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Crenças e dúvidas básicas

NOTAS E COMENTÁRIOS

Crenças e dúvidas básicas

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor titular no Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicada a Administradores da EAESP/FGV

Neste último quartel do século XX o mundo atravessa, ao mesmo tempo, um período de grandes transformações e de crise econômica, uma época de impasse político e de crise de valores. As grandes transformações foram propiciadas pela aceleração do desenvolvimento tecnológico desde a II Guerra Mundial. A grave crise econômica e financeira teve início nos anos 70, quando ocorreu a reversão de mais um ciclo longo (de 50 anos) de Kondratieff. O impasse político a nível mundial manifestou-se menos no conflito entre as grandes potências e mais no fato de que o capitalismo revela-se incapaz de propiciar desenvolvimento social satisfatório, e o estatismo ("socialista") só logra desenvolvimento econômico e social às custas da liberdade.

Nestes momentos nossos valores e nossas crenças também entram em crise; tornam-se confusos, contraditórios. "Verdades" simples, diretas, não servem mais, porque não são capazes de abarcar uma realidade que é, ela própria, além de complexa, contraditória.

As "verdades simples" eram fruto de um sistema de valores e crenças autoritários, ditado pelos ideólogos da classe dominante. Eram e são geralmente preconceitos ideológicos.

Ora, além de ser um momento histórico marcado pelas grandes transformações tecnológicas, pela crise econômica e pelo impasse político entre capitalismo e estatismo, o século XX continua e aprofunda o grande movimento contestatório iniciado no século XIX: a contestação dos trabalhadores, das mulheres, das minorias raciais, das nações dominadas.

E essa contestação - que é mais ampla e ao mesmo tempo engloba a luta de classes - tem duas conseqüências fundamentais. Em primeiro lugar, é democrática porque põe em jogo o domínio da classe dirigente sobre a classe dominada, dos homens sobre as mulheres, das maiorias sobre as minorias raciais, das potências imperialistas sobre as colônias. Em segundo, é a origem básica da crise de valores e crenças do mundo moderno, porque contesta os valores estabelecidos.

Esta crise de valores e crenças - esta crise moral, portanto - é condicionada e agravada: a) pelas grandes transformações tecnológicas que aceleram os processos de mudança social; b) pela crise econômica, que aprofunda os conflitos entre as classes e grupos sociais em torno de um excedente escasso; c) pelo impasse político entre capitalismo e estatismo, que nos tenta mas não nos permite adotar soluções utópicas.

E no entanto, neste momento de crise de valores e crenças, é preciso acreditar sem deixar de duvidar e de perguntar.

É preciso acreditar em alguns valores que já se transformaram em conquistas de humanidade.

É preciso acreditar na liberdade, que tem seu limite na liberdade dos outros; na igualdade, que não pode ser plena mas deve ser sempre crescente; na igualdade de rendas, que só a propriedade social dos meios de produção pode garantir plenamente; na igualdade de poderes, ou seja, na democracia política plena, que só pode ser razoavelmente alcançada se partirmos da crença no homem comum ao invés de nos super-homens ou nas elites iluminadas; e na autogestão ao nível das empresas.

É preciso acreditar na justiça, que, em última análise, é o direito à liberdade e à igualdade do homem comum; na democracia e no socialismo, que são, no plano político e no plano econômico, as formas institucionais de garantir a liberdade, a igualdade e a justiça.

É preciso acreditar na pluralidade dos partidos políticos e no seu revezamento no poder, que são as bases da democracia.

É preciso acreditar na autogestão das empresas e demais organizações. Autogestão que é a única garantia de um socialismo democrático porque evita o domínio de uma tecnoburocracia estatal.

É preciso acreditar no homem comum, nos trabalhadores, nas classes dominadas, em homens e mulheres que só se distinguem das elites pelas oportunidades de educação e cultura que tiverem.

É preciso acreditar ainda no legado cultural dos nossos antepassados; na beleza, que tanto a cultura e a arte popular quanto a cultura das elites é capaz de produzir; no progresso técnico, que permite o desenvolvimento econômico e o aumento do bem-estar; na possibilidade de solidariedade, apesar do egoísmo dos homens; na necessidade de conflito, para garantir que os direitos e a própria solidariedade transformem-se em realidade.

Mas da mesma forma que é necessário acreditar, é necessário também duvidar. É necessário evitar as crenças simples demais, lógicas demais, sem contradições, quando o mundo é contraditório.

