Acessibilidade / Reportar erro

Em busca das fórmulas milagreiras orientais: considerações sobre a viabilidade de "importação" das técnicas gerenciais japonesas por outros países capitalistas

ARTIGO

Em busca das fórmulas milagreiras orientais - considerações sobre a viabilidade de "importação" das técnicas gerenciais japonesas por outros países capitalistas

Déa Lúcia Pimentel Teixeira

Professora no Instituto de Economia da Universidade de Campinas (SP)

1. INTRODUÇÃO

No final do século XIX, após o período chamado de Revolução Industrial - quando se introduz na Inglaterra e, posteriormente, em outros países, a maquinaria e o "sistema de fábrica" - a grande indústria inicia um lento e constante processo de desenvolvimento calcado na concentração e centralização de capitais. Suas formas de produção baseava-se até então - embora já alteradas pela introdução das máquinas - em adaptações de estruturas e processos de produção utilizados na manufatura. O desperdício de matérias-primas e materiais, a falta de controle da mão-de-obra e a desorganização do processo de produção acarretavam custos operacionais elevados, fato que, conseqüentemente, dificultava o atingimento das metas de lucros máximos.

Tais motivações viabilizaram a pesquisa, a elaboração e a aplicação da chamada "administração científica" do processo de trabalho, com sua função ao mesmo tempo gerencial e coercitiva, que objetivava o aumento da produtividade do trabalho por meio de técnicas legitimadas "cientificamente" pelo pretenso aspecto de racionalidade que se propunha a alcançar.

Assim, ao longo desse século, escolas e teorias de administração sucederam-se com o sentido de instrumentalizar o capital, fornecendo-lhe métodos e técnicas administrativas que contribuíssem para a viabilização das incessantes transformações dos processos de produção que ocorreram sob o ímpeto da principal força norteadora desse modo de produção: a acumulação de capital. A cada obstáculo encontrado ao alcance dos objetivos de ampliação constante da produtividade, implantados por determinado estilo de administração, uma nova estratégia se propõe a partir de alterações no caráter do gerenciamento dos conflitos através de transformações: no conteúdo do trabalho, nas formas de autoridade, nos processos de integração da força de trabalho, na forma de legitimação dos métodos novos, etc.

"É o novo discurso do capital, constituído por novo estilo de administração capitalista, que se atualiza em função das necessidades impostas em cada etapa de acumulação do capital e em cada estágio das forças produtivas.

As alterações então ocorrem à medida que a organização repressiva do trabalho passa a se constituir em obstáculo à ampliação crescente da produtividade, em função das condições econômico-sociais específicas dos países ocidentais, em seus respectivos estágios de industrialização.

Dependem, ainda, da configuração assumida pela correlação de forças existentes entre as classes sociais, das tecnologias utilizadas pelo capital e da forma de legitimação por ele proposta; mas nunca questionam realmente as bases que alicerçam o modo de produção capitalista. Enfim, significam adaptações dos processos de trabalho na produção em massa às novas condições de controle da força de trabalho e às novas necessidades impostas pela configuração da estrutura de produção internacional e, portanto, às novas condições de reprodução da dominação do capital, objetivando a continuidade do processo de acumulação na fase da produção em série e da produção por processamento contínuo."1 1 . Teixeira, D.L.P. & Souza, M.C.A.F. de. Organização do processo de trabalho na evolução do capitalismo. Revista de Administração de Empresas, 25(4):70, out./dez. 1985.

Assim, nas palavras de Braverman, "a necessidade de ajustar o trabalhador ao trabalho em sua forma capitalista, de superar a resistência natural intensificada pela tecnologia mutável e alternante, relações sociais antagônicas e a sucessão de gerações, não termina com a 'organização científica do trabalho', mas torna-se um aspecto permanente da sociedade capitalista".2 2 . Braverman, H. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. p. 124.

É neste sentido que, nas duas últimas décadas, observa-se um grande interesse, principalmente de administradores e pesquisadores norte-americanos e europeus, em estudar as técnicas de gerenciamento japonês, uma vez que, após a reconstrução do país no período pós-guerra, as grandes empresas japonesas atingiram altíssimos níveis de produtividade que superaram os dos grandes complexos dos demais países desenvolvidos.

Procura-se, assim, identificadas as características do "estilo gerencial japonês", transplantá-lo para os países ocidentais, como se se tratasse de "técnicas científicas" que solucionariam estrangulamentos causados pelo desconhecimento de formas mais aperfeiçoadas de gestão, que a natureza da cultura oriental propiciou. O transplante ou a adaptação dessas novas formas de organização do processo de trabalho seriam então viáveis, segundo a opinião de especialistas, na medida em que valores culturais orientais pudessem ser difundidos no mundo empresarial ocidental e utilizados para o alcance dos mesmos resultados.

Tudo se passa como se fosse uma nova maneira de encarar a participação dos agentes no processo produtivo. Como se os orientais, tanto empresas como empregados, melhor integrados e com os objetivos idênticos, melhor alcançassem a sua meta. Sendo assim, seriam as diferenças culturais que explicariam as maneiras distintas de gerenciamento no Ocidente e no Oriente.

Esquecem-se os pesquisadores - e é o que pretendo demonstrar - de que tais formas de administração se originam dos seguintes fatos e os refletem:

a) as necessidades do modo de produção capitalista, onde possuem (essas formas) um papel bastante importante, a cada etapa de desenvolvimento econômico e social;

b) a organização e o confronto das classes sociais;

c) a ideologia que legitima o modo de produção.

Assim, tais formas de administração só podem ser entendidas, e analisada sua viabilidade de extensão para outros países, quando explicadas num contexto da forma de constituição e de expansão do modo de produção capitalista, tanto em termos de seus determinantes mais gerais, como dos aspectos específicos econômicos e sociais que propiciaram o rompimento do modo anterior e viabilizaram os novos elementos constitutivos. Deve-se examinar, portanto:

a) como se realiza a transição de um modo de produção para outro;

b) a utilização ou viabilização de condições que propiciaram a cristalização do "novo" modo de produção;

c) o tipo de ideologia que legitima e viabiliza as "novas" relações de produção;

d) qual o estágio atual das forças produtivas que utilizam o referido "estilo gerencial".

Proponho, pois, numa primeira aproximação, demonstrar que:

a) as técnicas de organização do processo de trabalho no Japão cumprem exatamente as mesmas funções que desempenham no capitalismo ocidental;

b) suas peculiaridades advêm da natureza e estrutura da sociedade e da conjuntura econômica, social e política, isto é, de circunstâncias históricas que esboçam padrões de industrialização, e não simplesmente de valores culturais particulares considerados determinantes do processo de desenvolvimento;

c) sua transposição, portanto, é viável na medida em que funciona como ideologia de legitimação da dominação e controle do trabalho pelo capital, embora encontre sérios obstáculos quanto à adaptação de valores nos quais se baseia: participação, integração e cooperação, utilizados como mecanismos de defesa da identidade e segurança nacionais e de valorização da concorrência a nível internacional para a obtenção da expansão econômica.

Como o desenvolvimento da industrialização no Ocidente foi alcançado a partir da difusão de valores motivacionais altamente competitivos e individualistas, esvaziou-se o caráter orgânico que ora se pretende importar e/ou ressuscitar e desenvolver.

Por outro lado, o caráter autoritário ou militarista, imprimido ao processo de industrialização japonês pelo seu direcionamento governamental e em favorecimento das classes produtoras, levou à utilização de técnicas tayloristas de controle da força de trabalho. Tais medidas baseiam-se na remuneração fixa mensal acrescida de bonificações proporcionais à produtividade alcançada (em determinados setores industriais e determinadas funções do processo de trabalho), que, por sinal, têm obtido excelentes resultados.

A civilização ocidental, no entanto, abandonou essa recomendação de Taylor e passou a praticar técnicas elaboradas pela teoria de relações humanas, que utiliza o apelo motivacional do prestígio, reconhecimento e status (de menor custo) para a obtenção de maior produtividade.

Penso que, para elucidar minhas afirmações, se torna necessário, num primeiro momento, proceder ao exame de:

a) como a sociedade japonesa se articula ao capitalismo originário na sua fase concorrencial, rompendo as estruturas feudais e constituindo o capitalismo monopolista;

b) como o desenvolvimento da industrialização durante o século XX exige, pelas suas características, estilos gerenciais próprios às condições econômicas e sociais específicas do país em seu estágio de integração à economia internacional;

c) qual o significado real e a possibilidade de implantação e renovação de métodos de ampliação crescente da produtividade ou da obtenção da mais-valia.

2. DO CAPITALISMO CONCORRENCIAL AO CAPITALISMO ATRASADO

Ao findar a Revolução Industrial na Inglaterra (fim do ciclo têxtil e início do ciclo ferroviário) - anos 40 do século XIX - o modo de produção capitalista encontrava-se plenamente constituído. O capital industrial comandava a expansão econômica e assumia progressivamente uma posição hegemônica frente às outras formas de capital.

Carlos Alonso Barbosa de Oliveira analisa profundamente, em sua tese de doutoramento,3 3 . Oliveira, C.A.B. de. O processo de industrialização - do capitalismo originário ao atrasado. Tese de doutoramento. Campinas, Unicamp, 1985. mimeogr. as etapas de constituição e evolução do capitalismo. É a sua interpretação que utilizo e nela me apoio irrestritamente para estabelecer as bases históricas e econômicas da implantação das práticas administrativas que procuro compreender.

