Acessibilidade / Reportar erro

Uma vida e muitas lutas

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Edgar Carone

Uma vida e muitas lutas

Por Juarez Távora. Rio, José Olympio, 1973. 366 p. II, (Coleção Documentos Brasileiros, n. 156).

Num momento de entusiasmo pelo tenentismo, perguntei a um amigo o que achava das figuras de alguns revolucionários: a sua resposta decepcionou-me, pois o seu contacto com vários deles havia-lhe mostrado que a maioria não tinha evoluído e que suas idéias eram, em geral, obtusas e confusas. Na época, a opinião pareceu-me insatisfatória, mas posteriormente dei-lhe razão.

Na década de 1920, o tenentismo representa um impacto de revolta e de violência contra as formas de domínio, num momento em que as opções legais mostram-se improfícuas. É devido ao seu papel de "parteira da história" que se dá a revolução de 1930 e as conseqüentes mudanças de poder político e de classes. No entanto, a história mostra-nos inúmeros exemplos de transformações revolucionárias - e a tenentista inclui-se no caso - em que seus dirigentes são mais pragmáticos e não têm nítida consciência ideológica de seu papel.

O livro de Juarez Távora comprova essa tendência, e podemos ver confirmada a falta de paralelismo entre ação e ideologia, pois, segundo ele, antes de 18 de janeiro de 1922, quando é transferido para o Realengo (Rio), "se incluem os dois únicos anos despreocupados da minha mocidade - 1920, gozado no Rio e em Curitiba, e 1921, passado no Ceará e em Itajubá" (p. 115). Antes, só uma vez o autor aborda tema político, quando fala da candidatura do tio Belisário, no Ceará (1918), ocasião em que "tive oportunidade, pela primeira vez, de observar, de perto, as mazelas do sistema eleitoral então vigente" (p. 92). Só quando passa a morar no Río é que suas reações vão-se ligar diretamente aos acontecimentos do Clube Militar é à revolução de 1922.

A obra é dividida em quatro partes distintas: a primeira chama-se Caminhando na planície (1898-1992) e abrange sua infância, estudos e início de sua carreira militar; Na escalada da encosta (1922-30) completa o primeiro volume e relata suas peripécias militares. O segundo volume compor-se-á de Altiplano, que vai de 1930 à morte de Getúlio Vargas (agosto de 1954) e de uma última parte, Descendo a contra-encosta, que vai de 1954 ao fim do governo de Castelo Branco.

Em Caminhando na planície sobressaem as partes relativas à família e à vida militar. Apesar de ambas não contribuírem mais profundamente para o conhecimento destas realidades, as observações do autor consolidam as informações existentes. É assim que os dados sobre a condição social familiar e da economia doméstica confirmam a precariedade econômica e de vida do Nordeste, onde o Embargo, "uma pequena fazenda mista de criação e lavoura, com área de meia légua quadrada (cerca de 900 hectares)" é insuficiente para o sustento de uma família cada vez mais numerosa: daí a necessidade de procura de trabalho em outras zonas, fato que naturalmente marca a relatividade do conceito e do predomínio social do latifúndio no Nordeste. Na região, a grande propriedade representa núcleo de poderio clânico, mas, devido à sua instabilidade econômica e social, é de suas fileiras que saem os elementos para a formação da classe média no Nordeste e de outras zonas do Pais, que vão participar da composição da oficialidade de Exército e a do clero.

Os poucos dados sobre o ensino militar - engenharia militar - servem de complemento ao estudo sobre o Exército brasileiro. Apesar de limitar-se especificamente àquela arma, o autor dá-nos poucas informações sobre o ensino, a reforma de 1917 e a mudança de Regulamento de 1918,0 restante são simplesmente meros episódios jogados no livro.

A segunda parte enfoca momento de crise aguda do País, época em que Juarez Távora participava ativamente dos acontecimentos. Nela desfilam as revoluções de 1922 e 1924, as diversas prisões do autor e a revolução de 1930.

