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O desafio multidisciplinar da anestesia para procedimento intraparto extra-uterino: relato de caso

Resumo

O procedimento Intraparto Extra-Uterino (EXIT) é procedimento cirúrgico realizado em casos de previsão de obstrução de via aérea fetal no pós-parto, que permite estabelecer via aérea patente enquanto a circulação placentária é mantida. A anestesia para o procedimento EXIT apresenta várias características específicas, tais como relaxamento uterino adequado, manutenção da pressão arterial materna, anestesia fetal e estabelecimento da via aérea fetal. O anestesiologista deve estar ciente dessas especificidades para contribuir para desfecho favorável. Trata-se de relato de caso de procedimento EXIT realizado em feto com linfangioma cervical e evidência pré-natal de obstrução parcial de traqueia e risco de comprometimento de via aérea pós-parto.

PALAVRAS-CHAVE
Obstrução de vias aéreas; Anestesia; Linfangioma cervical; Procedimento EXIT

Abstract

The Ex Utero Intrapartum Treatment (EXIT) is a surgical procedure performed in cases of expected postpartum fetal airway obstruction, allowing the establishment of patent airway while maintaining placental circulation. Anesthesia for EXIT procedure has several specific features such as adequate uterine relaxation, maintenance of maternal blood pressure fetal anesthesia and fetal airway establishment. The anesthesiologist should be aware of these particularities in order to contribute to a favorable outcome. This is a case report of an EXIT procedure performed on a fetus with a cervical lymphangioma with prenatal evidence of partial obstruction of the trachea and risk of post-delivery airway compromise.

KEYWORDS
Airway obstruction; Anesthesia; Cervical lymphangioma; EXIT procedure

Justificativa

O procedimento Intraparto Extra-Uterino (EXIT, do inglês Ex Utero Intrapartum Treatment Procedure) foi inicialmente desenvolvido para feto com grave hérnia diafragmática congênita. A técnica permite a continuidade da circulação uteroplacentária durante a retirada dos clips traqueais imediatamente após o parto cesariano.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51. Desde então, as outras indicações que surgiram para EXIT, não são só para comprometimento da via aérea, mas também para malformações congênitas que podem levar a óbito perinatal.

O procedimento geralmente é agendado após 35 semanas de gestação e é combinado com cesariana eletiva. Prematuridade não é considerada contraindicação.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51.

O feto é parcialmente retirado da cavidade uterina, mantendo-se a circulação uteroplacentária para preservar as trocas gasosas fetais, e permitindo procedimentos terapêuticos no feto.

A conduta anestésica inclui anestesia inalatória profunda com relaxamento uterino, manutenção da circulação uteroplacentária e anestesia fetal. Isso significa planejamento estratégico rigoroso com envolvimento de equipe multidisciplinar.

O presente artigo descreve caso em que o procedimento EXIT foi realizado com sucesso para feto com diagnóstico pré-natal de linfangioma cervical e discute a conduta anestésica de acordo com a atual prática clínica.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino de 37 anos de idade, gesta 2, para 0, foi agendada para procedimento EXIT eletivo com 38 semanas de gestação devido a diagnóstico de ultrassom no pré-natal de linfangioma cervical fetal com obstrução parcial da traqueia e risco de comprometimento de vias aéreas pós-parto. Ressonância Magnética (RM) realizada em 31 semanas confirmou formação cística cervical de 60×38×52 mm à direita, associada à protrusão de língua (fig. 1, flechas).

O plano pré-operatório envolveu várias reuniões com a equipe multidisciplinar formada de anestesiologistas, obstetras, neonatologistas, cirurgiões pediátricos, otorrinolaringologistas e pneumologistas. O papel e posicionamento na sala cirúrgica foram claramente definidos. Material de anestesia, temperatura da sala, grupo sanguíneo, disponibilidade de hemoderivados e vaga na unidade de neonatologia e na de recuperação pós-anestésica foram confirmados no pré-operatório.

Figura 1
RM fetal mostrando massa cervical emergindo da região direita do pescoço do feto (flechas).

Na sala cirúrgica, o monitoramento materno incluiu oximetria de pulso, ECG e pressão arterial invasiva. A parturiente foi colocada em posição supina, a mesa em posição lateral esquerda com deslocamento manual do útero para a esquerda. Duas linhas periféricas intravenosas (18G e 16G) foram instaladas, além de sonda vesical. Além disso, a preparação de fármacos incluiu drogas para anestesia fetal intramuscular suplementar, a saber, fentanil, rocurônio e atropina.

