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Organização, automação e alienação

NOTAS E COMENTÁRIOS

Organização, automação e alienação

Fernando Cláudio Prestes Motta

Professor titular no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos (ADM) da EAESP/FGV

O encantamento observado em vários setores empresariais e acadêmicos com as "maravilhas" da empresa japonesa torna mais atual do que nunca a questão do mascaramento ideológico de que se reveste a questão da robotização na empresa e na sociedade moderna em geral.

A teoria das organizações, em particular, representa um papel decisivo nesse mascaramento, enquanto campo de conhecimento produzido e reproduzido nas escolas de prestígio onde se forma o contingente de administradores para a empresa e para o Estado.

Profundamente marcadas pelas grandes transformações tecnológicas que começam a ocorrer nos últimos anos da década de 40, pela generalização do conflito social na década de 60 e pela promessa frustrada de entrada na era do laser e da abundância, essas teorizações anunciam implícita ou explicitamente o fim da alienação nas fábricas, quando não do homem em geral.

O "milagre" japonês traz novamente à mente a idéia da sociedade eficiente e rica, do trabalho seguro porque vitalício, da monotonia desfeita pelo rodízio de tarefas. Tudo isto sob a garantia de um dos índices de desemprego mais baixos do capitalismo avançado.

Entretanto, o reverso do milagre parece desconhecido no meio empresarial e acadêmico ocidental. O fato de que os grandes grupos econômicos japoneses mantêm uma política de falência planejada de pequenas e médias empresas a cada ano, colocando, literalmente, na rua os empregados vitalícios, raramente é lembrado.

Também não está no repertório do ensino acrítico da administração e da economia o fato de que alguém que trabalhe uma hora por semana no Japão é considerado empregado, não entrando portanto no índice entusiasmante.1 1 Ver Kamata, Satoshi, Japon: l'envers du miracle. Paris, Maspero, 1982.

Entretanto, o que chama particularmente a atenção na teoria das organizações convencionais é o deslumbramento com a teoria Z, os círculos de controle de qualidade, os grupos semi-autônomos, o enriquecimento dos cargos, e assim por diante.

Todavia, o autoritarismo que está por trás desses sistemas, que freqüentemente assumem ares democráticos, passa muitas vezes pelo fim do operário de execução, o que não ocorre, e pelo surgimento do operário qualificado de controle e manutenção que absolutamente não é mais livre do que o primeiro, nem menos alienado.

Entretanto, a questão da alienação é realmente essencial para o estudo das organizações. Enquanto estrutura de dominação que implica algum tipo de imposição de poder e na orientação dos dominados com relação a esse poder, a alienação é uma das variáveis prováveis que condicionam sua eficiência e eficácia.

O tema foi introduzido na teoria organizacional, principalmente através da divulgação de uma pesquisa realizada por Robert Blauner, que teve grande repercussão no meio acadêmico das grandes escolas de administração.

Blauner realizou uma pesquisa de campo em quatro indústrias, classificadas segundo a tecnologia adotada. Estudou a indústria de estamparia como artesanal; a indústria têxtil, como típica da mecanização; a indústria automobilística, como típica da linha de montagem, que entendeu ser um caso especial de mecanização, e a indústria química, como típica de processo contínuo ou automação.

Para o pesquisador, que assume uma fundamentação marxista, a alienação se apresenta como um conceito multidimensional, que envolve falta de poder, falta de significação, isolamento e identidade.2 2 Ver Guerreiro Ramos, Alberto, A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1981, cap. 4.

Sua hipótese é a de que a tecnologia adotada apresenta importantes efeitos sobre a alienação, principalmente via controle ou falta de controle sobre o ambiente imediato, que afetaria o sentido de falta de poder e, via monotonia, afetaria o sentimento de identidade.

A idéia é a de que há variáveis intervenientes importantes que devem ser consideradas nessa relação. Blauner assume que a divisão do trabalho, a organização social, a estrutura econômica, as personalidades individuais e a natureza das diretrizes administrativas podem influenciar sobremodo a relação.

De qualquer maneira, o pesquisador reconhece que o artesanato, mesmo em sua versão moderna, é o tipo de tecnologia menos alienante. Encontra, através de procedimentos quantitativos de análise, apenas 4% de trabalhadores alienados na indústria de estamparia.

