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Reposição de volume orientada pela variação da pressão de pulso durante transplante renal: estudo randomizado controlado Congressos: Resultados parciais já foram apresentados no Euroanesthesia 2019 (1−3 junho 2019).

Resumo

Objetivo:

Transplante renal é o tratamento padrão-ouro na doença renal em estágio terminal. Embora diferentes variáveis hemodinâmicas, tais como pressão venosa central e pressão arterial média, têm sido usadas para orientar a estratégia de reposição volêmica durante a cirurgia, a melhor estratégia ainda não foi determinada. A Variação da Pressão de Pulso (VPP) durante o ciclo respiratório é reconhecida como um bom preditor da resposta à infusão de volume para otimização hemodinâmica perioperatória no centro cirúrgico. O objetivo do estudo foi estudar se a estratégia de reposição de volume orientada por VPP é melhor do que a estratégia liberal de reposição de volume durante cirurgia de transplante renal. O principal objetivo do estudo foi identificar diferença no débito urinário na primeira hora do pós-operatório.

Método:

Realizamos estudo prospectivo, unicego, randomizado, controlado. Incluímos 40 pacientes submetidos a transplante renal de doador cadáver. Pacientes randomizados para o Grupo VPP receberam volume quando a VPP estava acima de 12%, e os pacientes no Grupo Reposição Liberal receberam volume de acordo com o nosso protocolo institucional padrão de assistência para transplante renal (10 mL.kg-1.h-1).

Resultados:

O débito urinário foi semelhante em todos os tempos nos dois grupos, a ureia foi estatisticamente diferente a partir do terceiro dia do pós-operatório com pico no quarto dia do pós-operatório e a creatinina apresentou tendência semelhante, tornando-se estatisticamente diferente a partir do segundo dia do pós-operatório. Ureia, creatinina e débito urinário não estavam diferentes na alta hospitalar.

Conclusões:

A terapia orientada por VPP durante transplante renal melhorou de forma significativa os níveis de ureia e creatinina na primeira semana pós-transplante renal.

PALAVRAS-CHAVE
Transplante renal; Fluidoterapia; Creatinina; Ureia; Urina

Abstract

Purpose:

Kidney transplantation is the gold-standard treatment for end stage renal disease. Although different hemodynamic variables, like central venous pressure and mean arterial pressure, have been used to guide volume replacement during surgery, the best strategy still ought to be determined. Respiratory arterial Pulse Pressure Variation (PPV) is recognized to be a good predictor of fluid responsiveness for perioperative hemodynamic optimization in operating room settings. The aim of this study was to investigate whether a PPV guided fluid management strategy is better than a liberal fluid strategy during kidney transplantation surgeries. Identification of differences in urine output in the first postoperative hour was the main objective of this study.

Methods:

We conducted a prospective, single blind, randomized controlled trial. We enrolled 40 patients who underwent kidney transplantation from deceased donors. Patients randomized in the “PPV” group received fluids whenever PPV was higher than 12%, patients in the “free fluid” group received fluids following our institutional standard care protocol for kidney transplantations (10 mL.kg-1. h-1).

Results:

Urinary output was similar at every time-point between the two groups, urea was statistically different from the third postoperative day with a peak at the fourth postoperative day and creatinine showed a similar trend, being statistically different from the second postoperative day. Urea, creatinine and urine output were not different at the hospital discharge.

Conclusion:

PPV guided fluid therapy during kidney transplantation significantly improves urea and creatinine levels in the first week after kidney transplantation surgery.

KEYWORDS
Kidney transplantation; Fluid therapy; Creatinine; Urea; Urine

Justificativa e objetivo

O Transplante Renal (TR) é o tratamento padrão-ouro para Doença Renal em Estágio Terminal (DRET). Os pacientes em DRET submetidos a TR apresentam taxa de sobrevida mais alta11 Lemmens HJ. Kidney transplantation: recent developments and recommendations for anesthetic management. Anesthesiol Clin North America. 2004;22:651-2. e menos gastos com assistência à saúde do que pacientes submetidos a diálise.22 Joyce AT, Iacoviello JM, Nag S, et al. End-stage renal disease-associated managed care costs among patients with and without diabetes. Diabetes. 2004;27:2829-35.,33 Kontodimopoulos N, Niakas D. Overcoming inherent problems of preference-based techniques for measuring health benefits: an empirical study in the contest of kidney transplantation. BMC Health Services Research. 2006;6:3.

