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A profissionalização do administrador e o amadorismo dos cursos

ARTIGOS

A profissionalização do administrador e o amadorismo dos cursos

Cláudio M. Castro

Doutor em Economia e Economista do Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral

Os cursos de administração de empresas encontram-se em uma situação delicada, com seu desenvolvimento bloqueado por mecanismos socioeducacionais de difícil remoção. Neste ensaio discutimos algumas das causas que têm posto o graduado de administração em uma posição desvantajosa em relação a economistas e engenheiros, por exemplo.1 1 Os comentários que seguem referem-se à situação dos cursos de administração em geral. Não pudemos identificar senão uma única exceção.

1. ADMINISTRADORES PROFISSIONAIS MEDÍOCRES OU ADMINISTRADORES IMPROVISADOS: PORQUE NÃO É POSSÍVEL COMPARAR

Discutindo problemas de educação, inevitavelmente defrontamo-nos com a necessidade de julgar a qualidade de certos cursos. Mas com base em que poderíamos dizer que este ou aquele é um "bom curso"?

Em geral, dizemos que um curso é bom quando seus graduados saem-se bem profissionalmente. Esse desempenho é usualmente tomado em comparação com graduados de outros cursos. Assim, dizemos às vezes que a escola de economia tem um bom curso para formar técnicos para as nossas empresas. E dizem alguns que o curso de administração de empresas não é tão bom.

Embora opiniões desse tipo sejam prodigamente oferecidas, a sua validade científica estaria condicionada a critérios que, em geral, não são satisfeitos. Um curso universitário não apenas adiciona informações ao estoque de conhecimentos de um indivíduo, mas condiciona e treina a sua mente para certos estilos de atuação. Acontece que o resultado deste processo tem que ser avaliado no homem como um todo, com seus conhecimentos prévios, sua capacidade intelectual, seus valores e até mesmo suas idiossincrasias. Quando tentamos comparar o desempenho de dois indivíduos formados em escolas diferentes - para daí inferir algo sobre a qualidade das escolas - nossa comparação terá validade apenas na medida em que os indivíduos sejam comparáveis, isto é, apresentem um perfil psicológico equivalente.

Tomemos, por exemplo, a inteligência, por ser um traço facilmente mensurável e que se correlaciona estreitamente com desempenho escolar e profissional. Sabemos que as médias de inteligência variam acentuadamente de carreira para carreira. Portanto, aquilo que poderia ser atribuído a um curso, na realidade pode simplescente resultar de diferenpas preexistentes de capacidade intelectual.2 2 O argumento aqui não é simétrico. Diferenças de inteligência bastam para que os desempenhos não sejam comparáveis. Mas níveis de inteligência semelhantes não bastam para justificar a comparação, já que outros fatores podem influir.

A qualidade da educação é um atributo explicado por variáveis de efeito cumulativo. Existe um grau elevado de circularidade no processo: cursos bons atraem bons alunos, que não só agem como grupos de pressão para a melhoria da qualidade como apresentam um bom desempenho profissional, aumentando a reputação dos cursos. O feedback "aluno-curso-aluno" é nítido e bem conhecido.

Tradicionalmente, no Brasil, as escolas de direito atraíam os melhores alunos. Progressivamente esta hegemonia passou para engenharia e medicina. Nos últimos 20 anos, o curso de economia passou a competir com direito, levando ainda considerável desvantagem com relação à engenharia, mas estando nitidamente à frente de administração de empresas, que apenas agora emerge como carreira respeitável.

Desta forma, simplesmente não é possível compararmos as virtudes deste ou daquele curso baseados nos sucessos dos formandos.3 3 Não é inconcebível, nem extraordinariamente difícil controlar estatisticamente o nível de inteligência de diferentes carreiras. Entretanto, isto nunca foi feito no Brasil.

Se avaliarmos como se saem dentro das empresas diversos tipos de profissionais, vamos provavelmente concluir que os engenheiros são mais eficientes administradores do que os economistas e que esses são melhores que os formados em administração de empresas. Isto apenas reflete o fato de que a escola de engenharia ainda atrai os alunos de maior potencial; estas pessoas, independentemente do que aprenderam na escola, terão um desempenho superior, uma vez que se lhes dê algum tempo para o on the job training.

Em suma, se quisermos discutir questões de adequação de currículos e cursos, não podemos senão nos contentar com o exame do seu conteúdo, relacionando-o com o que sabemos a respeito da natureza das tarefas.4 4 Já em dois artigos procuramos delinear a natureza do treinamento recebido pelo economista: O mito do microeconomista é a inflação de economista. Vida Industrial, 1966 e O que faz um economista. Revista Brasileira de Economia, set./dez. 1970. Pareceu-nos claro que o currículo de economia estava muito distanciado da formação indicada para indivíduos que se orientassem para ocupações dentro das empresas.

