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Dissecção da artéria carótida interna após cirurgia laparoscópica

Resumo

A cefaleia é um sintoma comum no período pós-operatório e pode ser atribuída à desidratação, privação do sono, punção dural intencional ou acidental durante a administração de anestesia neuraxial, ao anestésico inalatório ou a procedimentos cirúrgicos específicos, entre outras etiologias. Entretanto, condições mais graves, incomuns e potencialmente fatais, como a dissecção da artéria carótida, podem estar associadas a sequelas neurológicas graves em pacientes jovens e, sob outros aspectos, saudáveis. Portanto, os médicos envolvidos com pacientes pós-operados devem estar familiarizados com as estratégias de apresentação e manejo dessa complicação.

PALAVRAS-CHAVE
Dissecção carotídea; Anestesia; Laparoscopia; Complicação

Abstract

Headache is a common symptom in the postoperative period and may be attributable to, dehydration, sleep deprivation, intentional or inadvertent dural puncture during a neuraxial anesthesia technique, from an inhaled anesthetic agent, or from specific surgical procedures, among other etiologies. However, more serious, uncommon and life-threatening conditions as carotid artery dissection can be associated with severe neurologic sequelae in otherwise young, healthy patients. For these reasons, clinicians involved with postoperative patients should be familiar with the presentation and management strategies for this complication.

KEYWORDS
Carotid dissection; Anesthesia; Laparoscopy; Complication

Introdução

Cefaleia no período pós-operatório é comum, pode retardar a alta e contribuir para o sofrimento e a insatisfação dos pacientes com seus cuidados. A dor pode ser o resultado de desidratação, privação do sono, punção dural intencional ou inadvertida durante uma técnica de anestesia neuraxial, agente anestésico inalatório ou procedimentos cirúrgicos específicos. Porém, características atípicas (distribuição atípica, ausência de componente postural, ausência de resposta a analgésicos), acompanhamento de sintomas neurológicos ou presença de vômito, convulsões, alteração do nível de consciência e déficits motores e sensoriais focais devem levantar suspeita de outras causas, cujas consequências podem ser devastadoras se o diagnóstico e o tratamento precoces não forem feitos. Relatamos o caso de uma paciente sob outros aspectos saudável que apresentou cefaleia persistente e síndrome de Horner parcial após cirurgia laparoscópica e que acabamos por descobrir que se tratava de uma dissecção de artéria carótida interna (DACI). A paciente assinou o termo de consentimento informado para publicação deste artigo.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 39 anos, 58 kg, sem história médica relevante. Foi programada para anexectomia laparoscópica à direita devido a cistadenoma mucinoso. No pré-operatório, o exame físico e os testes laboratoriais de rotina não foram notórios.

Após a aplicação de monitoramento padrão e pré-oxigenação com máscara facial, a anestesia geral foi induzida com fentanil (2-3 µg.kg-1) e propofol (2 mg.kg-1) e o relaxamento muscular foi obtido com rocurônio (0,6 mg.kg-1). A intubação endotraqueal foi feita com Totaltrack™ tamanho 3 e tubo endotraqueal com balão e diâmetro interno de 7 mm. A intubação traqueal não produziu alterações significativas nos sinais vitais. A ventilação controlada por pressão foi ajustada para manter a normocapnia com uma mistura de oxigênio-ar (FiO2 50%). A manutenção da anestesia geral foi feita com sevoflurano e remifentanil. A indução e a manutenção da anestesia não apresentaram intercorrências durante toda a cirurgia. O procedimento foi feito sem incidentes e a traqueia da paciente foi extubada no fim da operação, com flutuações mínimas na pressão arterial e no pulso. A paciente foi transferida para a sala de recuperação pós-anestesia (SRPA).

Na SRPA, a paciente desenvolveu cefaleia frontotemporal direita, persistente e opressiva, e dor de garganta à deglutição. A cefaleia era de leve intensidade e não apresentava qualidades “pulsantes” ou latejantes. Acetaminofeno e anti-inflamatórios não esteroides não proporcionaram alívio substancial. O exame neurológico mostrou ptose parcial ipsilateral e miose reativa sem perda visual. Não havia evidência de outros déficits neurológicos. A tomografia computadorizada (TC) do cérebro estava normal. Contudo, uma angiografia de contraste posterior revelou estreitamento segmentar a partir do segmento pós-bulbar da artéria carótida interna direita, estendia-se para o segmento petroso do vaso (fig. 1). Esses achados eram consistentes com DACI espontânea. A pesquisa diagnóstica restante não apresentou alteração notável. Terapia anticoagulatória e antiplaquetária foi iniciada. Nossa paciente teve uma evolução favorável e recebeu alta hospitalar sem sequelas neurológicas. A paciente permaneceu assintomática nos seis meses seguintes e uma ressonância magnética de acompanhamento mostrou restituição ad integrum da artéria.

