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Alguns princípios para a modernização tecnológica no Brasil

ARTIGOS

Alguns princípios para a modernização tecnológica no Brasil* * Palestra proferida no I Seminário de Tecnologia Nacional, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 29.1.1974.

José Pastore

Professor do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo

1. INTRODUÇÃO

A incorporação da ciência e tecnologia no processo produtivo constitui uma força-chave para o desenvolvimento das sociedades modernas. Embora ciência e tecnologia estejam intimamente relacionadas, convém distinguir conceitualmente as duas, ainda que de maneira simples. Assim, podemos dizer que a tecnologia refere-se predominantemente ao know-how e a ciência preocupa-se fundamentalmente com o know-why. Enquanto esta última se dedica à descoberta dos princípios que regem os fenômenos, a tecnologia constitui basicamente a incorporação desses princípios em produtos e processos que redundam em uma melhor utilização dos fatores de produção (Jones, 1971).

Uma outra distinção entre ciência e tecnologia refere-se às questões de geração e difusão do conhecimento. O conhecimento científico é relativamente mais difícil de ser gerado do que o tecnológico. Por outro lado, o conhecimento científico é relativamente mais disponível do que a tecnologia. De fato, os resultados das descobertas científicas são de fácil acesso para todos aqueles que conhecem a "linhagem científica, e podem ler a literatura especializada. A tecnologia, entretanto, quase sempre envolve segredos industriais e direitos de propriedade. O seu acesso envolve compra, contratação, aceitação de condições de uso, etc.

Os processos de geração e difusão de tecnologia são bastante complexos e envolvem decisões de natureza política, econômica e social. As sociedades modernas apresentam variado grau de sucesso na implementação de tais processos. Parece ser de grande importância para nós no Brasil estudarmos as condicionantes desse sucesso, ou seja, os processos envolvidos na implantação e desenvolvimento de ciência e tecnologia nas sociedades hoje desenvolvidas. Um primeiro exame da matéria indica que grande parte do desenvolvimento alcançado pelas sociedades industrializadas foi devido ao progresso tecnológico originado da melhoria administrativa das instituições de pesquisa e da especialização da mão-de-obra em programas de pós-graduação e aperfeiçoamento de pessoal, notadamente nos campos ligados aos setores industrial e agrícola. Em segundo lugar, fica bastante claro que a tecnologia só gera impactos de desenvolvimento econômico quando é definitivamente incorporada nos processos produtivos, sugerindo a necessidade de estreita interação entre os produtores e os consumidores de tecnologia.

2. CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO

A relação entre investimentos em ciência e tecnologia e a economia é bastante complexa (Williams, 1967). Vários países investiram substancialmente naquelas atividades nos últimos anos e c desenvolvimento subseqüente foi bastante variado. Por exemplo, os Estados Unidos realizaram pesados investimentos em pesquisa básica na década dos 50 e o desenvolvimento econômico alcançado subseqüentemente tem sido considerado relativamente pequeno (Jones, 1971, p. 7). Por outro lado, o Japão e a Alemanha investiram muito menos do que os Estados Unidos e alcançaram resultados proporcionalmente maiores. Isso significa que a estratégia de investimentos em ciência e tecnologia tem papel tão importante quanto o montante de recursos aplicados no setor. O fato indica também que um país dificilmente pode-se basear exclusivamente nos seus recursos e na sua própria capacidade de pesquisa. Como vimos, os resultados da pesquisa científica estão relativamente disponíveis; portanto, é sempre conveniente para um dado país derivar benefícios de investimentos científicos realizados por outras nações mais avançadas.

Na verdade, parece existir um tipo de balanço de pagamentos para ciência e tecnologia: países como o Japão e a Alemanha, por exemplo, consideraram mais conveniente para si comprar know-how americano do que investir intensamente em pesquisa e desenvolvimento nas décadas de 50 e 60. Tais países dedicaram-se intensamente, também, em transformar conhecimento científico em tecnologia. E, como conseqüência, foram aos poucos, conquistando uma hegemonia de mercado, em vários produtos, vendendo-os, inclusive, aos próprios Estados Unidos.

