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Profissão e educação

NOTAS E COMENTÁRIOS

Profissão e educação* * Palestra proferida no Seminário Educação e Trabalho, Hoje, promovido pelo Senac/SP, em outubro de 1981.

Lauro de Oliveira Lima

Assessor científico do Centro Experimental e Educacional Jean Piaget, Rio de Janeiro

O título proposto (profissão e educação) sugere, logo de início, antinomia entre os dois conceitos, embora o correto fosse, talvez, se desejamos confrontar as duas posturas, opor educação à profissionalização, pois educação é um processo e profissão um resultado. Ou seria mais correto, como hoje se faz e como os textos legais determinam, tratar a profissionalização como uma subclasse da classe geral "educação", dividindo esta em: a) geral; b) profissional ou profissionalizante? Ora, todo mundo parece saber o que seja educação profissional ou profissionalizante, porque todo mundo pensa saber o que seja uma profissão (quando tentamos penetrar na semântica do conceito é que percebemos não ser tão fácil defini-lo). Mas o que seria, então, educação geral?! Quando Jean Piaget tenta descrever o que seja "esquema de ação", afirma que "esquema é o que é comum a várias ações", isto é, é aquilo que é geral, na singularidade de cada ação, donde se conclui que, na diversidade das ações, aparentemente diferentes, há sempre algo geral imanente, o que, transpondo para nossa real ou aparente antinomia, significa que, na singularidade múltipla das profissões, há sempre algo que seria objeto da educação geral, mesmo porque o ser humano não dispõe senão do seu comportamento (motor, verbal e mental) para realizar a multiplicidade das tarefas que denominamos profissionais. Como, então, distinguir, no processo educativo, o que seria "geral" (isto é, "esquemático", no sentido piagetiano) e "profissional"? Não seria, então, melhor atentarmos para o resultado, em vez de nos atermos aos mecanismos do processo? Neste caso, sabemos, nitidamente, que o resultado da educação profissional ou profissionalizante é a "profissão". Mas, qual seria o resultado da educação geral"! Uma "generalização"? Poderemos, então, opor "comportamento profissional" a "comportamento geral" ou "generalizante"? E onde ficaria o "geral" que todo comportamento singular ou particular contém?! Retomando a antinomia do título, poderíamos, em vez de confrontar educação e profissão, conservar da expressão "educação" seu nobre sentido helênico de paidéia (formação do homem como membro epistêmico da espécie), denominando a educação profissional ou profissionalizante de adestramento (a transmissão ao homem genérico de habilidades adequadas para a sua participação social, em determinado grupo, num certo momento de sua história), expressão que tem a vantagem de incluir não só as habilidades "produtivas", como a aprendizagem sócio-cultural característica do grupo ( e aqui se começa a perceber que não é tão fácil, como parece, definir profissão, da mesma forma como não é fácil caracterizar o que seja produção: caçar, por exemplo, é uma atividade produtiva, mas poder-se-ia dizer o mesmo do ato de a criança mamar em sua mãe?). Educar, nesta perspectiva, seria "estimular esquemas (gerais) de ação", e adestrar seria "exercitar ações particulares não-transferíveis para outra situação" (e aqui, novamente, pergunta-se se há ações particulares que não terminem em esquemas gerais). Neste caso, a educação profissionalizante seria sinônimo de "educação particularizante" (isto se chama "especialidade", não se devendo esquecer que T. Chardin define o homem como "um animal não-especializado").

Mas a antinomia já vem de longe. Etimologicamente, educação (educere) revela que se trata de algo que vem de dentro para fora (quase uma "extração"), no sentido de fazer a embriogênese realizar todas as suas possibilidades, o que não deixa de ser um ingênuo inatismo, mas que, apesar de tudo, revela que se trata de estimular o que o indivíduo tem de geral, independentemente da cultura do grupo e do momento histórico (realmente, não existe nada, no indivíduo, tão geral que seja independente do meio e da história, pois a construção do indivíduo é um compromisso cibernético - epigênese - entre o código genético e as circunstâncias, donde perguntar-se se as profissões são assim tão particulares em relação ao comportamento genérico). Já profissão (profiterí) indica o compromisso (professar) do indivíduo com relação ao pacto social, isto é, com relação à sua atividade específica, na vida comunitária (isto que, em psicologia social, chama-se papel do indivíduo no grupo).

Corre a crença (que os franceses chamam, ironicamente, de "psicologia dos dons") de que cada indivíduo viria predeterminado (vocação) para o exercício de determinado papel (profissão) na cooperação social, o que equivale a uma pré-ciência divinatória dos genes com relação ao nível civilizatório do grupo social, a suas necessidades, a sua organização social e a seu sistema de produção. Mas a pré-ciência não seria somente qualitativa: na produção de "especialistas", os genes já fariam, previamente, um balanço estatístico para que não houvesse superoferta num setor e carência em outros, maravilhoso milagre algébrico que não abala a candura das convicções dos inatistas. Evidentemente, o homem não tem vocações inatas (a vocação, no homem, corresponderia aos instintos dos animais e, como se sabe, os instintos são gerais para todos os membros da espécie e supõem perenidade da situação ecológica, precisamente o que não ocorre neste animal que se caracteriza pelas invenções e pela capacidade de fazer história). A profissão é, portanto, uma supra-estrutura imposta às características genéricas do ser humano, pois, por mais que mude a cultura, os usos, os costumes, a forma de organização e de produção, o homem permanece com suas características básicas, por exemplo, com aquilo que Jean Piaget chama de "estruturas operatórias".