Figura 1
Angiotomografia mostra estenose no segmento cervical da artéria carótida interna direita, compatível com dissecção da artéria carótida interna.

Discussão

A dissecção da artéria carótida é uma condição rara, ocorre principalmente em indivíduos jovens previamente saudáveis. Sua incidência provavelmente ainda é subestimada porque não há registro de pacientes assintomáticos na maioria dos estudos.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10. A incidência anual de acidente vascular cerebral devido à DACI é de 1,21:100.000 por ano.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10.

A fisiopatologia de DACI envolve fatores genéticos, anatômicos e ambientais (tabela 1). As camadas vasculares separam-se, criam um falso lúmen, o que pode levar à estenose, oclusão ou formação de um hematoma intramural e pseudoaneurisma.22 Patel RR, Adam R, Maldjian C, et al. Cervical carotid artery dissection: current review of diagnosis and treatment. Cardiol Rev. 2012;20:145-52. A formação de trombo pode levar a embolia com risco de vida por fragmentação.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10. Sua etiologia é espontânea ou traumática, embora a simples manipulação do pescoço possa provocar uma dissecção.33 Rubinstein SM, Peerdeman SM, van Tulder MW, et al. A systematic review of the risk factors for cervical artery dissection. Stroke. 2005;36:1575-80. Consequentemente, há relatos de DACI relacionada a procedimentos médicos como broncoscopia, esofagoscopia rígida, intubação endotraqueal, cateterização de veia jugular, hiperextensão da cabeça durante ventilação via máscara e intubação traqueal ou tonsilectomia.44 Ricchetti A, Becker M, Dulguerov P. Internal carotid artery dissection following rigid esophagoscopy. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1999;125:805-7.

5 Parsons AJ, Alfa J. Carotid dissection: a complication of internal jugular vein cannulation with the use of ultrasound. Anesth Analg. 2009;109:135-6.
-66 Gould DB, Cunningham K. Internal carotid artery dissection after remote surgery. Iatrogenic complications of anesthesia. Stroke. 1994;25:1276-8. Em nosso caso, vários fatores podem ter contribuído para a formação de DACI. A combinação de pneumoperitônio com a posição íngreme de Trendelenburg durante a laparoscopia afeta a homeostase cerebrovascular e hemodinâmica e aumenta o risco de dissecções arteriais.77 Hayden P, Cowman S. Anaesthesia for laparoscopic surgery. Continuing education in anaesthesia. Crit Care Pain. 2011;11:177-80.

Tabela 1
Fatores de risco associados à dissecção da artéria carótida

Pneumoperitônio pode causar hipertensão intraoperatória e instabilidade vascular. Acredita-se que ocorra através da ativação de uma resposta neuro-humoral ou como resultado da dor decorrente do alongamento do peritônio. O aumento da pressão intratorácica durante a laparoscopia induz altas tensões de cisalhamento na parede arterial dos vasos braquiocefálicos devido às alterações de pressão,77 Hayden P, Cowman S. Anaesthesia for laparoscopic surgery. Continuing education in anaesthesia. Crit Care Pain. 2011;11:177-80. pode causar lesão íntima. A posição de Trendelenburg também causa aumento da pressão intracraniana e aumento do débito cardíaco que pode intensificar as forças hemodinâmicas aplicadas às paredes dos vasos. A extensão e a rotação cervical ou os movimentos súbitos do pescoço da lateroversão podem comprimir a artéria carótida cervical contra qualquer dos processos transversais, das vértebras cervicais ou do processo estiloide do osso mastoideo e levar à dissecção. De forma semelhante, a hiperextensão cervical com rotação axial da cabeça durante a intubação endotraqueal poderia ter desempenhado um papel,66 Gould DB, Cunningham K. Internal carotid artery dissection after remote surgery. Iatrogenic complications of anesthesia. Stroke. 1994;25:1276-8. mas o uso do dispositivo Totaltrack™ permitiu uma intubação orotraqueal com a cabeça em posição neutra.88 Gómez-Ríos MÁ, Freire-Vila E, Vizcaíno-Martínez L, et al. The Totaltrack™: an initial evaluation. Br J Anaesth. 2015;115:798-9.