Estudos recentes apontaram que reposição volêmica otimizada durante transplante está associada a melhor função do enxerto, provavelmente devido a manutenção de volume sanguíneo ótimo e a aporte adequado de oxigênio aos tecidos.44 De Gasperi A, Narcisi S, Mazza E, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: is volume overload still mandatory for graft function?. Transplant Proc. 2006;38:807-9.

5 Aulakh N, Garg K, Bose A, et al. Influence of hemodynamics and intra-operative hydration on biochemical outcome of renal transplant recipients. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2015;31:174.
-66 Calixto Fernandes MH, Schricker T, Magder S, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: a black box. Crit Care. 2018;22:14. Reposição inadequada de volume durante TR pode resultar em insuficiência respiratória aguda e ventilação mecânica prolongada,11 Lemmens HJ. Kidney transplantation: recent developments and recommendations for anesthetic management. Anesthesiol Clin North America. 2004;22:651-2. enquanto sobrecarga de volume é considerada deletéria para a perfusão do enxerto, microcirculação e suprimento de oxigênio aos tecidos.44 De Gasperi A, Narcisi S, Mazza E, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: is volume overload still mandatory for graft function?. Transplant Proc. 2006;38:807-9. O manejo de volume durante o TR é, portanto, um desafio para o anestesiologista devido a escassez ou ausência de evidência que apoie a boa prática.

Nos últimos anos, diferentes variáveis hemodinâmicas tais como Pressão Venosa Central (PVC) ou Pressão Arterial Média (PAM) foram propostas como alvos para infusão adequada de volume no perioperatório. Entretanto, um estudo recente demonstrou o desempenho pobre dessas variáveis na previsão da função do enxerto.77 Bacchi G, Buscaroli A, Fusari M, et al. The influence of intraoperative central venous pressure on delayed graft function in renal transplantation: a single-center experience. Transplant Proc. 2010;42:3387-91.

A Variação da Pressão de Pulso (VPP) durante a respiração é considerada como bom preditor da resposta a volume para otimização hemodinâmica durante o perioperatório.88 Benes J, Chytra I, Altmann P, et al. Intraoperative fluid optimization using stroke volume variation in high risk surgical patients: Results of prospective randomized study. Crit Care. 2010;14:R118.

9 Buettner M, Schummer W, Huettemann E, et al. Influence of systolic-pressure-variation guided intraoperative fluid management on organ function and oxygen transport. Br J Anaesth. 2008;101:194-9.

10 Cannesson M. Arterial pressure variation and goal-directed fluid therapy. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2010;24:487-97.
-1111 Lopes MR, Oliveira MA, Pereira VO, et al. Goal-directed fluid management based on pulse pressure variation monitoring during high-risk surgery: a pilot randomized controlled trial. Crit Care. 2007;11:R100. Nenhum estudo examinou até agora a otimização hemodinâmica orientada por VPP durante o TR.

Fizemos a hipótese de que o manejo da reposição de volume orientada por VPP durante TR pode ser tão efetivo quanto estratégia liberal de reposição de volume durante TR, assegurando débito urinário pós-operatório adequado e sendo capaz, simultaneamente, de evitar sobrecarga de volume.

Diferenças no Débito Urinário (DU) na primeira hora do pós-operatório foi o principal desfecho do estudo.

Os desfechos secundários foram diferenças entre os dois grupos no DU, nos valores de níveis de ureia e creatinina na primeira semana do pós-operatório, na indicação de hemodiálise e na taxa de complicações cardiopulmonares.

Método

Desenho

Realizamos estudo prospectivo, unicego, de não-inferioridade, randomizado, controlado, com desenho paralelo e razão de alocação 1:1. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Conselho de Revisão Institucional de Pádua (4423/AO/18) e registrado no Clinicaltrials.gov (NCT03446196). O estudo estava em conformidade com a Declaração de Helsinki de 1964 e suas emendas posteriores ou padrões éticos comparáveis. Todos os pacientes incluídos no estudo deram consentimento informado por escrito para participar.