2. O ADMINISTRADOR: QUEM FAZ A REGRA OU QUEM CUIDA DAS EXCEÇÕES?

O termo "administrador" é suficientemente elástico para ser aplicado a posições eminentemente diferentes dentro da empresa. Gostaríamos de demarcar nitidamente dois "tipos ideais", os dois extremos lógicos em que se aplica o termo.

Inicialmente, podemos chamar de administrador a um técnico, isto é, um indivíduo que está informado a respeito de técnicas ou rotinas eficientes para a realização de certas funções administrativas. Este técnico sabe, por exemplo, como reduzir e padronizar o número e tipo de impressos utilizados no controle da produção. Sabe também como apropriar corretamente os custos. Sabe a maneira eficiente de se controlar o estoque em um almoxarifado. Sabe o que se deve levar em consideração para classificar um cargo ou estabelecer níveis salariais.

Seu trabalho seria de assessoria, de pôr a administração em dia com a tecnologia existente, sugerindo a implantação de métodos mais simples ou maneiras eficientes de se realizar qualquer função administrativa dentro de uma empresa.

Em muitos casos, trata-se de observar certas regularidades no processo "casuístico" de tomada de decisões e, a partir delas, formular normas ou regras de procedimento. Por exemplo, se um empregado chega à direção da empresa pedindo um adiantamento de 1/3 do seu salário, o diretor achará isso razoável e anuirá. Por outro lado, se um empregado pedir mais do que tem a receber no fim do mês, é provável que o diretor não concorde. Se esses casos repetem-se com freqüência, o técnico em administração teria que estabelecer critérios regulando a concessão de adiantamentos. Com tal regulamento, os casos usuais seriam resolvidos a nível de chefia de pessoal, não mais envolvendo decisões da diretoria. Duas conseqüências observam-se: a) aquilo que implicava tomada de decisão passa a ser resolvido rotineiramente; b) a solução baixa de nível administrativo, de diretor para chefe de pessoal. Apenas os casos especiais teriam qúe ser decididos pela diretoria. A função do técnico de administração será a de criar rotinas, baixando o nível de competência requerido para resolver o assunto.

No outro extremo do conceito, temos o administrador como decision-maker. Diante de uma situação que contém alguns parâmetros mal especificados, um mecanismo de funcionamento imperfeitamente compreendido, alguns componentes de risco e outros de incerteza, o administrador tem que formar certas convicções, aceitar a insuficiência das informações e dos esquemas conceptuais e tomar a decisão. Quase todas as decisões de diretoria são desse tipo. Apenas para fixar idéias, daremos um exemplo: um engenheiro da firma pede um aumento. Trata-se de um excelente técnico, cuja falta será sentida. Se o aumento não for concedido, o técnico talvez peça demissão, indo para um concorrente que possivelmente já teria uma oferta vantajosa. Se o aumento for concedido, aumentam as despesas da empresa, mas, o que é pior, isso coloca o técnico em nível salarial superior a colegas seus mais antigos na empresa. Isto talvez gere mal-estar e animosidade, ou outros pedidos de aumentos. Com essas informações, com a sua acuidade e intuição, o administrador tem que tomar uma decisão.

Entendemos, aqui, administrador como o decision-maker, o homem que resolve onde a rotina e o regulamento falham. É o homem das exceções, dos casos especiais. É aquele que pesa argumentos contrários, compara alternativas, concilia interesses, negocia soluções. Sua função não é técnica, disso ele pouco ou nada tem que entender para desempenhar o seu papel. Capacidade de julgamento, de ver claro onde a informação é incompleta e desencontrada, de farejar a solução certa quando o intelecto não dá sentido às coisas, estas são as características do decision-maker.5 5 H. Leibenstein diz algo semelhante, comentando sobre o empresário schumpeteriano: "One of the important capacities of management is the ability to obtain and use factors of production that are not well marketed. The entrepreneur has to employ some inputs that are somewhat vague in their nature (but nevertheless necessary for production), and whose output is indeterminate. The provision of leadership, motivation, and the availability of the entrepreneur to solve potential crisis situations, the capacity to carry ultimate, responsability for the organizational structure and the major time-binding (implicit or explicit) contractual arrangements are of this sort. The existence of slack and the fact that not all inputs are marketed means that the market signals for profit opportunities are blurred" Entrepreneur and Development. American Economic Review, p. 73-6, May, 1968.