Deste modo, aceitando-se essa última forma de antinomia, educação seria o processo de favorecer o desenvolvimento genérico do ser humano, favorecer a construção de todas as suas estruturas operativas e a "abertura para todos os possíveis", ao passo que adestramento seria a construção da infinita variedade dos comportamentos particulares, ligados a determinadas circunstâncias, em vista da adaptação do indivíduo a um grupo social determinado, em determinado momento de sua historicidade. Como se vê, o adestramento é uma limitação, cuja finalidade é a socialização, isto é, a necessidade de cada indivíduo exercer um papel dentro do grupo social, inicialmente conformando-se com suas regras, valores e símbolos.

Mas esta conformação não implicaria a frenagem do desenvolvimento geral? É possível que o açodamento em adestrar as crianças para adaptá-las ao grupo social venha sendo, através dos tempos, empecilho ao desenvolvimento geral da humanidade (compare-se um grupo indígena a um grupo social altamente desenvolvido, indagando-se se primitivo não é, apenas, o resultado eficiente do adestramento, donde Lévi-Strauss falar em "sociedades a-históricas"). Será, então, que a antinomia (educação e profissão) é, precisamente, o reflexo do conflito fundamental da humanidade, o conflito entre tradição e revolução, direita e esquerda, ordem e progresso, estrutura e gênese, segurança e desenvolvimento, conservação e criatividade?

Mas não vamos ampliar o conceito de "profissão" para este sentido que abrange todos os adestramentos (embora não desistamos de afirmar que toda profissionalização é um adestramento). Liguemos profissão à produção, apesar de não ser fácil determinar o que seja "produção" (sistema de produção). Gerar um filho, escrever um poema, fazer a platéia rir ou chorar, dar uma aula, servir o cafezinho... é uma produção? Hoje se fala em produção primária, secundária, terciária e até quaternária, o que significa, praticamente, que tudo o que o homem faz é produção, donde se conclui (se produção for o critério de profissão) que tudo o que o homem faz revela nele uma profissão. Ou seria melhor dizer-se que profissão é a atividade que depende da aplicação estrita de uma técnica específica (os anglosaxões chamariam know-how e os franceses savoirfaire)? Aceitar esta definição implica definir profissionalização como adestramento, pois a aplicação estrita de uma técnica específica implica a eliminação de toda criatividade (invenção). Jean Piaget, pitorescamente, afirma que o "instinto é um hábito hereditário e o hábito é como um instinto adquirido", isto é, hábito e instinto só se distinguem por sua origem (savoir inné versus aprendizagem). Ambos os comportamentos supõem estabilidade ecológica, isto é, meio cósmico e social estático, sob pena de as respostas inatas ou aprendidas não corresponderem às situações (quando T. Chardin diz que "o homem é um animal não-especializado", quer significar que tem a capacidade não só de se adaptar às mudanças ecológicas, como aptidão para mudar a ecologia, e tudo isto é incompatível com adestramento). Mas façamos um esforço para falar em profissão como sendo um comportamento produtivo, segundo o senso comum (colher, caçar, plantar, criar, confeccionar, prestar serviços, etc).

Existe a convicção geral de que "ensino profissional" é uma modernidade, talvez porque não existisse até bem pouco tempo, como modalidade escolar (apesar de quase 90% da atividade escolar consistir em puro adestramento). Poder-se-ia, contudo, indagar se a relação mestre-aprendiz das corporações de ofício da Idade Média não seriam forma estrita de escolaridade. De modo mais ou menos sistemático, a profissionalização foi, sempre e em toda parte, uma relação mestre-aprendiz, forma que, provavelmente, jamais será superada, pois não existe, ao que se saiba, forma de adquirir um hábito que não seja a exercitação a partir de um modelo, donde se perguntar se a moderna escolarização profissionalizante não é um monumental engodo. Provavelmente, hoje como ontem, a única maneira efetiva de profissionalizar seja, exclusivamente, dentro do sistema de produção, mesmo porque lá é que existem o equipamento, a matéria-prima, os melhores modelos de profissionais e a probabilidade de efetivo exercício, em situação real. Mas o mais grave é que, frente à contínua e acelerada mudança de tecnologia, de equipamentos e de materiais, os processos usados no sistema escolar rapidamente apresentam décalage com relação ao sistema de produção, tornando-se inteiramente obsoletos, vício, aliás, inerente a todos os tipos de atividade escolar, sempre defasados do ritmo e dos progressos da vida real. Como se vê, as mais primitivas formas de educação foram profissionais, tanto no sentido genérico de adestramento geral quanto no sentido de aquisição de habilidades produtivas. A mais antiga forma institucional de educação foi a "iniciação", cerimonial através do qual a sociedade adulta transmitia às novas gerações as regras e os valores sociais, seus mitos, símbolos e religião, suas técnicas de sobrevivência (cerimônia que, hoje, corresponde, mais ou menos longinquamente, ao nosso vestibular, momento em que se cobra dos jovens o resultado de mais de uma década de escolaridade). A "iniciação" caracteriza as sociedades aparentemente estáticas (a-históricas), em que as novas gerações assimilavam, integralmente, sob pressão gerontocrática, o comportamento e as concepções da sociedade adulta, o que equivale, estritamente, a uma profissionalização, se dela retirarmos o extravagante aspecto vocacional, pois todos os membros da tribo recebiam o mesmo know-how, sem se cogitar das "aptidões específicas" a que se referem os orientadores profissionais: todos os membros da tribo aprendiam técnicas fundamentais, como caça, arte culinária, elementos de economia (arte doméstica, segundo o significado grego), arte de curar, cerâmica, rudimentos de agricultura e de pecuária, tecelagem e/ou plumagem, o regadio, sem se falar na aprendizagem das lendas, tradições, cerimônias, calendário e jogos. A tribo, como um todo, passava, através do treinamento que culminava na "iniciação", às novas gerações, todo seu patrimônio cultural (uma espécie de hereditariedade sócio-antropológica). Por aí se vê a excentricidade dos que falam em "livre iniciativa", em educação, em ensino pago e em meritocracia, meros reflexos de uma sociedade que se dividiu em classes hierarquizadas e perdeu o sentido do bem comum (os defensores destas teses, ao que parece, nunca ouviram falar em "genética das populações", conceito biológico que deve ser inserido nas concepções sociológicas e políticas). Podemos chamar esta profissionalização, este adestramento, de educação geral? Não se deve confundir o "geral" desta expressão, que se refere aos "comportamentos básicos comuns a todos os membros da espécie", com o "geral" imposto a toda a população, pois "educação geral" opõe-se à "educação profissional". Podemos, então, afirmar que o processo educativo, historicamente, começa pela educação profissional?!