A definição clara de estratégias de geração e transferência de tecnologia parece ter especial relevância para os países subdesenvolvidos onde o pessoal técnico e administrativo é ainda mais limitado e a estrutura de produção não cria normalmente altas demandas para inovações. Nesses casos, a assimilação dos avanços científicos e tecnológicos de outros países passa a ser de grande importância. Entretanto, essa assimilação requer certos estímulos e cuidados (Rattner, 1973). Na fase inicial de desenvolvimento, tais países podem-se basear intensamente em tecnologias importadas e concentrar seus recursos em adaptação às condições locais, na especialização de mão-de-obra, e no aperfeiçoamento das instituições de pesquisa, especialmente as de pesquisa aplicada. Nas fases seguintes - na medida em que o processo de desenvolvimento econômico avança - os recursos locais podem ser gradativamente alocados em pesquisa e desenvolvimento de produtos e, em certa medida, em pesquisa básica. Em qualquer fase, entretanto, seria um desperdício alocar os parcos recursos materiais e humanos de um país pobre para reinventar processos já existentes e disponíveis no mercado. O mesmo raciocínio vale para a pesquisa científica: quando os raros recursos são gastos na repetição de investigações já completadas e publicadas em outros países reduz-se sensivelmente o papel da ciência no desenvolvimento daquele país. A réplica da pesquisa científica e tecnológica deve ser limitada quase que exclusivamente às atividades de aprendizagem.

A experiência dos países desenvolvidos indica ainda a importância de se estimular cientistas e tecnólogos a se mobilizarem em direção da indústria, agricultura, administração e governo, ou seja, dos grandes consumidores de tecnologia. Igualmente, tem grande importância a organização de instituições de apoio tais como centros de documentação e informação, laboratórios para testes de qualidade, centros de treinamento em administração de pesquisa, etc. Não menos importante é o papel dos órgãos encarregados da formulação da política científica e tecnológica.

Política científica e tecnológica é aqui entendida como o conjunto de decisões que visam basicamente a melhor utilização da ciência e tecnologia como agentes do desenvolvimento socioeconômico. Em outros termos, a política científica e tecnológica visa atingir dois objetivos complementares: a) o desenvolvimento a longo prazo do potencial científico e tecnológico do país; b) utilização mais adequada desse potencial para concretizar as necessidades de desenvolvimento econômico e social (Pastore, 1971). Na verdade, a política científica e tecnológica de um país deve ser uma reflexão dos objetivos nacionais de longo prazo, significando que o planejamento científico e tecnológico deve ser parte integrante do planejamento econômico e social.

3. EFICIÊNCIA DO SISTEMA TECNOLÓGICO

A eficiência de um sistema tecnológico depende fundamentalmente de colocar uma tecnologia útil a serviço do produtor industrial e agrícola. Tecnologia útil é aquela que demonstra ter eficiência técnica e eficiência econômica, isto é, aquela que resolve os problemas do produtor de modo rentável.

A produção de tecnologia ajustada às necessidades nacionais no Brasil depende, em grande parte, da modernização dos institutos de pesquisa aplicada e, até certo ponto, das universidades. Esse tipo de modernização institucional ocorre, em geral, como função de um substancial aumento da demanda por pesquisa e desenvolvimento e na medida em que os pesquisadores passam a depender do setor produtivo e do próprio governo como cliente. Portanto, a modernização é uma solução que surge em decorrência de fortes pressões do lado da demanda. Pressões de demanda significam, entre outras coisas, vinculações de fundos a projetos específicos com metas, meios e cronogramas bem definidos (Roman, 1968).

Aumentar a dependência do setor produtivo e do governo implica a passagem progressiva dos institutos de pesquisa aplicada de uma situação totalmente baseada em orçamentos governamentais para uma situação onde predomina a pesquisa contratada. Na situação de contrato, os industriais, as associações de produtores e o próprio governo passam a ser clientes e os institutos de pesquisa passam a ser os fornecedores de soluções tecnológicas. Quanto maior a capacidade de oferecer soluções úteis maior será a clientela dos institutos; quanto maior a clientela, maiores serão os recursos materiais e humanos.