O diagnóstico de DACI pode ser retardado devido ao baixo índice de suspeita ou a sintomas que podem estar ausentes ou parecer sem importância.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10.

2 Patel RR, Adam R, Maldjian C, et al. Cervical carotid artery dissection: current review of diagnosis and treatment. Cardiol Rev. 2012;20:145-52.
-33 Rubinstein SM, Peerdeman SM, van Tulder MW, et al. A systematic review of the risk factors for cervical artery dissection. Stroke. 2005;36:1575-80. A tríade clássica dor unilateral na cabeça, rosto ou pescoço, síndrome de Horner parcial e isquemia cerebral é encontrada em menos de 30% dos casos.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10. Porém, 60-90% dos pacientes apresentam dor de cabeça e de pescoço ou dor de cabeça e de garganta, o que tipicamente precede os sintomas neurológicos por horas a dias. A síndrome de Horner resulta de bloqueio das vias simpáticas ocular e facial que ascendem dentro da bainha carotídea.99 Lyrer PA, Brandt T, Metso TM, et al. Clinical import of Horner syndrome in internal carotid and vertebral artery dissection. Neurology. 2014;82:1653-9. Anidrose pode estar ausente porque as fibras simpáticas que inervam as glândulas sudoríparas faciais seguem a artéria carótida externa.1010 Padaki AS, Fitch RW, Stack LB, et al. Horner's syndrome after scalene block and carotid dissection. J Emerg Med. 2016;50:e215-8. Paralisias do nervo craniano e zumbido pulsátil também foram relatados.

Como o diagnóstico de lesão carotídea é raramente suspeito, o primeiro teste diagnóstico feito é geralmente a TC do cérebro. No entanto, o padrão-ouro para o diagnóstico de DACI é a angiografia com contraste, que mostra sinal de colar, duplo lúmen ou abas da íntima.1111 Toelen C, Goverde P, Van Hee R. Dissection of the common carotid artery: a case report. Acta Chir Belg. 2009;109:224-7. A ressonância magnética (RM) e/ou a angiografia por ressonância magnética são métodos confiáveis de diagnóstico e acompanhamento.1010 Padaki AS, Fitch RW, Stack LB, et al. Horner's syndrome after scalene block and carotid dissection. J Emerg Med. 2016;50:e215-8.

O tratamento de dissecção da artéria carótida consiste em evitar ou limitar o déficit neurológico através de prevenção da formação de trombos ou do embolismo associado. Portanto, a anticoagulação, a terapia antiplaquetária ou a terapia anticoagulatória e antiplaquetária são o pilar do tratamento, embora a estratégia antitrombótica ideal seja controversa.11 Ortiz J, Ruland S. Cervicocerebral artery dissection. Curr Opin Cardiol. 2015;30:603-10. A terapia ou cirurgia endovascular é o tratamento de escolha em situações específicas,22 Patel RR, Adam R, Maldjian C, et al. Cervical carotid artery dissection: current review of diagnosis and treatment. Cardiol Rev. 2012;20:145-52. inclusive as seguintes: dissecções com estenose limitadora do fluxo; dependência do “hemisfério isolado” da artéria dissecada para perfusão; falha da terapia médica com pioria dos sintomas neurológicos dependentes da hemodinâmica ou de achados de imagem; múltiplas dissecções arteriais bilaterais que podem progredir para causar comprometimento hemodinâmico ou expansão de aneurisma.

O prognóstico em longo prazo parece ser favorável se o diagnóstico e o tratamento forem rápidos, com recuperação completa em pelo menos 50% dos casos. O risco de recorrência é maior no primeiro mês e permanece cerca de 1% ao ano após o primeiro ano; portanto, requer estudos de imagem para acompanhamento.22 Patel RR, Adam R, Maldjian C, et al. Cervical carotid artery dissection: current review of diagnosis and treatment. Cardiol Rev. 2012;20:145-52.

A dissecção de artéria carótida deve ser considerada no diagnóstico diferencial de cefaleia pós-operatória. Presença de cefaleia ipsilateral, dor facial ou de garganta, paresia óculo-simpática ou ataque isquêmico transitório devem elevar o índice de suspeita. O reconhecimento precoce é importante para que o tratamento possa ser iniciado antes da completa oclusão do vaso ou de sequelas embólicas para evitar déficits neurológicos graves e potencialmente fatais.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    1 Set 2016
  • Aceito
    11 Jan 2017
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