Participantes e condições

O consentimento informado para participar do estudo foi solicitado individualmente a todos os pacientes que obedeciam aos critérios de inclusão/exclusão. Incluímos todos os pacientes com idade ≥ 18 anos, submetidos a transplante renal de doador cadáver. Os critérios de exclusão eram transplante renal duplo, transplante combinado rim-pâncreas, transplante combinado fígado-rim e/ou história de doença cardíaca e/ou arritmia cardíaca.

Randomização

Um membro da equipe de pesquisa não envolvido no manejo clínico (GP) preparou 20 cartões indicando “reposição liberal” e 20 com “VPP”. O professional inseria cada cartão em um envelope diferente, que era então selado. A seguir, os envelopes selados eram embaralhados.

No dia da cirurgia, após obter consentimento informado por escrito, os pacientes eram aleatoriamente alocados a um dos dois grupos do estudo após a abertura de um envelope aleatoriamente escolhido por um dos autores do estudo (SM).

Anestesia

Todos os pacientes foram submetidos a anestesia geral, de acordo com prática usual/protocolo de nossa instituição. A anestesia foi induzida com 2 mg.kg-1 de propofol e 2 µg.kg-1 de fentanil. Foi administrado 0,6 mg.kg-1 de rocurônio para facilitar a intubação traqueal. Após a intubação traqueal, os pacientes eram ventilados com mistura 40/60 oxigênio/ar usando modo de ventilação volume-controlado pressão-regulado (FLOW-i Ventilator, MAQUET Medical System, Itália). O volume corrente expiratório foi mantido a 8 mL.kg-1 e o PEEP, a 5 cmH2O, ajustando a frequência respiratória para manter pressão parcial de dióxido de carbono arterial (PaCO2) a 35-40 mmHg. A anestesia foi mantida com desflurano na Concentração Alveolar Mínima (CAM) de 0,9 para manter o valor de índice bispectral entre 40 e 60. A analgesia foi feita com infusão contínua de remifentanil para atingir frequência cardíaca dentro de faixa de ± 20% em relação ao valor pré-operatório. Cateter venoso central guiado por ultrassom foi colocado na veia jugular interna e cateter 20G foi posicionado na artéria radial para monitorar continuadamente a PAM via transdutor de pressão (Edwards Lifesciences, Irvine, CA, EEUU) e conectados ao Endless version MostCareUP (Vytech, Padova, Itália). O MostCareUP foi usado para obter todas as variáveis hemodinâmicas (especificamente VPP). De acordo com o nosso protocolo padrão de assistência durante TR na nossa instituição, o único cristaloide a ser infundido para todos os pacientes é solução fisiológica. Da mesma maneira, de acordo com nosso protocolo padrão de assistência para TR, quando da abertura da pinça vascular do enxerto, todos os receptores devem receber bolus intravenoso de 100 mg de furosemida e 80 mL de manitol a 18%. No fim da cirurgia, dependendo da profundidade do bloqueio neuromuscular, foi administrado sugamadex na dose de 2-4 mg.kg-1 do peso corpóreo total para assegurar reversão completa (sequência de quatro estímulos com razão = 1,0).

Protocolo de intervenção

Todos os transplantes foram executados pela mesma equipe cirúrgica. Os pacientes randomizados para o Grupo VPP receberam solução fisiológica a 0,9% sempre que a VPP estivesse acima de 12%; o volume dado não era predeterminado e solicitou-se aos clínicos que administrassem volume até que a VPP fosse menor ou igual a 12%. Os pacientes no Grupo Reposição Liberal receberam solução fisiológica a 0,9% de acordo com o protocolo padrão de assistência do nosso hospital (10 mL.kg-1.h-1 adicionais e após reposição volêmica devido a sangramento com solução fisiológica na razão 1:1).

Variáveis dinâmicas baseadas na interação entre o ciclo pulmonar e cardíaco, como VPP, são consideradas os melhores preditores de resposta a volume em pacientes durante anestesia geral e ventilação mecânica1010 Cannesson M. Arterial pressure variation and goal-directed fluid therapy. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2010;24:487-97. em comparação a PVC ou outros parâmeteros estáticos. Os valores de VPP acima de 9% e abaixo de 13% são menos confiáveis do que valores muito extremos na previsão da resposta à infusão com cristaloide: para evitar essa “zona cinzenta”, escolhemos VPP ≥ 12% para desencadear o aumento da velocidade de administração da solução fisiológica.