A alienação cresceria na mecanização, com a total separação do operário do que resta de ofício em seu trabalho. Não é o homem, mas a máquina que produz. Este apenas a alimenta e é submetido a seu ritmo. Encontra 18% de trabalhadores alienados na indústria têxtil, que, aliás, também pode ser automatizada.

O crescimento da alienação atingiria o seu máximo na linha de montagem, onde o trabalhador é apenas um elo no processo produtivo. Encontra 34% de trabalhadores alienados na indústria automobilística, o que, convenhamos, é uma percentagem muito baixa.

Porém, com a automação, a alienação decresceria consideravelmente, na medida em que reconciliaria o trabalhador com seu trabalho. É assim que encontra apenas 11% de trabalhadores alienados na indústria química.

Blauner considera que essa diminuição sensível se deve à maior responsabilidade, à maior liberdade, à maior dignificação do trabalho, à maior coesão, à maior integração e ao moral mais elevado, que seriam características compartilhadas pela automação e pelo artesanato.

Sabe-se atualmente que a automação, ou a robotização, que é o nome da moda, tem influências profundas sobre a estrutura ocupacional da sociedade e que, geralmente, os setores menos robotizados não são capazes de absorver toda a mão-de-obra liberada pela automação nas fábricas, nos escritórios e no serviço público.

Sabe-se também que o trabalho de controle, que caracteriza a automação, é altamente tenso, na medida em que, embora não implique esforço propriamente físico, implica um nível de atenção e de percepção incrivelmente maior do que aquele observado na mecanização.

Sabe-se ainda que, embora o trabalho em equipe, e administração colegiada sejam realmente característicos da automação, o trabalho continua parcelado. A diferença está no fato de que antes uma "migalha" de tarefa era designada a um trabalhador, enquanto que agora um conjunto de "migalhas" é repartido entre os membros de um grupo de trabalhadores, de acordo com as necessidades do processo produtivo.

Nessas condições, é difícil comparar a responsabilidade, a liberdade, a dignidade, a coesão, a integração e o moral do artesanato com as características da automação.

É fácil notar que Robert Blauner3 3 Ver Blauner, Robert. Alienation and freedom: the worker and his industry. Chicago, University of Chicago Press, 1973. não percebe que a automação continua alienante, fundamentalmente, porque separa não apenas o homem do produto e do processo de produção, mas ainda o separa do mundo da produção.

Há em Blauner ainda muita confusão entre alienação e descontentamento. Embora se baseie na filosofia marxista, parece não compreendê-la. Em Marx, não há relação direta entre alienação e insatisfação. A alienação é possível mesmo em grupos de trabalhadores satisfeitos. Além disso, Blauner considera apenas um aspecto, que não é o principal, da teoria marxista da alienação.4 4 Ver Schacht, Richard. Alienation. Gaiden City, Doubleday, 1970.

Aparentemente, há em Marx duas dimensões do conceito de alienação. Há, em primeiro lugar, a noção de perda de si mesmo, isto é, do homem separado de sua essência. Há, em segundo, a noção da perda de propriedade e do controle dos meios de produção.5 5 Ver Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos 1844. México, Grijalbo, 1968.

Muitos marxólogos vêem a utilização do mesmo conceito, voluntariamente substituído por outras expressões em O Capital. Assim, em sua obra máxima, Marx teria usado os termos estranheza, potência estranha, vontade estranha ou ainda força estranha para significar a incapacidade de compreensão do que ocorre no homem em face de elementos que não controla.6 6 Ver Marx, Karl, O Capital (crítica da economia política). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.

O poder na fábrica é o elemento central, entre esses fatores não-controláveis, que leva à estranheza, ou, mais precisamente, ao que Marx chamou separação da objetivação da vida genérica do homem e que podemos chamar mais simplesmente de coisificação.

A análise marxista da alienação parte do pressuposto de que o homem se realiza à medida que elabora o mundo objetivo. Mais precisamente, é isto que diferencia o homem do animal. Enquanto o animal produz apenas ele mesmo, e de forma limitada, pela reprodução biológica, o homem produz ele mesmo e a natureza.

