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Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Renato Guimarães Ferreira

Velho, Yvonne M. A. Guerra de orixá; um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. 170 p.

Este trabalho retoma uma área de estudo amplamente abordada em inúmeros trabalhos anteriores no campo da antropologia social: as religiões afro-brasileiras. Mas o faz de uma nova perspectiva, focalizando a realidade de um terreiro de umbanda da cidade do Rio de Janeiro, durante todo o seu ciclo de vida: da formação à extinção - realidade esta constituída não pela estrutura ontológica dos objetos de crença, mas sim pelas experiências subjetivas dos integrantes daquela organização social.

O estudo ganha força na medida em que abandona a alternativa simplista de analisar o terreiro como a mera atualização de uni discurso religioso autônomo ou, numa perspectiva reducionista, como o reflexo direto da estrutura social mais ampla, na qual se encontra inserido. O trabalho religioso, enquanto elaboração de práticas e discursos que respondem a uma série de necessidades específicas, próprias de um determinado grupo social, é o cerne da análise que se faz de uma perspectiva intersubjetiva, recuperando o elemento humano específico no seio da organização.

Este trabalho religioso se localiza em um campo de forças polarizado por duas maneiras distintas de organizar a realidade interna de um terreiro. O conflito que se instaura entre os atores que atualizam de maneira mais sistemática e racial aqueles dois códigos expressa a luta pela gestão legítima dos bens de salvação, sendo que o que se coloca em questão são critérios distintos na definição do capital (religioso, cultural e econômico) necessário para a legitimação de posições de poder dentro da organização. Este conflito se desenvolve em um tempo e um espaço místicos: tempo que não se alinha com o tempo dós eventos "históricos" e espaço que não pode ser coordenado com espaços definidos pela geografia.

O terreiro torna-se, assim, o ponto de encontro de dois mundos: o sagrado e o profano. Objetos, eventos e fatos da vida cotidiana são associados a eventos que transcendem a vida diária, elaborando-se um sistema simbólico que é fruto não apenas de um trabalho religioso acumulado, como também de diversas reinterpretações feitas pelos integrantes do grupo, em consonância com suas posições sociais. Estas reinterpretações são fomentadas pelo fato de que os rituais de umbanda não se encontram inseridos em uma "relação de Igreja", com uma sistematização explícita daqueles em uma doutrina rígida. Pelo contrário, os terreiros, de uma maneira geral, são relativamente autônomos, havendo apenas uma ligação formal com as congregações e federações umbandistas.

O estudo como um todo fornece subsídios para a análise da função ideológica e, portanto, prática e política, do sistema simbólico que define o terreiro, ao mesmo tempo que é sua expressão, na sociedade abrangente. Atendendo a necessidades de compensação das classes mais desfavorecidas e a necessidades de legitimação das classes mais favorecidas, este sistema naturaliza, colocando dentro de quadros sagrados, uma determinada ordenação social relativa e arbitrária, tornando-a absoluta e legítima. Mesmo quando, em um dos códigos, os critérios de hierarquização da sociedade mais ampla são invertidos, a naturalização da ordenação social tal qual ela é ocorre na medida em que, internamente, uma ordenação arbitrária, também definida em termos hierárquicos e constituída por posições de poder diferenciadas, é legitimada. Sendo assim, ambos os códigos, apesar de atenderem às demandas de compensação e legitimação de maneiras distintas, assumem uma função equivalente de sacralizar e, portanto, legitimar ordenações sociais históricas profanas.

O trabalho de Yvonne Velho, apresentado originalmente como dissertação de mestrado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, transcende a análise de um terreiro enquanto unidade organizacional em dois níveis: recupera não apenas o indivíduo específico dentro e,frente àquela organização, como também elementos da sociedade mais ampla na qual ele se encontra. Fornece, assim, uma visão compreensiva da organização a partir da perspectiva de seus próprios integrantes, unindo o dado objetivo ao que foi subjetivamente pensado pelo elementos envolvidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1983
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