Embora todos os pacientes fossem conectados ao monitor MostCareUP, os anestesiologistas que executaram a anestesia eram cegos aos dados do MostCareUP no Grupo Reposição Liberal, e isso foi possível cobrindo a tela do MostCareUP com um cobertor opaco.

Período pós-operatório

Todos os médicos envolvidos na assistência do pós-operatório eram cegos quanto ao grupo de tratamento. O tratamento pós-operatório foi o mesmo para ambos os grupos, seguindo os protocolos padronizados de nosso centro de transplante. Cada paciente foi admitido à divisão de terapia semi-intensiva da Unidade de Transplante e gerenciado com protocolo de tratamento com volume padronizado, recebendo quanto volume fosse necessário para ajustar o DU. Os pacientes recebiam 60 mg de furosemida intravenosa a cada oito horas se o valor do DU fosse menor do que 0,5 mL.kg-1.h-1. Os pacientes eram submetidos à diálise se o DU estivesse abaixo de 0,5 mL.kg-1.h-1 com sinais clínicos de sobrecarga de volume, potassemia acima de 6,5 mEq.L-1 ou ureia sanguínea acima de 40 mmoL.L-1.

Variáveis

Coletamos os seguintes dados de cada paciente: idade, sexo (F/M), peso (kg), altura (cm), Índice de Massa Corpórea (IMC) (kg.m-2), Superfície Corpórea (m2), classe ASA, diálise e/ou diurese residual (mL/dia). Além disso, coletamos parâmetros relacionados ao rim transplantado: tempo de isquemia (min), escore Karpinsky1212 Karpinski J, Lajoie G, Cattran D, et al. Outcome of kidney transplantation from high-risk donors is determined by both structure and function. Transplantation. 1999;67:1162-7. (0-12) e fluidos administrados no intraoperatório (mL).

O MostCareUP registra valores batimento a batimento. Para facilitar a análise, consideramos quatro tempos: a) Base, após intubação traqueal (T0), b) Antes da anastomose arterial (T1), c) 15 minutos após anastomose arterial (T2) e d) Após extubação traqueal (T3). Em cada momento, um valor correspondente das seguintes variáveis do monitor MostCareUP foi obtido pela média de um período de cinco minutos: Pressão Arterial (PA), Frequência Cardíaca (FC), PAM, SpO2, Índice Cardíaco (IC), Índice de Volume Sistólico (IVS), Elastância Arterial (Ea), Eficiência do Ciclo Cardíaco (ECC), VPP, Variação do Volume Sistólico (VVS).

Registramos Débito Urinário (DU) da anastomose ureteral até a alta do centro cirúrgico (normalmente, 30 minutos após extubação) e PVC na alta do centro cirúrgico.

Determinação de processo cego

Pacientes, cirurgiões, clínicos de enfermaria e os estatísticos eram cegos à alocação do grupo.

Análise estatística

Para determinar o tamanho de amostra necessário, consideramos o DU na primeira hora do pós-operatório como 852 ± 170 mL.1313 Othman MM, Ismael AZ, Hammouda GE. The impact of timing of maximal crystalloid hydration on early graft function during kidney transplantation. Anesth Analg. 2010;110:1440-6. Consideramos como estatisticamente significante a diferença de 20% no DU na primeira hora após o transplante no grupo intervenção. O tamanho de amostra necessário para detectar a diferença acima mencionada no DU com poder de 85%, nível de significância de 0,05 e considerando razão de alocação de 1:1 foi 36 pacientes. Estimamos a perda de 10% dos pacientes durante o seguimento, e por essa razão decidimos incluir 40 pacientes no estudo. A distribuição normal das variáveis quantitativas foi analisada usando o teste Shapiro-Wilk. As variáveis foram comparadas usando o teste t de Student bicaudal para as variáveis com distribuição normal, e o teste U de Mann-Whitney quando apresentavam distribuição não-normal. Variáveis contínuas são apresentadas como média ± Desvio Padrão (DP) e Intervalo de Confiança de 95% (IC). Os valores da mediana, primeiro e terceiro quartis são apresentados para variáveis com distribuição não normal. As variáveis apresentadas como porcentagens foram comparadas entre os grupos usando o teste Qui-Quadrado ou o teste exato de Fisher, conforme o caso apropriado.