Vamos, como aconselha Piaget, à embriologia. O que é a puericultura (a arte de educar as crianças); educação geral ou educação profissional? Quando a mãe ensina a criança a mamar e a comer, quando a estimula a pegar nas coisas, a engatinhar, a andar, faz educação geral ou profissional? Digamos que é educação geral, ou simplesmente educação, pois se trata de esquemas tão gerais que se aplicam, indeterminadamente, a todas as situações, e dizem respeito a comportamentos comuns a todos os homens, independentemente do tempo, do espaço e dos grupos sociais. Mas, adquiridos estes comportamentos básicos (controle dos esfíncteres, da enurese, deslocamentos, fala, autonomia de alimentação, etc), os pais passam (com evidente prejuízo do desenvolvimento geral que está longe de concluir-se: a criança desenvolve-se até cerca de 16 anos de idade) a um sistemático adestramento, o que equivale a uma "profissionalização" (aquisição de hábitos, costumes, modos provenientes do grupo social adulto). Estão aí os provérbios ("é de pequeno que se torce o pepino", "água mole em pedra dura tanto bate até que fura", "em terra de sapo, de cócoras como eles", etc.) para atestar a intenção adestradora do esforço educativo durante a infância. Aprender a evitar, por exemplo, "palavrões", a vestir-se de forma aprovada pelo grupo social, a usar o cabelo com determinada forma e/ou comprimento, a cumprimentar as pessoas de certa maneira, a comer os aumentos preferidos pelo grupo social adulto - tudo isto é adestramento ou profissionalização (algo parecido com o treinamento que o recruta recebe no exército, para adquirir a "profissão" de soldado).

Ora, o adestramento sobrepõe a adaptação sócio-cultural ao desenvolvimento geral, provavelmente prejudicando este último (perigo inerente a toda educação profissionalizante). Diante deste fato sociológico, como fica a educação geral? Precisamente, nas atividades extra-escolares (e aqui estamos considerando o adestramento promovido na família como forma de escolarização). A característica básica do extra-escolar é o jogo (é por isto que os pedagogos clamam para que a pedagogia, nas escolas, tome, simplesmente, a forma de jogo). É jogando que a criança prossegue, por conta própria (auto-educação), sua educação geral, já que não encontra, socialmente, oportunidade de desenvolver seus mecanismos operativos básicos e gerais. Jogar é desafiar, até o limite permitido pelo nível do desenvolvimento genético, na ocasião, a capacidade operativa dos comportamentos sensório-motores, verbais e mentais, isto é, é o desafio para que o comportamento produza as mais imprevistas combinatórias, independentemente de qualquer objetivo pragmático: é, portanto, a antiprofissão, pois esta consiste, precisamente, na reprodução estereotipada de comportamentos ou técnicas apreendidas (não se deve esquecer que as profissões estão ligadas ao trabalho e trabalho é antônimo de jogo). Pode-se, pois, dizer que a educação geral caracteriza-se por seu caráter lúdico (sensório-motor, verbal e mental), donde nada mais educativo que esportes, composição literária, estórias, arte, matemática não calculadora, experimentação científica, filosofia, tudo se resumindo, em seu mais alto grau operativo e formal, na teoria dos jogos. Podemos, pois, opor jogo (educação geral) e escola (educação profissional ou adestramento). Se, nas frestas dos comportamentos estereotipados exigidos pela sociedade e ensinados nas escolas não se infiltrasse o jogo (a festa), a sociedade e a escola já teriam transformado o homem num robô, atrofiando, por excesso de adaptação, seu desenvolvimento geral (caso provável dos povos primitivos).

O objetivo compulsivo dos adultos com relação às crianças é que elas "professem" (declarem ou adquiram) uma profissão, determinem seu papel social, tornem-se adultos mesmo prematuros (quanto mais cedo fixam-se os comportamentos, menos oportunidade de desenvolvimento geral, pois o desenvolvimento geral é, precisamente, a longa marcha para as operações de complexidade crescente de ampla aplicação e uma "abertura para todos os possíveis" (tema do último livro de Jean Piaget). A "hominização" (no sentido de T. Chardin) é, portanto, a busca da plenitude do desenvolvimento das possibilidades comportamentais imprevisíveis do ser humano, construção que se dá na linha do lúdico, do anti-hábito, da antiprofissão. Se olharmos para trás na História, vemos o engajamento precoce da criança no corpo social (adulto em miniatura).

