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Avaliação da lesão do nervo ciático após injeção intraneural de bupivacaína, levobupivacaína e lidocaína em ratos

RESUMO

OBJETIVO:

Os anestésicos locais podem causar neurotoxicidade. Nosso objetivo foi comparar o potencial neurotóxico de diferentes anestésicos locais, os danos induzidos aos nervos e as alterações patológicas de um nervo periférico.

MÉTODOS:

Foram estudados 60 ratos Whistler com 200-350 g. Os ratos foram divididos em três grupos, uma agulha de calibre 26 foi inserida no nervo ciático esquerdo, com o uso de ampliação, e 0,2 mL de bupivacaína a 0,5%, levobupivacaína a 5% e lidocaína a 2% foram injetados por via intraneural. Um colaborador, cego para os conteúdos das injeções, monitorou a função neurológica no primeiro dia de pós-operatório e depois diariamente. O exame neurológico incluiu a avaliação da presença e da gravidade da nocicepção e dos reflexos de agarrar. No sétimo dia, uma amostra do nervo ciático foi colhida para avaliar as alterações histopatológicas.

RESULTADOS:

Não houve diferença estatística entre os grupos em relação ao reflexo de agarrar e à avaliação histopatológica. Dois casos no grupo bupivacaína, um no grupo levobupivacaína e dois no grupo lidocaína apresentaram um leve reflexo de agarrar; também no grupo lidocaína, um caso não apresentou reflexo de agarrar no sétimo dia. Degeneração axonal grave foi observada em todos os grupos: quatro casos no grupo bupivacaína (20%), três no grupo levobupivacaína 3 (15%) e seis no grupo lidocaína (30%).

CONCLUSÃO:

Em todos os grupos, a frequência de dano histopatológico e de gravidade foi maior do que a deficiência motora.

Palavras-chave:
Anestésicos locais; Lidocaína; Bupivacaína; Levobupivacaína; Neurotoxicidade

ABSTRACT

OBJECTIVE:

The local anesthetics may cause neurotoxicity. We aimed to compare the neurotoxic potential of different local anesthetics, local anesthetic induced nerve damage and pathological changes of a peripheral nerve.

METHODS:

Sixty Wistar rats weighing 200-350 g were studied. Rats were assigned into 3 groups and 26-gauge needle was inserted under magnification into the left sciatic nerve and 0.2 mL of 0.5% bupivacaine, 5% levobupivacaine, and 2% lidocaine were injected intraneurally. An individual who was blind to the specifics of the injection monitored the neurologic function on postoperative 1st day, and daily thereafter. Neurologic examination included assessment for the presence and severity of nociception and grasping reflexes. At the 7th day sciatic nerve specimen was taken for evaluation of histopathologic changes.

RESULTS:

There was no statistical difference detected among groups regarding grasping reflex and histopathologic evaluation. Two cases in bupivacaine group, 1 case in levobupivacaine group and 2 cases in lidocaine group had slight grasping, while 1 case in lidocaine group had no grasping reflex on the seventh day. Severe axonal degeneration was observed in all groups, respectively in bupivacaine group 4 (20%), levobupivacaine group 3 (15%), and lidocaine group 6 (30%).

CONCLUSION:

In all groups, histopathological damage frequency and severity were more than the motor deficiency.

Keywords:
Local anesthetics; Lidocaine; Bupivacaine; Levobupivacaine; Neurotoxicity

Introdução

Os efeitos da injeção de anestésicos locais por via intraneural e as lesões de nervos periféricos são complicações raras da anestesia regional. Muitas dessas complicações são mononeuropatias subclínicas temporárias.11. Linguory GA. Complications of regional anesthesia: nerve injury and peripheral neural blockade. J Neurosurg Anesthesiol. 2004;16:84-6. A lesão axonal reversível e a lesão que progrede para degeneração de mielina podem ser determinadas histopatologicamente após injeções intraneurais. Em estudos com animais, observou-se que as funções motoras foram mantidas apesar do dano.22. Bigeleisen PE. Nerve puncture and apparent intraneural injection during ultrasound-guided axillary block does not invariably result in neurologic injury. Anesthesiology. 2006;105:779-83.

O objetivo deste estudo foi investigar a disfunção motora e as alterações histopatológicas em ratos após a injeção intraneural de uma única dose de bupivacaína, levobupivacaína e lidocaína.

Métodos

Obtivemos a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Animais de nossa instituição para este estudo. Sessenta ratos Wistar, entre 200-350 g, foram mantidos em laboratório sob condições de temperatura entre 20-24 °C, umidade entre 65-70% e ciclos de luz/escuridão (12 h/12 h), sem restrição de alimentos e líquidos. Experimentalmente, após a retirada de alimentos por quatro horas, os ratos foram anestesiados com injeção intraperitoneal de 100 mg.kg-1 de cloridrato de cetamina (Ketalar(r), Eczacibasi Warner Lambert, Istambul, Turquia). Subsequentemente, assepsia da área do músculo glúteo foi feita com solução antisséptica iodopovidona e o nervo ciático foi exposto através de uma incisão transversal limitada. Injeções intraneurais foram feitas com o uso de uma bomba de infusão automática através de cânula n° 26 inserida em ângulos de 45-60°.

