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Uso de bloqueadores neuromusculares no Brasil

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi avaliar como os anestesiologistas brasileiros estão usando os bloqueadores neuromusculares (BNM), com foco na forma de estabelecer o diagnóstico da curarização residual pós-operatória e a incidência de complicações atribuídas ao uso de BNM. Um questionário foi enviado a anestesiologistas convidando-os a participar da pesquisa (tabela 1). A coleta online de dados permaneceu aberta de março de 2012 a junho de 2013. Durante o período de estudo foram coletadas 1.296 respostas. Rocurônio, atracúrio e cisatracúrio foram os principais bloqueadores neuromusculares usados em casos de cirurgia eletiva. Succinilcolina e rocurônio foram os principais BNM usados em casos de cirurgia de emergência. Menos de 15% dos anestesiologistas referiram que usam frequentemente monitores da função neuromuscular. Apenas 18% dos envolvidos no estudo referiram que todos os locais de trabalho têm tal monitor. A maioria dos entrevistados afirmou que usa somente o critério clínico para avaliar se o paciente está recuperado do relaxante. A maioria dos entrevistados também relatou que sempre usa algum tipo de reversão de bloqueio neuromuscular. As principais complicações atribuídas aos BNM foram curarização residual e bloqueio prolongado. Houve relato por 18 anestesiologistas de óbito atribuído a BNM. O bloqueio residual ou prolongado se registra, possivelmente, como consequência do alto índice do uso de critérios clínicos para diagnosticar se o paciente está recuperado ou não do bloqueio motor e, como um corolário, o baixo uso de monitores da transmissão neuromuscular na prática diária.

Palavras-chave:
Bloqueadores neuromusculares; Pesquisas sobre serviços de saúde; Monitoração neuromuscular

ABSTRACT

The objective of this study was to evaluate how Brazilian anesthesiologists are using neuromuscular blockers, focusing on how they establish the diagnosis of postoperative residual curarization and the incidence of complications associated with the use of neuromuscular blockers. A questionnaire was sent to anesthesiologists inviting them to participate in the study. The online data collection remained open from March 2012 to June 2013. During the study period, 1296 responses were collected. Rocuronium, atracurium, and cisatracurium were the main neuromuscular blockers used in cases of elective surgery. Succinylcholine and rocuronium were the main neuromuscular blockers used in cases of emergency surgery. Less than 15% of anesthesiologists reported the frequent use of neuromuscular function monitors. Only 18% of those involved in the study reported that all workplaces have such a monitor. Most respondents reported using only the clinical criteria to assess whether the patient is recovered from the muscle relaxant. Most respondents also reported always using some form of neuromuscular blockade reversal. The major complications attributed to neuromuscular blockers were residual curarization and prolonged blockade. Eighteen anesthesiologists reported death attributed to neuromuscular blockers. Residual or prolonged blockade is possibly recorded as a result of the high rate of using clinical criteria to diagnose whether the patient has recovered or not from motor block and, as a corollary, the poor use of neuromuscular transmission monitors in daily practice.

Keywords:
Neuromuscular blockers; Research on health services; Neuromuscular monitoring

Introdução

A curarização residual pós-operatória (PORC) é uma complicação de considerável incidência e comprovados efeitos colaterais, por vezes potencialmente fatais.11. Berg H, Roed J, Viby-Mogensen J, et al. Residual neuromuscular block is a risk factor for postoperative pulmonary complications. A prospective, randomised, and blinded study of postopera- tive pulmonary complications after atracurium, vecuronium and pancuronium. Acta Anaesthesiol Scand. 1997;41:1095-103. 22. Mathias LA, da ST, de Bernardis RCG. Postoperative residual paralysis. Rev Bras Anestesiol. 2012;62:439-50. 33. Warner MA. Perioperative mortality: intraoperative anesthetic management matters. Anesthesiology. 2005;102:251-2. 44. Brull SJ, Naguib M, Miller RD. Residual neuromuscular block: rediscovering the obvious. Anesth Analg. 2008;107:11-4. 55. Eikermann M, Vogt FM, Herbstreit F, et al. The predisposition to inspiratory upper airway collapse during partial neuromuscular blockade. Am J Respir Crit Care Med. 2007;175:9-15. and 66. Eriksson LI, Sato M, Severinghaus JW. Effect of a vecuronium- induced partial neuromuscular block on hypoxic ventilatory response.. Anesthesiology 1993;78:693-9.