Os capitais individuais existiam em grande número; a tecnologia era ainda muito simples; as unidades empresariais, muitas (empresas individuais, familiares); os operários ainda dominavam a técnica; a distribuição dos capitais e do trabalho realizava-se pelo funcionamento da concorrência e permitia a geração de novos capitais individuais; ainda não existiam monopólios.

A livre concorrência era, então, o elemento fundamental do capitalismo. Seus mecanismos regulavam as relações entre os diversos capitais e entre capital e trabalho; recolocavam permanentemente as condições do processo de acumulação; e determinavam a forma de hierarquia mantida entre os diferentes capitais.

A ideologia do momento consistia no liberalismo para permitir essa forma concorrencial e a expansão, uma vez que o Estado não necessitava exercer funções reguladoras. A reprodução da estrutura econômica era regulada por mecanismos puramente econômicos que garantiam o processo de acumulação.

A relação de dominação econômica e política a nível mundial, exercida pela Inglaterra no século XVIII, fundada na violência extra-econômica, tinha-se transformado, na metade do século, em uma posição hegemônica (de articulação dos interesses dos diferenes Estados nacionais), pois "essa fase de evolução compreende necessariamente uma ampliação do campo de ação da concorrência a nível internacional".

A grande indústria implantava-se em vários países sem descontinuidade com o processo de industrialização da Inglaterra. Muito pelo contrário, observava-se nesta etapa a política de diversos países tendendo ao livre-cambismo e à eliminação de entraves à circulação de mercadorias, aos fluxos de capitais e aos movimentos migratórios a nível internacional.

Assim se industrializaram, no período de 1840-70, a França, a Bélgica, a Alemanha e os EUA.

É o que se convencionou chamar de industrialização atrasada: "aos processos de constituição do capitalismo que se completam na vigência do capitalismo concorrencial".

O livre-cambismo favorecia a indústria de modo geral, pois a articulação de vários países com a Inglaterra ocorria por meio da importação de máquinas e produtos industriais e pela exportação de matérias-primas. A Inglaterra também exportava capitais financiando empresas (nessa fase, principalmente, estradas de ferro). Esses lucros compensavam o déficit da balança comercial pelo aumento crescente das importações em relação às exportações. Esse fato, no entanto, levou ao desenvolvimento de seus parceiros. Possibilitou-se, assim, nos países que se industrializavam, a reprodução das estruturas constituídas pelo capitalismo inglês.

Nesse período, somente a Inglaterra possuía capacidade de permanente acumulação. Gestava-se, assim, uma estrutura monopólica que passou a ser dominante nas últimas décadas do século.

Após 1870," a Inglaterra começou a perder o monopólio da produção industrial no mundo capitalista e a tendência ao livre-cambismo no mercado mundial passou a ser substituída pelo protecionismo". " A livre concorrência nos países capitalistas foi dando lugar a um rápido processo de centralização de capitais e ao surgimento do monopólio, ao mesmo tempo em que um novo padrão tecnológico vai sendo gestado" (do aço, eletricidade, motor a combustão interna, química pesada, etc). As inovações agora resultavam do planejamento e da pesquisa. Enfim, do desenvolvimento científico. Acirrava-se a concorrência capitalista e estreitavam-se as relações entre bancos e indústria, viabilizando o uso do crédito de capital como arma na luta pela eliminação de concorrentes e para a centralização de capitais. Generalizou-se a formação da sociedade por ações pois "o processo de centralização permitia e exigia o surgimento de plantas gigantescas", com altas escalas de produção.

Nesse contexto da chamada segunda Revolução Industrial, processou-se a "segunda onda das industrializações atrasadas" (1873-96), que inclui Itália, Rússia e Japão. Pressionados pela ameaça à sobrevivência econômica e política autônoma, caso a opção pela modernização não fosse tomada, enfrentaram esses países uma série de obstáculos para o alcance de suas metas desenvolvimentistas. As exigências de caráter técnico do processo e, conseqüentemente, de capitais centralizados encontravam-se em acentuado descompasso com suas estruturas econômicas e financeiras. No âmbito do mercado mundial ocorria substancial aumento de oferta de produtos agrícolas com persistentes quedas de preços dos produtos primários. Por outro lado, o dinamismo do mercado mundial capitalista reduzia-se em função do mais lento crescimento das economias já industrializadas e do crescente protecionismo vigente. Entretanto, atuava no sentido favorável a esses países a crescente oferta de empréstimos a nível mundial. Porém, em função de seu desenvolvimento manufatureiro e comercial relativamente modesto, foi exigido dessas sociedades um enorme salto para a implantação da grande indústria.

O processo de centralização de capitais e monopolização ocorreu de forma diversa em cada país, em função não só de sua articulação com a Inglaterra e outros países já industrializados mas, também, das características de sua própria estrutura econômica e social, que explica, em última instância, o porquê, o quando e o como de cada padrão de industrialização estabelecido.

3. O CAPITALISMO ATRASADO - O CASO ESPECIAL DO JAPÃO

Embora, como diz Carlos Alonso,4 4 . Oliveira, C.A.B. de. op. cit. p. 239. a evolução da sociedade japonesa, ao longo da era Tokugawa, iniciada no século XVII e encerrada em 1867, seja "uma evolução estruturalmente semelhante à da sociedade européia durante a fase de acumulação primitiva", importante se torna, para os objetivos deste trabalho, aprofundar essa análise no sentido de se trazerem à luz as características conjunturais diferenciais que imprimiram aos processos de decomposição do regime feudal e de desenvolvimento do capitalismo no Japão - a nível da organização social dessa sociedade - estilos, métodos e técnicas gerenciais de natureza diferenciada dos utilizados no Ocidente.

Já foram examinadas, no item anterior, a etapa do capitalismo em que ocorreu a industrialização japonesa - a etapa concorrencial - e sua influência na constituição desse modo de produção no Japão. Resta agora analisar o outro aspecto - o passado do país - indispensável à formação de uma visão completa do processo.5 5 . Sobre o processo de transição, no Japão, do modo de produção feudal para o capitalismo, ver: Allen, G.C. A shorteconomic history of modem Japan. London, 1951; Hall, J.W. El império japonês. Madrid, Siglo XXI, 1973; Lockwood, W. W. O Estado e o empreendimento econômico no Japão moderno - 1868-1938. In: Kuznets, S. et alii, org. Crescimento econômico; Brasil, India e Japão. Rio de Janeiro, Mônaco/Usaid, 1969; Moore Jr., B. As origens sociais da ditadura e da democracia; senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Santos, Martins Fontes, 1967; Takahashi, H.K. La place de la revolución Meiji dans l'histoire agraire du Japon. Revue Historique, oct/déc. 1953; Weber, M. História geral da economia. São Paulo, Mestre Jou, 1968.

No século XVII subiu ao poder, no Japão, um novo governo, que encerrava um prolongado período de desordens e lutas internas. A chamada era Tokugawa (1600-1868) postulava uma meta política que diferia frontalmente da era anterior, caracrterizada pelo desenvolvimento de inúmeras batalhas entre os senhores feudais (daimios), que procuravam ampliar seus domínios e, desse modo, contribuíam para promover a unificação e a consolidação de todo o território nacional durante o século XVI.

O clã Tokugawa assumiu o governo com o objetivo de estabelecer e manter a paz e a ordem nacional, reconquistando a possibilidade de controlar o próprio destino do país. Neste sentido tornou-se um regime restritivo e conservador, que impunha uma organização social de aprofundamento da diferenciação existente entre os estamentos sociais, no que tange a seus limites, valorização, comportamento adequado, leis básicas sociais, etc. Adotou uma política de isolamento nacional em relação a outros países, expulsando, inclusive, comerciantes e missionários estrangeiros que circulavam pelo Japão, proibindo, mesmo, os próprios japoneses de saírem e retornarem ao país. Esse isolamento assegurou a "paz interna", criando condições para o desenvolvimento de suas instituições políticas e de seus recursos econômicos e culturais, enfim para o país desenvolver-se como nação. Embora se deva alertar para outros fatores que promoveram essa política isolacionista do Japão na época - tais como, a queda de interesses dos estrangeiros no comércio proposto pelos japoneses; as condições geográficas inadequadas a um contato mais freqüente com o exterior, etc. - preocupava-se o governo, ao impor o isolamento, com a necessidde de assegurar ao país: uma estabilidade política (imposição da autoridade central sobre a local, de alguns senhores feudais que se interessavam pelo comércio exterior); social (continuidade do desenvolvimento das relações patrimoniais); religiosa (temor ao cristianismo); e econômica (garantir o monopólio do comércio exterior).6 6 . Hall, J.W. op. cit.

O governo permanecia em mãos da aristocracia militar (os samurais) que, nos tempos de paz, exercia a administração civil como uma elite burocrática. Pautava-se, no entanto, acentuadamente, pelos moldes das organizações militares, num esforço para colocar a sociedade em ordem, através da elaboração de novos princípios, leis e regulamentos que definiam uma administração racionalizada e muito bem controlada.