É preciso duvidar, pelo lado positivo, que o mercado e a livre iniciativa sejam sinônimo de liberdade e eficiência econômica, ou, no outro extremo, que o Estado e o planejamento econômico sejam sinônimos de igualdade e também eficiência econômica.

É preciso duvidar também, pelo lado negativo, que o mercado seja sinônimo de desigualdade ou que o Estado seja sinônimo de falta de liberdade.

Essas são todas meias-verdades.

E, no plano da eficiência econômica, é preciso duvidar daqueles que afirmam que o mercado ou então a administração do Estado sejam intrinsecamente superiores para a obtenção da eficiência econômica. Na verdade, o sistema de preços estabelecido no mercado e o planejamento econômico estatal são os dois princípios alternativos de coordenação de qualquer sistema econômico. Mas não são exclusivos. E a maximização da eficiência econômica provavelmente se alcança através da combinação dos dois princípios.

Em outras palavras, é preciso duvidar que o mercado deva ser sempre substituído pela administração do Estado, como pretende a ideologia estatal ou tecnoburocrática. Da mesma forma que é preciso duvidar que a administração ou o planejamento do Estado deve ser sempre substituído pela ação das forças do mercado, como pretende a ideologia capitalista conservadora.

No Brasil, hoje, ao mesmo tempo em que assistimos a uma extraordinária campanha cívica pelas eleições diretas, assistimos também a um ressurgimento do conservadorismo contrário a todo tipo de planejamento ou de administração da parte do Estado.

A campanha pelas eleições diretas traduz o anseio de toda a sociedade brasileira de restabelecer definitivamente a democracia neste país. Em termos de sistema de governo, o parlamentarismo seria provavelmente preferível ao presidencialismo, mas o essencial é respeitar a vontade de retorno à democracia da sociedade civil e do povo brasileiro.

A onda conservadora, antiestatizante, por sua vez, traduz o repúdio ao excesso de autoritarismo da tecnoburocracia civil e militar que tomou o poder no Brasil em 1964, mas traduz também o desejo de poder e a falta de competência para exercê-lo de uma burguesia que insiste em repetir velhas idéias contra o planejamento econômico e a participação do Estado na economia.

Na sociedade brasileira, meus caros formandos, na qual a ideologia capitalista é hegemônica, vocês foram provavelmente ensinados a acreditar, ao mesmo tempo, na administração, ao nível da empresa, e no mercado, ao nível do sistema econômico, como bens maiores. Esta é uma daquelas verdades simples demais e contraditórias demais para merecer crédito.

Em síntese, caros formandos, acreditem na liberdade, na igualdade, na justiça, na eficiência e no desenvolvimento econômico; mas duvidem das regras simples e unívocas para atingir esses objetivos.

Como administradores e contadores vocês foram ensinados a pensar, a decidir em situações de incerteza, a não se amarrar a fórmulas prontas para resolver os problemas de suas empresas. A mesma regra é válida para que vocês sejam capazes de contribuir para a solução dos problemas do Brasil.

Antes de mais nada é preciso que pensem - que pensem com liberdade, com independência. É preciso que procurem conhecer as condicionantes de ordem social de seu próprio pensamento - suas condicionantes de classe.

É preciso que acreditem, com generosidade, em valores que nem sempre correspondem a seus interesses de classe, como é provavelmente o caso da crença na igualdade.

É preciso que sejam realistas sem perder o idealismo.

É preciso que, diante dos problemas políticos concretos, não se deixem guiar por ideologias disfarçadas em idéias simples, de "bom senso"; não se deixem guiar por preconceitos e interesses de classes disfarçados em idéias aparentemente generosas. Ao contrário, é preciso que pensem, que avaliem e que decidam que posição tomar em cada situação.

E uma última mensagem antes de terminar. Em sua profissão de administradores, uma qualidade fundamental é disciplina. Mas a disciplina não deve ser confundida com subserviência aos chefes. Nem com a subserviência funcional, nem com a subserviência ideológica.

No campo profissional, saibam dizer não; saibam criticar e divergir sem romper com a disciplina. No campo das idéias políticas, mantenham sua independência. Não confundam os seus interesses ou os interesses de sua empresa com os da nação.

Meus caros formandos, era isto que eu queria dizer-lhes hoje. Peço desculpas se dei muitos conselhos, mas acho que este talvez seja o papel de um patrono. Fiz o melhor que pude para desempenhar o meu papel hoje. Como estou certo de que vocês procurarão fazer o mesmo em suas vidas.

* Discurso proferido como patrono dos formandos da Faculdade de Ciências Administrativas e Contábeis Paulo Eiró, em 28 de março de 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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