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Fio-guia perdido – lições aprendidas

Resumo

A colocação de cateter venoso central é um procedimento relativamente comum na prática atual, mas não é isenta de riscos. O máximo de cuidado deve ser tomado para seguir a técnica correta e somente profissionais da área médica devidamente treinados e/ou supervisionados devem fazer esse ato invasivo. Uma das muitas complicações possíveis, totalmente evitável com os cuidados adequados, é a perda intravascular do fio-guia durante a inserção, o que é uma complicação potencialmente grave. Descrevemos um desses casos.

Palavras-chave
Cateter venoso central; Complicação; Avaliação no pré-operatório

Abstract

Central venous catheter placement is a relatively common procedure in current practice, but it is not devoid of risks. Utmost care must be taken to follow a correct technique, and only appropriately trained and/or supervised medical professionals should perform this invasive act. One of the possible complications, completely avoidable by appropriate care, is the intravascular loss of the guide wire during insertion, which is a potentially serious complication. We describe one such case.

KEYWORDS
Central venous catheter; Complication; Pre-operative assessment

Introdução

Há muitas informações sólidas para a inserção de um cateter venoso central (CVC), mas um fato é indiscutível: a decisão não deve ser tomada com displicência, pois há risco de complicações potencialmente graves,11 McGee DC, Gould MK. Preventing complications of central venous catheterization. N Engl J Med. 2003;348:1123-33.66 Ismael GY, Kamal DM. The lost guide wire. Bahrain Med Bull. 2010;32. que podem ser de natureza mecânica, trombótica ou infecciosa. Porém, milhões de pacientes são submetidos à inserção de CVC a cada ano.22 Auweiler M, Kampe S, Zähringer M, et al. The human error: delayed diagnosis of intravascular loss of guidewires for central venous catheterization. J Clin Anesth. 2005;17:562-4.,33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print]. Portanto, é fundamental que o procedimento seja feito apenas por profissionais médicos devidamente treinados e/ou supervisionados,33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].88 Guo H, Peng F, Ueda T. Loss of the guide wire: a case report. Circ J. 2006;70:1520-2. seguindo códigos rigorosos de conduta para prevenir acidentes. Enquanto algumas das complicações são difíceis de evitar, outras ocorrem devido a erro humano e, portanto, são passíveis de intervenção – o que levou algumas instituições a estabelecer listas de verificação33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print]. para a inserção de CVC como um meio de melhorar o perfil de segurança do procedimento. Uma das possíveis complicações, provavelmente subnotificada por medo de litígios,22 Auweiler M, Kampe S, Zähringer M, et al. The human error: delayed diagnosis of intravascular loss of guidewires for central venous catheterization. J Clin Anesth. 2005;17:562-4. é a perda intravascular do fio-guia durante a inserção. Isso pode ser evitado por um cateter de troca rápida/trilho deslizante (railroading) através do fio-guia, segura-se firmemente o fio-guia com uma das mãos enquanto o cateter é introduzido com a outra. Contudo, em cenários como a inserção de emergência, a falta de experiência e/ou supervisão do operador e a desatenção de médicos sobrecarregados e fatigados foram relatadas.33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].88 Guo H, Peng F, Ueda T. Loss of the guide wire: a case report. Circ J. 2006;70:1520-2.

Relato de caso

Apresentamos o caso de vítima de queimadura em membro superior direito, 40 anos, submetido à inserção de cateter venoso central através da veia subclávia esquerda para a administração intravenosa de medicação devido ao acesso venoso periférico precário (ex-viciado em drogas). O procedimento foi feito na parte da manhã e uma radiografia de tórax pós-inserção foi solicitada. A inserção foi feita por um cirurgião residente do segundo ano e relatada como sem intercorrências, sem queixas por parte do paciente e sem observação de arritmia.