Há clientes que desejam conhecimentos para seu uso exclusivo, visando patentes e licenças; há outros que concordam em obter um conhecimento que seja de uso público. Os institutos de pesquisa precisam estar preparados para os dois tipos de clientes definindo critérios diferenciadores de concentração de cada tipo. Um dos critérios poderia ser o das tarifas diferenciadas, isto é, os institutos operariam com tarifas mais altas para prestar serviços de alto retorno individual e tarifas mais baixas para os projetos de relevância para o benefício social. Com os recursos provenientes desse diferencial, os institutos poderiam desenvolver as pesquisas de sua iniciativa assim como reforçar projetos cujos resultados são de utilidade coletiva (Procet, 1973).

A pesquisa contratada, portanto, parece ser a chave para se provocar maior interação entre os institutos e o setor produtivo e aumentar a eficiência do sistema tecnológico como um todo. Alguns princípios orientadores da sistemática de contrato são apresentados a seguir à guisa de provocação de debate.

1. Quem deve ser responsável pela captação de contratos? É conveniente, sob vários aspectos, que todos os pesquisadores de um instituto de pesquisa aplicada tenham alguma responsabilidade de "vender" serviços de pesquisa e/ou assistência técnica ao setor produtivo e ao governo. Isso não só auxilia o instituto na captação de recursos, mas, especialmente, põe o pesquisador em íntima interação com os consumidores de tecnologia.

2. Como devem ser elaborados os contratos? A sistemática de elaboração e avaliação de projetos parece ser a mais adequada. Cada pesquisa, para cada cliente, pode constituir um projeto. Os projetos podem formar programas de pesquisa. Na orçamentação do projeto, entretanto, devem estar previstos todos os custos de pessoal, material e amortização do capital, especialmente do equipamento. É de extrema importância que os orçamentos incluam uma taxa de administração - over-head - a ser estabelecida conforme a natureza dos projetos.

3. Como administrar o over-head? Os recursos provenientes de over-head podem constituir fundos de desenvolvimento institucional com o objetivo de apoiar as pesquisas de iniciativa do próprio instituto pois o desenvolvimento econômico depende não só das demandas que os produtores fazem aos pesquisadores, mas também das inovações que os pesquisadores propõem aos produtores. Tais pesquisas (in house research), portanto, podem ser mantidas totalmente ou em parte, com o over-head dos contratos. Além disso, os recursos de over-head podem ser utilizados para a contratação e aperfeiçoamento de pessoal especializado de alto nível, concessão de licenças remuneradas para reciclagem de pesquisadores e remuneração dos pesquisadores que trabalhem em áreas de aplicação mais remota, ou seja, aqueles que prestam serviços para o pessoal da linha de aplicação.

4. Como remunerar os pesquisadores? Em um órgão de pesquisa baseado fundamentalmente em contratos, o pesquisador passaria a ser remunerado em função e na proporção de sua importância para o mercado e evidentemente para o instituto. Os que têm importância para o mercado são facilmente reconhecidos: são os mais procurados pelos produtores interessados em resolver problemas. Estes são também os que têm importância para o instituto. Além deles, incluem-se todos os que prestam serviços aos pesquisadores aplicados: trata-se de um pessoal "invisível" para o mercado, mas de grande importância para a pesquisa aplicada; é o pessoal de apoio. Em ambos os casos, a remuneração do pesquisador estaria vinculada à vitalidade do seu instituto no mercado de tecnologia e seria proporcional à vitalidade do próprio pesquisador dentro do instituto.

5. Como apoiar o pesquisador que tem tendência para a pesquisa básica? Em todo instituto de pesquisa aplicada, sempre surgem os que se sentem subitamente tomados pela vocação de cientistas, desejosos de descobrir novos princípios e publicá-los em revistas do mundo acadêmico. Eles precisam ser apoiados. Nesses casos, convém ao instituto encaminhar seus projetos às universidades ou às fundações mais dedicadas à pesquisa básica. Na medida em que a comunidade científica julgue tais projetos relevantes, os arranjos de licença ou afastamento merecem ser realizados. Em casos excepcionais, os institutos de pesquisa aplicada devem usar recursos de over-head para pesquisa básica. Esta é cara, exige equipe acadêmica e outra atmosfera de trabalho. A universidade parece ter mais vantagens para tal empreendimento enquanto que os institutos de pesquisa aplicada parecem ser o habitat mais natural para o desenvolvimento da tecnologia.

