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Manejo anestésico de angioedema de pressão tardio

Resumo

Justificativa e objetivos:

Angioedema de pressão tardio é uma forma rara de angioedema na qual um leve estímulo de compressão pode levar a edema após 1-12 horas. Essa entidade incomum e pouco relatada é especialmente importante em pacientes submetidos à anestesia geral, nos quais a habitual posição supina inofensiva, inserção intravenosa do cateter, monitoração padrão, manejo das vias aéreas e ventilação podem levar a consequências fatais, pois o gatilho é um estímulo físico.

Relato de caso:

Neste relato, descrevemos o manejo anestésico perioperatório bem-sucedido de um paciente de 30 anos idade, agendado para inserção de lente intraocular, com uma forma grave da doença, apresentava edema perioral, língual e nos membros.

Conclusão:

Devido à falta de evidências de qualidade, nossa conduta teve como base os mecanismos fisiopatológicos da síndrome, a liberação de histamina e citocinas pró-inflamatórias, com foco especial em uma avaliação cuidadosa no perioperatório e profilaxia, diminuição de todos os estímulos compressíveis possíveis, especialmente nas estruturas das vias aéreas, e um acompanhamento rigoroso no pós-operatório.

PALAVRAS-CHAVE
Angioedema; Pressão; Via aérea

Abstract

Background and objectives:

Late pressure angioedema is a rare form of angioedema in which light pressure stimulus can lead to edema after 1-12 h. This uncommon and unreported entity is especially important in patients who undergo general anesthesia, for whom the usual harmless supine position, intravenous catheter insertion, standard monitoring, airway management and ventilation can lead to life threatening consequences as the trigger is a physical stimulus.

Case report:

In this report, we describe a successful perioperative anesthetic management of a 30 year old patient, proposed for intra-ocular lens insertion, with a severe form of the disease with peri-oral, tongue and limb edema presentation.

Conclusion:

Due to lack of quality evidence, our conduct was based on the pathophysiology mechanisms of the syndrome, histamine and pro-inflammatory cytokines release, with special focus on a careful peri-operative assessment and prophylaxis, minimization of all the possible pressure stimulus, especially in the airway structures, and a strict post-operative monitoring.

KEYWORDS
Angioedema; Pressure; Airway

Introdução

Angioedema de pressão tardio (AEPT) é uma entidade infrequente, caracterizada pelo inchaço da pele e dos tecidos moles profundos 1-12 h após uma leve pressão.11 Cassano N, Mastrandrea V, Vestita M, et al. An overview of delayed pressure urticaria with special emphasis on pathogenesis and treatment. Dermatol Ther. 2009;22(Suppl. 1):S22-6.

2 Lawlor F, Kobza Black A. Delayed pressure urticarial. Immunol Allergy Clin North Am. 2004;24:247-58.
-33 Paxton W. Anesthetic management of delayed pressure urticaria: a case report. AANA J. 2011;79:106-8. Ocasionalmente, eritema, dor, prurido e sintomas gripais e artralgia coexistem. A etiopatogenia do AEPT ainda é desconhecida, embora as evidências disponíveis sugiram o envolvimento de mastócitos e de vários mediadores, exclusive a histamina, mas inclusive as citocinas pró-inflamatórias.22 Lawlor F, Kobza Black A. Delayed pressure urticarial. Immunol Allergy Clin North Am. 2004;24:247-58. O manejo do AEPT é complexo e a prevenção muito difícil, pois o único gatilho conhecido é o estímulo físico que é quase impossível de abolir.22 Lawlor F, Kobza Black A. Delayed pressure urticarial. Immunol Allergy Clin North Am. 2004;24:247-58.,44 Czecior E, Grzanka A, Kurak J, et al. Late dysphagia and dyspnea as complications of esophagogastroduodenoscopy in delayed pressure urticaria: case report. Dysphagia. 2012;27:148-50.

Em pacientes cirúrgicos, a manipulação não invasiva, como o posicionamento em supinação na mesa cirúrgica, ventilação via máscara facial, inserção de tubo orotraqueal e aplicação de torniquete no braço para canulação intravenosa, procedimentos normalmente considerados inofensivos, pode levar a complicações importantes nesses pacientes.

Como somente relatos esparsos e incompletos sobre o manejo anestésico foram abordados na literatura, nossos procedimentos foram o resultado de julgamento clínico, de acordo com a fisiopatologia da doença e suas potenciais implicações clínicas.55 Muller B, Carver L. Urticaria and angioedema: a practical approach. Am Fam Phys. 2004;69:1123-8.

Consentimento para publicação

O paciente revisou o relato de caso e deu permissão por escrito aos autores para que o publicassem. Todos os autores descritos participaram do atendimento.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 30 anos, com história de angioedema de pressão tardio, apresentou-se para inserção de lente intraocular bilateral eletiva devido a miopia grave.

