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Uso de bloqueador brônquico em toracotomia de emergência na presença de hemorragia das vias aéreas superiores e fratura cervical: uma decisão difícil

Resumo

Paciente do sexo feminino, 85 anos, 60 kg, com trauma múltiplo. Após uma laparotomia inicial, uma toracotomia de emergência foi feita com um bloqueador brônquico para isolamento pulmonar (sucção inicial ativa foi aplicada). Durante a cirurgia, o balonete brônquico foi desinflado, causou um derrame hemorrágico traqueal autolimitado. Reisolamento foi tentado, mas não foi tão eficaz como inicialmente. Provavelmente, o colapso do pulmão com o mesmo bloqueador brônquico foi prejudicado na segunda tentativa devido à obstrução do lúmen do bloqueador brônquico pela hemorragia endobrônquica intraoperatória. A sucção ativa do bloqueador brônquico pode contribuir para obter ou acelerar o colapso pulmonar, particularmente em pacientes que não toleram a técnica de desconexão do ventilador ou a compressão cirúrgica pulmonar. O uso da tecnologia de bloqueadores brônquicos foi uma opção valiosa para os tubos de duplo lúmen neste caso de toracotomia de emergência em paciente com trauma torácico e abdominal, laceração grave da língua e fratura da apófise odontoide associados a hemorragia maciça, apesar de vários riscos que poderiam comprometer seu uso. Os autores pretendem discutir as vantagens e desvantagens dos bloqueadores brônquicos em comparação com os tubos de duplo lúmen para isolamento pulmonar e quais foram os riscos de nossa abordagem neste complexo caso de múltiplo trauma.

PALAVRAS-CHAVE
Bloqueadores brônquicos; Tubos de duplo lúmen; Toracotomia; Fratura cervical

Abstract

Female, 85 y.o., weighting 60 kg, multiple trauma patient. After an initial laparotomy, an emergent thoracotomy was performed using a bronchial blocker for lung isolation (initial active suction was applied). During surgery, bronchial cuff was deflated, causing a self-limited tracheal blood flooding. A second lung isolation was attempted but it was not as effective as initially. Probably, a lung collapse with the same bronchial blocker was impaired in the second attempt because of the obstruction of bronchial blocker lumen by intraoperative endobronchial hemorrhage. Bronchial blocker active suction may contribute to obtain or accelerate lung collapse, particularly in patients that do not tolerate ventilator disconnection technique or lung surgical compression. The use of bronchial blockers technology was a valuable alternative to double lumen tubes in this case of emergent thoracotomy in the context of a patient having thoracic, abdominal trauma, severe laceration of tongue and apophysis odontoid fracture associated to massive hemorrhage, despite several pitfalls that could compromise its use. The authors intend to discuss the advantages and disadvantages of bronchial blockers comparing to double-lumen tubes for lung isolation, and the risks of our approach, in this complex multitrauma case.

KEYWORDS
Bronchial blockers; Double-lumen tubes; Thoracotomy; Cervical spine fracture

Introdução

A toracotomia de emergência em paciente com fratura da coluna cervical e hemorragia das vias aéreas superiores é um desafio anestésico. Os bloqueadores brônquicos (BB) deveriam ser uma opção aos tubos de duplo lúmen (TDL) em alguns desses pacientes.11 Nishiumi N, Nakagawa T, Masuda R, et al. Endobronchial bleeding associated with blunt chest trauma treated by bronchial occlusion with a univent. Ann Thorac Surg. 2008;85:245-50.,22 Campos JH. An update on bronchial blockers during lung separation techniques in adults. Anesth Analg. 2003;97:1266-74.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 85 anos, 60 kg, com hipertensão controlada como comorbidade, vítima de acidente rodoviário. Apresentou-se com grave laceração da língua (associada a hemorragia abundante), fratura da apófise odontoide, contusão torácica com hemotórax, hemoperitônio, lesão hepática, intestino grosso perfurado, dissecção aórtica infrarrenal sem comprometer a perfusão do membro inferior, choque hipovolêmico e coagulopatia.