Assim, instituiu-se, como característica peculiar do sistema político Tokugawa, um governo com dois níveis de autoridade: um nível de poder efetivo - o xogunato - sobre todas as áreas do governo e da vida nacional (senhores feudais, ordens religiosas e, inclusive, o imperador e sua corte, ainda que bastante prestigiados por ele), institucionalizado por meio de um mecanismo racional de controle dos demais estamentos, que os mantinha em constante fragmentação e oposição; por outro lado, o xogunato aceitava um nível de autoridade regional de alguns senhores feudais, por ele nomeados governadores, embora controlados e submetidos ao seu poder, do qual advinham as doações e expropriações das terras de que dispunham e seu impedimento de participar de assuntos de Estado. Seu nível de autoridade restringia-se às aldeias e às cidades sob sua circunscrição, em geral onde se localizavam suas propriedades rurais e urbanas. Eram comunidades, portanto, relativamente autônomas do poder central.

A atividade econômica predominante no período feudal era a agricultura, enquanto o comércio apresentava um mínimo desenvolvimento. Ambos estamentos dedicavam-se exclusivamente às atividades que lhes cabiam socialmente: produzir e distribuir os produtos, respectivamente, para camponeses e comerciantes, além da tarefa de pagar os impostos relativos.

No início da era Tokugawa ocorreu um acentuado crescimento populacional, decorrente do período de paz e da melhoria do nível alimentar propiciado pelo desenvolvimento das atividades agrícolas. Este, por sua vez, originou-se substancialmente da intensificação do trabalho da mão-de-obra agrícola, embora, em mínima escala, outros fatores tenham colaborado, tais como: melhoria de instrumentos, de sementes, de novas técnicas de obtenção de mudas, do uso de animais, de fertilizantes, enfim pela utilização da tecnologia.

O governo, no entanto, intervinha totalmente sobre a distribuição de mercadorias, não permitindo o livre acesso ao comércio exterior e utilizando-se da técnica de monopolização para controle das atividades comerciais. Ficavam totalmente a seu cargo o controle das minas e a produção de moedas.

De modo geral, no período Tokugawa, os estamentos sociais aumentaram seu nível de qualidade de vida, cresceram os centros urbanos e, embora o conceito de sociedade ideal para a maioria das classes dirigentes fosse a agrária, estimulou-se intensamente o desenvolvimento das atividades comerciais, da manufatura e do artesanato. Semelhante política, embora contraditória, em princípio, às metas governamentais de contenção e limitação da atividade comercial, foi promovida e adotada em inúmeras ocasiões mediante pressões de circunstâncias diversas: para possibilitar a organização administrativa e a dedicação à técnica burocrática; para propiciar a intensificação da atividade agrícola; para atender ao aumento das necessidades de bens ocorrido com a melhoria do nível de vida, em geral e, principalmente, da nobreza e da corte, nas suas luxuosas instalações no campo e na cidade, dos camponeses mais abastados e dos samurais impedidos de comerciar; para atender à necessidade da transformação, cada vez em maior escala, de produtos em dinheiro, para pagamentos de impostos, etc., quando o sistema monetário foi implantado ; para propiciar a melhoria das finanças de grupos de senhores feudais, na segunda metade do século XIX, quando passaram a apoiar numerosos monopólios.

Assim, no século XVIII, o país entrou numa nova fase de economia comercial centrada nas cidades, que se desenvolveram em função de medidas administrativas de infra-estrutura de transportes e comunicações e do uso de moedas. Começavam a aparecer comerciantes enriquecidos que detinham posses num montante igual ao de certos senhores feudais.

As tendências ocorridas durante a era Tokugawa - de concentração da terra sempre em disputa entre os senhores feudais; de desigual difusão da riqueza e dos privilégios; de crescente carga de impostos sobre os camponeses, destinados nessa sociedade a exercer as funções de serví-la, abastecendo-a com sua produção; de separação, e mesmo de oposição, manifestada entre os camponeses que enriqueceram e os que permaneceram pobres (os primeiros passaram a comerciar e a arrendar suas terras ou a assalariar outros camponeses); enfim, de um conjunto de fatores - denotavam a evolução da sociedade e a diversificação de suas atividades, embora a um alto custo para a classe dos camponeses. Estes últimos, ao enfrentarem tais momentos de crise na agricultura e os períodos de carestia, passaram a protestar, cada vez mais freqüentemente, dada a situação de miséria em que se encontravam. Também a classe dos samurais vinha-se deteriorando pela perda das funções tradicionais da grande maioria dos guerreiros. Muitos empobreceram. Suas virtudes marciais começaram a sofrer a concorrência do prestígio adquirido pelos comerciantes enriquecidos e, por esses vários motivos, passaram a contribuir para a turbulência social que ocorreu no final do período analisado.

A evolução do uso do sistema monetário, o comércio tomando impulso, a urbanização crescente, o crescimento das necessidades de consumo - luxuoso, inclusive - das cortes, dos senhores feudais e dos próprios samurais provocaram um endividamento dessas classes, a inflação, a desvalorização da moeda, o debilitamento das finanças públicas.

As bases do sistema feudal cada vez mais se abalaram com o desmoronamento das barreiras que mantinham os estamentos perfeitamente definidos, limitados e controlados, alterando-se, assim, seu poder, prestígio, posição e alianças. Começava-se a cogitar da necessidade de reformas para neutralizar a insatisfação e a agitação latentes e até mesmo explosivas. Porém, as propostas que surgiram continham um profundo teor tradicional, pois advinham de grupos das classes dominantes que consideravam as alterações ocorridas na sociedade determinantes de desajustes econômicos e sociais. É o retorno ao espírito guerreiro do passado; a restrição do comércio com o exterior que, em pequena escala, vinha-se realizando; a supressão de estudos sobre o Ocidente, que a propagação da instrução ao povo desenvolveu ; a eliminação do luxo governamental e do estilo de vida dos governantes (samurais); o impedimento de contatos com o estrangeiro, que começavam a se desenvolver; enfim, a volta aos valores religiosos e estamentais que a urbanização vinha solapando, ao propagar uma forma laica e racionalista de enfocar a vida.

Ao mesmo tempo em que se agudizava a crise interna, ocorriam e intensificavam-se novas ameaças estrangeiras de várias origens, objetivando, e mesmo impondo, o restabelecimento ou estabelecimento das relações, principalmente comerciais, mediante violências e represálias.

Embora o desenvolvimento institucional tenha implicado estruturação de uma organização administrativa burocrática voltada para o alcance da eficiência funcional do governo, levando ao debilitamento das relações feudais - inclusive pela conversão dos samurais de vassalos com feudos em funcionários assalariados - quando, no início do século XIX, ocorreram problemas econômicos e sociais internos e ameaças externas, o sistema se revelou ineficaz para resolvê-los.

A atuação dos governantes efetuou-se no sentido de fortalecer as defesas do país contra a ameaça estrangeira, mas fracassou quanto ao enfrentamento da crise mediante a estrutura política existente, abrindo assim espaço para as lutas pelo poder.

Desta forma, em 1868, a coalizão de agentes e funcionários de alguns senhores feudais com alguns daimios, príncipes e nobres, apoiando o imperador, aboliu o xogunato e devolveu a administração ao imperador, pondo fim à era Tokugawa, caracterizada, por alguns autores,7 7 . Moore Jr., B. op. cit. pelo isolamento do país, pelas relações simbióticas entre guerreiros e mercadores e pelo longo domínio político do guerreiro. Era a chamada Restauração Meiji que se iniciava, a partir de uma guerra civil, logo dominada, e que procederia à consolidação do país, para enfrentar sua crise de identidade e de segurança nacional, inicialmente pelo fortalecimento das forças armadas e do Estado.

A opção governamental contra a coalizão formada poderia ter sido o armamento dos camponeses para defender o país contra os estrangeiros. Mas a possibilidade de utilização desse contingente pelos daimios contra o governo impediu que se viabilizasse tal alternativa.8 8 . Id. ibid.

Assim, os grupos que se aliaram para a tomada do poder e restauração do país compunham-se de nobres da corte que apoiavam o imperador, chefes feudais descontentes, samurais afastados dos senhores, comerciantes antigos e conservadores que não queriam a abertura do país para evitar a concorrência do exterior. Praticamente, foram os camponeses como um todo que ficaram fora dessa coligação e na guerra civil lutaram indiferentemente de um lado ou de outro (a favor do xogum ou do imperador).

O enfrentamento do desafio ocidental, isto é, da sobrevivência como Estado independente frente à superioridade das armas e da tecnologia ocidental, implicava não só a criação de um Estado nacional forte e unificado, mas, também, a construção de um modelo de sociedade moderna com uma economia industrial.

A militarização foi a saída encontrada para se alcançarem os objetivos definidos para a restauração: modernizar, sem alterar as estruturas socias.9 9 . Id. ibid. A constituição de um exército, de uma esquadra naval, de departamentos especializados na administração pública foram instrumentos importantes para a criação de uma nação unificada, controlada, com maior segurança para a abertura comercial imposta por outras nações, ao mesmo tempo em que criaram uma colossal demanda interna de produtos industriais.