A complexidade de temas - e não de abordagem - obriga-nos a escolher somente alguns momentos: ao relatar a gênese da revolução de 1922, Juarez confirma o boato de que aviadores navais pretendiam bombardear o séquito de Epitácio Pessoa, que descia de Petrópolis ao Rio de Janeiro, em abril (p. 113), Outra Informação é a que dá a respeito da não-participação da oficialidade de Curitiba na revolução, "devido à traição ou pusilanimidade do oficial superior, inculcado para comandá-lo" (p. 119). Senão, é a razão que encontra para o compromisso de grande número de oficiais revoltosos com a revolução de 1924, pois sofrem condenação injusta nos fins de 1923 (p, 128-9).

É natural que as descrições que faz sobre sua ação em 1922, 1924, Coluna Miguel Cesta-Prestes e 1930 sejam multo mais importantes do que os complementos citados. Porém, como veremos, elas são retratadas só do ponto de vista pessoal e factual, quase sempre de maneira pouco original, o que tornaria a sua transcrição cansativa.

Uma das características marcantes do livro é o seu caráter repetitivo, o que o torna grandemente sem originalidade: a maciça maioria dos fatos relativos à crise militar das Cartas Falsas (1921), à revolução de 1922, ao preparo revolucionário de 1924 etc, baseiam-se em outro livro seu, À guisa de depoimento - sobre a revolução brasileira (1.º v, O combate, 1927; 3.º v, Mendonça Machado, 1928. o 2,º nunca foi publicado); quanto ao levante paulista de 1924 e à Coluna Miguel Costa-Carlos Prestes, o autor preferiu reproduzir ipsis litteris trechos do livro. Só quando trata de revolução de 1930 é que seu relato torna-se original.

Os enxertos, que cobrem quase toda segunda parte, tornam o livro grandemente falso, pois existe divergência entre o estilo anterior e o atual. A guisa de depoimento é um testemunho vivo, escrito durante os acontecimentos; dá-se o contrário com as memórias de Juarez Távora, onde utiliza os acontecimentos para provar sua posição pessoal. Um é objetivo e vivo; o outro, subjetivo e bem mais monótono, o que destoa e desequilibra a obra.

A abundância de autocitações é um ônus negativo. Pior, no entanto, é quando pretende justificar os movimentos revolucionários, voltando a repisar as explicações personalistas e parciais utilizadas no passado. Para ele, o ciclo revolucionário da década de 20 não está relacionado a nenhum processo de transformação da sociedade - econômico, social e político - e tudo se explica ainda pela existência das famosas Cartas Falsas: "Autêntica ou apócrifa, foi essa malfadada carta o ponto de partida da crise político-militar, que deveria sacudir o país durante os dez anos seguintes" (p. 113). Não é preciso repetir que, para ele, também, 1930 foi o resultado de desavenças particulares entre Washington Luís e Antônio Carlos.

As cartas a Luís Carlos Prestes e ao Tenente Monteiro, ambas de junho de 1930 e inéditas, comprovam a anterior espontaneidade e relativa riqueza ideológica do autor na sua fase revolucionária.

Apesar de reproduzir outros documentos da época, alguns deles são conhecidos demais para despertar atenção (Manifesto de Maio, de Luís Carlos Prestes; resposta de Juarez ao Manifesto de Maio etc). As duas missivas, no entanto, reafirmam e esclarecem algumas questões importantes sobre o tenentismo.

A endereçada a Luís Carlos Prestes encerra a polêmica pública entre ambos, a respeito da denúncia que o primeiro faz da ligação entre o tenentismo e Aliança Liberal e onde afirma sua posição comunicante. Na carta, Juarez repete que os tenentistas não serão "absorvidos ou esmagados pela Aliança" e que, se esta galgasse o "governo à nossa custa", "nós cobraríamos, como preço do nosso sacrifício, a execução, pelo menos nos seus pontos mais essenciais, do nosso programa de restauração nacional". "A revolução tem prestigio próprio, e tê-lo-á, necessariamente, enquanto condensar em seus propósitos reivindicadores as aspirações médias de coletividade nacional. Enquanto isso se der, ela poderá marchar junto com os políticos descontentes, ou separada deles, sem que força alguma humana lhe possa roubar a menor partícula do seu prestígio, no seio das massas sofredoras"