Submetida à anestesia geral para abordagem do traumatismo abdominal e drenagem do hemotórax. Perda hemática difusa significativa foi observada durante a laparotomia. Na indução da anestesia foram administrados 10 mg de etomidato, 0,1 mg de fentanil e 70 mg de rocurônio (indução em sequência rápida). A intubação traqueal foi feita após a laringoscopia Comarch-Lehane modificada (grau 2 B) para evitar a extensão cervical, com uma lâmina Macintosh número 3, através de um estilete condutor. Fibroscopia e videolaringoscopia portátil foram tentadas para intubação, mas não foram eficazes devido ao sangramento das vias aéreas e à dessaturação repentina. A anestesia foi mantida com uma infusão de midazolam (10 mg.h-1) e fentanil (0,1 mg) a cada hora.

O protocolo de transfusão maciça foi ativado logo no início (oito unidades de concentrado de hemácias, seis unidades de plasma fresco congelado, um pool de plaquetas, 15 g de ácido aminocaproico e 2 g de concentrado de fibrinogênio foram administrados na sala de cirurgia, sem monitoração via teste laboratorial remoto, durante o tratamento do caso).

Durante a laparotomia, a complacência pulmonar piorou (FiO2 100%, ventilação com controle da pressão: IPAP 40 mmHg, PEEP 4 mmHg, frequência respiratória 18 ciclos.min-1; volume corrente mínimo 200 mL, PaCO2 72 mmHg, PaO2 55 mmHg, SpO2 88%), acompanhada de acidose respiratória (pH mínimo 7,0; valores normais de lactato sérico) e houve necessidade de drenagem de emergência do hemotórax. Houve melhoria significativa da complacência após a drenagem do hemotórax. Uma compressa foi introduzida na boca para controlar a hemorragia da língua e a paciente foi transferida para a UTI, sob ventilação mecânica e apoio de norepinefrina (16 µg.kg-1.h-1).

Durante os primeiros 30 minutos (min) na UTI, o tubo torácico drenou cerca de 2.000 mL. A paciente foi retornada à sala de cirurgia para a toracotomia direita. Manteve-se o colar cervical no lugar, após a troca do tubo endotraqueal (TET) 7,0-8,0 mm através de um estilete de tubo permutador, e a exclusão pulmonar foi feita com um BB (EZ-Blocker®, 7 F) sob fibrobroncoscopia, levou 10 min desde a inserção do BB para a incisão da toracotomia em decúbito lateral (o colapso do pulmão exigiu uma sucção ativa inicial negativa de 50 mmHg porque a paciente não tolerou a técnica de desconexão do ventilador).

A anestesia foi administrada com midazolam (10 mg.h-1) e fentanil (0,1 mg) a cada hora. Rocurônio (30 mg.h-1) foi administrado após um bolus de 50 mg.

A paciente foi ventilada no modo com controle da pressão, sob hipercarbia permissiva para atingir pH > 7,2 (FiO2 80%, ventilação com controle da pressão: IPAP 35 mmHg, PEEP 4 mmHg, frequência respiratória 18 ciclos.min-1, volume corrente mínimo 250 mL, SpO2 em torno de 92%, PaO2 entre 55 e 60 mmHg e PaCO2 entre 55 e 65 mmHg). Durante cerca de três horas foram feitas uma lobectomia inferior parcial e hemostasia do pericárdio, do pulmão direito e da parede torácica. Não houve aumento significativo do nível de lactato sérico.

Após 2h30 do início da cirurgia, o balonete brônquico foi desinsuflado para permitir a ventilação bilateral dos pulmões. Nesse momento, a ventilação ficou difícil com pioria súbita da complacência pulmonar e ausência de capnografia foi observada.

Uma aspiração traqueal do sangue (significativa, mas autolimitada) foi feita e permitiu a ventilação. O colapso do pulmão foi tentado, mas não foi tão eficaz como inicialmente, provavelmente devido à obstrução do lúmen do BB pelo sangue endobrônquico, após o início da cirurgia em uma paciente que não tolerou a técnica de desconexão do ventilador (o reposicionamento do balonete brônquico foi novamente confirmado por fibroscopia). Como a hemostasia cirúrgica estava quase concluída e não havia fístula broncopleural, uma decisão colegiada foi tomada para manter a ventilação bilateral até o fim da cirurgia.