Os ratos foram subdivididos em três grupos: Grupo B (Bupivacaína) recebeu 0,2 mL de bupivacaína a 0,5%; Grupo C (Chirocaína(r), Levobupivacaína) recebeu 0,2 mL de levobupivacaína a 0,5% e Grupo L (Lidocaína) recebeu 0,2 mL de lidocaína a 2% durante infusões de um minuto. Os ratos foram acordados depois de se fecharem as incisões.

As funções neurológicas dos ratos foram avaliadas por três indivíduos, cegados para os anestésicos locais aplicados, todos os dias durante sete dias após as injeções intraneurais. Na avaliação neurológica, a nocicepção e o reflexo de preensão foram avaliados. A nocicepção foi desencadeada por dor na primeira e quinta falanges e classificada com escores 4: reflexo de retirada normal; 3: retirada um pouco mais lenta; 2: retirada lenta ou ausência de movimento; 1: retirada muito lenta; 0: sem retirada. O reflexo de preensão foi classificado como 2: reflexo de preensão normal; 1: reflexo de preensão lento; 0: sem reflexo de preensão.

Os ratos receberam cloridrato de cetamina, foram sacrificados por decapitação e o nervo ciático foi excisado. Como procedimento de rotina, as amostras foram colocadas em formol tamponado a 10%, embebidas em parafina, coradas com hematoxilina e eosina e examinadas sob microscopia de luz para a integridade da estrutura neurológica, danos mecânicos, degeneração da mielina e infiltração celular.

A degeneração da mielina foi estimada com o uso do Sistema de Classificação de Lesão do Nervo (Nerve Injury Scoring System - NISS), no qual 1 = normal/degeneração ou desmielinização leve; 2 = nível moderado de degeneração (lesão tecidual < 50%) e 3 = degeneração difusa e desmielinização (lesão tecidual > 50%).

A avaliação estatística dos resultados neurológicos foi feita com os testes de Kruskal-Wallis e U de Mann-Whitney. Os escores das lesões foram estimados para cada um dos anestésicos usados com o teste Anova de variância simples e o valor-p < 0,05 foi aceito como estatisticamente significativo.

Resultados

Não houve diferença estatisticamente significativa em relação aos pesos dos três grupos de ratos. Também não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos em relação aos escores do reflexo de agarrar.

Nas comparações intragrupos, no entanto, houve um aumento estatisticamente significativo do reflexo de preensão nos grupos B (p = 0,003) e C (p = 0,0081) no terceiro dia e no Grupo L (p = 0,004) no quarto dia após as injeções, em comparação com o primeiro dia (fig. 1). Os resultados da avaliação da nocicepção em resposta à dor na primeira e quinta falanges estavam intactos em todos os grupos a partir do primeiro dia em diante.

Figura 1
Reflexos de agarrar.

A classificação histopatológica do NISS como lesão leve, moderada e grave no Grupo B (35%, 45% e 20%, respectivamente), Grupo C (45%, 40% e 15%, respectivamente) e Grupo L (20%, 50% e 30%) não apresentou diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (fig. 2).

Figura 2
Classificação histopatológica do NISS.

Discussão

Durante a anestesia regional, a lesão de nervo periférico é uma complicação raramente observada cuja incidência varia entre 0,5% e 1% em estudos retrospectivamente revisados. Em sua maioria, as lesões são reversíveis e se desenvolvem como mononeuropatias leves ou subclínicas. O mecanismo do desenvolvimento de lesões após injeções intraneurais não está totalmente esclarecido.33. Jeng CL. Intraneural injections and regional anesthesia: the known and unknown. Minerva Anesthesiol. 2011;77:54-8. Os anestésicos locais convencionais também são neurotóxicos.4, 5-6 O dano provavelmente resulta de trauma mecânico, de efeitos químicos e tóxicos do anestésico local, de isquemia ou de uma combinação desses fatores.

Em nosso estudo, a resposta à percepção de dor desde o primeiro até o sétimo dia após as injeções foi completa e igual em todos os grupos experimentais; portanto, diferenças não foram observadas.

Quanto ao reflexo de preensão, apesar da falta de diferenças estatisticamente significativas intergrupos, os resultados do sétimo dia após a injeção mostraram a permanência do reflexo lento de agarrar em dois ratos do Grupo B e em um rato do Grupo C, enquanto no Grupo L o reflexo estava ausente em um rato e lento em dois. As avaliações histopatológicas revelaram que quatro ratos do Grupo B, três do Grupo C e seis do Grupo L desenvolveram degeneração axonal grave.

