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Considerações anestésicas perante um doente com angioedema hereditário - Caso clínico

Resumo

O angioedema hereditário (AEH), com uma prevalência estimada de 1:50000 pessoas, é uma doença rara mas potencialmente fatal. Pode se apresentar com edema sistêmico recorrente do tecido subcutâneo e das mucosas. Os doentes com AEH têm um risco acrescido de agudização clínica com o estresse cirúrgico, podem desenvolver síndromes de dificuldade respiratória por compromisso da via aérea e de instabilidade hemodinâmica. A abordagem perioperatória desses doentes requer intervenções específicas. Apresentamos um caso clínico de uma mulher de 50 anos com AEH tipo II indicada para realizar ureteroscopia com colocação de stent.

PALAVRAS-CHAVE
Angioedema hereditário; Imuno-hemoterapia; Profilaxia

Abstract

Hereditary angioedema (HAE), with an estimated prevalence of 1:50,000, is a rare but potentially fatal disease. It may present with recurrent systemic edema of the subcutaneous tissue and mucous membranes. Patients with HAE are at increased risk for clinical worsening with surgical stress, and may develop respiratory distress syndrome due to impaired airway and hemodynamic instability. The perioperative management of these patients requires specific interventions. We present a clinical case of a woman, 50 years old, with HAE type II scheduled for ureteral stent placement via endoscopic approach.

KEYWORDS
Hereditary angioedema; Immune-hemotherapy; Prophylaxis

Introdução

O angioedema hereditário (AEH) é uma doença de transmissão autossômica dominante caracterizada por alterações quantitativas ou qualitativas no nível do inibidor do primeiro componente da cascata do complemento (inibidor da esterase de C1, C1-INH), que permite ativação não controlada da cascata clássica do complemento.11 Tse K, Zuraw BL. Recognizing and managing hereditary angioedema. Clev Clin J Med. 2013;80:297-308.,22 Cicardia M, Bork K, Caballero T, et al. Evidence-based recommendations for the therapeutic management of angioedema owing to hereditary C1 inhibitor deficiency: consensus report of an International Working Group. Allergy. 2012;67:147-57. Classicamente o AEH era classificado em duas variantes de fenótipos: o tipo I caracteriza-se por valores plasmáticos reduzidos de C1-INH normalmente funcionante; o tipo II caracteriza-se pela presença de valores plasmáticos normais ou elevados de uma proteína C1-INH não funcionante ou anormalmente funcionante11 Tse K, Zuraw BL. Recognizing and managing hereditary angioedema. Clev Clin J Med. 2013;80:297-308.. Mais recentemente considera-se a existência de um terceiro tipo de AEH, com níveis de C1-INH quantitativa e funcionalmente normais, que se apresenta frequentemente como estrogeniossensível.33 Nigam K. Hereditary angioedema: an update. Ind J Derm Lepr. 2011;77:621-4.

Apesar do seu nome, C1-INH não atua apenas na cascata do complemento, inibe também proteases das cascatas de coagulação e de fibrinólise e das vias das cininas. No AEH a clínica associada deve-se principalmente à interferência na via das cininas, com aumento da produção de bradicinina. Clinicamente o AEH pode apresentar-se com edema sistêmico e recorrente dos tecidos subcutâneos ou das mucosas, com envolvimento do sistema gastrointestinal, pode ser erroneamente interpretado como um quadro de abdômen agudo; das vias respiratórias com quadro de dificuldade respiratória de laringospasmo, broncospasmo e asfixia; instabilidade hemodinâmica por choque anafilático e morte.11 Tse K, Zuraw BL. Recognizing and managing hereditary angioedema. Clev Clin J Med. 2013;80:297-308.,44 Senaratne KT, Cottrell AM, Prentice RI. Successful perioperative management of a patient with C1 esterase inhibitor deficiency with a novel bradykinin receptor B2 antagonist. Anaesth Intens Care. 2012;40:523-6. Em cerca de 1/3 dos doentes o trauma é o fator precipitante do quadro clínico. Outros fatores desencadeantes são a infeção, a ansiedade e os estrogênios. Num número significativo de casos o fator precipitante não é identificado.55 Spyridonidou A, Cottrell AM, Prentice RI. Peri-operative management of a patient with hereditary angioedema going laparoscopic cholecystectomy. Anesthesia. 2010;65:74-7.,66 Fay A, Abinum M. Current management of hereditary angio-oedema (C′1 esterase inhibitor deficiency). J Clin Pathol. 2002;55:266-70.

Caso clínico

Descrevemos os cuidados anestésicos perioperatórios prestados a uma mulher de 50 anos, proposta para cirurgia eletiva urológica: ureteroscopia com colocação de stent por litíase renal não radiopaca. A doente tinha o diagnóstico de AEH tipo II e história familiar positiva (pai e irmão com a mesma patologia). Era acompanhada em consulta hospitalar de imunoalergologia e não fazia terapêutica regular.

Após cuidadosa avaliação pré-anestésica e de acordo com o protocolo pré-operatório do serviço de imuno-hemoterapia do nosso hospital e a consulta de imunoalergologia na qual era acompanhada, foi feita profilaxia com quatro doses orais de estanozolol (Winstrol®) 4 mg, dois dias previamente à cirurgia, e 1.000 U de concentrado de C1-INH (Berinert®) administradas 45 minutos antes da cirurgia, em bólus endovenoso lento. Efetuou-se pré-medicação com diazepam endovenoso 1 mg, na noite de véspera da cirurgia e na manhã da cirurgia.