Anestesia geral balanceada foi iniciada com infusão de remifentanil 2 minutos antes da indução. A sequência rápida foi feita com 2 mg.kg-1 de propofol e 1,2 mg.kg-1 de rocurônio, seguida de intubação endotraqueal com sonda 7,5 com balonete e iniciou-se ventilação mecânica em modo volume-controlado. A anestesia foi mantida com sevoflurano (2,5%) e remifentanil. Para manutenção da estabilidade hemodinâmica materna, foi necessário administrar 10 mg de efedrina e tratamento hídrico orientado por meta com cristaloides.

Após a histerotomia, a cabeça, tronco e membros superiores do feto foram externalizados e intubação oro traqueal por laringoscopia direta foi realizada com sonda 3,5 sem balonete. A intubação foi realizada na segunda tentativa pelo neonatologista, 4 minutos após a histerotomia (fig. 2). O posicionamento correto da sonda traqueal foi confirmado e o cordão umbilical foi clampeado e seccionado. Depois da extração completa, o recém-nascido foi estabilizado e transportado em incubadora neonatal sob ventilação mecânica para a unidade de neonatologia.

Figura 2
Entubação endotraqueal realizada em feto parcialmente extraído.

Durante o procedimento, relaxamento uterino satisfatório foi obtido com sevoflurano, e não houve necessidade de drogas tocolíticas adicionais. A hipotonicidade uterina foi efetivamente revertida com oxitocina e redução da concentração do agente anestésico inalatório. A infusão de remifentanil foi suspensa e a anestesia progrediu sem complicações. Analgesia intravenosa foi realizada com paracetamol, cetorolac e tramadol. Náusea e vômitos foram prevenidos com droperidol e ondansetron.

O volume total infundido foi 1.000 mL de cristaloide e 500 mL de coloide. A perda estimada de sangue foi 800 mL e não houve necessidade de transfusão de hemoderivados.

Discussão

EXIT é procedimento cirúrgico realizado no caso de diagnóstico pré-natal de malformação congênita associada à alta mortalidade perinatal. O objetivo é manter a circulação feto placentária para otimizar as condições do feto e melhorar a transição entre vida fetal e neonatal.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51.,22 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7.

O fator chave para o sucesso do procedimento é dispor de equipe multidisciplinar e plano detalhado. Das seis equipes médicas envolvidas no caso, anestesiologia, obstetrícia e neonatologia foram envolvidas diretamente no procedimento. A participação da pneumologia, otorinolaringologia e cirurgia pediátrica se justificaram para o caso de abordagem laringoscópica direta difícil, para realizar intubação broncoscópica, estabelecer via aérea cirúrgica ou realizar ressecção parcial da massa.

Realizar e manter anestesia para esse procedimento é um desafio clínico por envolver sempre dois pacientes, mãe e feto. Anestesia geral é a técnica preferencial apesar de estar associada a taxas mais altas de mortalidade e morbidade na população obstétrica. Além da sua contribuição para relaxamento uterino adequado, permite indução simultânea de mãe e feto através da penetração placentária de agentes anestésicos. Nos casos em que anestesia geral é contraindicada, a técnica loco regional deve ser considerada com administração conjunta de drogas tocolíticas para obter relaxamento uterino.22 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7. As desvantagens da anestesia regional são risco de instabilidade hemodinâmica no caso de hemorragia maciça e necessidade de anestesia fetal adicional.

As principais metas do procedimento são relaxamento uterino profundo para a prevenção de separação da placenta e preservação da circulação uteroplacentária que garante a oxigenação fetal.22 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7.

3 Marwan A, Crombleholme TM. The exit procedure: principles, pitfalls, and progress. Semin Pediatr Surg. 2006;15:107-15.
-44 Chang LC, Kuczkowski KM. The ex utero intrapartum treatment procedure: anesthetic considerations. Arch Gynecol Obstet. 2008;277:83-5. Simultaneamente, a passagem transplacentária de anestésicos é essencial para propiciar a anestesia fetal.

Vários autores têm recomendado anestesia inalatória a concentrações de pelo menos dois CAM (Concentração Anestésica Mínima), que além de conseguir relaxamento uterino, também possibilita anestesia profunda para mãe e feto.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51.,22 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7. Entretanto, foi descrito que o uso de 0,5-1 CAM combinado com droga tocolítica (nitroglicerina) talvez ofereça estratégia efetiva para controle do tônus uterino com estabilidade cardiovascular. A nitroglicerina é a melhor droga para esse procedimento devido a início rápido e duração fugaz, mas também pode ter efeitos adversos como hipotensão.55 Helfer DC, Clivatti J, Yamashita AM, et al. Anesthesia for ex utero intrapartum treatment (EXIT procedure) in Fetus with prenatal diagnosis of oral and cervical malformations: case reports. Rev Bras Anestesiol. 2012;62:411-23. Outras drogas tocolíticas como a terbutalina e sulfato de magnésio também podem ser usadas para aumentar o relaxamento uterino.44 Chang LC, Kuczkowski KM. The ex utero intrapartum treatment procedure: anesthetic considerations. Arch Gynecol Obstet. 2008;277:83-5.