6. Quem deve tomar a iniciativa do contrato? Nos estágios iniciais de desenvolvimento como o nosso, não se pode esperar que o industrial venha a ter muitas iniciativas para propor contratos aos institutos domésticos. Isso é devido em grande parte ao despreparo administrativo dos próprios institutos. Estes, em geral, não estão ainda preparados para cumprir prazos curtos, ou, então, tendem a pesquisas mais sofisticadas que nem sempre coincidem com as necessidades do produtor que enfrenta problemas simples e concretos e que exigem solução em tempo finito para sua sobrevivência no mercado. Por outro lado, aos próprios pesquisadores não agrada muito a insegurança de um contrato de pesquisa, ainda que bem remunerado. Os mais competentes, felizmente, parecem aceitar melhor o regime de mercado e com eles se podem iniciar as experiências de contratação passando-se os institutos progressivamente para o regime de empresas. Assim, nos primeiros estágios de desenvolvimento, convém que os institutos tenham a iniciativa de propor contratos de pesquisa e, com isso, passem a desenvolver certa credibilidade no meio consumidor de tecnologia. Enquanto tal não ocorrer, os produtores continuarão procurando indiscriminadamente os "fornecedores" estrangeiros.

7. Qual é o elemento básico para a agilização do instituto? Evidentemente, a condição necessária para a transformação proposta é a disponibilidade de uma massa crítica de pesquisadores e uma grande capacidade gerencial para formular projetos a partir de problemas para alocar adequadamente o seu pessoal e orçar os projetos. Os institutos precisam adquirir certa sensibilidade de mercado e conquistar a confiança do produtor oferecendo aquilo que têm e não o que não têm. Isso significa montar uma estratégia de ataque a problemas mais simples (exemplo: controle de qualidade), para os quais os técnicos dos institutos estão imediatamente preparados. Os recursos destes contratos, como vimos, podem ser parcialmente canalizados para o aperfeiçoamento de pessoal mais capaz e em condições, no futuro, de oferecer serviços mais sofisticados. É importante para o instituto ter clara compreensão do ciclo completo de pesquisa: como se sabe, a pesquisa aplicada só se completa quando o conhecimento se incorpora no processo produtivo e dá lucro para quem a contratou. Esse é o critério que o mercado utiliza para avaliar os serviços do instituto e dele decorrem novos contratos ou o término de relações.

8. Intermediação da pesquisa aplicada? Toda essa preparação administrativa, evidentemente, não vem a ser conseguida de imediato. Assim, em um primeiro estágio, é imprescindível a criação de serviços de extensão que venham a apoiar os institutos na tarefa de "corretagem de serviços" junto aos produtores. Aos extensionistas compete, inicialmente, promover a interação entre pesquisador e produtor. Aos poucos ele pode sair de cena e deixar que os dois se entendam. Quando isso ocorrer, estaremos diante de um sistema dinâmico de produção e difusão de tecnologia.

BIBLIOGRAFIA

  • Jones, G. The role of science and tecnology in developing countries. London, Oxford University Press, 1971.
  • Pastore, J. Critérios e mecanismos para uma política científica. S. Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1971. mimeogr.
  • Procet. Projeto Ciência e Tecnologia. S. Paulo, Conselho Estadual de Tecnologia, Secretaria de Economia e Planejamento, 1973.
  • Rattner, H. Transferência de tecnologia, bibliografia classificada e parcialmente anotada. S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 1973.
  • Roman, D. D. Research and development management. New York, Apleton-Century-Crofts, 1968.
  • Williams, B. R. Technology, investment and growth. London, Chapman Hall, 1967.
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    Palestra proferida no I Seminário de Tecnologia Nacional, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 29.1.1974.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1974
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