A lei máxima do país, na época Meiji, consistiu numa combinação de técnica política ocidental e idéias políticas japonesas tradicionais. Salvaguardava os privilérios da classe dirigente e reforçava os valores políticos e sociais conservadores, legitimando, inclusive, o imperador como monarca absoluto e sagrado, superior ao governo, pois era a personificação do Estado, e todos os japoneses eram seus súditos, devendo servir-lhe lealmente. Por outro lado, ao constituir a base de um moderno Estado de direito, a nova constituição era inovadora, pois estabelecia instituições através das quais se procederia ao ulterior desenvolvimento político do povo japonês, as câmaras e assembléias com representação popular.

Os novos governantes procuravam desenvolver o novo sistema político equilibrando-o habilmente entre modelos tradicionais e inovadores; entre o estabelecimento de uma autoridade centralizada e forte, e a representação nacional, para assim alcançar a mais ampla adesão do país. Chegou-se, desse modo, a uma forma mista: burocracia tradicional e administração inovadora originária do Ocidente, caracterizada pela representação e divisão de poderes.10 10 . Hall, J.W. op. cit.

O temor, o sentimento de debilidade e também a admiração e inclinação pela cultura ocidental fizeram com que houvesse uma rápida aceitação dos novos costumes. Processava-se a ocidentalização. Por outro lado, reações etnocêntricas ocorriam, ansiando pela conservação do sentimento de identidade cultural: utilizar a técnica, mas manter e preservar os valores espirituais e éticos orientais, superiores aos do Ocidente. A liberdade poderia conduzir à depravação e o individualismo, à anarquia.11 11 . Hall, J.W. op. cit., 1973.

Ao longo do período da restauração Meiji são constituídas todas as bases para o desenvolvimento do capitalismo por meio da industrialização do país, aproveitando-se a reconstrução a partir de todo o esfacelamento - iniciado na era Tokugawa - do modo de produção anterior.

As primeiras medidas tomadas com relação à posse da terra constituíram-se na desapropriação progressiva dos feudos (ou han), transferindo-os para o imperador (em alguns casos, voluntariamente), e na determinação de uma renda, paga pelo Estado, aos proprietários que, daí em diante, passariam a viver na corte e nas cidades. Tais medidas conduziram a uma melhor redistribuição das terras entre os que nela produziam, por meio de arrendamentos, cessões e mesmo pela aquisição de propriedades. As terras tornavam-se mercadorias. Em lugar dos feudos surgiram as prefeituras e municipalidades administradas por antigos daimios, os governadores, nomeados pelo imperador.

Paralelamente, promovia-se uma reforma tributária para centralizar, racionalizar e ampliar a arrecadação do governo. Favoreciam-se aqueles que obtivessem maior produtividade. Semelhante método incentivou o aumento da produção, a absorção de mão-de-obra e o envolvimento das comunidades rurais na busca desses objetivos. Foi também através das antigas formas de organização das aldeias, do assalariamento da mão-de-obra na atividade agrícola, da intensificação do uso de mão-de-obra, que se conseguiu o desenvolvimento da agricultura para exercer suas funções primordiais na etapa da industrialização, dispensando a utilização de tecnologia agrícola moderna, quase inviável nas condições de solo do Japão.

O papel do governo, neste caso, foi contribuir tecnicamente (financiamento de laboratórios de análise e desenvolvimento de melhores sementes, mudas, fertilizantes, etc.) e através de obras públicas locais de infra-estrutura com o objetivo da elevação da produtividade agrícola e da sua adaptação às mudanças exigidas para o arranco da industrialização.

Nas palavras de Barrington Moore Jr., "a política Meiji utilizou, pois, o camponês como fonte de acumulação capitalista".12 12 . Moore Jr., B. op. cit.

Outra reforma social que promoveu o rompimento das amarras do feudalismo, liberando e motivando as forças sociais para um modo de vida mais moderno, foi a declaração da igualdade das classes sociais, que eliminou as restrições sobre a mobilidade social e profissão, valorizando igualmente os diferentes tipos de atividades. Tal medida, juntamente com outras de caráter econômico e social, facilitou os meios para o desenvolvimento das atividades comerciais e industriais com vistas à competição a ser encetada na esfera internacional. Observe-se, no entanto, que a concepção hierárquica tradicional, na sociedade japonesa em modernização, continuava sendo respeitada, pois ex-samurais e ex-daimios passaram a constituir uma nova aristocracia.

Formar cidadãos para deslanchar a nova era de modernização foi outra tarefa de ordem política a ser enfrentada pelo governo. Para tanto, elaborou-se um sistema nacional de educação que atendia a esse objetivo, preparando a população em vários níveis, com especial atenção à transmissão de conhecimentos científicos, literários e técnicos. Caracterizava-se, no entanto, por assegurar e fortalecer o ideal e a ética nacionalista e autoritária simbolizada pelo trono, desenvolvendo arraigadamente uma filosofia de subserviência ao Estado.13 13 . Id. ibid.

Mas o processo de industrialização dependia não só da preparação de recursos humanos, como também de tecnologia já desenvolvida no Ocidente. Necessário se tornou eliminar, totalmente, qualquer barreira imposta ao desenvolvimento do comércio, tanto interno quanto externo; ação esta que o governo passou a promover por meio da adoção de uma política de intercâmbio multilateral. Eram exigidas, ainda, para sustentar o desenvolvimento industrial, a organização da base monetária, assim como a criação de uma rede de serviços de infra-estrutura de transportes e comunicações. O próprio Estado deflagrou esse processo, financiando empreendimentos em larga escala, construindo estradas de ferro e linhas telegráficas, explorando diretamente indústrias extrativas e importando equipamentos. Portanto, assumiu a responsabilidade dos riscos iniciais, promoveu o avanço técnico e financiou empresas que, posteriormente, foi transferindo para a iniciativa privada, a baixo custo.

O processo de formação de capital para enfrentar as transformações também foi, inicialmente, assumido pelo Estado, a partir de grandes emissões, da reforma do imposto territorial monetário (que substituiu os direitos feudais) auferido da classe agrária, de empréstimos estrangeiros (embora em pequena escala), da difusão de sociedades por ações no ramo financeiro e, principalmente, de reforma bancária. Foram, assim, criados os bancos oficiais para funcionarem em conjunto com os bancos privados e, então concentrados, atuarem drenando recursos e estimulando as atividades consideradas prioritárias. Na década de 1870, a formação de capital no Japão foi auxiliada pela inflação dos preços, que transferiu recursos do consumo para os lucros.

Assim, os bancos constituíram, conforme afirma Carlos Alonso, "o elo dominante da propriedade capitalista no Japão e, dada a ausência de limitações legais, puderam dar origem a grupos que desdobravam suas atividades no campo da indústria, dos transportes, dos seguros, do comércio exterior, da mineração, etc. Desta forma, em fins do século, a economia japonesa já era dominada pelos zaibatsu, forma de organização monopolista superior, na qual, sob uma mesma relação de propriedade, o capital se desdobrava em capital industrial, bancário e comercial, indicando assim que a própria industrialização nipônica resultou no predomínio do capital monopolista".14 14 . Oliveira, C.A.B. de. op. cit. p. 250

Verifica-se, portanto, ter sido fundamental a participação do Estado no financiamento da industrialização, inclusive na determinação dos setores líderes do processo. Esse fato ocorreu mediante a impossibilidade de capitais individuais assumirem tal tarefa, em função do grau de centralização de capitais que os países mais avançados atingiram nesta etapa, do baixo dinamismo do mercado mundial e do efeito das quedas de preços dos produtos primários.

Ao findar o século XIX, o Japão, assim como outros países industrializados nesta fase, contava com uma estrutura econômica e social capitalista conformada à semelhança das estruturas da Inglaterra (façanha do capitalismo concorrencial, não alcançada na sua etapa monopolista).

O período de transição analisado, desde o início do desmantelamento do feudalismo, na era Tokugawa, até a constituição plena do capitalismo, no final da era Meiji, demonstra, no entanto, que no Japão as condições de desenvolvimento desse processo não levaram ao aniquilamento total das relações feudais nem à sua substituição por outras completamente distintas. Em alguns aspectos econômicos e sociais, certos valores feudais foram aproveitados para a constituição de uma sociedade moderna.

No Japão, as correntes seculares e racionalistas - que na Europa corroeram as crenças tradicionais no início da industrialização - por serem importadas, demoraram muito a se difundir de modo extensivo e, assim, não criaram raízes. Ao enfrentarem inicialmente os problemas do desenvolvimento industrial, os japoneses basearam-se necessariamente na sua estrutura social e produtiva tradicional, sob um regime de repressão interna, totalitário e muito compatível com as características de subserviência e obediência do período feudal. Pela coligação das elites comerciais e industriais e as classes governamentais tradicionais da zona rural versus camponeses e trabalhadores industriais, foram transpostas para a sociedade moderna as características "aproveitáveis" das estruturas japonesas tradicionais, com pequenas adaptações à transição para a produção moderna destinada ao mercado.

Essa adaptabilidade das instituições políticas e sociais japonesas aos princípios capitalistas permitiu ao Japão evitar os custos de um processo de transição revolucionário.

Tais peculiaridades, que na etapa atual do capitalismo no Japão continuam a imprimir seus reflexos na organização e controle do processo de trabalho, serão examinadas com mais detalhes no próximo item.

