer todas as exigências dos consumidores - desde que, claro, estes tenham dinheiro para as pagar, ou seja, desde que possam ser efetivamente consumidores. É que o capitalismo não vive de explorar o consumidor, e sim de explorar a força de trabalho proletária. Por isso o problema da poluição e das condições de trabalho no interior da empresa e nas suas imediações é radicalmente distinto do problema da poluição no exterior das zonas fabris. No exterior das áreas industriais o capitalismo tem interesse em resolver os problemas da poluição, porque satisfaz assim um mercado. No interior das áreas industriais, pelo contrário, todos os passos que se derem no sentido da melhoria das condições materiais de trabalho resultarão das pressões e da luta dos próprios trabalhadores.

Geralmente a crítica à poluição aparece associada à ecologia. Na esmagadora maioria dos países, tanto naqueles que apresentam tecnologias mais inovadoras como em muitos dos que têm economias predominantemente atrasadas, são cada vez mais divulgadas as ideologias ecológicas. Em traços muito simplificados a ecologia tem duas características principais: a) adota o ponto de vista dos consumidores, e não o dos produtores, preocupando-se sobretudo com a poluição no exterior das zonas fabris e ocupando-se muito menos, ou quase nada, com as condições de trabalho; b) apela para a utilização de tecnologias antiquadas e para o regresso a um sistema de pequenas empresas de tipo familiar, que teriam como conseqüência travar o desenvolvimento das forças produtivas. Assim, no atual contexto de crise econômica mundial, os ecologistas são os porta-vozes dos setores capitalistas que pretendem atenuar as conseqüências da crise mediante a redução do consumo particular e do ritmo do crescimento industrial.

Muitos ecológicos procuram conjugar essas duas características mencionadas e afirmam então que o emprego de tecnologias antiquadas, num contexto em que fossem menos intensivos os ritmos de produção, conduziria a uma diminuição dos acidentes de trabalho. Como alterar, porém, os ritmos de produção no sistema capitalista? Estes ecológicos defendem a constituição de comunidades marginais no capitalismo, onde se voltasse a essas tecnologias do passado, em ritmos de trabalho mais lentos. Trata-se de uma ilusão desde início condenada ao fracasso. O capitalismo é um modo de produção global, onde não podem existir ilhéus não-capitalistas. Enquanto o capitalismo dominar a generalidade da economia, impõe as normas da produtividade capitalista, com os ritmos de produção dela decorrentes, e as unidades de produção que não se sujeitarem serão eliminadas pela concorrência do mercado mundial. Por isso o capitalismo só poderá ser destruído ao nível global e internacional. As comunidades marginais dos ecológicos são uma ilusão e uma demagogia. O que resta, na prática, das propostas dos ecológicos não é a diminuição dos ritmos de trabalho, mas apenas o emprego de tecnologias antiquadas. E devemos então analisar quais as conseqüências da utilização dessas tecnologias antiquadas no contexto geral do sistema capitalista.

Quando a grande imprensa, a televisão e o rádio se referem a acidentes de trabalho, são sempre os originados pelas tecnologias mais modernas. São estes os acidentes espetaculares, a que não podem deixar de dar relevo, ao mesmo tempo que não noticiam os acidentes correntes, devidos a tecnologias antiquadas e que atingem, em cada caso, um número reduzido de trabalhadores. Um acidente de trabalho por dia, do qual resulte de cada vez um morto, não dá direito a notícia. Quando um acidente de trabalho num único dia provoca 50 mortes, então já dá direito a notícia. E, no entanto, ao fim de um ano este último montante corresponde a menos de 1/7 do primeiro.

Por isso nos interessa averiguar como ocorrem os acidentes de trabalho no dia-a-dia do modo de produção capitalista, naqueles casos que os meios de comunicação não noticiam ou a que nunca dão relevo. Será que a responsabilidade dos acidentes de trabalho se deve predominantemente às tecnologias mais modernas? Ou, pelo contrário, os acidentes de trabalho devem-se ao próprio sistema de produção capitalista, provocando cada tecnologia o seu tipo de acidente ? Vejamos em que medida o caso português poderá contribuir para o esclarecimento destas questões. Ocupar-nos-emos apenas dos acidentes mortais.