Assistimos, hoje, a um "aumento da juvenilidade" - como diz Edgar Morin - fazendo surgir o fenômeno da juventude, isto é, o prolongamento cada vez maior da infância e o retardamento do engajamento social das novas gerações, o que produz um aceleramento da mudança social, portanto, uma obsolescência precoce das profissões.1 1 Cf. Lima, Lauro de Oliveira. Juventude como motor da Historia. Rio de Janeiro, Paideia, 1980. É possível que a atual ênfase na profissionalização (precisamente quando o fenômeno profissional é posto em questão pela tecnologia avançada) seja, como a ênfase na segurança nacional, um recurso para a retomada do controle da mudança das organizações sociais lideradas por uma juventude que teve oportunidade (retardamento do engajamento social) de desenvolver nos mais altos níveis operativos isto que seria objeto da educação geral, se houvesse, no sistema escolar, outro propósito que não fosse a "profissionalização" (conformação a regras, valores e símbolos do grupo social adulto). Aliás, é alarmante para os governantes, hoje em dia, a falta de entusiasmo da juventude com relação ao engajamento no sistema de produção, não sendo raro um alto executivo abandonar tudo em busca de uma atividade mais "primitiva" (para não se dizer lúdica).

Como já assinalamos muitas vezes, denomina-se "educação geral" o que é, apenas, "educação para todos", confundindo-se qualidade com quantidade (já vimos antes que, na tribo primitiva a "profissionalização" era dirigida a todos os membros, o que não fazia dela uma educação geral). O nosso curso primário ou elementar, por exemplo, volta-se completamente para a alfabetização (ler, escrever e contar); como se isto fosse educação geral, apesar de 90% da população, provavelmente, não ter oportunidade de vir a ter livros ou mesmo jornais para ler. É, talvez, esta falta de funcionalidade da alfabetização que nos dá a impressão de que ela constitui um aspecto da educação geral, isto é, da educação não-pragmática (desligada do sistema de produção). A este respeito, talvez fosse bom lembrar que, na Idade Média, antes da descoberta da imprensa, o ler (lector) e escrever (scriba) eram profissões altamente prestigiadas pela sociedade analfabeta, o que, aliás, não é muito diferente do que ocorre em certas zonas do Brasil atual. O grande serviço prestado pelo Mobral, por exemplo, foi facilitar, através da alfabetização, a migração do campo para a cidade (do Norte para o Sul), o que mostra, claramente, que alfabetização corresponde a uma formação profissional (o migrante analfabeto não obtém, na cidade, mesmo empregos serviçais). A leitura e a escrita são um know-how de um grupo social letrado e condição de exercício de determinadas funções, de modo que sem elas não há possibilidade de ascensão social. O acesso a uma série de empregos, mesmo de caráter manual, depende desta habilidade, donde já ter ouvido de um motorista que o Mobral inflacionara o mercado de trabalho. Não se provou, até hoje, que a linguagem escrita concorra para o desenvolvimento mental (isto é, para a educação geral), salvo, talvez, em suas etapas finais, quando o desenvolvimento se configura como uma álgebra das proposições, álgebra, contudo, que não é necessariamente escrita (Sócrates raciocinava oralmente tão bem quanto Aristóteles por escrito).

Quando se fala, por exemplo, em "alfabetização de adultos", é preciso esclarecer se se trata de: a) educação geral (propósito de Paulo Freire); b) educação profissional ou adestramento (propósito do Mobral). Sabe-se que, quanto mais idoso o indivíduo, mais dificuldade tem de adquirir um know-how ("o papagaio velho não aprende a falar" - já diz um provérbio popular). Resta saber, então, se também na área da educação geral é possível retomar o desenvolvimento mental estacionado por falta de condições mesológicas e, provavelmente, enrijecido e solidificado, definitivamente. Ao que parece, as estruturas sensório-motoras, verbais e mentais que não se formaram (construção seqüencial), no momento oportuno (concomitantemente às formações embriológicas do sistema nervoso: ver os fenômenos de estampagem, competência dos tecidos, creodos, seqüências construtivas do crescimento embriológico e/ou mental etc), não voltarão a constituir-se. Compare-se, como exemplo, a educação de um indígena adulto com a de seu filho recém-nascido. Estes fatos sugerem graves pesquisas sobre a hipotética possibilidade da "rebelião das massas" em que se apoia a militância e, muitas vezes, o martírio dos que se dedicam à educação popular.

Quanto à alfabetização das crianças, por exemplo, quem vem se dedicando a experimentar uma pedagogia baseada em Jean Piaget (pedagogia que se dirige, estritamente, ao desenvolvimento operatório sensório-motor, verbal e mental, isto é, pedagogia voltada para a educação geral) conhece o fenômeno que denominamos "choque de alfabetização": quando a criança chega a certa idade (a idade convencional da escolarização tradicional), os pais, que estavam até então entusiasmados com a pedagogia do desenvolvimento, sem pragmatismos, de repente mudam de atitude e exigem rápida alfabetização, esta profissão altamente valorizada pelo grupo social. Dificilmente os pais sabem avaliar o que seja "desenvolvimento mental", ao passo que qualquer um pode constatar se a criança lê e/ou escreve!? É a manifestação do eterno conflito entre educação e profissão, entre desenvolvimento mental e adestramento, entre transformação e conformação, entre repetição e criatividade, entre imitação e invenção, entre educação geral e educação especial. Provavelmente, a compulsão com que se tenta alfabetizar, precocemente, as crianças, isto é, fornecer-lhes um know-how (uma profissão) de caráter altamente adaptativo, seja um dos motivos da frenagem do seu desenvolvimento mental (como se sabe, tanto o desenvolvimento mental quanto a evolução geral dos seres vivos faz-se em razão dos desequilíbrios adaptativos: se um know-how equilibra... dispensa o desenvolvimento mental).