Após retornar à posição supina, a complacência pulmonar e a acidose respiratória melhoraram (pH 7,34). No fim da cirurgia, a paciente foi ventilada no modo com controle da pressão em posição supina (FiO2 60%, IPAP: 25 mmHg, PEEP 4 mmHg, taxa respiratória 14 ciclos.min-1; volume corrente mínimo 350 mL, SpO2 em torno de 95%, PaO2 70 mmHg e PaCO2 44 mmHg). Não houve aumento significativo do nível de lactato sérico. A paciente foi novamente transferida para a UTI, sem significante coagulopatia ou diminuição do nível de hemoglobina, permaneceu sem acidose respiratória e apresentou complacência pulmonar adequada. Na UTI, a paciente desenvolveu choque refratário não hipovolêmico e acentuada acidose metabólica, foi a óbito dois dias após a intervenção inicial.

Discussão

Este é um caso complexo de isolamento pulmonar em paciente com trauma múltiplo, o que dificulta a decisão sobre a melhor opção para exclusão pulmonar.

Em 2009, J. B. Brodsky33 Brodsky JB. Lung separation and the difficult airway. Br J Anaesth. 2009;103(Suppl. 1):66-75. fez um resumo das vantagens e desvantagens do BB em comparação com os tubos de duplo lúmen (TDL) em situação de via aérea difícil.

As vantagens dos TDL são: colocação mais fácil e rápida, o que pode ser feito sem broncoscopia; colapso pulmonar mais rápido; menos propensos a serem deslocados; permitem que o pulmão seja ventilado, colapsado e reexpandido; cada pulmão pode ser aspirado e inspecionado com broncoscópio; a pressão positiva contínua das vias aéreas é facilmente aplicada ao pulmão operado; permite a ventilação pulmonar independente (separadamente) na UTI.

Por outro lado, as vantagens do BB são: pode ser usado quando um tubo traqueal já está no lugar e não é necessário mudar o tubo endotraqueal ou tubo Univent® se a ventilação pós-operatória for necessária, permite o bloqueio lobar seletivo e é mais fácil de usar em vias aéreas menores.

A decisão será ainda mais complicada em situação de via aérea difícil originada por hemorragia lingual não controlada, fratura da coluna cervical, contusão torácica associada e provável hemorragia endobrônquica.

Nesse caso, as vantagens do BB são: a colocação do TDL é uma manobra agressiva, especialmente em via aérea difícil, pode exigir extensão cervical agressiva22 Campos JH. An update on bronchial blockers during lung separation techniques in adults. Anesth Analg. 2003;97:1266-74.,33 Brodsky JB. Lung separation and the difficult airway. Br J Anaesth. 2009;103(Suppl. 1):66-75. e a introdução é mais difícil através de um estilete de tubo permutador na presença de colar cervical ou imobilização do pescoço do que um TET normal.33 Brodsky JB. Lung separation and the difficult airway. Br J Anaesth. 2009;103(Suppl. 1):66-75.

A paciente seria exposta a um risco maior com a aspiração do sangue das vias aéreas superiores ou do conteúdo gástrico durante a troca para um TDL do que para um tubo de único lúmen, especialmente em situação de via aérea complexa e difícil.

Em teoria, os videolaringoscópios modernos podem facilitar a colocação do TDL em trauma, transmitem menos força para a coluna cervical, mas a visibilização da glote será limitada se houver hemorragia e a sucção concomitante do sangue for necessária.

Os BBs estão associados a uma menor incidência de lesão das vias aéreas e menor gravidade da lesão do que os TDL.44 Clayton-Smith A, Bennett K, Alston RP, et al. A comparison of the efficacy and adverse effects of double-lumen endobronchial tubes and bronchial blockers in thoracic surgery: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29:955-66. Em cada reposicionamento pode ser necessário algum grau de mobilização cervical e a deflação do balonete traqueal pode facilitar uma nova entrada do sangue na traqueia a partir da via aérea superior.

A aspiração pode ser reduzida com o uso de BB, porque a via aérea já estaria precoce e definitivamente protegida após a intubação com tubo de lúmen único.

Em situação de coagulopatia e trauma torácico, o sangramento endobrônquico pode ser provocado por manipulação cirúrgica em pacientes que não apresentam hemorragia endobrônquica inicial. Diferentemente de um TDL, o BB pode evitar a inundação traqueal pelo sangue dos brônquios e, eventualmente, contribuir para hemostasia ou tamponamento hemorrágico endobrônquico.11 Nishiumi N, Nakagawa T, Masuda R, et al. Endobronchial bleeding associated with blunt chest trauma treated by bronchial occlusion with a univent. Ann Thorac Surg. 2008;85:245-50.