3. PORTUGAL: ACIDENTES MORTAIS, TECNOLOGIAS ANTIQUADAS, TECNOLOGIAS MODERNAS

Quando, em abril de 1982, o trabalhador dos Telefones de Lisboa e Porto, Domingos Pereira de Moura, de 51 anos de idade, se suicidou no local de trabalho, ingerindo inseticida, por ter sido ameaçado de despedimento por parte da administração da empresa - este foi, sem dúvida, um acidente mortal de trabalho. Ou quando, em julho de 1984, o marceneiro José Antonio Ferreira Alves, de 50 anos de idade, com dois filhos a seu cargo, se suicidou com um tiro na cabeça por não poder sustentar mais a situação de desemprego em que se encontrava - este é ainda, e indubitavelmente, um acidente de trabalho. Como o foi, dois dias depois, o suicídio por enforcamento do motorista José Maria Salgueiro Magalhães, de 57 anos de idade, que iria em breve ser despedido.

Estas mortes distinguem-se dos acidentes comuns porque elas não resultam apenas de um fato isolado, possível de definir no tempo, mas de todo um conjunto de condições, que são a vida do trabalhador e que excedem, em dado momento, o sofrimento suportável. Este tipo de acidente, porém, não é contabilizado pela estatística capitalista. Os serviços oficiais limitam-se a considerar como acidentes de trabalho aqueles que ocorrem durante o processo de trabalho - como se a vida do trabalhador, dentro e fora da empresa, não fosse condicionada pelo processo capitalista de produção e pela sua luta contra esse processo.

Restringidos assim, desde o início, a uma faixa apenas dos acidentes mortais de trabalho, as dificuldades erguidas pelas estatísticas oficiais não param por aqui. Os dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) são elaborados com base em comunicações feitas exclusivamente pelas companhias de seguros e pelas próprias entidades patronais, mediante os Tribunais de Trabalho. Por isso o total de acidentes de trabalho mortais registrados pelo INE é inferior ao número indicado por outros organismos. A Comissão Coordenadora Nacional dos Organismos de Deficientes calculava, em 1981, que a média de acidentes mortais de trabalho em Portugal seria de cerca de mil por ano, montante quase três vezes superior ao mencionado pelo INE. E em 1984, no II Encontro Internacional para a Medicina no Trabalho, foi afirmado que o número de acidentes referido pelas estatísticas oficiais é apenas metade do número real. Neste panorama é elucidativo verificar que o número total de acidentes de trabalho contabilizado pelo Ministério do Trabalho é ainda inferior ao fornecido pelo INE. Estas discrepâncias entre os dados fornecidos pelos organismos oficiais revela, de imediato, a falta de interesse por qualquer estudo sério da questão.

Deste contexto de indiferença destaca-se a página dedicada às questões laborais num dos jornais de Lisboa, o Diário Popular. Graças à coragem e persistência de alguns poucos redatores, esse jornal, desde 1979, vem noticiando, de uma forma bastante detalhada, os acidentes mortais de trabalho de que consegue tomar conhecimento, o que permite classificar esses acidentes consoante as suas causas. Em sentido contrário ao destas vantagens apontam-se, no entanto, dois grandes inconvenientes: a) são referidas apenas as mortes ocorridas imediatamente depois do acidente, ou quase imediatamente, raramente se incluindo aquelas que resultam de uma doença mais ou menos prolongada após o momento do acidente; b) o número total de acidentes mortais de trabalho de que o referido jornal consegue obter informações é ainda inferior ao contabilizado pelo INE, como se observa pelo quadro 1.


Para os dois últimos anos, os números do INE ainda não estão disponíveis, pois são publicados com grande atraso. De qualquer forma, o que nos interessa sobretudo na informação prestada pelo DP é a possibilidade de detalhar a causa dos acidentes; sob este ponto de vista, o fato de o número anual de acidentes mortais de trabalho referido por aquele jornal ser inferior ao registrado pelo INE não tem para a análise conseqüências muito negativas, pois esse número manteve-se ao longo dos anos numa percentagem sensivelmente constante (entre 32% e 38%) do total assinalado pelo INE. As notícias de acidentes mortais fornecidas pelo DP podem, por isso, ser usadas como amostragem.

Com base nessa amostragem - na qual incluímos ainda notícias várias publicadas pelo DP em 1977 e 1978, antes de ter iniciado a sua apresentação de forma sistemática - verificamos (quadro 2) a repartição dos acidentes mortais de trabalho entre os grandes setores de atividade econômica.