Ora, se levarmos mais longe a pesquisa sobre a constituição do sistema escolar, através da História, verificamos que, com equívocos maiores ou menores, nele predomina, desde o começo, a educação profissional ou adestramento. Examinemos o curriculum medieval, que tem suas origens na civilização greco-romana e que vem até as vésperas da Idade Moderna. Primeiro, é o trivium constituído de gramática, retórica e dialética, três artes eminentemente práticas, ligadas ao uso da linguagem, know-how altamente proveitoso para o cidadão livre de Atenas participar, na Ágora, das assembléias deliberativas, e para o patrício defender seus bens no Fórum de Roma. Depois é o quatrivium, constituído de artes matemáticas (aritmética, música, geometria e astronomia), disciplinas educativas colocadas entre a praticidade (profissão) e a operacionalidade geral (educação), pois se a aritmética serve ao comércio, a geometria à divisão de terras, a astronomia às navegações, e a música ao lazer, não se pode determinar o ponto em que estas artes práticas fogem de sua estrita instrumentalidade para elevar-se ao plano das generalidades "desinteressadas" (educação geral), apesar de a tendência ser a cobrança compulsiva, até hoje, de sua "utilidade". Como se vê, o sistema educativo caminha, historicamente, da profissão (adestramento) para a educação geral (operacionalização), ao contrário do que se pensa e diz. A atual hipertrofia profissionalizante, portanto, é um anacronismo que ocorre, precisamente, no limiar da era em que o homem parece que vai-se redimir da condenação bíblica, segundo a qual seu castigo seria o trabalho (profissão) que faz correr o suor do seu rosto.

Em todos os tempos, apresenta-se, sempre, o problema de viver e sobreviver. O primeiro refere-se ao desenvolvimento da plenitude das possibilidades operativas no organismo (o jogo e a festa). O segundo, ao esforço de fornecer ao organismo as técnicas de captação do alimento necessário ao seu funcionamento (a profissão e o trabalho). O primeiro é uma gestação. O segundo, uma "adaptação" ao meio. Se entendermos educação como uma "uterinização" (criação de condições de prosseguimento da gestação) e, portanto, como um processo que diz respeito à construção do modelo humano básico, independentemente da cultura e do momento histórico (construção do ser humano, isto que T. Chardin denominava "hominização"), e profissionalização como adestramento para que as novas gerações assimilem as regras, valores, símbolos e técnicas do agrupamento adulto, em determinado momento de sua história, podemos dizer que a profissionalização predominou, altaneira, ao longo da história da constituição do sistema escolar. É isto que nos meios acadêmicos sofisticados denomina-se de "educação reprodutora", em oposição a educação crítica. Poderíamos substituir esta antinomia por outra: educação e adestramento ou educação geral e profissionalização.

Deve-se fazer a opção entre estes dois tipos de educação? Se se tratasse de mera opção seria muito fácil! O problema é que, em biologia, em psicologia e em sociologia não se pode optar entre reprodução e criatividade, pois toda novidade é, apenas, "mutação" (reorganização) da reprodução, e toda reprodução é a repetição de uma novidade - "não há estrutura (repetição) sem gênese (sem novidade), nem gênese (nem novidade) sem estrutura (sem repetição)", diz Jean Piaget. Não se pode fugir à contingência da adaptação ao meio (profissão), mesmo porque, sem um mínimo de adaptação, não há base para a criatividade (educação). Já vimos que mesmo atividades inicialmente profissionalizantes escapam, em certo momento, de seu propósito instrumental (aritmética, geometria, astronomia). Além disso, em toda atividade pragmática, existe, necessariamente, comportamentos gerais, mesmo porque a diferença entre "geral" e "prático" não está no modelo de comportamento, mas no seu grau de automatismo. Por outro lado, como as mudanças tecnológicas, sociais e políticas são incontroláveis, contrariando o desejo geral de estabilidade e reprodução do modelo de organização social, as profissões terminam por perder sua funcionalidade, fato que jamais ocorre com os comportamentos gerais, nos quais um dos aspectos é, precisamente, a criatividade (no mais alto nível, a inteligência alcança a "abertura para todos os possíveis"). Não se pode, como se vê, fugir à reprodução, pois não se pode jogar fora a experiência cultural acumulada pelo grupo social, da mesma forma como não se pode ficar preso a ela, sob pena de se pôr em risco a sobrevivência diante da mudança ecológica (cósmica e sócio-cultural). Temos dois tipos de hereditariedade: a) a biológica, apoiada no código genético (transmissão de características anatômicas e fisiológicas); b) a sócio-cultural (transmissão da experiência adquirida pelo grupo social). São estruturas diferentes, com a mesma função ("as funções são invariantes; o que mudam são as estruturas", diz Jean Piaget). Os genes são os portadores da hereditariedade biológica; e a tradição, o código genético da experiência sócio-cultural. A escola seria o instrumento de transmissão da hereditariedade sócio-cultural (experiência acumulada), portanto, essencialmente, profissionalizante. Daí a escola ter-se caracterizado, através dos tempos, pelo processo de gravação (memorização, exercitação, avaliação, aprovação, currículos, programas, etc.), o que descreve bem tanto o fenômeno genético quanto o da profissionalização. Ocorre que, se estas hereditariedades fossem uma fatalidade, não teria havido evolução, no plano biológico, e história, no plano sócio-cultural. No momento da "reprodução" há, sempre e necessariamente, mutações e recombinações, isto é, há sempre aparecimento da novidade (Monod chega a dizer que a novidade, característica do processo evolutivo, provém sempre de um erro de reprodução, esquecido do esforço que o organismo faz para se adaptar às mudanças ecológicas físicas e sócio-culturais). Uma educação "reprodutora", portanto, seria paralisante do processo evolutivo e do processo histórico e altamente suicida (a mudança faz-se, sempre, em razão da necessidade de adaptação a novas circunstâncias).