Todas as análises estatísticas foram conduzidas usando R versão 3.4.0 (2017-04-21). Os valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes, e o Prism (GraphPad Software, San Diego, CA, EEUU) foi usado para criar os gráficos. Seguimos as diretrizes CONSORT1414 Boutron I, Altman DG, Moher D, et al. CONSORT Statement for Randomized Trials of Nonpharmacologic Treatments: A 2017 Update and a CONSORT Extension for Nonpharmacologic Trial Abstracts. Ann Intern Med. 2017;167:40-7. para o relato do estudo.

Resultados

Foram submetidos a TR de doador cadáver na nossa instituição um total de 89 pacientes de 10 de março de 2018 a 1 de janeiro de 2019; 19 foram excluídos porque não obedeciam aos critérios de inclusão (fig. 1), ficando 70 pacientes disponíveis. Dos 70, 20 foram excluídos porque se recusaram a participar, e 10 pacientes não foram incluídos porque a equipe de pesquisa não estava disponível no dia do procedimento. Quarenta pacientes foram incluídos no estudo, um dos quais retirou o consentimento após o processo de randomização, permanecendo 39 pacientes (20 pacientes no Grupo VPP e 19 pacientes no Grupo Reposição Liberal) na presente análise.

Figura 1
Fluxograma CONSORT.

Todos os doadores e receptores eram brancos; não havia doadores sem batimentos cardíacos. Todos os transplantes foram únicos. As variáveis demográficas eram homogêneas entre os dois grupos (tabela 1).

Tabela 1
Dados demográficos

Os dados pré-operatórios e intraoperatórios do TR são apresentados na tabela 2. Os pacientes no Grupo VPP receberam menos fluidos intraoperatórios (p = 0,010). As variáveis hemodinâmicas intraoperatórias são resumidas na tabela 3. As diferenças estatísticas entre os grupos foram encontradas para o IVS no T1 (p = 0,012), a VPP no T2 (p = 0,033) e a PAM no T3 (p = 0,038).

Tabela 2
Dados pré-operatórios e intraoperatórios
Tabela 3
Variáveis hemodinâmicas intraoperatórias

A figura 2 descreve a tendência da ureia e creatinina sanguíneas durante a primeira semana do pós-operatório e na alta hospitalar.

Figura 2
Painel A: Médias e intervalos de confiança de creatinina na primeira semana do pós-operatório. Painel B: Médias e intervalos de confiança de ureia na primeira semana do pós-operatório. D: Alta hospitalalar. *valor p < 0,05, **valor p < 0,01.

O DU e consequentemente o volume de fluido administrado foi semelhante nos dois grupos no primeiro dia pós-operatório (Grupo VPP: 2520 mL [FIQ = 2632 mL] versus Grupo Reposição Liberal: 1950 mL [FIQ = 2463 mL]; p = 0,890) e nos dias subsequentes na primeira semana pós-operatória. A ureia foi estatisticamente diferente a partir do terceiro Dia Pós-Operatório (DPO) com pico no quarto DPO. A creatinina apresentou tendência semelhante, sendo estatisticamente diferente do segundo DPO. Ureia, creatinina e DU não estavam diferentes na alta hospitalar.

Três pacientes do Grupo VPP (15,8%) e cinco pacientes do Grupo Reposição Liberal (25%) precisaram de diálise no pós-operatório (p = 0,694). Cinco pacientes no Grupo Reposição Liberal (25%) e dois pacientes no Grupo VPP (10,5%) apresentaram sinais clínicos e radiográficos de sobrecarga de volume e necessitaram de oxigenoterapia (p = 0,410). Nenhum paciente apresentou sinais de isquemia do miocárdio no período perioperatório. Não houve diferença na dose cumulativa de furosemida entre os dois grupos (p = 0,456). Nenhum paciente exigiu drogas vasoativas no período pós-operatório.

O tempo de internação não foi diferente entre os grupos (Grupo VPP: 12 dias, FIQ = 3,5; Grupo Reposição Liberal: 12,5 dias FIQ = 6,25; p = 0,207).

Discussão

O estudo foi desenhado de modo a mostrar diferença de 20% no DU durante a primeira hora pós-transplante, e como não verificamos nenhuma diferença, a hipótese foi rejeitada.

Por essa razão, o principal achado do nosso estudo foi de que a estratégia VPP é tão adequada quanto a estratégia de reposição liberal para manter o DU em pacientes submetidos a TR.