O diagnóstico de graus profundos de relaxamento no fim de uma anestesia pode ser feito com o emprego de testes de cabeceira; no entanto, bloqueios residuais de curare só são detectados com uso de monitoração objetiva da transmissão neuromuscular (TNM), por meio da sequência de quatro estímulos (TOF) e acelerometria.77. Murphy GS, Brull SJ. Residual neuromuscular block: lessons unlearned. Part I: Definitions, incidence, and adverse physi- ologic effects of residual neuromuscular block.. Anesth Analg 2010;111:120-8. 88. Fuchs-Buder T, Claudius C, Skovgaard LT, et al. Good clinical research practice in pharmacodynamic studies of neuromuscular blocking agents II: the Stockholm revision.. Acta Anaesthesiol Scand 2007;51:789-808. 99. Eikermann M, Groeben H, Hüsing J, et al. Accelerometry of adductor pollicis muscle recovery of predicts respiratory function from neuromuscular blockade.. Anesthesiology 2003;98:1333-7. 1010. Mortensen CR, Berg H, el-Mahdy A, et al. Perioperative moni- toring of neuromuscular transmission using acceleromyography prevents residual neuromuscular block following pancuronium.. Acta Anaesthesiol Scand 1995;39:797-801. and 1111. Gätke MR, Viby-Mogensen J, Rosenstock C, et al. Postopera- tive muscle paralysis after rocuronium: less residual block when acceleromyography is used.. Acta Anaesthesiol Scand 2002;46:207-13. Embora haja um consenso na literatura sobre a forma do diagnóstico, bem como sobre as consequências dessa complicação, a frequência de uso de monitores da TNM continua muito baixa, mesmo em países desenvolvidos.1212. Sorgenfrei IF, Viby-Mogensen J, Swiatek FA. Does evidence lead to a change in clinical practice? Danish anaesthetists' and nurse anesthetists' clinical practice and knowledge of postoperative residual curarization. Ugeskr Laeger. 2005;167:3878-82. 1313. Fuchs-Buder T, Hofmockel R, Geldner G, et al. The use of neuro- muscular monitoring in Germany. Anaesthesist. 2003;52:522-6. and 1414. Grayling M, Sweeney BP. Recovery from neuromuscular block- ade: a survey of practice. Anaesthesia. 2007;62:806-9.

O objetivo desta pesquisa foi avaliar como os anestesiologistas brasileiros estão usando os bloqueadores neuromusculares (BNM), com foco na forma de estabelecer o diagnóstico da PORC e a incidência de complicações atribuídas ao uso de BNM, e comparar os resultados com os obtidos em pesquisa semelhante feita há 10 anos no Brasil15 (tabela 1).

Tabela 1 -
Questionário enviado aos participantes da pesquisa

Método

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos sob o protocolo 2205/2011, foi enviado um e-mail aos anestesiologistas cadastrados no banco de dados da Sociedade Brasileira de Anestesiologia e da Anestech, convidando os membros a participar da pesquisa "Uso de bloqueadores neuromusculares no Brasil". No corpo do e-mail, os participantes foram informados de que a participação não era obrigatória, que a coleta das respostas seria anônima e que os dados seriam sigilosos e não rastreáveis. O questionário era composto de dez perguntas, duas sobre dados demográficos e oito acerca da escolha do uso de BNM, monitoração da função neuromuscular, reversão de bloqueio e complicações atribuídas do uso desses fármacos.

Os participantes acessaram um link que os direcionava a umwebsite para coleta online de dados (Survey Monkey, EUA). A coleta de dados permaneceu aberta de março de 2012 a junho de 2013. Para aumentar a taxa de respostas foram enviados três convites aos participantes da pesquisa. Os dados foram descritos como frequência (porcentagem).

Resultados

O convite para participar da pesquisa foi enviado para 9.910 anestesiologistas. Durante o período de estudo foram coletadas 1.296 respostas.

Quanto ao tempo de exercício na especialidade houve predominância de anestesiologistas com mais de 11 anos de experiência (53,8%), 30,7% e 15,5% de respondedores com até cinco anos de especialidade e entre 6-10 anos, respectivamente.