É óbvio que o treinamento do "técnico em administração" será diferente do treinamento do decision-maker, já que são funções diversas. O "técnico em administração" é um técnico como qualquer outro, como o engenheiro, o químico etc. Seu treinamento consiste basicamente em dar-lhe consciência, informar a respeito da tecnologia administrativa, ensinando a manipular, adequar, adaptar e aplicar os conhecimentos à realidade concreta. Sua formação não será fundamentalmente diferente da de qualquer outro técnico, exceto, naturalmente, pelo fato de focalizar a técnica administrativa de modo específico.

O administrador como decision-maker, por outro lado, não é um técnico e não precisa sê-lo. Há quem diga que não é mesmo vantajoso que o seja, pois isso levaria a uma visão do problema estreitada pela perspectiva limitada do seu ofício. Este administrador é um homem vivido e de grande experiência. Isto é verdadeiro, ainda que trivial. Na realidade, entendemos bem pouco do processo didático de formação de pessoas capazes de tomar decisões. O pouco que sabemos sugere-nos que se trata de um processo indireto. Uma vez que tentamos preparar pessoas para agir nas exceções, onde as regras não alcançam, e nas situações que não se repetem, saímos então do processo convencional de ensinar as regras.

Em termos de preparação escolar, tudo indica que não se exigiria necessariamente uma formação específica, mas sim um tipo de curso que desenvolvesse o raciocínio e afinasse a capacidade de julgamento. Em diferentes situações isto significa coisas diversas.

Para o celebrado serviço público inglês, a preparação tradicional era o estudo do grego, latim, literatura e história, toda uma formação com ênfase nos clássicos. Em Eton, Oxford e Cambridge, estuda matérias distanciadas da ação e do cotidiano uma elite que, em sua vida profissional destacou-se pelo realismo, pragmatismo e perspicácia.

Nos Estados Unidos, as elites administrativas e políticas tipicamente são constituídas de ex-alunos das escolas de direito mais famosas. Naquele país, direito é um curso de pós-graduação e, nas melhores universidades, o programa enfatiza matérias de formação geral. Ultimamente, os cursos de administração de empresas mais importantes, como o de Harvard, tentam treinar o estudante no processo de tomada de decisão, familiarizando-o com a complexidade das situações reais, ao mesmo tempo que se reduz a ênfase na tecnologia da administração de empresas.

Em suma, quando falamos em "técnico de administração" estamos falando de profissionais cuja formação será rigorosamente associada ao dia-a-dia na sua ocupação. A melhor maneira de treinar um técnico em controle da produção é dar-lhe um curso sobre este assunto. Quando falamos de dirigentes, de pessoas que ocupam as posições mais elevadas em uma organização, estamos falando necessariamente de pessoas com visão de conjunto, lucidez e perspicácia. Essas qualidades estão apenas remotamente ligadas a algum tipo de educação acadêmica. Sem embargo, tais aptidões parecem desenvolver-se melhor naqueles que recebem uma formação humanista ampla, pelo exercício de seu raciocínio em questões às vezes distanciadas daquelas que ocupam o tempo dos dirigentes. Tentamos mostrar que existem dois tipos suficientemente diferentes de ocupações, freqüentemente confundidos pelo uso de um epíteto não diferenciado: "administrador de empresas". No entanto, como nas funções de decision-making atributos pessoais são mais relevantes para a performance do que propriamente para a formação universitária, podemos recrutar livremente para estas funções engenheiros, advogados, economistas e técnicos de administração. A rigor, médicos ou dentistas também poderiam igualmente servir; no entanto, no exercício de suas atividades usuais, eles não têm as mesmas oportunidades de manifestar pendores para a direção e organização. Progressivamente derivam para esses postos pessoas que orbitam em áreas adjacentes ou interagem diretamente com o pessoal de chefia. Voltando a uma observação que fizemos no item anterior, a dissociação que existe entre a qualidade do desempenho e a formação acadêmica na função de decision-maker é mais uma razão para não podermos julgar a qualidade da formação universitária pelo desempenho superior dos que passaram por ela.

Em termos de formulação de política educacional, parece-nos que nossas preocupações devem localizar-se na formação de "técnicos em administração" e não em alguma fórmula nebulosa de desenvolvimento de elites. Nossas lideranças emergirão naturalmente, na medida em que tivermos um ensino universitário de alta qualidade.6 6 Um número substancial de pessoas matricula-se em escolas de administração de empresas com o objetivo de preparar-se para a gerência de negócios familiares ou estabelecer-se por conta própria. Isto parece uma opção perfeitamente justificável, tendo em vista que às nossas empresas falta tecnologia administrativa e organizacional. O curso de administração de empresa, apesar de não preparar especificamente para o processo de decision-making, informa a respeito do que os cadres deveriam estar fazendo em termos de técnicas de organização.