Felizmente, os processos de regulação na adaptação das novas gerações ao grupo social adulto promovem combinações que ultrapassam as intenções "reprodutoras" dos genitores e dos educadores (os educadores são os agentes da hereditariedade sócio-cultural). Da mesma forma como, na reprodução biológica, ocorrem "mutações" e reorganizações que servem à adaptação e ultrapassam o modelo reproduzido, na reprodução sociológica (escolaridade), os jovens não assimilam sem inovação os modelos sociais,2 2 Id.ibid. salvo se a pressão gerontocrática for intransponível, como ocorria nas sociedades primitivas. Pode-se, pois, dizer que a evolução do grupo social depende da maior ou menor eficiência do adestramento da juventude (quanto mais eficiente a profissionalização, menor a mudança social).

Ao que parece, a intenção do grupo social adulto é evitar "mutações" no plano biológico, e "invenções" no plano sócio-cultural (a invenção no plano sócio-cultural pode consistir em mudanças tecnológicas ou em mudanças na forma de organização social: hoje se aceita, com certo entusiasmo, as primeiras, considerando-se, porém, as segundas como "subversão", algo extremamente perigoso para o grupo social). Ora, se não tivesse havido "mutações" e reorganizações biológicas (evolução), provavelmente a vida ter-se-ia extinguido da face da Terra (a evolução é, simplesmente, o resultado das mudanças realizadas pelo organismo para sobreviver). O mesmo ocorreria no plano sócio-cultural: sem mudanças sócio-culturais (História), a sociedade não sobreviveria (uma doutrina de "segurança nacional" que consistisse em evitar, sistematicamente, a mudança sócio-cultural implicaria suicídio para o grupo social, da mesma forma que a reprodução fiel do código genético seria, a longo prazo, a morte biológica). Ora, a profissionalização não é senão uma reprodução, sem mudanças, dos comportamentos sociais aceitos de comprovada eficiência para determinado modelo de organização social e para certo tipo de sistema de produção, portanto, tentativa de evitar novidades históricas. Como tal, é, intrinsecamente, um processo anacrônico, pois o meio cósmico, vital é sócio-cultural está em permanente mudança (os modernos cientistas descobriram na fenomenologia uma tendência geral de organização progressiva.3 3 Cf. Progogine, I. Physique, temps et revenir. Paris, Massonn, 1980; e La Nouvelle alliance - métamorphose de la science. Paris, Gallimard, 1979. Seria compatível com a profissionalização a estimulação da novidade (criatividade)? Onde o meio-termo entre reprodução e novidade! O que seriam as mutações e as reorganizações genéticas no plano da profissionalização (isto é, no plano da reprodução das regras, valores, símbolos e técnicas do grupo social adulto)? Existe salvação para a profissionalização? Por outro lado, a educação geral é compatível com a novidade, com a mudança, com a criatividade?

Já vimos que o que mais caracteriza a educação geral é seu caráter não-pragmático, isto é, seu caráter lúdico, donde a criança - superando o exclusivismo profissionalizante da educação que lhe impõem - tenta, por todos os meios, jogar (brincar). A educação geral, portanto, não só é compatível com a novidade, como é o próprio processo de estimulação da descoberta e da invenção (criatividade), a tal ponto que se pode substituir a expressão "educação geral" por "atividade lúdica". Na última etapa do desenvolvimento (educação geral), está a plena e universal operacionalização e a "abertura para todos os possíveis" (Jean Piaget), processo comportamental que equivale ao do jogo. Ora, o símbolo da não-profissão (o antitrabalho) é, precisamente, o jogo. Ora, o jogo caracteriza-se pela novidade (se não houvesse possibilidade de surpreender o adversário, uma atividade não seria um jogo). Já vimos que quando a criança começa a ser viável, biologicamente (aprende a comer e a andar), cessa, da parte dos educadores, a intenção construtiva (cessa o processo embriológico) e inicia-se a "profissionalização" (adestramentos, etiquetas, regras, técnicas, mitos, preconceitos, etc). Mas a criança, espontaneamente, continua a jogar, assistematicamente, e este jogo é a manifestação de que o processo embriológico não cessou porque os pais dele desistiram (há educadores que tudo fazem para evitar o jogo das crianças). É que, no modelo humano, deve estar, nitidamente presente, a capacidade de descobrir e de inventar (isto que se chama, de forma genérica, criatividade). A educação geral, tendo por objetivo realizar o modelo humano básico, independentemente da sociedade a que a criança vai-se adaptar em determinado momento histórico, deve, portanto, ter por objetivo a criatividade (e a criatividade é a antiprofissão). Em outras palavras, a educação geral (ou simplesmente a educação) deve tomar como modelo o jogo (este mecanismo espontâneo de desenvolvimento da criatividade) e nada menos profissional do que o jogo.