4. O ALCANCE DA EFICIÊNCIA NA INDÚSTRIA JAPONESA NO SÉCULO XX

O capitalismo japonês formou-se, então, de maneira diferente dos demais países? É um modelo de transição diverso dos demais? Não. O que necessita ficar bem claro é que as transformações estruturais econômicas e sociais - isto é, as relações estabelecidas a nível da produção, para que o modo de produção se constitua - ocorrem da mesma maneira em todos os países que se transformam em capitalistas. No entanto, determinadas características de organização, de comportamento e, conseqüentemente, de formação de valores, ideais e expectativas foram utilizadas no Japão (diferentemente dos países europeus, onde foram destruídas, pois não se adaptavam ao desenvolvimento do capitalismo), em função de circunstâncias conjunturais e históricas, que as tornaram eficazes na implantação do novo modo de produção.

Tanto foi propícia essa conjugação de fatores que, atualmente, outros países capitalistas estão buscando no Japão fórmulas milagreiras que, na realidade, não o são, nem se constituem em inovações. A transição efetuada nesse país trouxe, tanto quanto aos países europeus, o racionalismo necessário para legitimar as novas formas de organização, especialmente a nível do processo de trabalho. Na Europa, filosofia, religião e até a própria biologia (Darwin) aliaram-se no sentido de legitimar as transformações econômicas e sociais. No Japão, o racionalismo não foi tão profundo, não difundiu totalmente suas raízes, por ser importado e representar valores alienígenas que a classe dominante, extremamente conservadora, autoritária e centralizadora, não estava inclinada a absorver indiscriminadamente, por motivos de identidade e segurança nacional. A tecnologia moderna, evidentemente, era necessária, assim como a formação de pessoal capacitado para desenvolvê-la. Porém, por questões de manutenção de poder, de composição das classes que levavam e patrocinavam o processo, e da posição economicamente desigual ou desvantajosa ocupada pelo Japão em relação a outros países mais desenvolvidos, enfim, por pressões principalmente internas, mas, também, externas, a identidade nacional necessitava ser fortemente mantida. Nada melhor para isto do que aproveitar a forma de organização e os valores já existentes que atendessem aos novos objetivos colocados (produtividade, eficiência, crescimento, desenvolvimento), mas conservassem suas tradições motivadoras, ao mesmo tempo em que se introduziam formas modernas de organização e novos valores (ainda que importados) em determinadas esferas onde a tradição somente contribuía para emperrar o funcionamento nos moldes capitalistas. Mas isto merece ser exemplificado.

O governo Meiji, ao guiar o país para sua industrialização até 1912 - quando finda o seu período e o sistema capitalista começa a dar indícios de manifestar-se por si próprio, por exemplo, dobrando a produção - o faz, como já foi visto, impelido por pressões internas e externas. Assim, os moldes de industrialização adotados pautaram-se muito pelo exemplo norte-americano, tanto no que concerne à tecnologia quanto às técnicas gerenciais indispensáveis à organização, adaptação, controle e legitimação da nova forma de produção adotada. Ambas são inicialmente copiadas na medida das possibilidades comerciais e políticas.

Entre as duas grandes guerras, o Japão caracterizava-se, ainda, por uma estrutura econômica de pequenas empresas dominadas por alguns grupos econômicos (zaibatsu) importantes. Nesses conglomerados que começavam a se desenvolver, as técnicas de racionalização tayloristas utilizadas nos países já industrializados, principalmente nos EUA, começaram a ser implantadas: a divisão de trabalho e a especialização a níveis extensos; o controle intensivo da produção e da mão-de-obra; a formalização e a impessoalização dos processos de produção e de trabalho, etc. Nas pequenas empresas, a produção baseava-se ainda na tradição da manufatura: as relações informais, o controle pessoal, o paternalismo atuando como mecanismo de obtenção da produção pela troca de favorecimentos (segurança), em contrapartida ao atendimento de exigências (lealdade), etc.

Como o mergulho na modernização estrangeira poderia abalar a estrutura de poder existente, a coligação dominante optou por um desenvolvimento rápido e intenso, assegurado por uma ação repressiva de caráter militar. Isto é, apoiando-se numa rígida disciplina hierárquica - que permitiu a ampliação da centralização econômica e política, e do sentido geral de identidade nacional - utilizou a tradição como força motivadora e mobilizadora nos setores econômicos e sociais que não necessitassem de uma transformação revolucionária. Foi o caso da agricultura, cujas características foram renovadas para atender ao desenvolvimento industrial e urbano, sem perder sua organização e seu controle tradicionais. Para ampliar sua produtividade, alguns aspectos técnicos foram atendidos (melhoria de sementes, de irrigação, do uso de fertilizantes, etc), mas sem se partir para a total mecanização da produção (desde logo impossível, dadas as características do solo e do relevo do país). Deste modo, com a ampliação da mão-de-obra e a intensificação do uso da forma de organização das comunidades rurais (as chamadas pao)15 15 . Pao: aldeias agrícolas japonesas existentes no período feudal, que mantinham uma organização relativamente autônoma dos governos regionais, baseada no trabalho conjunto, solidário e harmônico, que possibilitava a sobrevivência de numerosos membros em escassa superfície e recursos, assim como a obtenção do crescimento da produtividade das atividades. e também com a acriação de incentivos para o aumento da produtividade, conseguiu-se, sem a expropriação geral dos camponeses e mantendo sua forma de organização, alterar o papel da agricultura, em função das necessidades impostas pela industrialização. A necessidade de mão-de-obra para a indústria foi atendida não só pelo êxodo rural devido à concentração das propriedades (ainda que não sendo intenso nem geral), mas também pelo crescimento demográfico e liberação da mobilidade social.

Essa forma de organização mantida e incentivada na zona rural, ao ser transplantada para a organização industrial obteve ótimos resultados em termos de produtividade e em termos de implantação de uma nova metodologia gerencial, que surgiu para suprir os aspectos descuidados pelo taylorismo. Explicitando, nos EUA, em substituição aos modelos abertamente opressores das técnicas tayloristas, que motivaram reações generalizadas, começaram a ser elaboradas técnicas gerenciais baseadas no conhecimento das motivações do comportamento humano. Sua utilidade prática consistia em, ao mesmo tempo, mascarar o caráter explorador das relações de produção e incentivar a mão-de-obra à produtividade crescente. É a conhecida ideologia patronal de fazer crer ao operário que a empresa é uma família, cujos objetivos atendem aos interesses de todos os seus membros e podem ser melhor alcançados por meio de harmonia, lealdade e esforço comum, mas inteiramente compensador. Consiste também no incentivo ao "pequeno grupo de trabalho", isto é, à institucionalização dos grupos informais de amizade, objetivando seu maior controle pela administração, ao mesmo tempo em que se estimula o indivíduo à maior produção através do apoio moral grupal, e o grupo, à competição intergrupal, pelo prestígio da melhor performance. Essa forma organizacional, proposta pela teoria de origem norte-americana já mencionada, coincide plenamente com a forma de organização que no Japão consegue sobreviver às dificuldades das lutas com a natureza (a agricultura) . É a cooperação grupal que enfrenta a luta pela sobrevivência e valoriza a ação individualista do self-made man, que é utilizado como motivação e valorização da ação de lutar pela vida e ascender socialmente.

Assim como a ética protestante contribuiu para o desenvolvimento de valores propícios à constituição do sistema capitalista na Europa e nos EUA, a influência do confucionismo - filosofia e teologia voltadas para os problemas da vida - incentivou no Japão a internalização de valores tais como: a obediência aos mais velhos, o espírito de sacrifício, a humildade, o respeito à natureza, etc.

Utilizadas, portanto, conjuntamente, as tradições japonesas e as teorias modernas de gerenciamento do comportamento (teorias clássicas e de relações humanas) oferecem um excelente instrumento para o alcance dos objetivos capitalistas de acumulação e expansão.

Inserem-se nessa categoria as práticas gerenciais de envolvimento emocional da mão-de-obra, que inspiram inveja aos ocidentais, cada vez mais preocupados no encalço de métodos e técnicas que propiciem a obtenção dos objetivos empresariais de crescente eficiência, pois constituem seus resultados: a dedicação e o apego ao trabalho na empresa (que ocupa quase 80% do tempo diário de um trabalhador quando se incluem horas extras, horas de trabalho voluntário, reuniões de orientação, práticas desportivas, cerimoniais, lazer com os colegas, refeições com os familiares na empresa, etc); a aceitação, pelo operariado, do aumento da jornada de trabalho (por meio de horas extras, trabalho voluntário ou reuniões de orientação); o respeito à autoridade e à hierarquia (chamado de subserviência); a disciplina mantida em respeito e atendimento às normas e aos regulamentos; a participação intensa nos objetivos, ideais e planejamento das atividades da empresa; a valorização do imperativo da concorrência e da competitividade. Muitas destas respostas são voltadas não só para o trabalho, mas para uma postura nacional - de cidadão em relação ao seu país.

É verdade que técnicas gerenciais são utilizadas no sentido da obtenção dessas posturas. No entanto, deve-se ter o cuidado de separar de seus efeitos os mitos que, geralmente, envolvem a forma de ver a civilização oriental, levando a interpretações místicas e misteriosas. Tal análise distorce e encobre suas características de evolução, bastante semelhantes, estruturalmente, às de qualquer país capitalista.