Esta repartição difere da que é apresentada pelas estatísticas oficiais, onde a percentagem dos acidentes mortais ocorridos na indústria é superior à dos verificados na construção. Pensamos que a razão deste defasamento seja a seguinte: em Portugal, no setor da construção, predominam as pequenas empresas, pouco organizadas internamente e que amiúde não cumprem os preceitos legais em relação à força de trabalho que empregam. Por isso, os acidentes ocorridos neste setor mais dificilmente chegam ao conhecimento da burocracia oficial - única fonte, como vimos, das estatísticas do INE. Pelo contrário, dado o caráter público de grande parte das obras de construção, mais facilmente os acidentes aí ocorridos chegam ao conhecimento dos jornalistas e dos correspondentes do jornal. Com as empresas do setor industrial ocorre um processo inverso. Os muros das fábricas fecham-se ao público, os patrões e gestores não prestam informações aos jornais e, quando as empresas atingem maiores dimensões, têm médicos particulares e evitam recorrer aos hospitais; assim, mais dificilmente um jornal pode ter conhecimento dos acidentes de trabalho ocorridos no interior dessas empresas. Porém, como possuem uma mais estrita organização interna, um maior número desses acidentes chega ao conhecimento das autoridades oficiais. Parece-nos, em conclusão, que este defasamento pode contribuir para compensar o exclusivismo das fontes a que recorre o INE.

Aquela repartição dos acidentes mortais de trabalho por setores de atividade econômica permite-nos de imediato verificar que um setor de tecnologia antiquada, como o é o da construção em Portugal, é responsável por 1/3 das mortes no trabalho. Não parece, pois, terem razão os ecológicos, ao considerarem que as técnicas tradicionais garantiriam uma maior segurança ao trabalhador.

Vamos passar a analisar, em cada setor, as causas dos acidentes mortais. Poderemos então confirmar que as tecnologias antiquadas não são, na perspectiva do trabalhador, as mais seguras.

As duas primeiras rubricas do quadro 3 correspondem indubitavelmente às formas técnicas mais antiquadas e são responsáveis por mais de metade das mortes no setor. Quanto às restantes, é de notar que, dos acidentes mortais registrados com máquinas, 40% resultaram de queda dos trabalhadores com as máquinas que manobravam.


Na agricultura, as mortes decorrentes de formas tecnológicas mais modernas são sobretudo as que resultam do esmagamento por acidente com trator, geralmente por este ter-se voltado; mas incluímos aqui também os acidentes mortais resultantes do uso de outras máquinas, ou do uso de explosivos para rachar lenha. As mortes resultantes das formas tecnológicas mais antiquadas são sobretudo devidas a quedas do alto de árvores, ao manuseio de alfaias tradicionais, a esmagamento pelo gado (ver quadro 4).


Chamamos atenção para o fato de os acidentes mortais com técnicas relativamente mais modernas serem mais importantes precisamente na agricultura, que é o setor econômico mais tradicional. Isto evidencia a falta de preparação dos trabalhadores que utilizam tais técnicas, que é resultante do baixo nível das despesas com mão-de-obra; apesar de serem introduzidas na agricultura algumas técnicas novas, a preparação dos camponeses em Portugal continua na generalidade dos casos a limitar-se às técnicas tradicionais.

Na medida em que todos os casos ocorridos na primeira rubrica do quadro 5 se deve a barcos de pesca, e sendo conhecidas as características em geral bastante primitivas da frota pesqueira portuguesa, podem esses acidentes considerar-se inseridos nas formas antiquadas. Assim, essas formas são responsáveis praticamente pela totalidade dos acidentes mortais no setor.


No setor de energia e indústria (ver quadro 6) é que, de antemão, se poderia esperar um mais elevado índice de acidentes mortais devidos a tecnologias mais sofisticadas. Pelo contrário, logo as duas primeiras rubricas, que perfazem mais de 1/6 do total no setor, se devem aos acidentes mais rudimentares: em geral, ou queda do próprio, ou queda de material. As mortes por eletrocussão atingem um nível altíssimo, com 1/4 do total no setor. Isto mostra como, quando ocorre a utilização de tecnologias um pouco mais evoluídas, os acidentes mortais se devem às formas mais atrasadas da sua utilização: isolamentos deficientes, insuficientes sistemas de prevenção. Mesmo em ramos industriais que empregam técnicas relativamente avançadas, os acidentes mortais devem-se freqüentemente a deficiências de caráter bastante primitivo. Por isso, e relativamente ao setor em que ocorrem, pensamos que as mortes por eletrocussão devem inserir-se entre os acidentes devidos ao uso de tecnologias antiquadas.