No fim da tarde do mesmo dia, o paciente teve uma consulta pré-anestésica. Anamnese e exame físico foram feitos, mas uma radiografia de tórax pós-inserção não foi encontrada no sistema informatizado. O paciente, entretanto, confirmou ter feito o exame, então o departamento de radiologia foi contatado. Havia um problema no sistema que impedia a visualização apropriada das imagens e quando essas ficaram disponíveis uma linha radiopaca foi claramente evidenciada, estendia-se ao longo da silhueta cardíaca direita, distal à ponta do cateter venoso central (fig. 1). A hipótese de um fio-guia retido foi imediatamente aventada e uma nova radiografia de tórax foi obtida, dessa vez com uma vista lateral esquerda (fig. 2), o que confirmou a hipótese de fio-guia alojado em parte da veia cava superior, atravessava o átrio direito e estendia-se ao longo da veia cava inferior. O médico de plantão foi contatado e, com a disponibilidade de um ecógrafo (sem sondas cardíacas), o anestesiologista obteve uma visão da veia cava inferior (VCI), que mais uma vez confirmou a presença de uma imagem linear ecorreflexiva dentro da VCI (fig. 3, Filme 1 – Apêndice B). O caso foi então apresentado pelo médico à cardiologia intervencionista e o fio-guia foi removido por via percutânea através de uma abordagem da veia femoral direita, sem intercorrências.

Figura 1
Radiografia de tórax posteroanterior que mostra uma linha radiopaca à direita do esterno.
Figura 2
Radiografia de tórax em vista lateral esquerda que revela a mesma linha radiopaca, claramente distal à ponta do cateter e consistente com uma posição intravascular.
Figura 3
Imagem da ecografia abdominal, na qual podemos ver uma veia cava inferior parcialmente colapsada com uma estrutura ecorreflexiva em seu interior (correspondente ao fio-guia).

Discussão

A ocorrência dessa complicação levou a uma reflexão sobre as várias etapas do processo de inserção de CVC, analisaram-se o que deu errado e o que deveria ser feito de forma diferente a partir de então. As lições a serem aprendidas são bastante simples:

  1. O máximo de cuidado é necessário durante a colocação uma linha central. As complicações no topo da lista quando se faz o processo geralmente são a possibilidade de pneumotórax ou hemotórax (especialmente com uma abordagem subclávia), juntamente com embolia ou complicações infecciosas. Porém, a migração do fio-guia é uma complicação rara, mas também importante – totalmente evitável e que deve ser considerada. É imprescindível segurar com firmeza o fio-guia enquanto o cateter é “deslizado pelo trilho” sobre ele e nunca inserir os dois ao mesmo tempo.77 Schummer W, Schummer C, Gaser E, et al. Loss of the guide wire: mishap or blunder? Br J Anaesth. 2002;88:144-6.1010 Belhadj A, Balkhi H, Kechna H, et al. Oubli du guide métallique lors d’un cathétérisme veineux central. Annales Françaises d’Anesthésie et de Réanimation. 2010;29:251-7.

  2. O procedimento deve ser feito por médicos experientes e/ou supervisionados por alguém com os conhecimentos adequados.33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].88 Guo H, Peng F, Ueda T. Loss of the guide wire: a case report. Circ J. 2006;70:1520-2.

  3. Após a inserção, é importante verificar se o fio-guia foi contabilizado na bandeja de instrumentos (e se está completo).33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].,55 Taslimi R, Safari S, Kazemeini A, et al. Abdominal pain due to a lost guidewire: a case report. Cases J. 2009;2:6680.88 Guo H, Peng F, Ueda T. Loss of the guide wire: a case report. Circ J. 2006;70:1520-2.,1010 Belhadj A, Balkhi H, Kechna H, et al. Oubli du guide métallique lors d’un cathétérisme veineux central. Annales Françaises d’Anesthésie et de Réanimation. 2010;29:251-7. Algumas instituições criaram listas de verificação que abordam especificamente esse ponto e há um forte incentivo para que todos adotem um protocolo local no qual tais listas sejam consolidadas.

  4. Embora o exame físico do paciente após o procedimento possa sugerir alguns problemas, não é suficiente apenas descartar todas as complicações ou confirmar a colocação correta do cateter. É essencial solicitar uma radiografia de tórax pós-inserção que sempre deve ser revista com atenção.33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].,55 Taslimi R, Safari S, Kazemeini A, et al. Abdominal pain due to a lost guidewire: a case report. Cases J. 2009;2:6680.,1010 Belhadj A, Balkhi H, Kechna H, et al. Oubli du guide métallique lors d’un cathétérisme veineux central. Annales Françaises d’Anesthésie et de Réanimation. 2010;29:251-7.