A distribuição dos participantes foi maioria da região Sudeste (52,4%), seguidos de participantes do Sul (20,6%), Nordeste (15,6%), Centro-Oeste (8,4%) e Norte (3%).

A maioria dos anestesiologistas que responderam ao questionário referiu que rocurônio, atracúrio e cisatracúrio eram os principais bloqueadores neuromusculares usados em casos de cirurgia eletiva. Esses dados estão descritos na figura 1.

Figura 1
BNM mais usados para intubação orotraqueal em casos de cirurgia eletiva. Total de respostas 1.296.

A maioria dos anestesiologistas referiu que succinilcolina e rocurônio eram os principais BNM usados em casos de cirurgia de emergência. Os dados estão demonstrados na figura 2.

Figura 2
BNM mais usados para intubação orotraqueal em casos de cirurgia de emergência. Total de respostas 1.294.

Menos de 15% dos anestesiologistas que participaram do estudo referiram que usam frequentemente monitores da função neuromuscular (fig. 3). Apenas 18% dos envolvidos no estudo referiram que todos os locais de trabalho têm tal monitor (fig. 4).

Figura 3
Padrão de uso do monitor de função neuromuscular. Total de respostas 1.296.

Figura 4
Disponibilidade de monitor da transmissão neuromuscular TOF nos locais de trabalho de 1.292 anestesiologistas.

No que concerne à reversão do bloqueio neuromuscular no fim da anestesia, a maioria dos entrevistados afirmou que usa somente o critério clínico para avaliar se o paciente está recuperado do relaxante. A maioria dos entrevistados também relatou que sempre usa algum tipo de reversão de bloqueio neuromuscular (neostigmina ou sugamadex) no fim da anestesia. Os dados estão descritos nasFigura 5 and Figura 6.

Figura 5
Critério usado para avaliar a recuperação do paciente após o bloqueio neuromuscular por 1.291 anestesiologistas.

Figura 6
Uso de reversão do bloqueio neuromuscular (neostigmina ou sugamadex) no fim da anestesia. Total de respostas 1.296.

As complicações atribuídas ao uso de BNM estão descritas na figura 7. As principais foram curarização residual e bloqueio prolongado. A maioria dos entrevistados referiu que os pacientes evoluíram sem sequelas após as complicações, mas houve relato por 18 anestesiologistas de óbito atribuído a BNM (fig. 8).

Figura 7
Complicações atribuídas ao uso de BNM por 1.160 anestesiologistas.

Figura 8
Evolução dos pacientes que apresentaram complicações atribuídas ao uso de BNM. Total de respostas 1.156.

Discussão

A presente enquete apresentou 13% de questionários respondidos (1.296 de 9.910 questionários enviados). Encontramos um percentual de respostas semelhante ao de Naguib et al.,1616. Naguib M, Kopman AF, Lien CA, et al. A survey of current management of neuromuscular block in the United States and Europe.. Anesth Analg 2010;111:110-9. cujo percentual foi de 10% (1.792 de 17.870) nos Estados Unidos da América e de 15% (844 de 4.807) na Europa. Phillips et al.,1717. Phillips S, Stewart PA, Bilgin AB. A survey of the management of neuromuscular blockade monitoring in Australia and New Zealand. Anaesth Intensive Care. 2013;41:374-9. na Austrália e Nova Zelândia, obtiveram um número discretamente superior em termos percentuais (21%). Entretanto, o número total de respondentes se limitou a 678.