O paciente relatou que o aparecimento dos sintomas de angioedema teve início havia sete anos. Desde então, os sintomas ocorriam esporadicamente (3-4 vezes por mês) e eram caracterizados apenas por edema, sem eritema, prurido, dor ou outros sintomas sistêmicos, geralmente cinco horas após estimulação, com resolução espontânea em horas. O edema localizava-se principalmente na língua e região perioral, geralmente desencadeado por pressão leve (mordedura e pressão manual eram as mais comuns). O paciente também relatou edema ocasional nos pés e nas mãos. Não havia história de anafilaxia, urticária, reação alérgica a alimentos, medicamentos ou alérgenos ambientais ou história familiar de angioedema. O paciente teve acompanhamento regular com um alergologista e todos os testes diagnósticos eram negativos, inclusive hemograma, níveis de inibidores de C4 e C1 e função (estado basal e durante um ataque). Os níveis de TSH, T4 livre e de autoanticorpos da tiroide estavam dentro dos limites normais.

O paciente também apresentava história de refluxo gastroesofágico e gastrite e não tomava medicamentos regularmente.

O paciente havia sido submetido a duas cirurgias: apendicectomia feita havia 11 anos com anestesia geral e hernioplastia feita havia oito anos com anestesia neuraxial. Não houve complicações anestésicas com esses procedimentos; porém, ambos ocorreram antes dos primeiros sintomas de AEPT.

O paciente foi proposto para uma inserção de lente intraocular bilateral, um procedimento de curta duração, estimada em 30 minutos (min), feito em supinação.

Na consulta anestésica pré-operatória duas semanas antes da operação seu exame físico não revelou alteração.

Usamos o método regular de torniquete no braço para canulação IV (20G) na manhã da cirurgia. Uma hora antes da cirurgia, 10 mg de dexametasona, 10 mg de metoclopramida e 50 mg de ranitidina foram administrados por via intravenosa. Na sala de operação, os enfermeiros e cirurgiões foram todos aconselhados a minimizar o máximo possível o estímulo aplicado por pressão.

Usamos a monitoração padrão, com cuidado extra na aplicação dos eletrodos de ECG e no posicionamento do oxímetro. Optamos por medir a pressão arterial a cada 15 min e quando houvesse suspeita de qualquer alteração hemodinâmica.

A indução de sequência rápida foi feita com midazolam (15 mcg.kg-1), fentanil (2 mcg.kg-1), propofol (2 mg.kg-1) e rocurônio (1 mg.kg-1). A fase de indução transcorreu sem intercorrências.

Um dispositivo Airtraq para laringoscopia e um tubo traqueal reforçado foram usados. A intubação foi bem-sucedida na primeira tentativa e com apenas pressão suave nas estruturas laríngeas, a pressão do manguito foi monitorada com um manômetro (estabelecemos uma pressão de 25 cm H2O, a menor pressão sem vazamento de ar). A manutenção da anestesia foi feita com sevoflurano (1 CAM).

O paciente foi ventilado em modalidade de volume controlado, com volume corrente de 7 m.kg-1 e PEEP de 6 mm H2O, sem complicações ou pressões elevadas das vias aéreas.

No início do procedimento, também administramos 3 mg.kg-1 de hidrocortisona. No fim do procedimento, paracetamol (1 g), ondansetrona (4 mg) e sugamadex (2 mg.kg-1) foram administrados porque a TOF era de 22%.

Usamos um colchão especial que reduz a pressão e todas as áreas de pressão periférica foram acolchoadas.

O tubo orotraqueal recebeu acolchoamento extra e o cirurgião foi aconselhado sobre o cuidado extra em relação ao manejo da cabeça do paciente.

A emergência da anestesia transcorreu sem complicações e a extubação foi feita com manobras mínimas de sucção oral e atenta vigilância até a completa consciência.

Como o paciente era médico, ele acreditava que poderia aconselhar sobre a possibilidade de edema das vias aéreas. O paciente permaneceu na sala de recuperação pós-anestesia por 5 h sem qualquer instabilidade hemodinâmica, edema das vias aéreas ou quaisquer outros sintomas; não se queixou de dor e esteve sempre alerta e cooperativo. Durante esse período, não houve sinais de edema ou eritema na boca ou em qualquer outro local. O paciente foi transferido para a unidade de internação do hospital onde permaneceu por mais 3 h até receber alta do cirurgião. As próximas horas em casa transcorreram sem complicações.

Discussão

Apesar de sua incidência rara, em um paciente cirúrgico o AEPT pode ter implicações sérias. Mesmo um pequeno estímulo, que geralmente passa despercebido, pode causar complicações graves. O aprimoramento da anestesia no perioperatório pode ser um desafio, mas pode evitar eventos graves no período perioperatório.

Para um manejo seguro no perioperatório, primeiro é importante conhecer os estímulos desencadeantes para evitá-los ou minimizá-los, pois apenas o posicionamento sobre a mesa cirúrgica pode ser um gatilho nesses pacientes.