As técnicas de administração e organização evoluem muito rapidamente e observamos um hiato quase alarmante no funcionamento de nossas empresas, quando comparadas com o que apresentam os livros de texto importados e, mais vivamente, comparadas com as nossas concorrentes nos mercados internacionais.

Temos necessidade de um número elevadíssimo de pessoas treinadas em técnicas de organização e administração. Embora isto não seja em geral reconhecido, existe uma imensa demanda por administradores que se encontra ainda reprimida. Como já tentamos mostrar em outros ensaios, esta demanda vem sendo em parte atendida pelos economistas, cuja formação é apenas remotamente compatível com a ocupação.

Diz-se que o recurso escasso de um país em desenvolvimento é sua capacidade empresarial. Este argumento, na realidade, vem reforçar o que dissemos. Somente uma engrenagem administrativa eficiente, incorporando todos os automatismos organizacionais proporcionados pela técnica, pode permitir o uso econômico dos bons empresários e administradores disponíveis. Se a apropriação de custos não é rápida e automática, se o controle de produção é feito ad hoc pela administração, então o tempo da direção será consumido em atendimento de detalhes inadiáveis, mas puramente cotidianos.

Para as decisões verdadeiramente complexas e difíceis, sobrará uma dose de atenção muito modesta. As normas de escrituração do livro-caixa ou razão são por demais conhecidas e, em qualquer empresa de porte razoável, a direção jamais se ocupará delas. O que estamos tentando dizer é que conhecimentos como de custo por unidade de produto, gráficos de Gantt, estudos de tempo e movimento e ponto de nivelamento deveriam também ser igualmente considerados. Se depender de o diretor achar tempo para ensinar ao contador como calcular o ponto de nivelamento, é quase certo que a firma irá continuar sem saber qual o nível mínimo econômico de produção.

3. AS MATÉRIAS PRÁTICAS: PORQUE SÃO MENOS PRÁTICAS DO QUE AS TEÓRICAS

A distinção entre matérias aplicadas e teóricas é bastante simples. As primeiras propõem-se a transmitir ao aluno um conhecimento imediatamente utilizável: como consertar um rádio, como classificar vários tipos de custos, como reduzir o número de operações necessárias a um processo industrial ou administrativo. As segundas pretendem desenvolver a capacidade analítica, explicar certos esquemas de compreensão da realidade, criar hábitos de pensar rigorosos: álgebra, geometria, física teórica, teoria do consumidor.7 7 Para os nossos propósitos podemos aqui ignorar os aspectos filosóficos, éticos e sociais da educação.

O ensino superior consiste em alguma combinação de matérias teóricas e aplicadas. Carreiras mais voltadas para a especulação e pesquisa, como a economia, têm currículos sobrecarregados com disciplinas teóricas. Isto é uma conseqüência da pouca maturidade das ciências sociais; não temos fórmulas, ábacos, checklists.8 8 Os engenheiros dispõem de inúmeros manuais, como o Production handbook, onde se incorporam as conquistas definitivas na área e tenta-se compilar um conjunto bastante completo de informações úteis. Contadores e administradores têm coisa semelhante no Accounting handbook e no Cost accounting handbook. Em economia não temos nada de semelhante. Não faria sentido um Manual do economista com o mesmo espírito. Falar em "economia aplicada" faz sentido apenas no confronto com aspectos mais rarefeitos da matéria. Em termos absolutos, a "física aplicada" é muito mais aplicada do que a "economia aplicada".

Outras disciplinas, como a administração de empresas, são eminentemente aplicadas. Neste caso observamos mesmo uma grande fragilidade na "teoria da administração". Temos um cabedal imenso de técnicas, artifícios e até artimanhas que são de grande valia quando aplicadas ao funcionamento e gerência de organizações. Até agora, entretanto, não temos uma "teoria geral" cujo conhecimento seja indispensável.

Quando passamos deste tipo de consideração para problemas concretos em diferentes carreiras, uma nova dificuldade configura-se. Nossas universidades deixam muito a desejar. No dia-a-dia da sala de aula, a educação sofre a mediocridade de alguns professores e a inexperiência de outros.