O objetivo do trabalho humano é a transformação da natureza. É através desse trabalho que ele se vê inserido num mundo criado por ele próprio. Pela elaboração do mundo objetivo, o criador se vê na criatura, o sujeito se vê no objeto.

Decorre deste pressuposto que o homem só pode se realizar numa atividade produtiva que controle, através da qual sujeito e objeto se confundam.

Quando o homem é separado de sua vida genérica, isto é, quando o sujeito perde a propriedade e o controle de seu trabalho, esta perda significa também a perda de si próprio.

Isto significa que as duas noções contidas no conceito de alienação são inseparáveis. Vale dizer, a perda do instrumento de trabalho é a perda da essência. É essa relação absolutamente necessária que a análise de Blauner escamoteia, com vistas a salientar aspectos duvidosamente libertadores da automação.

Aparentemente, Marx não se preocupou em estabelecer quando e por que se dá a alienação. Todavia, concentra sua atenção no fato econômico capitalista que reproduz a alienação, lembrando que a valorização do mundo das coisas, o "maravilhoso" e infinito mundo do consumo, corresponde à desvalorização da força de trabalho, ou seja, do trabalho humano. Com isto, parece querer indicar que de senhor do trabalho o homem passa a ser seu escravo.

Numa sociedade de classes, o trabalho não produz apenas mercadorias, produz também o trabalhador como mercadoria dotada de um preço no mercado de trabalho.

Sob o capitalismo, qualquer que seja sua modalidade, o homem passa a produzir apenas para sobreviver, voltando, nesse aspecto, a confundir-se com os demais animais.

Essa é a razão pela qual Marx afirma que o produto do trabalho surge para o trabalhador como ente estranho, significando que o produto do trabalho surge como potência independente de quem a produz.

A conseqüência mais imediata da separação é que quanto mais o operário trabalha, mais potência adquire o mundo estranho que se cria frente a ele. Numa sociedade onde predomina uma única hierarquia burocrática, ou onde predominam grandes organizações burocráticas, a grande massa da população é assalariada e não detém nem a propriedade nem o controle dos meios de produção.

Isto é verdade tanto nos países que atualmente se dizem capitalistas, quanto naqueles que atualmente se dizem socialistas.

A automação favorece o crescimento das organizações à medida que facilita o controle na cúpula burocrática. O crescimento do poder e do controle dos administradores de nível alto corresponde ao empobrecimento, isto é, à perda cada vez maior de controle dos operários, funcionários e administradores de nível médio, que tendem a diminuir em número e em importância. Diminuem em número porque suas decisões, sendo facilmente programáveis, podem passar para o computador. Diminuem em importância porque de tomadores de decisão transformam-se em meros supervisores.

Marx estava atento ao fato de que, sob o capitalismo, o trabalho torna-se estranho ao homem, mas que entretanto pertence a outro homem. O que Marx não previu foi o surgimento de sociedades em que o trabalho teoricamente pertence à sociedade, mas de fato pertence coletivamente a uma burocracia. São as sociedades de coletivismo burocrático ou capitalismo de Estado.

É o fato de o trabalho pertencer a um outro homem que faz com que o trabalhador produza para sua própria privação. Engendra-se dessa forma o domínio de quem não produz sobre a produção, o produto e o mundo da produção.

Para Marx, a figura do capitalista aparece como o outro pólo da relação que se institui em torno do trabalho alienado. Da mesma forma, isto permite esboçar a estrutura de poder na fábrica. Seja esse outro pólo um capitalista ou uma alta cúpula burocrática; a organização seja privada ou pública é portanto inseparável da alienação, qualquer que seja a forma que o capitalismo assuma.

É essa constatação que desaprova as teorias segundo as quais a alienação é algo historicamente vinculado à produção em massa ou, mais precisamente, à mecanização.

Algumas dessas teorias, muito veiculadas na década de 60, sugeriam também que a alienação poderia ser superada pela liberação do homem da necessidade de trabalhar. Isto, que não ocorreu, pressupunha a realização do homem fora do trabalho e foi seguido um enorme desenvolvimento de uma indústria do lazer.