Embora a mediana de DU no Grupo VPP fosse quase o dobro do Grupo Reposição Liberal, a diferença não atingiu significância estatística. A principal explicação para o achado pode estar vinculado ao tamanho relativamente pequeno da própria amostra. O estudo usado1313 Othman MM, Ismael AZ, Hammouda GE. The impact of timing of maximal crystalloid hydration on early graft function during kidney transplantation. Anesth Analg. 2010;110:1440-6. para determinar o tamanho da amostra estudou TR de doador vivo, enquanto o nosso estudo analisou TR de doador cadáver. Tempo de isquemia mais longo, condições do doador e rim podem ter tido um papel, aumentando a variabilidade no DU precoce. Por essa razão, mais estudos com uma população maior serão necessários para analisar se a estratégia de volume VPP pode ser mais efetiva do que a estratégia de reposição liberal para manter o DU em pacientes submetidos a TR.

Curiosamente, outro estudo que usou Terapia Orientada por Meta (TOM) para fluidos não encontrou nenhuma diferença no DU inicial.1515 Cavaleri M, Veroux M, Palermo F. Perioperative goal-directed therapy during kidney transplantation: an impact evaluation on the major postoperative complications. J Clin Med. 2019;8:80.

No nosso estudo, pacientes no Grupo VPP precisaram de menos volume durante a cirurgia. Embora não houvesse diferenças nas complicações respiratórias e cardíacas, sabe-se que pacientes de TR tem maior risco de sobrecarga de volume no período pós-operatório.44 De Gasperi A, Narcisi S, Mazza E, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: is volume overload still mandatory for graft function?. Transplant Proc. 2006;38:807-9.

Além disso, o Grupo VPP apresentou níveis mais baixos de ureia e creatinina na primeira semana pós-transplante, que novamente poderiam ser explicados pela sobrecarga de volume, que se sabe ser relacionada ao comprometimento da perfusão do enxerto, da microcirculação e do suprimento tecidual de oxigênio.44 De Gasperi A, Narcisi S, Mazza E, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: is volume overload still mandatory for graft function?. Transplant Proc. 2006;38:807-9.

Houve pequenas diferenças estatísticas entre os parâmetros hemodinâmicos intraoperatórios entre os grupos. De fato, somente IVS após indução da anestesia geral, VPP após anastomose arterial e PAM na extubação apresentaram diferença estatisticamente significante.

Embora SVI mais alta e VPP mais baixa no Grupo VPP pudessem resultar de TOM de reposição de volume customizada, a diferença na PAM após extubação pode ter resultado de maior administração de fluido posicionando os pacientes do Grupo Reposição Liberal na parte superior da curva de Frank-Starling.

As diferenças observadas na PAM (82,30 vs. 92,80 mmHg) podem não ter tido nenhum papel ou um pequeno papel na função do enxerto, como sugerido por Tóth.1616 Tóth M, Réti V, Gondos T. Effect of recipients’ perioperative parameters on the outcome of kidney transplantation. Clin Transplant. 1998;12:511-7. No seu estudo, Tóth1616 Tóth M, Réti V, Gondos T. Effect of recipients’ perioperative parameters on the outcome of kidney transplantation. Clin Transplant. 1998;12:511-7. observou níveis estáveis de creatinina em pacientes com PAM entre 80 e 100 mmHg, mas aumento da creatinina em pacientes com PAM < 80 mmHg.

A estratégia mais efetiva em termos de fluido no perioperatório de transplante renal é, de fato, desconhecida.66 Calixto Fernandes MH, Schricker T, Magder S, et al. Perioperative fluid management in kidney transplantation: a black box. Crit Care. 2018;22:14. Parâmetros padrão usados no ambiente intraoperatório, tais como PA, FC e PVC, se mostraram inadequados na previsão da função do enxerto após TR.77 Bacchi G, Buscaroli A, Fusari M, et al. The influence of intraoperative central venous pressure on delayed graft function in renal transplantation: a single-center experience. Transplant Proc. 2010;42:3387-91.

Historicamente, estratégia com base em PVC tem sido usada para orientar a expansão de volume durante transplante renal. Entretanto, a PVC não apresenta boa relação com o volume sanguíneo real e tem pouca capacidade de prever a resposta hemodinâmica a desafio de volume.1717 Campos L, Parada B, Furriel F. Do intraoperative hemodynamic factors of the recipient influence renal graft function?. Transplant Proc. 2012;44:1800-3.