Parece-nos que algumas matérias tendem a sofrer mais do que outras as agruras da nossa pobreza cultural. Podemos vislumbrar três tipos de dificuldades:

1. Muitos professores tentam aumentar o status das disciplinas aplicadas, dando-lhes um cunho teórico. O mau escolasticismo, sobrevivendo nas escolas de direito, emerge aqui em disciplinas eminentemente práticas. Daí os cursos de contabilidade, em que boa parte do tempo é perdida em citações e contracitações e em que as questões de exegese substituem os exercícios aplicados. Em cursos de administração de empresas, um tempo desproporcionado é consumido em definições. Uma versão moderna desta falsa busca de status pode ser percebida na produção de modelos matemáticos não-operacionalizáveis e que, não obstante o uso de linguagem simbólica tortuosa, não contêm senão lugares-comuns.

2. Em algumas disciplinas há uma escassez acentuada de livros. Em tal situação, o curso vai depender sobremaneira das qualidades pessoais do professor. Pelo contrário, quando há abundância de livros, as deficiências do professor podem ser facilmente percebidas pelos alunos, conduzindo ou a um autodidatismo saudável ou a mecanismos formais e informais de pressão contra os professores mais fracos. Em boa parte, a literatura de administração de empresas origina-se dos Estados Unidos. Comparados com a literatura de economia, por exemplo, os textos clássicos são bem menos conhecidos e, em particular, uma proporção muito menor da bibliografia existe em tradução. O que é mais grave, entretanto, é que o tamanho médio das firmas americanas, o seu contexto institucional e sua tecnologia são consideravelmente diferentes dos das firmas brasileiras. Desta forma, a aplicabilidade do texto importado é bem mais restrita.

3. O ponto mais importante, entretanto, é que as matérias teóricas servem como uma espécie de proteção embutida contra os maus professores. Quanto pior o ensino, tanto mais ênfase é dada na memorização e na aceitação passiva do conhecimento. A transmissão de informações a sangue-frio pouco tem a contribuir para a formação do aluno. Todavia, as matérias mais teóricas e abstratas, especialmente quando respaldadas na matemática, são mais imunes à tentação da memorização. É bem verdade que, por serem difíceis, atraem mais talentos. Sem embargo, a estrutura analítica rígida e o método dedutivo utilizado nas apresentações didáticas protegem estas disciplinas da "decoreba" desenfreada. Não se passa de ano em matemática decorando. A memorização que existe é de fórmulas e artifícios que exigem prévia compreensão. Já em uma área aplicada, como administração de empresas, é maior a facilidade para que o curso limite-se a ser um exercício estéril de memorização de taxonomias inúteis. Para que serve saber em quantas parte se divide administração? Para que serve memorizar as funções do administrador? Para que serve decorar toda uma taxonomia de custos, se, na prática, teremos sempre acesso a algum manual? Quem precisa conhecer de cor os "oito guias para planificar a delegação de poderes"? Longe de nós sugerir que estas coisas sejam inúteis ou mais fáceis do que as matérias teóricas. Na realidade, trata-se de ensinar regras aparentemente óbvias e singelas, mas cuja aplicação em uma realidade densa, complexa e fugidia nada tem de trivial ou simples. Não é fácil fazer uma organização funcionar a contento, tampouco é fácil transmitir ao aluno a sensibilidade necessária para agir segundo esquemas que até chocam pelo óbvio. É, portanto, grande a tentação para não levar o curso adiante da memorização dos ensinamentos de Fayol. Em suma, é difícil fazer com que as matérias práticas sejam de fato práticas, enquanto que as teóricas mais facilmente mantêm-se teóricas.

Esta discussão parece indicar que um curso mais aplicado, como o de administração, tende a tornar-se mais estéril do que o de economia, na fase de transição pela qual passam nossas universidades. A formação mais teórica desenvolve uma predisposição favorável ao aprendizado no trabalho. Assim, temos o aparente paradoxo de que os economistas, por receberem uma formação mais teórica, recebem uma formação melhor e, deste modo, estão mais bem preparados para a prática do que os administradores, que recebem um arremedo de formação prática.