No dia da cirurgia e após a chegada à sala operatória, foi monitorada com monitoração standard e pré-medicada com 2,5 mg de midazolam via endovenosa. A técnica anestésica escolhida foi o bloqueio subaracnóideo, feito com agulha biselada 25 G, em nível L3-L4, com 15 mg de bupivacaína 0,5%; com abordagem mediana e um bloqueio até T10. Foram administrados 40 mg de parecoxib e foi feita profilaxia antibiótica com 2 g de cefoxitima via endovenosa. De acordo com o protocolo, foram mantidas 500 U de concentrado de C1-INH (Berinert®) em standby no bloco operatório para a eventualidade de um quadro clínico agudo.

O procedimento cirúrgico demorou 20 minutos, a doente manteve-se hemodinamicamente estável durante a cirurgia e no pós-operatório imediato. A terapêutica de pós-operatório não requereu especificidade associada ao AEH, ficou medicada com paracetamol e parecoxib ev, antibioterapia e fluidoterapia. A doente teve alta hospitalar após 24 horas.

Discussão

Existem numerosos fatores precipitantes de episódios de agudização de AEH, com destaque para a ansiedade associada ao período perioperatório e o trauma cirúrgico, daí a importância de uma adequada pré-medicação.

A abordagem do episódio agudo, com clínica e gravidade variável, é controversa. A medicina baseada na evidência sugere que a agudização pode não responder ao tratamento com adrenalina, anti-histamínicos ou glucocorticoides, é necessária terapêutica mais específica.55 Spyridonidou A, Cottrell AM, Prentice RI. Peri-operative management of a patient with hereditary angioedema going laparoscopic cholecystectomy. Anesthesia. 2010;65:74-7.,77 Bowen T, Herbet J, Ritchie B, et al. Canadian 2003 International Consensus Algorithm for the diagnosis, therapy and management of hereditary angioedema. J Allergy Clin Immunol. 2004;114:629-37. A abordagem inicial de um episódio agudo severo deverá incluir o uso de fármacos recombinantes do inibidor C1 ou de antagonistas dos recetores da bradicinina.22 Cicardia M, Bork K, Caballero T, et al. Evidence-based recommendations for the therapeutic management of angioedema owing to hereditary C1 inhibitor deficiency: consensus report of an International Working Group. Allergy. 2012;67:147-57.,33 Nigam K. Hereditary angioedema: an update. Ind J Derm Lepr. 2011;77:621-4.,66 Fay A, Abinum M. Current management of hereditary angio-oedema (C′1 esterase inhibitor deficiency). J Clin Pathol. 2002;55:266-70.,77 Bowen T, Herbet J, Ritchie B, et al. Canadian 2003 International Consensus Algorithm for the diagnosis, therapy and management of hereditary angioedema. J Allergy Clin Immunol. 2004;114:629-37. Quando esses não se encontram disponíveis, outras abordagens incluem o uso de doses mais elevadas de androgênios, como o danazol ou seus derivados, ácido tranexâmico (AT), adrenalina (nem sempre com eficácia), controle analgésico, fluidoterapia e terapêutica intensiva de suporte.55 Spyridonidou A, Cottrell AM, Prentice RI. Peri-operative management of a patient with hereditary angioedema going laparoscopic cholecystectomy. Anesthesia. 2010;65:74-7.,66 Fay A, Abinum M. Current management of hereditary angio-oedema (C′1 esterase inhibitor deficiency). J Clin Pathol. 2002;55:266-70. O uso de plasma fresco congelado permanece controverso devido ao potencial teórico de poder exacerbar e perpetuar o choque.66 Fay A, Abinum M. Current management of hereditary angio-oedema (C′1 esterase inhibitor deficiency). J Clin Pathol. 2002;55:266-70.

A abordagem mais adequada dessa patologia consiste na profilaxia55 Spyridonidou A, Cottrell AM, Prentice RI. Peri-operative management of a patient with hereditary angioedema going laparoscopic cholecystectomy. Anesthesia. 2010;65:74-7.,66 Fay A, Abinum M. Current management of hereditary angio-oedema (C′1 esterase inhibitor deficiency). J Clin Pathol. 2002;55:266-70.. Assim, em cirurgia eletiva, a conduta deve incluir a pré-medicação ansiolítica e:

  1. Uso de fator C1-INH recombinante nas seguintes dosagens: 500 U (se < 50 kg); 1.000 U (se > 50 kg, mas < 100 Kg) ou 4.000 U (se > 100 kg) 30 a 60 minutos antes do procedimento cirúrgico, com a indicação de repetição diária, caso o risco de precipitação de um episódio agudo permaneça elevado.

  2. Derivados de androgênio, até 5 a 7 dias previamente à cirurgia.

  3. Eventualmente AT, apesar de não ser tão eficaz como os derivados androgênicos.

  4. Terapêutica profilática dupla, como foi a nossa opção.

A opção da técnica anestésica locorregional apresenta também vantagens face à anestesia geral, por não implicar uma manipulação ativa da via aérea, que, ao desencadear um episódio de agudização com repercussão mais localizada, poderia conduzir a edema da laringe.

Em conclusão, AEH é uma patologia rara, pouco contactada pela maioria dos anestesistas. Devido ao potencial de complicações severas que pode originar, requer uma cuidadosa preparação perioperatória, com o envolvimento de equipes multidisciplinares (imuno-hemoterapeutas, cirurgiões, intensivistas, imunoalergologistas, anestesiologistas), a adoção de uma profilaxia adequada e uma correca vigilância do doente.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2015
  • Aceito
    23 Mar 2015
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