A história do paciente pode ser compatível com outras formas de edema, como angioedema hereditário, doença autoimune ou estar associada a algum fator causal específico, como alérgenos ambientais. Esses diagnósticos levariam a uma abordagem muito diferente, pois não há interferência direta de histaminas. Como os níveis e a função dos inibidores de C4 e C1 estavam normais e não havia história familiar de edema ou história de anafilaxia e os testes autoimunes eram negativos, a nossa suposição foi que o único gatilho seria a pressão física. Como o mecanismo fisiopatológico subjacente do AEPT é a liberação de histaminas e citocinas pró-inflamatórias, agimos de acordo com esse mecanismo.

Optamos pela anestesia geral, pois as técnicas locorregionais, como os bloqueios retro ou peribulbar, poderiam aumentar a pressão intraorbital e desencadear o angioedema com consequências devastadoras para o conteúdo de órgãos intraorbitais; portanto, essa não seria uma opção adequada.

Nossa primeira preocupação foi a canulação IV e a monitoração da pressão arterial. Apesar de nossa preocupação com a pressão do torniquete no braço para a canulação intravenosa (IV), uma amostra recente de sangue foi colhida sem intercorrências, portanto usamos o método regular de torniquete para a canulação IV (20G) na manhã da cirurgia, em detrimento da canulação guiada por ultrassom que teria sido uma ótima opção.

O paciente explicou que as mensurações da pressão arterial não causaram problemas anteriormente e, como o procedimento era de curta duração, optamos pelas técnicas regulares sem o uso de ultrassom como guia, apesar de a monitoração contínua da pressão arterial com uma linha arterial ser a opção mais segura para evitar o uso de esfigmomanômetro.

Teoricamente, a pré-medicação com corticoides e anti-histamínicos parece importante para minimizar os efeitos colaterais indesejados; portanto, usamos dexametasona, hidrocortisona e ranitidina, que teve um duplo papel como inibidor da acidez gástrica e como preventivo de angioedema.

O manejo das vias aéreas é a questão mais delicada nessa condição. O edema de via aérea pode ser impossível de solucionar ou mesmo de contornar, pode resultar em morbidade importante ou até morte. Os estímulos de pressão intensa durante laringoscopia, intubação e insuflação do manguito e ventilação via máscara facial devem ser evitados ou, quando não for possível, ajustados de forma que uma pressão mínima seja aplicada. A indução em sequência rápida parece ser uma opção mais segura para evitar a pressão manual e da máscara sobre a face, lábios e mandíbula. Para a laringoscopia, usamos um dispositivo Airtraq com pressão suave sobre as estruturas laríngeas para minimizar a pressão e o trauma da lâmina laringoscópica sobre a valécula e reduzir o risco de edema. Usamos um tubo traqueal reforçado devido a sua flexibilidade e características atraumáticas. Como o nosso paciente tinha refluxo esofágico e um tubo sem balão não era uma opção, usamos um tubo com balão, mas apesar da baixa pressão esse ponto de pressão foi a nossa principal preocupação.

Os cuidados em sala de recuperação pós-anestesia (SRPA) e na unidade de internação também são importantes e a comunicação entre o anestesiologista e as outras equipes é essencial para identificar qualquer problema com antecedência. A permanência prolongada na SRPA é uma medida segura, pois o manejo da emergência da anestesia é geralmente mais rápido porque o pessoal é bem treinado para lidar com complicações das vias aéreas e os recursos técnicos estão prontamente disponíveis.

Conclusão: houve vários desafios e alguma improvisação técnica foi necessária devido à falta de evidências. Os pacientes cirúrgicos com AEPT podem apresentar sérias complicações no pós-operatório, mas uma avaliação cuidadosa no perioperatório com a minimização de todos os possíveis estímulos de pressão, especialmente sobre as estruturas das vias aéreas, pode evitar a morbidade e permitir um pós-operatório sem complicações.

References

  • 1
    Cassano N, Mastrandrea V, Vestita M, et al. An overview of delayed pressure urticaria with special emphasis on pathogenesis and treatment. Dermatol Ther. 2009;22(Suppl. 1):S22-6.
  • 2
    Lawlor F, Kobza Black A. Delayed pressure urticarial. Immunol Allergy Clin North Am. 2004;24:247-58.
  • 3
    Paxton W. Anesthetic management of delayed pressure urticaria: a case report. AANA J. 2011;79:106-8.
  • 4
    Czecior E, Grzanka A, Kurak J, et al. Late dysphagia and dyspnea as complications of esophagogastroduodenoscopy in delayed pressure urticaria: case report. Dysphagia. 2012;27:148-50.
  • 5
    Muller B, Carver L. Urticaria and angioedema: a practical approach. Am Fam Phys. 2004;69:1123-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    1 Jun 2016
  • Aceito
    12 Set 2016
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