4. OS SEMINÁRIOS DE ADMINISTRAÇÃO PARA EXECUTIVES: QUEM DEVERIA PAGAR A CONTA DA PUBLICIDADE

Além das escolas de administração de empresas de nível universitário e dos programas de pós-graduação (como o excelente programa da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas), existe uma variedade extraordinária de cursos e seminários de técnicas de administração e assuntos correlatos. Em princípio, existem dois tipos de programas. Alguns são altamente especializados e visam a divulgação de novas técnicas ou reciclagem em alguma área muito específica. Quanto a estes, não temos objeções, trata-se de um método válido de transmissão de tecnologia. Os outros são programas ambiciosos de "alta administração", top executive e outros títulos sempre necessariamente pomposos e escolhidos de forma a gratificar o ego dos participantes. Existe uma incompatibilidade básica entre a duração do curso e a extensão e complexidade inerentes à matéria de que o curso se propõe a tratar. Além do mais, ao tempo de aula não é realista somar tempo de estudo individual,9 9 A experiência mostra que não é razoável esperar que dirigentes de empresa, operando num orçamento de tempo apertado e já muito distanciados das rotinas de estudante, irão realmente fazer alguma leitura para o curso. e devemos subtrair o tempo gasto nas indefectíveis piadas, consideradas dieta essencial "para relaxar", neste tipo de programa. Na realidade, os assuntos tratados nestes seminários constituem matéria para cursos de muitas dezenas de horas, em regime universitário, completado por leituras individuais e trabalhos de pesquisa. O grau de compactação e vulgarização exigido por esses seminários é de ordem a tirar toda a polpa do assunto, sobrando apenas algumas generalidades e uma informação a nível jornalístico. Certamente, estas limitações não podem ser contornadas pelos recursos audiovisuais, tradução simultânea, colecionadores identificados com letras douradas ou outra parafernália no gênero.

Na realidade, estes programas fazem com que homens de empresa tomem conhecimento do que existe e da extensão da sua ignorância. Nesse sentido, criam motivação para as necessidades de incorporação de nova tecnologia administrativa, através da contratação de pessoal especializado, reciclagem das próprias equipes ou contratos com consultores. Estes seminários correspondem a uma maneira amena e diplomática de mostrar aos dirigentes de empresas o quanto eles estão antiquados. Mas, por outro lado, a coisa pode ser vista como publicidade de um produto novo que pode ser comprado e vendido. E o pessoal que patrocina tais seminários é nitidamente vendedor desse produto. Visto deste prisma, tais seminários constituem-se num tipo estranho de propaganda, onde a conta é paga por quem a recebe, e não por quem a patrocina.

5. AS PROMESSAS DESNECESSARIAMENTE INVIÁVEIS DOS CURSOS DE ADMINISTRAÇÃO: CONCLUSÕES

Nesta comunicação buscamos principalmente identificar alguns problemas e dificuldades na preparação de administradores de empresas. Mostramos que não é possível avaliar a qualidade de um curso pelo desempenho dos seus formandos. Mostramos que "técnicos em administração" e decision-maker são coisas diferentes, demandando traços, qualidades e conhecimentos diferentes. Sugerimos que cursos aplicados sofrem mais nas mãos de professores inadequados, podendo tornar-se ainda menos úteis do que os teóricos. Afirmamos que existem inúmeros programas para top management que têm funções puramente propagandísticas.

Nossa conclusão principal é de que a estrutura e o funcionamento dos cursos de administração de empresas devem ser reformulados. Definitivamente, não estamos propondo a criação de uma "Comissão para Reformulação de Currículos", sub-remunerada e superocupada com outras coisas. Falamos de um estudo cuidadoso, de montagem de cursos e da organização do material didático.

Uma das maneiras mais promissoras de se impedir que os cursos aplicados sejam exercícios estéreis de memorização é o uso dos estudos de caso (case study method). A Harvard Business School, há cerca de duas décadas, revolucionou o ensino de administração de empresas, montando seus cursos em torno dos estudos de caso. Em essência, o método consiste em reconstruir para o aluno uma situação concreta de maneira tão realista quanto possível; neste contexto são examinadas as alternativas de ação da administração e suas conseqüências e implicações. Progressivamente algumas generalizações emergirão, redescobertas pelo aluno, possivelmente até muito próximas das regras memorizadas disfuncionalmente nos cursos tradicionais.

Modernamente o método de caso tem evoluído na direção dos jogos de empresa. Nestes jogos, cada aluno assume o papel de participante num mercado ou numa empresa, onde as suas ações mudam a configuração inicial do caso, obrigando os outros participantes a acompanhar a posição do jogo a cada momento, antes de tomar uma decisão. Em geral, computadores são usados para "bancar" o jogo, mas isto não é necessário em todos os casos. A nota do curso é dada proporcionalmente às vantagens obtidas pelo jogador.