As explosões são mais difíceis de classificar, variando muito de caso para caso. Mas pode-se proceder a uma análise elementar se tido em conta que, dos casos assinalados de morte por explosão, 41% (que correspondem a 15 % do total do setor) ocorreram em oficinas de pirotecnia, que se contam entre as mais primitivas tecnologicamente no país. Assim, parece-nos que estes 15 % do total de acidentes mortais no setor ocorridos em oficinas de pirotecnia se devem adicionar aos anteriores 43% considerados como decorrendo de técnicas antiquadas, o que perfaz um total de 58%. Em conclusão, é elucidativo que no setor econômico onde se encontram tecnologias mais avançadas largamente mais de metade dos acidentes mortais se deva a técnicas antiquadas ou à utilização arcaica de tecnologias modernas.

O trabalho de construção e as obras em geral são um setor, em Portugal como na maior parte dos países, onde predominam técnicas antiquadas. Apesar disso, é impressionante constatar (como se vê no quadro 7) que mais de 1/3 das mortes neste setor se deve ao mais primitivo dos acidentes, aquele em que o trabalhador cai do alto de um andaime ou do edifício em construção. E também mais de 1/3 dos acidentes mortais no setor deve-se ao desmoronamento dos terrenos ou da construção. Só as três últimas rubricas se podem considerar indício do emprego de tecnologias mais avançadas e, em conjunto, perfazem apenas 1/10 dos acidentes mortais neste setor.


No quadro 8 verifica-se que no setor de descarga e transportes metade das mortes deve-se aos acidentes mais primitivos, os que resultam de quedas dos trabalhadores ou de materiais. Praticamente a outra metade das mortes deve-se a acidentes resultantes de formas arcaicas de utilização de técnicas relativamente evoluídas: a eletrocussão e o atropelamento por veículo motorizado ou por trem. Do número total de itens registrados, apenas um se refere a tecnologias mais evoluídas: explosão durante a descarga de caminhões-tanques cheios de produtos químicos.


Às mesmas constatações se chega quando se observam os casos dispersos que restam (ver quadro 9), embora o seu escasso número torne a amostragem muito pouco significativa.


Apesar das restrições de análises já indicadas, pode observar-se que pelo menos metade destas mortes se deve a acidentes de tipo muito primitivo.

Quanto ao suicídio, é inqualificável nos termos que aqui temos vindo a utilizar.

Em conclusão: 75%, ou seja, 3/4 dos acidentes de trabalho mortais verificados nesta amostragem, devem-se a tecnologias primitivas ou à utilização arcaica de tecnologias mais evoluídas.

Há que notar ainda que grande parte destas notícias publicadas no DP resulta de informações de correspondentes desse jornal, que trabalham sobretudo a partir dos maiores aglomerados populacionais, onde é superior a percentagem de empresas tecnologicamente mais avançadas. Assim, o grande peso tido nestes acidentes mortais pelas tecnologias mais antiquadas seria sem dúvida alguma ainda superior, se chegassem informações de localidades não cobertas pela rede dos correspondentes.

4. ACIDENTES DE TRABALHO E MAIS-VALIA

Na crise que o capitalismo atravessa desde meados da década de 70, e nomeadamente tendo em conta a retração dos investimentos nas tecnologias mais avançadas, numerosos setores econômicos procuram desenvolver a mais-valia absoluta. Quer isto dizer que esses setores do capitalismo pretendem aumentar a exploração sobretudo mediante o arrocho salarial, deixando deteriorar as condições de trabalho, prolongando jornadas de trabalho. É neste contexto que se mantêm em vigor as formas tecnológicas mais atrasadas, ou que se utilizam de forma arcaica tecnologias relativamente evoluídas. Os ecológicos são os apologistas deste tipo de orientações. E a análise das causas dos acidentes mortais de trabalho em Portugal revela o caráter inteiramente demagógico das propostas ecológicas. As técnicas de produção mais antiquadas e tradicionais não são mais "humanas" do que quaisquer outras técnicas utilizadas no capitalismo.