Assim, os mitos da exagerada disciplina e subserviência dos empregados, da sua extrema participação voluntária e integral ao trabalho, dos sacrifícios pela empresa onde trabalham e de outras atitudes semelhantes devem ser devidamente esclarecidos em função, justamente, da maneira pela qual as relações de produção são desenvolvidas e a contrapartida a esses procedimentos é estabelecida.

As condições vividas pelo país no período da "decolagem" para a industrialização, sob pressão política e econômica dos EUA, levaram os setores governamentais, apoiados pelas classes conservadoras, a bancar um esforço desenvolvimentista dirigido para os setores de ponta. Constituiu-se, assim, uma estrutura econômica dualista: um setor industrial altamente concentrado e produtivo, e uma série infindável de pequenas e médias empresas onde as relações de trabalho se processam de forma bastante diferenciada do setor mais moderno.

A instituição da estabilidade de emprego, principalmente nas grandes empresas e para as funções mais especializadas ou técnicas, correspondeu, portanto, muito mais a uma política da classe patronal para resolver problemas conjunturais do que a uma "herança" do feudalismo ou a um estilo gerencial oriental.16 16 . Ginsbourger, F. Japon: voyage au pays du consensus social. Les Temps Modernes, Paris, 37(415), fév. 1981. Abrangendo, atualmente, cerca de 30 a 40% dos trabalhadores, sempre visou a estabilizar a mão-de-obra num país onde a maioria dos trabalhadores se originava de atividades agrícolas e se destinava a um setor de indústrias pesadas que demandam uma formação longa e especializada de grande parte da sua força de trabalho.

A política educacional e cultural - traçada ainda na era Meiji e cujos valores até a atualidade foram aprofundados e observados rigorosamente - foi elaborada estritamente atrelada às necessidades do crescimento econômico, de seus valores competitivos e de manutenção da identidade nacional. É um sistema seletivo e concorrencial que ignora o indivíduo particular, em função de uma"ética grupal", utilizando cerimônias de iniciação para legitimar a valorização da escalada da hierarquia através da colaboração, do respeito à autoridade e do extremo aperfeiçoamento e desempenho profissional. Esta formação, que marca profundamente a consciência coletiva do povo japonês (a maioria de instrução média para cima), iniciada como instrumento necessário à constituição e desenvolvimento do capitalismo - frente às condições internas e externas do país, já evidenciadas - e fortalecida após a II Guerra Mundial, é aceita e posta em prática uma vez que legitimada pelos resultados que vem obtendo a economia nacional a nível, inclusive, internacional. Os meios de comunicação desempenham um papel importante na veiculação dos referidos valores uma vez que, de caráter conformista, governista e nacionalista, tanto a imprensa escrita como a falada (televisão) atingem, praticamente, toda a população: um jornal para dois habitantes e a existência de pelo menos um aparelho de televisão para cerca de 95% das famílias.

Complementa a prática do emprego vitalício a promoção por antiguidade, que justifica a contratação com salários baixos, ao valorizar seu crescimento mais significativo pelo tempo de serviço dado a uma mesma empresa, principalmente após 10 anos de serviço. A mudança de emprego determina um rebaixamento para o início da escala de salários, cujo leque é bastante reduzido.

Objetivando manter um percentual privilegiado de trabalhadores em relação aos demais - no sentido de atender à demanda de mão-de-obra qualificada, de dificultar a união da classe, além de manter baixos os custos dos salários e de amortecer as flutuações sazonais - utiliza-se para os demais trabalhadores (quase 60% do total da mão-de-obra que são absorvidos pelas pequenas empresas e pelas grandes empresas nas funções desqualificadas) uma política de intensa discriminação no recrutamento industrial, que reserva os empregos temporários, diários, a domicílio e o subemprego aos estrangeiros (coreanos, etc), às mulheres solteiras ou viúvas (as casadas em geral não trabalham) e aos que não têm qualquer qualificação. Grande parte dessa mão-de-obra é contratada por empresas que, subcontratadas por outras empresas, fazem a alocação conforme as variações e flutuações do mercado de trabalho, e outra parte é agenciada por intermediários à semelhança dos chamados "gatos" que agenciam os "bóias-frias" no Brasil.

Essa dualidade do mercado estabelece uma concorrência entre a mão-de-obra, reforçada pela estreita relação existente entre maiores empresas e melhores escolas, que determina o destino dos técnicos e universitários, selecionadamente (isto é, discriminadamente). Nesse sentido também atuam os sindicatos que, por se organizarem a nível de empresas - os organizados por setor foram totalmente eliminados após a II Guerra Mundial -, só nas grandes se instalam, e, ainda assim, representando, de modo geral, as reivindicações da mão-de-obra mais estável e qualificada, e com altas possibilidades de cooptação pela gerência empresarial.

O fator preponderante na aceitação dessas disparidades pela classe operária foi o estabelecimento, desde o início da mobilização pela industrialização, de práticas salariais tayloristas, isto é, a modulação dos salários pelos resultados da empresa. Assim, a necessidade de obtenção de resultados elevados em prazo mínimo levou o patronato e o governo à instituição de gratificações por produtividade, o que determinou aos operários das grandes e dinâmicas empresas o recebimento de cinco a seis salários mensais, como gratificações obtidas ao longo do ano, além dos 12 normais.

Realmente, nas últimas duas décadas, os salários reais cresceram e o nível médio de qualidade de vida da população aumentou bastante desde o início da industrialização. Aceitou-se, desse modo, uma melhoria do nível de consumo, porém, a um alto custo social, como por exemplo, a inexistência de um sistema de previdência social governamental. Ao ser aposentado, o trabalhador recebe da empresa como indenização, apenas o valor de sete salários mensais. Sua sobrevivência, daí em diante, assim como as necessidades de atendimento à sua saúde e de sua família durante toda sua vida são supridas através de seguros que o trabalhador possa (ou não) prover.

Os empresários japoneses apresentam, como fatores que contribuíram para o sucesso do desempenho da sua indústria, a política econômica do país, a manutenção de valores morais tradicionais e as inovações tecnológicas. No entanto, atribuem a maior ênfase ao dinamismo e à visão do empresariado ao adotar para o processo de industrialização uma política de propiciar e incentivar a participação dos recursos humanos das empresas nos objetivos, atividades e decisões empresariais, isto é, uma política de "produção do consenso" ou de"postura democrática" dentro da empresa.17 17 . Esta afirmação é sistematicamente renovada nos discursos patronais veiculados em notícias de periódicos (entre inúmeras outras: Revista Negócios em Exame. O que está mudando na vida das fábricas. 25 ago. 1982, p. 30; Através da Teoria Z, o exemplo japonês. 20 out. 1982, p. 25; A revolução na gestão. 2 maio 1984, p. 46), estudos de pesquisadores (a exemplo: Ouchi, W. Teoria Z; como as empresas podem enfrentar o desafio japonês. São Paulo, Fundo Educativo Brasileiro, 1982), além das biografias publicadas de grandes empresários, como, por exemplo, de Soichiro Honda e Akio Morita, respectivamente em: Kato, M. & Sedding, C, coord. Hondapor Honda. Sigla, 1982; Morita, A. Made in Japan. Cultura, 1986.

Essa participação é alcançada não só pelas condições específicas em que foi deslanchado o processo de industrialização e"vendido" à população como a melhor forma possível. Dele também são co-promotoras as características particulares do sistema de emprego e remuneração no país, e as técnicas gerenciais, fundamentalmente baseadas nas teorias das relações humanas e na comportamental, copiadas dos norte-americanos desde o seu surgimento, por volta dos anos 30 deste século, e intensificadas nos períodos pós-guerra (1945) e após crises econômicas (décadas de 60 e 70).

Faz parte ainda da fórmula para obtenção da participação das classes trabalhadoras nos processos de industrialização e de crescimento constante da produtividade, não só a utilização e manutenção da tradição para fins de modernização - por exemplo: a estrutura familiar, constituída para apoiar o chefe da família nas suas necessidades e decisões; os "pequenos grupos de base", organizados na agricultura, e cuja solidariedade e compromisso de lealdade promoveram originariamente a sobrevivência na agricultura; o sistema ringui de tomada de decisão,18 18 . Ver a esse respeito o artigo de: Tsukamoto, Y. O processo decisório empresarial no Japão. Revista de Administração de Empresas, 20(4):73-7, out./dez. 1980. ancestralmente adotado pelos grupos de trabalho que, ao compartilharem com todos os membros cada projeto de ação, obtêm, simultaneamente, o consentimento e o comprometimento de todos no apoio à sua viabilização, etc. - como também a adoção de métodos para forçar a coesão, a integração, a colaboração e o controle social.

Baseiam-se tais métodos na motivação de um comportamento de apego e dedicação ao trabalho, a partir do atendimento das necessidades básicas humanas (apoio grupal, reconhecimento, prestígio, auto-afirmação, etc., além do atendimento das necessidades de sobrevivência); e numa política paternalista de valorização e atendimento das necessidades dos que colaboram com a empresa, e de apelo constante à lealdade destes trabalhadores.