Yamashita et al.44. Yamashita A, Matsumato M, Matsumato S. A comparison of the neurotoxic effects on the spinal cord of tetracaine, lido- caine, bupivacaine, and ropivacaine administered intrathecally in rabbits. Anesth Analg. 2003;97:512-9. investigaram os efeitos neurológicos e histopatológicos e a concentração de glutamato no líquido cefalorraquidiano (LCR) de cinco grupos de ratos, uma semana após a injeção de 0,3 mL de NaCl, tetracaína a 2%, lidocaína a 10%, bupivacaína a 2% e ropivacaína a 2%. Enquanto a concentração de glutamato no LCR aumentou significativamente em todos os grupos, não houve diferença significativa em relação às funções neurológicas e motoras entre os grupos, exceto no grupo lidocaína, que apresentou disfunção significativa. As alterações histopatológicas foram caracterizadas pela largura da vacuolização no funículo dorsal e, em ordem respectiva, nos grupos lidocaína = tetracaína > bupivacaína > ropivacaína. De forma semelhante, em nosso estudo, embora diferenças estatisticamente significativas não tenham sido observadas, a toxicidade acentuada de lidocaína foi evidente em um rato com perda total da função motora e em dois com perda leve.

A investigação histopatológica conduzida por Yamashita et al.44. Yamashita A, Matsumato M, Matsumato S. A comparison of the neurotoxic effects on the spinal cord of tetracaine, lido- caine, bupivacaine, and ropivacaine administered intrathecally in rabbits. Anesth Analg. 2003;97:512-9. também revelou que, embora o dano neuronal tenha sido igualmente avançado em ratos que receberam lidocaína e tetracaína, o déficit das funções neurológica e motora foi mais grave no grupo lidocaína. Isso sugere que a margem de segurança com lidocaína é muito estreita.

Outra observação conflitante em nosso estudo é que a gravidade da lesão histopatológica e a perda da função motora não progrediram em paralelo. Iohom et al.,77. Iohom G, Lan GB, Diarra DP. Long-term evaluation of motor func- tion following intraneural injection of ropivacaine using walking track analysis in rats. Br J Anaesth. 2005;94:524-9. em estudo com 52 ratos divididos em quatro grupos, injetaram solução salina normal, formalina a 15%, ropivacaína a 0,2% e ropivacaína a 0,75% no nervo ciático esquerdo e avaliaram a função motora através da análise em pista de marcha nos dias um, quatro, sete, 11, 15, 18, 21 e 67 pós-tratamento. Enquanto a perda da função motora não foi observada nos grupos salina e ropivacaína, observou-se o desenvolvimento de uma perda total até o dia 21 nos ratos do grupo formalina, mas que voltou à completa normalidade no dia 67, a despeito da presença de degeneração axonal difusa, como revelado por estudos histológicos. De forma semelhante, Lupu et al.88. Lupu CM, Kiehl TR, Chan VW. Nerve expansion seen on ultra- sound predicts histologic but not functional nerve injury after intraneural injection in pigs. Reg Anesth Pain Med. 2010;35: 132-9. não observaram perda da função motora, a despeito da observação histológica de lesão neuronal em 60% dos porcos submetidos a injeções intraneurais. Da mesma forma, em nosso estudo, embora tenhamos observado degeneração axonal maciça em quatro, três e seis ratos dos grupos B, C e L, respectivamente, apenas uma leve perda da função motora foi observada em dois, um e dois ratos dos grupos B, C e L, respectivamente, com perda total da função em um rato do Grupo L.

Raducan et al.99. Raducan A, Mirica S, Duicu O. Morphological and functional aspects of sciatic nerve regeneration after crush injury. Rom J Morphol Embryol. 2013;54:735-9. objetivaram caracterizar os aspectos morfológicos e funcionais da regeneração do nervo ciático após lesão por esmagamento mecânico em roedores. As amostras dos nervos foram coletadas dos ratos antes da lesão e 24 horas, quatro dias, duas semanas e quatro semanas após a lesão. Oa autores descobriram que as alterações morfológicas mais evidentes foram causadas pela degeneração axonal quatro dias após a lesão. Após quatro semanas, o número e a densidade dos axônios mielinizados regenerados foram maiores em comparação com o grupo controle. Quanto à função motora, os autores descobriram uma redução acentuada da função na primeira semana, seguida por uma recuperação gradual da marcha normal durante as semanas seguintes, de modo que até o fim da quarta semana o animal recuperou a marcha normal. O estudo de Raducan et al. difere do nosso no que diz respeito à geração de uma lesão por esmagamento. Em seu estudo, a degeneração axonal maciça com disfunção motora e suas normalizações coincide. Porém, em nosso estudo e em outros, o efeito neurotóxico dos agentes anestésicos locais também está presente. Por outro lado, avaliamos o teste de função motora durante sete dias e coletamos as amostras histopatológicas no sétimo dia. No estudo feito por Iohom et al., entretanto, a avaliação foi feita no dia 67, em que a disfunção motora havia melhorado totalmente, enquanto a lesão histopatológica maciça permanecia.

De acordo com o nosso estudo, a injeção intraneural de anestésicos locais pode causar tanto alterações histopatológicas quanto deficiência motora, com frequência e gravidade variadas em ratos. Uma frequência e uma gravidade do dano histopatológico maiores do que a frequência e a gravidade da deficiência motora são razoáveis, mas o dano histopatológico e a perda da função motora não podem progredir em paralelo.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2014
  • Aceito
    29 Set 2014
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