O método de caso exige um investimento grande na preparação de casos realistas, interessantes e férteis. Há grande interesse nos Estados Unidos e Europa em pesquisas econômicas sobre países subdesenvolvidos; muito do que precisamos de material didático pode consistir na simples tradução de textos importados. Em administração, entretanto, esse interesse é ainda embrionário,10 10 Resumindo-se principalmente no estudo da operação das filiais de grandes empresas multinacionais. e a mera tradução dos case studies colocar-nos-ia fora da realidade brasileira. Sugeriríamos, enfaticamente, o exame da experiência do Instituto Técnico de Delft na Holanda, que, em colaboração com Harvard, vem preparando cursos de administração de pequenas empresas, voltadas para o contexto institucional dos países subdesenvolvidos.11 11 Em Belo Horizonte, a Utramig e o Banco de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais já patrocinaram uma ou duas vezes o curso de Delft, de modo que a experiência não é nova entre nós.

É importante ressaltar que não estamos absolutamente sugerindo a criação de algum novo curso de administração de empresas e, principalmente, não endossamos qualquer tipo de empreendimento em que o feedback nos cursos regulares de formação de administradores não seja maximizado. A exemplo do que aconteceu com economia, os cursos de administração de empresas estão proliferando e, no nosso entender, somente terão impacto substancial programas que atinjam a rede universitária regular. A maximização do impacto sobre a universidade não deve ser encarada com inocência ou candura; trata-se de uma estratégia planejável e que deve ser previamente pensada e incorporada em qualquer esforço desta natureza.

Economistas e outros cientistas sociais são inevitavelmente atraídos para a periferia de qualquer sistema universitário que ofereça um mínimo de condições. Desta forma, o investimento na sua formação provavelmente terá suas repercussões de longo e médio prazos garantidas. Em oposição, pode-se contar com uma grande voracidade das empresas por administradores de excelente preparo. Dada a sua escassez e o comprometimento total do seu tempo nas empresas, seu impacto no processo de formação de outros administradores ficará em plano secundário. E, o que é pior, em estados vizinhos a centros de maior dinamismo econômico, é mais importante melhorar um pouco a formação da maioria do que concentrar esforços em uns poucos que provavelmente encontrarão alhures um meio empresarial mais receptivo e remuneração mais farta.

No momento atual está em funcionamento um mecanismo que tende a perpetuar uma preparação universitária acanhada e que tem como resultado distorções no mercado de trabalho dos administradores. O que se tem feito não é, em geral, de ordem a romper o círculo vicioso criado. Recapitularemos alguns pontos básicos.

As escolas de administração recrutam material humano de nível inadequado, o que não somente garante graduados medíocres mas também reduz as possibilidades de melhoria, a médio prazo, em vista da inexistência de bons candidatos à cátedra, da imagem negativa criada pelos graduados e da ausência de pressão dos alunos para melhoria dos padrões.

A política do Governo e das fundações com relação a bolsas de pós-graduação, favorecendo os economistas, agrava a disparidade entre economia e administração, seja na qualidade do material humano que se candidata, seja no ensino oferecido ou na reputação profissional dos graduados. Os cursos de economia atraem melhores alunos, contam com mais professores de nível pós-graduado e diplomam profissionais que atingem maior notoriedade na profissão. Parece-nos injustificável a exiguidade de bolsas de pós-graduação para os cursos de administração de empresas.

Isto é mais sério quando se considera que o investimento na formação de administradores tem um "efeito multiplicador" sobre a qualidade do ensino mais desfavorável do que em outras disciplinas, como economia, por exemplo. A posição das fundações e governos é justificada freqüentemente em termos de mercado: se as firmas modernas e prósperas têm realmente necessidade de administradores, elas próprias estão em condição de financiar a sua formação no exterior. De fato, isto acontece em pequena escala, mas, em vista do nível insuficiente dos administradores formados, em geral engenheiros e economistas são enviados para tais cursos. Mas, o que é pior, ao financiar os estudos de alguém, a empresa tomará todas as precauções possíveis para que possa, mais tarde, tirar proveitos do investimento que está financiando. Em outras palavras, a firma tentará assegurar-se de que o graduado não vai oferecer os seus serviços a outras empresas ou à universidade. Somente uma política de bolsas sem vínculo empregatício futuro pode aumentar o retorno de graduados para a universidade. Embora tal programa pudesse beneficiar diretamente as empresas que terminariam por atrair um grande número de graduados, pelo menos alguns poderiam orbitar em torno das universidades, com conseqüências positivas sensíveis, dada a penúria de professores capacitados.