A cada tipo particular de exploração correspondem tipos particulares de acidentes de trabalho. Os setores tecnologicamente mais evoluídos, os que apresentam maior taxa de crescimento, são aqueles onde se explora o trabalhador sobretudo mediante a forma da mais-valia relativa. Quer isto dizer que aí os capitalistas, além de diminuírem os custos de produção dos bens adquiridos pela classe operária, procuram aumentar a produtividade e a intensidade do trabalho. Atualmente muitas empresas inovam nesta orientação da mais-valia relativa, pretendendo explorar, não só a força física do trabalhador, mas também a sua capacidade intelectual, as suas potencialidades criadoras e imaginativas. Os acidentes de trabalho são aqui de tipos diferentes. Haverá menos acidentes que resultam em morte imediata, mas aumenta consideravelmente o número e a percentagem dos acidentes de tipo psicológico, em que os efeitos mortais são mais difíceis de contabilizar - o que tem para o capitalismo enormes vantagens demagógicas. Mas os trabalhadores não deixam de sentir esses efeitos na sua vida quotidiana. Em resumo, nuns casos temos acidentes em grande parte localizados no tempo e, quando são mortais, a morte segue-se freqüentemente de imediato. Nos outros casos temos acidentes que se prolongam pelo tempo, de onde não resultam mortes imediatas, mas vidas que não valem a pena viver-se.

Uma empresa pode ter edifícios administrativos luxuosos, gastar rios de dinheiro em publicidade, investir em tecnologias inovadoras - com a condição porém de manter as condições de trabalho num nível sempre mais primitivo do que o das restantes tecnologias empregadas. À primeira vista poderia parecer que naqueles setores onde se desenvolve a mais-valia relativa, sobretudo nas empresas onde se procura explorar não só a força física mas também a capacidade intelectual do trabalhador, o capitalista tivesse interesse em melhorar as condições de trabalho. A realidade, porém, é diferente. Essas novas condições de trabalho serão talvez melhores do que as anteriores mas, sobretudo, são diferentes, porque o capitalista procura agora explorar capacidades criativas do operário que antes deixava inaproveitadas. Mas, mesmo que essas novas condições de trabalho sejam melhores do que as anteriores, elas têm sempre um nível muito inferior ao dos restantes aspectos da tecnologia material e às condições administrativas reinantes no resto da empresa. E, sob o ponto de vista do acréscimo de esforço intelectual que é exigido ao trabalhador, essas novas condições de trabalho são igualmente causadoras de acidentes - neste caso, sobretudo os acidentes de tipo psicológico.

Para o capitalista, a força de trabalho operária é precisamente aquele item onde os custos devem ser refreados. Na análise que fizemos do caso português pudemos observar um exemplo flagrante desse fato, quando vimos a grande percentagem de acidentes mortais resultantes das formas arcaicas de utilização de tecnologias relativamente evoluídas. Um capitalista pode proceder a consideráveis investimentos tecnológicos, mas nunca a remodelação das condições de trabalho é proporcional a esses novos investimentos. Assim, mesmo na empresa mais evoluída do ramo industrial mais avançado, as condições de trabalho, se podem parecer boas relativamente às que existem noutros ramos e noutras empresas, são sempre más por comparação com as despesas de maquinaria e as restantes instalações materiais e administrativas dessa empresa. E assim o capital mostra claramente as hierarquias em que se fundamenta e o tipo de disciplina que pretende impor.

É do operário, e exclusivamente dele, que vem o lucro do capitalista. Por isso podem os capitalistas economizar em tudo o que diz respeito às condições de trabalho mais do que economizam nos restantes custos de produção. E por isso os acidentes de trabalho acompanham inevitavelmente o sistema de exploração da mais-valia.

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    Texto redigido em Lisboa, entre janeiro e fevereiro de 1985. Algum tempo depois de realizado este estudo o Diário Popular
    abandonou a publicação sistemática de notícias sobre acidentes mortais de trabalho, o que torna mais difícil ainda a obtenção de informações sobre as suas causas efetivas. Os dados que analisamos estão, portanto, datados e as suas limitações foram claramente expressas no texto. Sublinhamos ainda que, quanto à análise da importância relativa dos vários tipos de tecnologias na motivação dos acidentes de trabalho em Portugal, nomeadamente dos acidentes mortais, a nossa interpretação depende da aceitação como amostragem representativa das notícias publicadas no referido jornal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1987
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