Essa idéia é falsa porque o homem não se desaliena fora do trabalho. Por sua vez, a superação da alienação pressupõe o fim do modo de produzir capitalista e burocrático, ou seja, a superação do antagonismo entre capital e trabalho e do binômio dirigente-dirigido que lhe é inerente.

Decorre disto que o fim da alienação não virá do fim da automação, mas de seu controle pela sociedade. Isto pode parecer longínquo, mas permanece como possibilidade lógica e teórica. A automação poderia ser um instrumento precioso para uma sociedade autogestionária, no encontro de soluções técnicas para decisões políticas consensuais. Isto, entretanto, só poderia ocorrer numa sociedade reconciliada consigo própria.

Um aspecto que parece também fugir à maioria das considerações sobre a alienação é que ela não é um fenômeno que diz respeito apenas ao trabalhador.

A alienação engendrada na produção é uma alienação social, que diz respeito a toda a sociedade. A contrapartida da alienação no trabalho é a alienação no consumo.

O homem alienado vê os demais como estranhos, porque a prática teoricamente livre de uns é perversa, na medida em que nega a prática livre dos demais.

Além disso, as relações sociais tornam-se mercantis e instrumentais.

Não há apenas o fato de as relações serem mediadas por mercadorias, mas o fato de os próprios homens se relacionarem como mercadorias.

O mundo social torna-se um imenso mercado onde se troca saber por poder, poder por dinheiro, dinheiro por status, beleza por afeto, e assim por diante.

Instaura-se um universo extremamente competitivo no mercado das relações sociais,7 7 Ver Deleuze, Gilles, & Guarrari, Felix, col. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980. que é particularmente visível no interior das grandes empresas, da Universidade, do Estado.

A valorização do consenso, uma vez que a automação é um processo altamente integrado, estimula técnicas de manipulação e adesão. O desvio torna-se inconcebível e a carreira é supervalorizada.

Os administradores lutam pela carreira até o esgotamento, aprendendo a viver com a angústia crescente. Essa luta leva ao desenvolvimento de um tipo de personalidade que separa a vida em esferas estanques: trabalho, família, lazer e relações sociais. A vida assume uma economia interna que é gerida em benefício da carreira, e portanto da organização.

No final da carreira há o vazio que todos temem e que vivem por antecipação. Em todos os momentos há o perigo da marginalização. Uma transferência pode significar um avanço, mas também um ponto final.

Os traços esquizóides desse modo de vida são evidentes e não são privilégio do mundo dos executivos, na medida em que toda a sociedade se burocratiza.

A opressão no mundo moderno tomou novas formas e generalizou-se. Da mesma maneira, a luta contra a opressão precisa ser multiforme, descobrindo modelos de organização diversos e mais eficazes que os da opressão, modelos opostos ao que o Japão, onde domina o ideal de homogeneidade e docilidade sociais, nos oferece.

  • 1 Ver Kamata, Satoshi, Japon: l'envers du miracle. Paris, Maspero, 1982.
  • 2 Ver Guerreiro Ramos, Alberto, A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1981, cap. 4.
  • 3 Ver Blauner, Robert. Alienation and freedom: the worker and his industry. Chicago, University of Chicago Press, 1973.
  • 4 Ver Schacht, Richard. Alienation. Gaiden City, Doubleday, 1970.
  • 5 Ver Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos 1844. México, Grijalbo, 1968.
  • 6 Ver Marx, Karl, O Capital (crítica da economia política). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
  • 7 Ver Deleuze, Gilles, & Guarrari, Felix, col. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980.
  • 1
    Ver Kamata, Satoshi,
    Japon: l'envers du miracle. Paris, Maspero, 1982.
  • 2
    Ver Guerreiro Ramos, Alberto,
    A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1981, cap. 4.
  • 3
    Ver Blauner, Robert.
    Alienation and freedom: the worker and his industry. Chicago, University of Chicago Press, 1973.
  • 4
    Ver Schacht, Richard.
    Alienation. Gaiden City, Doubleday, 1970.
  • 5
    Ver Marx, Karl.
    Manuscritos econômico-filosóficos 1844. México, Grijalbo, 1968.
  • 6
    Ver Marx, Karl,
    O Capital (crítica da economia política). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
  • 7
    Ver Deleuze, Gilles, & Guarrari, Felix, col.
    Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1984
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