Por isso ele combate as idéias de Prestes e sua crença na "eficiência bélica do proletariado rural ou urbano". E condena a sua solução do "problema social, econômico e político, pelo confisco sumário do latifúndio e organização de um governo de conselhos de proletários e soldados"; "imoral e contraproducente" são as medidas que preconiza contra o latifúndio, o imperialismo etc. É preciso livrarmo-nos, primeiro, "dos sacripantas daqui de dentro, que compram cangas ao imperialismo estrangeiro e no-las impõe ao pescoço". Por isso não adianta seguir o conselho de Prestes, pois como lhe havia dito, "não acreditava na sabedoria e honestidade de um governo alicerçado sobre conselhos de operários, marinheiros e soldados", porque a "massa não possui capacidade intrínseca para exercer diretamente o governo de si mesma, nem dispõe, entre nós, de discernimento bastante para eleger, com consciência, mandatários capazes de governá-la com sabedoria".

O nivelamento que Prestes preconiza é "uma utopia. Os homens têm nascido e continuarão a nascer desiguais no físico, no moral e no intelectual. A humanidade não será nunca uma planície monótona de tipos homogêneos - mas, agora, como sempre uma superfície oceânica revolta..." (p. 355-66).

A missiva ao Tenente Monteiro complementa parte do pensamento anterior de Juarez: a) os revolucionários autênticos - militares e "uma apreciável falange de civis" - defendem "idéias muito mais avançadas que as pregadas pela Aliança Liberal", mas não têm condições de pô-las em prática sozinhos; b) daí a necessidade de união com a Aliança Liberal, apesar dos seus percalços; c) Prestes participou dos conchavos desde o início; d) durante o correr dos meses, houve "incidências e alterações'', inúteis de serem rememoradas; e) existem elementos no governo gaúcho, entre os democráticos de São Paulo etc, que continuam "dispostos a prosseguir na preparação do movimento, mesmo sem o concurso do General Prestes"; f) e g) parece-me lógico que, vitoriosa a revolução, a "conseqüência imediata será o estabelecimento da ditadura (grifo nosso) e a dissolução do Congresso, a suspensão dos direitos adquiridos pela magistratura venal e política, e de todos funcionários relapsos e incapazes". A ditadura, porém, é transitória e "indispensável ao reajustamento da mentalidade do nosso povo à prática de verdadeiro regime republicano, que se lhe há de seguir"; mas, "seria pretensioso fixar, de antemão, o prazo dentro do qual deverá ela ajustar a nossa tão desconjuntada democracia, de modo a se lhe poder confiar, novamente, o governo consciente de si mesma". Quem, no entanto, exercerá a ditadura? Devido ao maior sacrifício do Rio Grande do Sul, caberá a ele 'indicar o Ditador", Por mim escolheria Osvaldo Aranha, "que além de ser moço e decidido, tem sido, desde 1922, um simpatizante da revolução, Mas não creio que se deva ligar, no caso, grande importância aos indivíduos. É muito mais importante fixar, de antemão, as diretrizes de governo...", h) "Continua a crer que nós, militares, podemos e devemos constituir uma força respeitável diante do novo poder que se erigir - qualquer que ele seja, Não nos esqueçamos de que, depois da luta, seremos os verdadeiros baluartes sobre que terá de apoiar-se a ditadura nascente, pois continuaremos a ter em nossas mãos, direta ou indiretamente, toda a tropa que houvermos comandado na revolução."