Embora tenha sido sugerida a estratégia de expansão de volume tendo como alvo PVC entre 10 mmHg e 15 mmHg1 para melhorar o fluxo sanguíneo renal e aprimorar os desfechos do enxerto, essa estratégia tem vários obstáculos. Uma PVC elevada leva a pior função do enxerto,1818 Marik PE, Baram M, Vahid B. Does central venous pressure predict fluid responsiveness? A systematic review of the literature and the tale of seven mares. Chest. 2008;134:172-8.,1919 Baxi V, Jain A, Dasgupta D. Anaesthesia for renal transplantation: An Update. Indian J Anaesth. 2009;53:139-47. e a administração excessiva de volume poderia levar a edema pulmonar, isquemia do miocárdio e até aumento na mortalidade.

Dois estudos anteriores investigaram terapia de reposição de volume orientada por meta durante TR.1515 Cavaleri M, Veroux M, Palermo F. Perioperative goal-directed therapy during kidney transplantation: an impact evaluation on the major postoperative complications. J Clin Med. 2019;8:80.,2020 Corbella D, Toppin PJ, Ghanekar A. Cardiac output-based fluid optimization for kidney transplant recipients: a proof-of-concept trial. Can J Anaesth. 2018;65:873-83. Tanto Cavaleri et al.1515 Cavaleri M, Veroux M, Palermo F. Perioperative goal-directed therapy during kidney transplantation: an impact evaluation on the major postoperative complications. J Clin Med. 2019;8:80. quanto Corbella et al.2020 Corbella D, Toppin PJ, Ghanekar A. Cardiac output-based fluid optimization for kidney transplant recipients: a proof-of-concept trial. Can J Anaesth. 2018;65:873-83. aplicaram protocolo de otimização de Volume Sistólico (VS) com objetivos diferentes. O objetivo de Cavaleri1515 Cavaleri M, Veroux M, Palermo F. Perioperative goal-directed therapy during kidney transplantation: an impact evaluation on the major postoperative complications. J Clin Med. 2019;8:80. foi mostrar redução nas complicações precoces após TR usando monitor FloTracTM/EV1000, enquanto o objetivo de Corbella1919 Baxi V, Jain A, Dasgupta D. Anaesthesia for renal transplantation: An Update. Indian J Anaesth. 2009;53:139-47. foi avaliar se o uso de monitoramento com doppler esofageano alteraria a quantidade de fluido administrado durante TR.

Embora os objetivos e métodos desses estudos fossem diferentes dos nossos, as semelhanças nos resultados parecem evidentes: administração menor de volume no intraoperatório2020 Corbella D, Toppin PJ, Ghanekar A. Cardiac output-based fluid optimization for kidney transplant recipients: a proof-of-concept trial. Can J Anaesth. 2018;65:873-83. e melhor média de sete dias nos níveis de creatinina sérica em comparação com o grupo controle.1515 Cavaleri M, Veroux M, Palermo F. Perioperative goal-directed therapy during kidney transplantation: an impact evaluation on the major postoperative complications. J Clin Med. 2019;8:80.

Nosso estudo apresenta várias limitações que precisamos discutir. Um das mais importantes é a natureza monocêntrica do estudo. Em segundo lugar, avaliamos TR somente de doador cadáver e a inclusão de doador vivo poderia ter reduzido viés relacionado à isquemia do órgão. Além disso, consideramos parâmetros hemodinâmicos somente durante o período intraoperatório. Entretanto, reconhecemos que muitos fatores no período pós-operatório (especialmente hemodinâmicos) podem ter tido um papel na função inicial do enxerto. Além disso, somente complicações cardiovasculares foram avaliadas: poderia ter sido mais apropriado também avaliar complicações neurológicas, abdominais e infecciosas.

São necessários estudos futuros para identificar a melhor estratégia de manejo da reposição do volume durante TR, especialmente estudos randomizados controlados comparando diferentes estratégias TOM.

Resumo

Estratégia baseada em VPP é tão adequada quanto reposição liberal de volume durante TR e pode prevenir sobrecarga de volume.

  • Congressos: Resultados parciais já foram apresentados no Euroanesthesia 2019 (1−3 junho 2019).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2019
  • Aceito
    15 Fev 2020
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