As práticas gerenciais responsáveis pelo alcance da cooperação da força de trabalho estendem-se a todos os níveis da empresa: na organização geral (sistema de comunicação que flui em todas as direções, leque salarial reduzido, uniformes comuns para todos os empregados, restaurante único, etc.); na seleção (alto nível médio de formação escolar, conformismo, calma e docilidade, etc.); na integração (ginástica em conjunto, cerimônias de hasteamento de bandeiras e canto de hinos em grupo, participação em vários tipos de comitês e grupos de trabalho, reuniões de orientação, elaboração de slogans para campanhas empresariais e sugestões em todos os níveis, etc.); nos controles sutis e psicológicos (fiscal mascarado em participante, competição entre grupos, estabelecimento de padrões de comportamento de lealdade, de colaboração, de obrigações morais, etc); e, principalmente, na forma de assalariamento e organização de carreira da mão-de-obra que, no conjunto, atendem aos interesses dos trabalhadores ao possibilitar-lhes a elevação de seu padrão de vida e a inclusão na faixa privilegiada do mercado de trabalho.

Por outro lado, as práticas tayloristas são sempre renovadas no sentido de, cada vez mais, sincronizar-se o processo de produção, de modo a tentar-se eliminar os tempos mortos das máquinas, os tempos de pausa, tornando crescentemente mais intenso o trabalho e reduzindo-se o tempo-padrão de cada atividade.

Assim esclarecem-se os mitos do respeito à autoridade, da obediência, da subserviência, do apego e dedicação ao trabalho, da realização de horas de trabalho voluntário, entre outros: os interesses e direitos dos que conseguem os melhores empregos são atendidos, embora dividindo-se a classe trabalhadora. Por outro lado, é importante destacar que faltas ao trabalho, licenças ou férias extensas implicam redução de rendimentos (ganhos de produtividade nessas condições não são computados). Isto, portanto, não significa subserviência e com esta não deve ser confundido, pois, concretamente, representa uma defesa dos interesses econômicos de cada trabalhador.

Legitimando e reforçando as práticas gerenciais, as empresas utilizam uma intensa campanha ideológica no sentido da obtenção da colaboração dos empregados e da sua identificação comos objetivos empresariais, isto é, motivando-os a"vestir a camisa da empresa" através da atitude paternalista de criar um clima empresarial de pseudo-harmonia social, de vivência familiar, de valorização da capacidade criativa individual e de reconhecimento do "direito" de sugerir novas idéias. É, segundo o empresário japonês Soichiro Honda,19 19 . Kato, M. & Sedding, C, coord. op. cit. uma "postura democrática da empresa", cujo objetivo é valorizar a criação humana, como fórmula de chegar a novos processos e produtos.

É, evidentemente, uma estratégia administrativa "eficaz" para o alcance da "eficiência". Dela fazem parte, como foi visto, a estratificação do mercado de trabalho (por tamanho de empresa, por segmentos de trabalhadores, por tipo de contratação, por especialização, etc.), o sistema de remuneração da mão-de-obra (salários, gratificações, prêmios de produção, bonificações, etc.), a vitaliciedade de determinados empregos, o regime de promoção por antiguidade, a veiculação da ideologia desenvolvimentista, principalmente a nível internacional (coesão grupal), a disseminação da ideologia da democracia empresarial (valorização da participação).

5. CONCLUSÃO

Um fato importante a considerar no sentido de responder ao questionamento proposto no trabalho é que, a cada fase do processo de industrialização, a cada necessidade de resolver as crises ou proceder a mudanças nas estruturas econômicas, sociais e políticas, o governo japonês e as classes produtoras, além das medidas econômicas e sociais de caráter mais geral, têm-se preocupado sempre com a renovação das técnicas organizacionais, adaptando-as ou inovando-as. Elas, assim, cumprem seu papel no desenvolvimento do modo de produção capitalista: conformar a força de trabalho às exigências de desenvolvimento da tecnologia, colaborando profundamente para a viabilização da crescente extração da mais-valia; mascarar ou atenuar os antagonismos inerentes às relações sociais de produção que ocorrem internamente ao processo produtivo; e ainda, legitimar as relações de trabalho pelo caráter de racionalidade e participação que evidenciam.20 20 . Posição teórica adotada por vários autores que assim encaram as técnicas organizacionais adotadas nos países capitalistas, por exemplo, as japonesas: Saccardo, C. & Lino, H. F. C. Novas técnicas de organização e a tecnologia no capitalismo. In: Bruno, L. & Saccardo, C, coord. Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986; artigos de M. Tragtenberg na Folha de São Paulo: Mudanças na administração do trabalho. 1º ago. 1981; Controle de qualidade ou do trabalhador? 31 maio 1982, 8 jul. 1982, 20 jul. 1982; Japão: a outra face do milagre, 1º jun. 1984, 11 jun. 1984, 2 jul. 1984; Os fundamentos despóticos do neoliberalismo. fev. 1986.

Isto ocorre muito mais intensamente a partir de 1945, no esforço de reconstrução do Japão, quando, segundo Ginsbourger,21 21 . Ginsbourger, F. Prefácio. In: Satoshi, K. Japão, a outra face do milagre. São Paulo, Brasiliense, 1985. os norte-americanos organizaram no país uma"cabeça-de-ponte" no combate ao comunismo asiático: proibição geral das greves; eliminação dos sindicatos de oposição e fortalecimento dos sindicatos por empresa; refortalecimento das forças conservadoras que promovem o engajamento da tradição à lógica da acumulação do capital; concentração por integração vertical de setores industriais oligopolizados, escolhidos para liderar o desenvolvimento industrial e com demanda em crescimento, interna e mundialmente, e com forte protecionismo ao mercado interno.

São instaurados, eu diria revigorados, nessa época, os "pequenos grupos de base", de utilização bastante conveniente às empresas, uma vez que incentivam os trabalhadores ao aumento da produtividade ao afastá-los da rotina excessiva, integrando-os numa base de apoio grupal indispensável à manutenção de um forte coletivismo, além de torná-los polivalentes, mais adaptáveis às flutuações da economia e da tecnologia e, internamente, mais sensíveis às técnicas gerenciais de cooptação.

O paternalismo, sempre presente, cumpre o papel de neutralizar o racionalismo cada vez mais exigido pela tecnologia e atender à formação tradicional de respeito à autoridade e aos mais velhos, integrando o operário na "família empresarial", motivando-o ao aumento da produtividade.

O sistema ringui de tomada de decisão amplamente estabelecido é incentivado como medida de utilização da tradição de decisão por consenso, numa ênfase no fluxo de informações de baixo para cima nos escalões da empresa. O estilo gerencial mais indicado para viabilizar semelhante sistema e que, portanto, se tenta promover é o do executivo conciliador, mais coordenador do que executivo, que ouve as opiniões, sistematiza-as juntamente com a sua própria e passa as decisões para o nível superior. Compromete-se, pois, com as decisões tomadas, estando ou não a favor das mesmas. Atualmente, questiona-se muito esse sistema em virtude da sua lentidão e inflexibilidade num momento de pressões para rápidas resoluções, além de não se coadunar com o estabelecimento de um planejamento global.

O emprego vitalício e o salário por antiguidade, instituído no início do século para determinados empregos, são mantidos e até hoje são utilizados, embora se tenha observado uma redução na quantidade. Trazem essas práticas uma série de vantagens às empresas: custos de treinamento baixos e mais facilmente absorvíveis; facilidade de transmissão dos conhecimentos de um operário para outro; incentivo à produtividade por transmitir segurança individual ao empregado e expectativa de melhoria salarial; estabilização da mão-de-obra, etc.

A utilização de recompensas econômicas faz-se crescentemente, cada vez mais moduladas em função da produtividade.

A partir de 1960, com um novo surto de inovações tecnológicas no parque industrial, amplia-se a extração de mais-valia. Passa o Japão, nessa época, por uma fase de recessão econômica. Greves eclodem como resposta à repressão direta e a problemas nacionais de renovação do tratado de segurança com os EUA. Em conseqüência, a nível das unidades empresariais, novas técnicas organizacionais são buscadas.

Datam dessa época os famosos CCQ (Círculos de Controle de Qualidade), pequenos grupos operários, instituídos pela gerência e apoiados pelos sindicatos, com a finalidade de discutir e apresentar soluções a problemas vividos por seção, setor ou local do processo produtivo. Tais grupos permitem a redução dos custos e a elevação significativa da produtividade sem a intensificação do capital. E, mais, acrescentam uma nova tarefa aos operários (a responsabilidade de análise e elaboração de sugestões), construindo um sistema de informações que intensifica a expropriação do conhecimento do trabalhador, reforçando a autoridade do capital sobre o trabalho. Levam ainda à ampliação da jornada de trabalho, que se estende em reuniões de orientação e discussão sem a devida remuneração (o trabalho nesses grupos é considerado voluntário), embora se mascarem em atividades de participação, de criatividade, de integração, cujos resultados, se viávies e rentáveis, determinam bonificações, prêmios e participação nos lucros específicos por tempo determinado.

A superação da nova crise ocorrida em 1974-78 é alcançada pela possibilidade da mobilidade no nível de emprego, principalmente realizada pelos zaibatsu e interempresas, via processo de subcontratação, novamente patrocinado pelo Estado, que garante o subemprego ou o semi-emprego, subvencionando as empresas.