  5. Embora a responsabilidade pela revisão da radiografia de tórax seja comumente atribuída ao médico que fez o procedimento, é uma boa prática para outros membros da equipe médica que cuidam do paciente examiná-la também. De fato, há vários relatos na literatura nos quais o fio-guia não foi identificado na primeira radiografia após o procedimento, mas que já era visível em uma segunda inspeção.22 Auweiler M, Kampe S, Zähringer M, et al. The human error: delayed diagnosis of intravascular loss of guidewires for central venous catheterization. J Clin Anesth. 2005;17:562-4.,33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print].,66 Ismael GY, Kamal DM. The lost guide wire. Bahrain Med Bull. 2010;32.,1010 Belhadj A, Balkhi H, Kechna H, et al. Oubli du guide métallique lors d’un cathétérisme veineux central. Annales Françaises d’Anesthésie et de Réanimation. 2010;29:251-7.,1111 Pérez-Díez D, Salgado-Fernández J, Vázquez-González N, et al. Percutaneous retrieval of a lost guidewire that caused cardiac tamponade. Circulation. 2007;115:e629-31.,1313 Akazawa S, Nakaigawa Y, Hotta K. Unrecognized migration of an entire guidewire on insertion of a central venous catheter into the cardiovascular system. Anesthesiology. 1996;84:241-2. Quando mais membros da equipe (como ocorreu neste caso) fazem a análise da radiografia, a probabilidade de erro é reduzida. Em outras palavras, nunca devemos presumir que tudo já tenha sido verificado. Dessa forma, é possível evitar casos como os relatados na literatura, nos quais os pacientes sem saber portaram um fio-guia durante meses ou mais, com a possibilidade de migração e complicações.

  6. É importante não descartar apressadamente as imagens compatíveis com as que representam fios na superfície do paciente;33 Vannucci A, Jeffcoat A, Ifune C, et al. Retained guidewires after intraoperative placement of central venous catheters. Anesth Analg. 2012 [Epub ahead of print]. em caso de dúvida, uma vista lateral pode ser particularmente útil. Em nosso caso, considerando a presença do cateter em parte da VCI, a ecografia também foi útil.

  7. Quando um fio-guia é identificado, a remoção percutânea é o método preferido.66 Ismael GY, Kamal DM. The lost guide wire. Bahrain Med Bull. 2010;32.,77 Schummer W, Schummer C, Gaser E, et al. Loss of the guide wire: mishap or blunder? Br J Anaesth. 2002;88:144-6.,1212 Kumar S, Eapen S, Vaid VN, et al. Lost guide wire during central venous cannulation and its surgical retrieval. Indian J Surg. 2006;68:33-4. Caso haja a necessidade de adiar o procedimento, os pacientes devem ser anticoagulados22 Auweiler M, Kampe S, Zähringer M, et al. The human error: delayed diagnosis of intravascular loss of guidewires for central venous catheterization. J Clin Anesth. 2005;17:562-4.,99 Al Dowais A, Al Hayeg O, Samei H. Loss of guide wire, a rare completely avoidable complication of central venous catheterization. Internet J Surg. 2009;21. para prevenir complicações embólicas, mas o fio-guia deve ser removido tão logo possível.66 Ismael GY, Kamal DM. The lost guide wire. Bahrain Med Bull. 2010;32.,77 Schummer W, Schummer C, Gaser E, et al. Loss of the guide wire: mishap or blunder? Br J Anaesth. 2002;88:144-6. Relatos na literatura mencionam que fios-guia estáveis deixados nos locais eventualmente partiram-se e causaram complicações como hemopericárdio.1111 Pérez-Díez D, Salgado-Fernández J, Vázquez-González N, et al. Percutaneous retrieval of a lost guidewire that caused cardiac tamponade. Circulation. 2007;115:e629-31.

  8. A remoção de um fio-guia perdido não é suficiente: é fundamental entender o que deu errado, aumentar a conscientização do problema e promover condutas para impedi-lo no futuro. Tal estratégia seria desenvolver uma lista de verificação apropriada para a inserção de CVC, como já mencionado, que seja preenchida pelo médico e pelo enfermeiro.

Conclusão

O objetivo deste relato foi o de aumentar a conscientização de uma complicação rara e evitável que é a inserção do CVC, bem como promover o desenvolvimento de políticas locais destinadas a diminuir sua incidência e melhorar os padrões de atendimento. A prevenção é a abordagem desejada, mas o reconhecimento precoce das complicações é igualmente importante e deve ser ativamente prosseguido por cada médico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2015
  • Aceito
    24 Mar 2015
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