Aqui, entram os aspectos da organização sócio-cultural e política e o teor gerontocrático da sociedade, aspectos que se refletem no tipo de educação ministrada às novas gerações. Temos dois tipos básicos de sociedade: a) as sociedades voltadas para trás, reacionárias, conservadoras, tradicionalistas, dominadas pela gerontocracia (governos dos velhos); b) as sociedades voltadas para o futuro, revolucionárias (revolução permanente), criativas, dominadas pela parte mais jovem da população ("o jovem como motor da história"), havendo, evidentemente, entre estes dois tipos, todas as formas de combinação. Para o primeiro caso, a educação consiste em "reprodução", como está em moda dizer: educar seria criar cidadãos que aceitem, tranqüilamente, a forma de vida social estabelecida (quase como se se tratasse de tirar cópia xerox do modelo médio dos cidadãos considerados "exemplares"). No segundo caso, a educação seria estimular a criatividade das novas gerações para que elas prossigam o processo de invenção de novos mecanismos técnicos e sócio-culturais (segundo a definição de Jean Piaget). Aparentemente, trata-se de mera opção: escolher, livremente, entre uma educação reacionária (adestramento) e uma educação revolucionária (educação geral). Ocorre que a opção por uma educação reacionária, por uma educação de manutenção do status quo, do ponto de vista histórico, é um suicídio coletivo (a ênfase na "segurança nacional", compreendida como manutenção dos quadros vigentes, implica "insegurança", a longo prazo). O ser humano, diferentemente de todos os demais animais, é um ser criativo, fabricador de ecologias sucessivas (novos ambientes sócio-culturais) e capaz de construir próteses (do machado de pedra ao computador) com as quais tenta dominar a natureza e pô-la a serviço do seu bem-estar (aumento da segurança individual e ampliação do espaço vital). Uma educação reacionária, portanto, contraria, fundamentalmente, os atributos fundamentais do ser humano: um animal em permanente evolução comportamental e capaz de ultrapassar seu pequeno mundo uterino para projetar-se nas galáxias. Como se vê, o homem é um animal imprevisível em seu comportamento inventivo, logo antiprofissional. Os animais, com seus comportamentos estereotipados, instintivos, é que são indivíduos "profissionais". Esta vocação criativa do ser humano dá vertigens e náuseas em todos os que não atingiram a plenitude do processo embriológico do ser humano (grande parte dos adultos permanece em estado fetal, impedida, por uma razão ou por outra, de realizar as infinitas possibilidades de desenvolvimento do ser humano). Do ponto de vista da "hominização" (T. Chardin), estes seres, em estado embrionário, gostariam de reproduzir o determinismo dos demais animais que oscilam, vegetativamente, entre um rígido equipamento e uma ecologia estática, precisamente as condições que produziram a extinção dos dinossauros. O ser humano é um projeto feliz da evolução que conseguiu fabricar um ser vivo capaz de superar, com sua capacidade inventiva, todas as ameaças do meio e as agressões das transformações ecológicas, das contínuas mudanças do universo e dos brutais processos desagregadores da entropia geral. Daí T. Chardin afirmar que "o homem é um animal não-especializado", isto é, um animal sem comportamentos estereotipados (instintos) e sem ecologia específica. A educação, pois, só pode ser o estímulo dado às novas gerações para que elas sejam criativas. Em outras palavras, a educação é um processo "subversivo". Fala-se muito, com referência à educação, em formação (dar forma ou meter na forma), que equivale a uma deformação do ser humano (um animal criativo não pode ser formado, uma vez que seu processo natural de ser é a transformação. Qual, pois, o rumo da educação: "para onde vai a educação?" - como pergunta Piaget?

Um dos objetivos que tínhamos em mira, nestas considerações, era desmistificar a chamada educação geral quando contraposta à educação profissional, mostrando que quase tudo, em educação, tem sido, até hoje, adestramento, com vistas à adaptação das novas gerações ao nível de desenvolvimento sócio-cultural de determinado grupo social, donde se caracterizar por práticas de gravação (memorização, fixação, exercitação, avaliação) de conceitos, valores, modismos e habilidades consideradas definidoras ou úteis a determinada classe ou grupo social. Como tal, a chamada educação geral clássica tinha muito menos em vista o desabrochamento das possibilidades de construção de imprevisíveis comportamentos sensório-motores, verbais e mentais (o que deveria ser o objetivo de uma educação geral) que o propósito de precoce e mutilante adaptação do indivíduo ao grupo social e hoje, mais do que ao grupo social, ao sistema de produção. Quando se trata de profissionalização propriamente dita (segundo os critérios vigentes de distinção entre educação geral e profissional), isto é, quando se trata de práticas educativas que visam abastecer o "mercado de trabalho", a deformação alcança níveis de "desominização". A profissionalização, como hoje é feita, não se distingue muito da confecção de máquinas ou ferramentas de produção, por mais que se mistifique o fato, afirmando-se que o objetivo é capacitar o indivíduo; a profissionalização está muito mais a serviço do sistema de produção do que do homem, tanto assim que nela não está incluída a garantia de emprego. Em geral, a profissionalização indiscriminada e atabalhoada termina por inflacionar o "mercado de trabalho", envilecendo a remuneração e tornando inviáveis os mecanismos de reivindicação sindical! Tanto isto é verdade que, em toda parte, a meta freneticamente perseguida é a substituição do homem pelo robô, processo que se acelera vertiginosamente, pondo em questão toda a mistificação que envolve a mística da profissionalização. Uma escola profissional, em última análise, é uma fábrica de máquinas-ferramentas (e, aqui, era bom lembrar que já existem robôs cuja finalidade é, precisamente, esta). E a velha guerra entre o iogue e o comissário,4 4 Koestler, A. O Iogue e o comissário. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1947. entre a engrenagem e a flor, entre a estátua e a bailarina.5 5 Gaiarsa, J.A. O Espelho mágico. Petrópolis, Vozes, 1978. O homem aberto para todos os possíveis e o homem confinado ao necessário (especialização). Para mostrar que não é o homem que está em questão, basta lembrar que a profissionalização, sendo um corredor que se afunila à medida que aumenta a especialização, torna o indivíduo extremamente vulnerável diante das "mutações" tecnológicas. É por não ser especializado que o homem é um ser superior, pois a não-especialização não o condiciona a determinada ecologia ou a determinado sistema de produção. Vivemos, pois, um momento em que a profissionalização (o adestramento para determinada tarefa, comportamento ou atitude) precisa ser reexaminada, para se determinar "para onde vai a educação". Estamos entrando, aceleradamente, numa época em que o adestramento é um capitis diminutio, já porque o ser humano não mais se submete à sacralidade ideológica do trabalho, sacralidade pregada sempre para conformação das classes trabalhadoras, pois, para a classe dominante, em Roma como hoje, sagrado são os "doces ócios" (dulcia otia), já porque a complexidade dos processos de organização social e de produção não mais comportam meros automatismos (ou automatismos foram transferidos para as máquinas). Os homens já não querem, apenas, sobreviver (trabalho) mas viver (festa), como outro animal qualquer (estamos assumindo nossa condição biológica de animais). Por acaso, somos animais sem instintos, isto é, sem comportamentos estereotipados e automatizados, o que equivale a dizer, sem especializações ou profissões. A função do ser humano é descobrir e inventar, por onde se percebe o reacionarismo dos hippies, da contracultura, dos admiradores das civilizações primitivas ou selvagens, dos que conduzem a ciência a mais uma ideologia ou mitologia, precisamente, a um método que tem por objetivo sistematiza a criatividade. Estamos saindo, pois, lentamente, de longa noite profissionalizante para uma aurora de progressiva educação geral. Toda atividade educativa que não estimule a criatividade á anacrônica, "desominizante" e reacionária. E como se processa esta transformação?