Nesse caso, as desvantagens do BB são: a colocação de um BB pode demorar mais do que a de um TDL, 33 Brodsky JB. Lung separation and the difficult airway. Br J Anaesth. 2009;103(Suppl. 1):66-75.,44 Clayton-Smith A, Bennett K, Alston RP, et al. A comparison of the efficacy and adverse effects of double-lumen endobronchial tubes and bronchial blockers in thoracic surgery: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29:955-66. principalmente em mãos menos experientes, o que é relevante em pacientes com choque hemorrágico. Além disso, o auxílio da fibra óptica pode ser prejudicado devido ao sangramento da via aérea.

O mau posicionamento intraoperatório de um BB pode ocorrer mais frequentemente do que o de um TDL33 Brodsky JB. Lung separation and the difficult airway. Br J Anaesth. 2009;103(Suppl. 1):66-75. e o uso de fibrobroncoscópio para o reposicionamento pode ser difícil se ocorrer sangramento endobrônquico, especialmente em decúbito lateral.22 Campos JH. An update on bronchial blockers during lung separation techniques in adults. Anesth Analg. 2003;97:1266-74.

BB não permite a remoção de secreção ou sangue do pulmão lesado antes da desinsuflação.

BB não permite a aplicação de pressão positiva contínua (PPC) nas vias aéreas ou a ventilação de alta frequência a jato no pulmão não ventilado para melhorar a oxigenação e/ou ventilação, mas, nesse caso, a eficácia dessas abordagens com o uso de TDL pode ser prejudicada pelo sangramento endobrônquico. Essas técnicas afetam o isolamento, o que pode complicar a exposição cirúrgica, e devem ser usadas com cautela porque podem afetar a vasoconstrição hipóxica pulmonar.

No presente caso, após a desinsuflação do balonete brônquico, observamos uma entrada significativa de sangue na traqueia que comprometeu a ventilação bilateral e exigiu a sucção do sangue para salvar a vida da paciente e, naquele momento, não podíamos ignorar que uma possível ocorrência de perda da via aérea poderia ter acontecido.

Uma sucção ativa inicial pode exercer um papel para obter ou acelerar o colapso pulmonar,55 El-Tahan MR. A comparison of the disconnection technique with continuous bronchial suction for lung deflation when using the Arndt endobronchial blocker during video-assisted thoracoscopy: a randomised trial. Eur J Anaesthesiol. 2015;32:411-417. principalmente em pacientes que não toleram a técnica de desconexão ou a compressão cirúrgica do pulmão antes do isolamento, mas a eficácia do colapso pulmonar com o mesmo bloqueador brônquico foi prejudicada na segunda tentativa, provavelmente devido à obstrução do lúmen do BB pelo sangue endobrônquico no intraoperatório.

Outra questão importante a respeito deste caso é que a vasoconstricção hipóxica pulmonar reduz a derivação de sangue para o pulmão afetado, melhora a relação ventilação-perfusão, o que pode reduzir a hemorragia. Evitar a anestesia volátil é essencial porque os anestésicos halogenados podem inibir a vasoconstrição hipóxica pulmonar, comprometer as possíveis vantagens de aplicar a pressão positiva contínua das vias aéreas ou a ventilação do pulmão afetado se TDL forem usados.

Conclusão

O uso da tecnologia de bloqueadores brônquicos associado à sucção ativa inicial foi uma opção valiosa neste caso de toracotomia de emergência, apesar das várias desvantagens e riscos.

References

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    Nishiumi N, Nakagawa T, Masuda R, et al. Endobronchial bleeding associated with blunt chest trauma treated by bronchial occlusion with a univent. Ann Thorac Surg. 2008;85:245-50.
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    Clayton-Smith A, Bennett K, Alston RP, et al. A comparison of the efficacy and adverse effects of double-lumen endobronchial tubes and bronchial blockers in thoracic surgery: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29:955-66.
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    El-Tahan MR. A comparison of the disconnection technique with continuous bronchial suction for lung deflation when using the Arndt endobronchial blocker during video-assisted thoracoscopy: a randomised trial. Eur J Anaesthesiol. 2015;32:411-417.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2016
  • Aceito
    27 Set 2017
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