Podem ser contestadas muitas das questões levantadas no livro, algumas delas tendo sido repetidas por ele próprio e outros autores; não é concebível que, após todos estes anos, acredite-se que "apesar da veemência com que estava sendo conduzida a campanha eleitoral pelos partidários extremados dos dois candidatos (Artur Bernardes e Nilo Peçanha), as Forças Armadas se vinham mantendo ausentes de qualquer participação na mesma" (o grifo é nosso). Sabe-se que, após 1919, quando Epitácio Pessoa nomeia civis para os Ministérios da Guerra e da Marinha, iniciou-se movimento militar de reprovação, que aumenta cada vez mais até 1921; o incidente das Cartas Falsas amplia o movimento anterior e não o inicia. Aqui, o factual não surge como simples reparo, mas sim como marco fundamental, porque o autor acredita, ou quer fazer outros acreditarem, que as Forças Armadas revidaram ao "ultraje" das Cartas Falsas, o que só em parte é verdadeiro; a outra face da verdade é aquela que liga a contestação à tendência dos militares para apossar-se novamente do poder executivo, como se dera no início da República e no governo de Hermes da Fonseca.

O livro está pontilhado de outros conceitos discutíveis, mas o seu levantamento levar-nos-ia a uma série continua de probleminhas e de análise discordantes. Só um exemplo: dizer, como foi afirmado anteriormente pelo autor, que Osvaldo Aranha foi "desde em 1922, um simpatizante da revolução", parece-me falta de memória de Juarez ou afirmação tática para convencer o Tenente Monteiro; não é preciso recordar que, em 1923, (revolução no Rio Grande do Sul) e durante a revolta de Luis Carlos Prestes (outubro de 1924), Osvaldo Aranha, Flores da Cunha e Getúlio Vargas (este último é mandado ao Rio de Janeiro, para ser líder da bancada gaúcha) são elementos de exclusiva confiança de Borges de Medeiros. A não ser que o autor considere "simpatizante" o fato de Borges de Medeiros apoiar Nilo Peçanha (campanha da Reação Republicana, 1921-22). Se a afirmação de Juarez fosse verdadeira, como seria explicado o recuo gaúcho após o segundo 5 de julho (1924), a luta de Borges contra a revolução de 1922 etc.

Esta análise fastidiosa justificar-se-ia em outro local, num estudo mais profundo e não em simples resenha. No entanto, para o terminar, gostaria de fazer mais dois reparos: como dissemos, o livro todo diz respeito à sua ação; é pena que Juarez não tenha traçado o perfil dos seus companheiros, ficando completamente obscurecidas as atividades e as idéias de um Joaquim Távora, João Alberto, Isidoro Dias Lopes e dezenas de outros.

O segundo reparo é para lamentar o estilo piegas e de cronista social do autor, que me fez lembrar o do Marechal Mascarenhas de Moraes, quando, em suas memórias, relembra o baile em que conheceu sua futura mulher. Não há dúvida que ambos têm pleno direito de escolher tema e estilo, mas o leitor que julgue e critique quem escreveu ou quem faz o reparo: "A festa do Batalhão foi, sem favor, um sucesso. A ela compareceram as melhores famílias da cidade, estabelecendo-se, definitivamente, o entrosamento social entre a oficialidade desse Corpo de Tropa e a sociedade de Itajubá. A partir daí, estenderam-se rapidamente minhas relações com várias famílias itajubenses, a que se associavam meus colegas tenentes. Embora não se usassem visitas domiciliares, tínhamos oportunidade de conversar com quase todas as moças conhecidas, durante o costumeiro desfile diário de após o jantar, na praça central da cidade, ou nas sessões do cinema, que se lhe seguiam; e, menos freqüentemente, nas festas familiares e nas poucas reuniões do clube local. Recordo, entre as moças com as quais nos dávamos: as Sanches - Betina, Miloca, Ana e Laurita; Besita Brás; as Pereiras - Adelina (já casada com o Dr. Sebastião Rennó), Lourdes (então apenas um botãozinho, a entreabir-se em moça, que despertara forte paixão no Tenente Bransildes, vindo a casar-se, mais tarde, com João Brás), Mirtes e Nair, que eram ainda meninas; Zezé Pontes (de cujo casamento, em 1923, com o Tenente Paulo Amarante, fui padrinho); Odete Pinto; as Reale - Ida e Regina (cujo irmão - Miguel Reale - é hoje o reitor da Universidade de São Paulo); Nair Braga; e Alzira Masselli (com quem andei tendo namoro cerimonioso)" (p. 106-7).

É só.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 1974
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br