Em primeiro lugar, como já vimos (com relação à geometria, à aritmética e à astronomia), as artes práticas, em certo momento do seu desdobramento, transformam-se em teorias, deixando de ser profissionalização para ser educação geral (desinteressada): a tecnologia, em geral, tende a transformar-se em ciência, e as ciências tendem a formar (teoria dos sistemas, teoria matemática das catástrofes, teoria dos jogos, cibernética, etc.) uma teoria explicativa global, quebrando a barreira que as separavam em comportamentos estanques (aprender esta explicação global é o que há de mais antiprofissional).

Em segundo, começou-se a perceber que o que se chamava "profissão", de fato, era constituído, em grande parte, de comportamentos sensório-motores, verbais e mentais de caráter geral, havendo muito de comum entre centenas de profissões (o desenho técnico, por exemplo, é a infra-estrutura de dezenas de especialidades, pretensamente diferenciadas, na área industrial, e o uso operativo da linguagem cobre dezenas de especializações terciárias, etc).

Em terceiro, estamos em plena era da revolução tecnológica, em que robôs, computadores, máquinas de calcular, informática, biônica, etc, eliminam, da noite para o dia, centenas de profissões, sobretudo as profissões que se caracterizam por automatismo (dos manejadores destas máquinas eletrônicas exige-se educação geral - operatividade - e capacidade de raciocínio e não automatismo).

Em quarto, a explosão de sofisticados aparelhos de gravação (que se concentram nos "bancos de dados") dispensa o sistema educativo de treinar a memorização, o que, por si só, implica eliminar os processos clássicos de profissionalização (exercitação).

Em quinto, dada a aceleração da substituição dos conhecimentos e da mudança tecnológica, a especialização, em vez de ser um trunfo profissional, é um percalço (cada vez mais se pede, nos anúncios de empregos, pessoas "sem experiência" mas com alta operacionalidade, capazes de subtrair-se à pregnância das rotinas profissionais).

Em sexto, com a automação crescente do sistema de produção, criou-se o fenômeno do desemprego, que desmistifica a funcionalidade da profissionalização (para 10 mil engenheiros formados, por exemplo, dispomos, apenas, de 5 mil empregos).

Em sétimo, se adotarmos, como teremos de fazê-lo, o regime de pleno emprego, ocorrerá, forçosamente, uma diminuição da jornada de trabalho e um aumento das horas de lazer, para as quais os indivíduos massacrados, até hoje, por exaustiva jornada de trabalho, terão que ser preparados (e já vimos que lazer implica jogo e jogo é uma forma de educação geral).

Em oitavo, o funcionamento dos mecanismos sociais e as conquistas científicas (o questionamento das explicações místicas, religiosas e intuitivas tradicionais) passam a exigir do homem comum muito mais elevado nível de reflexão para as próprias tarefas corriqueiras (ver a generalização da máquina de calcular).

Em nono, os meios de comunicação de massa abrem infinitas janelas para o mundo, elevando e diversificando o nível de aspirações, fator incompatível com o confinamento afunilante das especializações (o acesso atual do homem comum às artes, ao turismo, aos esportes, aos transportes, a uma infinidade de bens de consumo destrói o gueto profissional em que vinha até hoje confinado).

Em décimo, o desejo de participação como cidadão no processo político elimina as diferenças estabelecidas pelas hierarquias profissionais, nivelando os soldados aos generais (e aqui é bom lembrar que falta estudar-se a profissionalização como processo de hierarquização e de formação de grupos ou classes de dominação).

Fiquemos neste decálogo, apesar de podermos ir muito mais longe, para conservarmos o modelo bíblico.

  • 3 Cf. Progogine, I. Physique, temps et revenir. Paris, Massonn, 1980; e La Nouvelle alliance - métamorphose de la science. Paris, Gallimard, 1979.
  • 4 Koestler, A. O Iogue e o comissário. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1947.
  • 5 Gaiarsa, J.A. O Espelho mágico. Petrópolis, Vozes, 1978.
  • *
    Palestra proferida no Seminário Educação e Trabalho, Hoje, promovido pelo Senac/SP, em outubro de 1981.
  • 1
    Cf. Lima, Lauro de Oliveira.
    Juventude como motor da Historia. Rio de Janeiro, Paideia, 1980.
  • 2
    Id.ibid.
  • 3
    Cf. Progogine, I.
    Physique, temps et revenir. Paris, Massonn, 1980; e
    La Nouvelle alliance - métamorphose de la science. Paris, Gallimard, 1979.
  • 4
    Koestler, A.
    O Iogue e o comissário. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1947.
  • 5
    Gaiarsa, J.A.
    O Espelho mágico. Petrópolis, Vozes, 1978.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1984
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