Parte-se para a racionalização total, para a robotização, para a automação. Não ocorrem demissões, porém forçam-se os acordos negociados, as aposentadorias antecipadas, as dispensas programadas, as falências planejadas, etc. Os trabalhadores reagem criando sindicatos "paralelos" aos oficiais, radicalmente anticapitalistas.22 22 . Satoshi, K. op. cit.

E, assim, prosseguirá a luta capital versus trabalho, como em qualquer país capitalista. Torna-se necessário, pois, considerar que o transplante que se quer viabilizar das técnicas gerenciais deve ser analisado não somente sob o ponto de vista da lógica capitalista (quando, então, poderia ser totalmente viável), mas, sobretudo, a partir das condições de constituição e evolução das estruturas econômicas, sociais e políticas do país - com sua superestrutura reflexa de valores, ideais e expectativas - e do conhecimento do conteúdo ideológico utilizado para solidificar os padrões comportamentais exigidos durante o processo de instalação, cristalização e expansão do modo de produção capitalista.

Aparecem como fundamentais, neste caso, a interferência do Estado para a criação e sustentação de condições de produção com crescente produtividade, assim como a política de emprego, de salários, de promoções e de organização dos trabalhadores dentro das empresas, através de mecanismos de controle rígidos, e uma ideologia da inevitabilidade da rápida industrialização e do arranque para a concorrência internacional, como medida de manutenção da identidade e da segurança nacionais.

Esse "capitalismo organizado", conforme batizou Francis Ginsbourger no prefácio do livro de Kamata Satoshi,23 23 . Id. ibid. conseguiu uma "química" que não poderá ser reproduzida. Quiçá, razoavelmente adaptada.

  • 1 Teixeira, D.L.P. & Souza, M.C.A.F. de. Organização do processo de trabalho na evolução do capitalismo. Revista de Administração de Empresas, 25(4):70, out./dez. 1985.
  • 2. Braverman, H. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. p. 124.
  • 3. Oliveira, C.A.B. de. O processo de industrialização - do capitalismo originário ao atrasado. Tese de doutoramento. Campinas, Unicamp, 1985. mimeogr.
  • 5. Sobre o processo de transição, no Japão, do modo de produção feudal para o capitalismo, ver: Allen, G.C. A shorteconomic history of modem Japan. London, 1951;
  • Hall, J.W. El império japonês. Madrid, Siglo XXI, 1973;
  • Lockwood, W. W. O Estado e o empreendimento econômico no Japão moderno - 1868-1938. In: Kuznets, S. et alii, org. Crescimento econômico; Brasil, India e Japão. Rio de Janeiro, Mônaco/Usaid, 1969; Moore Jr., B. As origens sociais da ditadura e da democracia; senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Santos, Martins Fontes, 1967;
  • Takahashi, H.K. La place de la revolución Meiji dans l'histoire agraire du Japon. Revue Historique, oct/déc. 1953;
  • Weber, M. História geral da economia. São Paulo, Mestre Jou, 1968.
  • 16. Ginsbourger, F. Japon: voyage au pays du consensus social. Les Temps Modernes, Paris, 37(415), fév. 1981.
  • 17. Esta afirmação é sistematicamente renovada nos discursos patronais veiculados em notícias de periódicos (entre inúmeras outras: Revista Negócios em Exame. O que está mudando na vida das fábricas. 25 ago. 1982, p. 30; Através da Teoria Z, o exemplo japonês. 20 out. 1982, p. 25; A revolução na gestão. 2 maio 1984, p. 46), estudos de pesquisadores (a exemplo: Ouchi,
  • W. Teoria Z; como as empresas podem enfrentar o desafio japonês. São Paulo, Fundo Educativo Brasileiro, 1982),
  • além das biografias publicadas de grandes empresários, como, por exemplo, de Soichiro Honda e Akio Morita, respectivamente em: Kato, M. & Sedding, C, coord. Hondapor Honda. Sigla, 1982;
  • Morita, A. Made in Japan. Cultura, 1986.
  • 18. Ver a esse respeito o artigo de: Tsukamoto, Y. O processo decisório empresarial no Japão. Revista de Administração de Empresas, 20(4):73-7, out./dez. 1980.
  • 20. Posição teórica adotada por vários autores que assim encaram as técnicas organizacionais adotadas nos países capitalistas, por exemplo, as japonesas: Saccardo, C. & Lino, H. F. C. Novas técnicas de organização e a tecnologia no capitalismo. In: Bruno, L. & Saccardo, C, coord. Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986; artigos de M. Tragtenberg na Folha de São Paulo: Mudanças na administração do trabalho. 1ş ago. 1981; Controle de qualidade ou do trabalhador? 31 maio 1982, 8 jul. 1982, 20 jul. 1982; Japão: a outra face do milagre, 1ş jun. 1984, 11 jun. 1984, 2 jul. 1984; Os fundamentos despóticos do neoliberalismo. fev. 1986.
  • 1
    . Teixeira, D.L.P. & Souza, M.C.A.F. de. Organização do processo de trabalho na evolução do capitalismo.
    Revista de Administração de Empresas, 25(4):70, out./dez. 1985.
  • 2
    . Braverman, H.
    Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. p. 124.
  • 3
    . Oliveira, C.A.B. de.
    O processo de industrialização - do capitalismo originário ao atrasado. Tese de doutoramento. Campinas, Unicamp, 1985. mimeogr.
  • 4
    . Oliveira, C.A.B. de. op. cit. p. 239.
  • 5
    . Sobre o processo de transição, no Japão, do modo de produção feudal para o capitalismo, ver: Allen, G.C.
    A shorteconomic history of modem Japan. London, 1951; Hall, J.W.
    El império japonês. Madrid, Siglo XXI, 1973; Lockwood, W. W. O Estado e o empreendimento econômico no Japão moderno - 1868-1938. In: Kuznets, S. et alii, org.
    Crescimento econômico; Brasil, India e Japão. Rio de Janeiro, Mônaco/Usaid, 1969; Moore Jr., B.
    As origens sociais da ditadura e da democracia; senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Santos, Martins Fontes, 1967; Takahashi, H.K. La place de la revolución Meiji dans l'histoire agraire du Japon.
    Revue Historique, oct/déc. 1953; Weber, M.
    História geral da economia. São Paulo, Mestre Jou, 1968.
  • 6
    . Hall, J.W. op. cit.
  • 7
    . Moore Jr., B. op. cit.
  • 8
    . Id. ibid.
  • 9
    . Id. ibid.
  • 10
    . Hall, J.W. op. cit.
  • 11
    . Hall, J.W. op. cit., 1973.
  • 12
    . Moore Jr., B. op. cit.
  • 13
    . Id. ibid.
  • 14
    . Oliveira, C.A.B. de. op. cit. p. 250
  • 15
    .
    Pao: aldeias agrícolas japonesas existentes no período feudal, que mantinham uma organização relativamente autônoma dos governos regionais, baseada no trabalho conjunto, solidário e harmônico, que possibilitava a sobrevivência de numerosos membros em escassa superfície e recursos, assim como a obtenção do crescimento da produtividade das atividades.
  • 16
    . Ginsbourger, F. Japon: voyage au pays du consensus social.
    Les Temps Modernes, Paris, 37(415), fév. 1981.
  • 17
    . Esta afirmação é sistematicamente renovada nos discursos patronais veiculados em notícias de periódicos (entre inúmeras outras:
    Revista Negócios em Exame. O que está mudando na vida das fábricas. 25 ago. 1982, p. 30; Através da Teoria Z, o exemplo japonês. 20 out. 1982, p. 25; A revolução na gestão. 2 maio 1984, p. 46), estudos de pesquisadores (a exemplo: Ouchi, W.
    Teoria Z; como as empresas podem enfrentar o desafio japonês. São Paulo, Fundo Educativo Brasileiro, 1982), além das biografias publicadas de grandes empresários, como, por exemplo, de Soichiro Honda e Akio Morita, respectivamente em: Kato, M. & Sedding, C, coord.
    Hondapor Honda. Sigla, 1982; Morita, A.
    Made in Japan. Cultura, 1986.
  • 18
    . Ver a esse respeito o artigo de: Tsukamoto, Y. O processo decisório empresarial no Japão.
    Revista de Administração de Empresas, 20(4):73-7, out./dez. 1980.
  • 19
    . Kato, M. & Sedding, C, coord. op. cit.
  • 20
    . Posição teórica adotada por vários autores que assim encaram as técnicas organizacionais adotadas nos países capitalistas, por exemplo, as japonesas: Saccardo, C. & Lino, H. F. C. Novas técnicas de organização e a tecnologia no capitalismo. In: Bruno, L. & Saccardo, C, coord.
    Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986; artigos de M. Tragtenberg na
    Folha de São Paulo: Mudanças na administração do trabalho. 1º ago. 1981; Controle de qualidade ou do trabalhador? 31 maio 1982, 8 jul. 1982, 20 jul. 1982; Japão: a outra face do milagre, 1º jun. 1984, 11 jun. 1984, 2 jul. 1984; Os fundamentos despóticos do neoliberalismo. fev. 1986.
  • 21
    . Ginsbourger, F. Prefácio. In: Satoshi, K.
    Japão, a outra face do milagre. São Paulo, Brasiliense, 1985.
  • 22
    . Satoshi, K. op. cit.
  • 23
    . Id. ibid.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1987
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br