O comportamento dos órgãos públicos e semi-públicos, pelo contrário, parece refletir uma política diferente e, no nosso entender, excessivamente imediatista. A reciclagem de executivos e administradores fora do meio universitário tem efeitos praticamente desprezíveis sobre os cursos regulares que inevitavelmente absorvem ao longo do tempo um número de alunos/hora imensamente maior do que estes programas especiais. A longo prazo, é aos cursos universitários que cabe a preparação da mão-de-obra de nível mais elevado em um país. Se todo o esforço e recursos destinados à área da administração mantêm-se à distância dos cursos regulares, de seus alunos e professores, inevitavelmente continuaremos a oferecer uma preparação subalterna e preterida pelo mercado. Não se trata de eliminar os cursos de extensão e reciclagem, mas sim de aproximá-los dos cursos regulares, seus alunos e professores.

  • 4 Já em dois artigos procuramos delinear a natureza do treinamento recebido pelo economista: O mito do microeconomista é a inflação de economista. Vida Industrial, 1966 e O que faz um economista.
  • Revista Brasileira de Economia, set./dez. 1970.
  • 5 H. Leibenstein diz algo semelhante, comentando sobre o empresário schumpeteriano: "One of the important capacities of management is the ability to obtain and use factors of production that are not well marketed. The entrepreneur has to employ some inputs that are somewhat vague in their nature (but nevertheless necessary for production), and whose output is indeterminate. The provision of leadership, motivation, and the availability of the entrepreneur to solve potential crisis situations, the capacity to carry ultimate, responsability for the organizational structure and the major time-binding (implicit or explicit) contractual arrangements are of this sort. The existence of slack and the fact that not all inputs are marketed means that the market signals for profit opportunities are blurred" Entrepreneur and Development. American Economic Review, p. 73-6, May, 1968.
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    Os comentários que seguem referem-se à situação dos cursos de administração em geral. Não pudemos identificar senão uma única exceção.
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    O argumento aqui não é simétrico. Diferenças de inteligência bastam para que os desempenhos não sejam comparáveis. Mas níveis de inteligência semelhantes não bastam para justificar a comparação, já que outros fatores podem influir.
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    Não é inconcebível, nem extraordinariamente difícil controlar estatisticamente o nível de inteligência de diferentes carreiras. Entretanto, isto nunca foi feito no Brasil.
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    Já em dois artigos procuramos delinear a natureza do treinamento recebido pelo economista: O mito do microeconomista é a inflação de economista.
    Vida Industrial, 1966 e O que faz um economista.
    Revista Brasileira de Economia, set./dez. 1970. Pareceu-nos claro que o currículo de economia estava muito distanciado da formação indicada para indivíduos que se orientassem para ocupações dentro das empresas.
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    H. Leibenstein diz algo semelhante, comentando sobre o empresário schumpeteriano: "One of the important capacities of management is the ability to obtain and use factors of production that are not well marketed. The entrepreneur has to employ some inputs that are somewhat vague in their nature (but nevertheless necessary for production), and whose output is indeterminate. The provision of leadership, motivation, and the availability of the entrepreneur to solve potential crisis situations, the capacity to carry ultimate, responsability for the organizational structure and the major time-binding (implicit or explicit) contractual arrangements are of this sort. The existence of slack and the fact that not all inputs are marketed means that the market signals for profit opportunities are blurred" Entrepreneur and Development.
    American Economic Review, p. 73-6, May, 1968.
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    Um número substancial de pessoas matricula-se em escolas de administração de empresas com o objetivo de preparar-se para a gerência de negócios familiares ou estabelecer-se por conta própria. Isto parece uma opção perfeitamente justificável, tendo em vista que às nossas empresas falta tecnologia administrativa e organizacional. O curso de administração de empresa, apesar de não preparar especificamente para o processo de
    decision-making, informa a respeito do que os
    cadres deveriam estar fazendo em termos de técnicas de organização.
  • 7
    Para os nossos propósitos podemos aqui ignorar os aspectos filosóficos, éticos e sociais da educação.
  • 8
    Os engenheiros dispõem de inúmeros manuais, como o
    Production handbook, onde se incorporam as conquistas definitivas na área e tenta-se compilar um conjunto bastante completo de informações úteis. Contadores e administradores têm coisa semelhante no
    Accounting handbook e no
    Cost accounting handbook. Em economia não temos nada de semelhante. Não faria sentido um
    Manual do economista com o mesmo espírito.
  • 9
    A experiência mostra que não é razoável esperar que dirigentes de empresa, operando num orçamento de tempo apertado e já muito distanciados das rotinas de estudante, irão realmente fazer alguma leitura para o curso.
  • 10
    Resumindo-se principalmente no estudo da operação das filiais de grandes empresas multinacionais.
  • 11
    Em Belo Horizonte, a Utramig e o Banco de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais já patrocinaram uma ou duas vezes o curso de Delft, de modo que a experiência não é nova entre nós.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 1974
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