É crucial prevenir a hipotensão materna e tônus do miométrio para conservar a troca de gases uteroplacentários para a oxigenação fetal.33 Marwan A, Crombleholme TM. The exit procedure: principles, pitfalls, and progress. Semin Pediatr Surg. 2006;15:107-15. A manutenção da pressão arterial materna, entre 10%-20% dos valores de base é portanto crítica para a oxigenação fetal adequada.33 Marwan A, Crombleholme TM. The exit procedure: principles, pitfalls, and progress. Semin Pediatr Surg. 2006;15:107-15. A reposição volêmica e administração de vasopressores e drogas inotrópicas pode ser crucial na manutenção da estabilidade hemodinâmica materna e circulação uteroplacentária.22 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7.,44 Chang LC, Kuczkowski KM. The ex utero intrapartum treatment procedure: anesthetic considerations. Arch Gynecol Obstet. 2008;277:83-5. Monitoramento através de pressão arterial invasiva, além de monitorização de rotina são altamente recomendáveis para o controle adequado de estabilidade hemodinâmica.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51.

2 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7.
-33 Marwan A, Crombleholme TM. The exit procedure: principles, pitfalls, and progress. Semin Pediatr Surg. 2006;15:107-15. Uma das principais complicações intraoperatórias e pós-operatórias é a perda de sangue, que geralmente está correlacionada com atonia uterina devido às drogas tocolíticas ou à duração do procedimento.11 Kuczkowski T, Krzysztof M. Advances in obstetric anesthesia: anesthesia for fetal intrapartum operations on placental support. J Anesth. 2007;21:243-51.

2 De Buck F, Deprest J, Van de Velde M. Anesthesia for fetal surgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21:293-7.

3 Marwan A, Crombleholme TM. The exit procedure: principles, pitfalls, and progress. Semin Pediatr Surg. 2006;15:107-15.
-44 Chang LC, Kuczkowski KM. The ex utero intrapartum treatment procedure: anesthetic considerations. Arch Gynecol Obstet. 2008;277:83-5. A deterioração do fluxo sanguíneo uteroplacentário é um risco considerável e pode levar a acidose e bradicardia fetal.

No nosso caso, a profundidade da anestesia atingida com sevoflurano a 2,5% foi satisfatória e propiciou um perfil hemodinâmico estável. O relaxamento uterino foi suficiente e não foi necessária a administração adicional de drogas tocolíticas. O feto não reagiu às manobras como a laringoscopia e intubação traqueal, e, portanto, não foi necessário usar anestesia fetal suplementar. Após obtenção da via aérea fetal, foi realizada a completa externalização com clampeamento do cordão umbilical. O período entre a histerotomia e clampeamento do cordão umbilical foi aproximadamente 4 minutos e 20 segundos. Esse período é mais curto em comparação a outros casos na literatura e parece ser um fator de bem-estar para o feto.55 Helfer DC, Clivatti J, Yamashita AM, et al. Anesthesia for ex utero intrapartum treatment (EXIT procedure) in Fetus with prenatal diagnosis of oral and cervical malformations: case reports. Rev Bras Anestesiol. 2012;62:411-23. A hipotonicidade uterina foi revertida com oxitocina e interrupção das altas concentrações de anestésicos inalatórios.

Não houve nenhum relato de evento hemorrágico após a transferência para a unidade de recuperação pós-anestésica.

Conclusões

O procedimento EXIT é ferramenta essencial na abordagem de malformações congênitas diagnosticadas no pré-natal, pois uma emergência com risco de vida no momento do nascimento pode ser convertida em procedimento eletivo. O sucesso da intervenção foi essencialmente devido ao planejamento do procedimento pela equipe multidisciplinar. À luz da atual literatura, a anestesia pode ser realizada de várias formas, desde que o relaxamento uterino e circulação uteroplacentária sejam mantidos até se estabelecer a via aérea fetal.

O anestesiologista deve estar ciente das particularidades desse procedimento e em consonância com os cirurgiões em cada fase da intervenção, da incisão do útero ao clampeamento do cordão umbilical.

References

  • 1
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  • 3
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    Helfer DC, Clivatti J, Yamashita AM, et al. Anesthesia for ex utero intrapartum treatment (EXIT procedure) in Fetus with prenatal diagnosis of oral and cervical malformations: case reports. Rev Bras Anestesiol. 2012;62:411-23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2019
  • Aceito
    1 Dez 2019
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