Principais bloqueadores neuromusculares usados

Os principais BNM usados no Brasil para os procedimentos cirúrgicos eletivos são rocurônio, atracúrio e cisatracúrio. Os resultados registrados em estudo anterior mostraram que os BNM mais empregados há 10 anos eram atracúrio, pancurônio e succinilcolina.1515. Almeida MCS. O uso de bloqueadores neuromusculares no Brasil.. Rev Bras Anestesiol 2004;54:850-64. Em outras regiões do mundo esse uso é discretamente diferente. Naguib et al.1616. Naguib M, Kopman AF, Lien CA, et al. A survey of current management of neuromuscular block in the United States and Europe.. Anesth Analg 2010;111:110-9. demonstraram que, na Europa, os três bloqueadores neuromusculares mais frequentemente usados são rocurônio (75%), atracúrio (49%) e succinilcolina (47%) e nos EUA, rocurônio (89%), vecurônio (63%) e cisatracúrio (47%). Especificadamente na França, os BNM mais usados são o atracúrio e o cisatracúrio.1818. Beny K, Piriou V, Dussart C, et al. Impact of sugammadex on neuromuscular blocking agents use: a multicentric, pharmaco- epidemiologic study in French university hospitals and military hospitals. Ann Fr Anesth Reanim. 2013;32:838-43. Poderíamos dizer que, nos EUA, há uma tendência de maior uso dos BNM esteroidais, enquanto que na França, dos benzilisoquinolínicos. No Brasil há uma distribuição mais homogênea de uso tanto dos BNM esteroidais quanto benzilisoquinolínicos. Poderíamos explicar essa diferença entre os países por razões de oferta de mercado e pela incidência de efeitos adversos, especialmente reações anafiláticas, que parecem ser diferentes nas diversas regiões do mundo.1919. Sadleir PHM, Clarke RC, Bunning DL, et al. Anaphylaxis to neuromuscular blocking drugs: incidence and cross-reactivity in Western Australia from 2002 to 2011. Br J Anaesth. 2013;110:981-7. 2020. Mertes PM, Tajima K, Regnier- Kimmoun MA, et al. Perioperative anaphylaxis. Med Clin North Am. 2010;94:761-89. 2121. Dewachter P, Mouton-Faivre C, Emala CW. Anaphylaxis and anesthesia: controversies and new insights.. Anesthesiology 2009;111:1141-50. and 2222. Dong SW, Mertes PM, Petitpain N, et al. Hypersensitivity reac- tions during anesthesia. Results from the ninth French survey (2005-2007). Minerva Anestesiol. 2012;78:868-78.

Intubação traqueal na emergência

A succinilcolina permanece o fármaco de escolha pelos respondentes para intubação traqueal na emergência, resultado semelhante ao registrado em pesquisa anterior,1515. Almeida MCS. O uso de bloqueadores neuromusculares no Brasil.. Rev Bras Anestesiol 2004;54:850-64. e o rocurônio figura como uma segunda opção hoje. O mesmo resultado foi encontrado por Eldawlatly et al.2323. Eldawlatly A, El- Tahan MR. A survey of the current use of neuromuscular blocking drugs among the Middle Eastern anes- thesiologists. Saudi J Anaesth. 2013;7:146-50. no Oriente Médio e por Naguib et al.1616. Naguib M, Kopman AF, Lien CA, et al. A survey of current management of neuromuscular block in the United States and Europe.. Anesth Analg 2010;111:110-9. na Europa e nos EUA. Isso pode ser explicado pelo rápido início de ação e pela duração clínica ultracurta da succinilcolina. O rocurônio surgiu como uma opção pelo perfil semelhante de início de ação e especialmente pela possibilidade de reversão rápida com sugamadex. O sugamadex na dose de 16 mg.kg-1 é capaz de reverter completamente o bloqueio neuromuscular profundo induzido pelo rocurônio, em menor tempo do que da recuperação espontânea de uma dose de 1 mg.kg-1 de succinilcolina.2424. Sørensen MK, Bretlau C, Gätke MR, et al. Rapid sequence induction and intubation with rocuronium-sugammadex com- pared with succinylcholine: a randomized trial.. Br J Anaesth 2012;108:682-9. Com essa plasticidade de uso, pode-se conjecturar que a introdução do sugamadex no mercado europeu seja a causa do aumento do consumo de rocurônio na França.18

Critérios clínicos para diagnosticar o término do bloqueio

A maioria dos anestesiologistas brasileiros continua a usar clínicos para diagnosticar o término do relaxamento muscular,1515. Almeida MCS. O uso de bloqueadores neuromusculares no Brasil.. Rev Bras Anestesiol 2004;54:850-64. a exemplo do registrado na Austrália e Nova Zelândia.1717. Phillips S, Stewart PA, Bilgin AB. A survey of the management of neuromuscular blockade monitoring in Australia and New Zealand. Anaesth Intensive Care. 2013;41:374-9. Essa é uma conduta questionável, uma vez que diversos autores demonstraram que os testes clínicos, isoladamente ou em conjunto, apresentam baixa sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de bloqueio neuromuscular residual.

O bloqueio neuromuscular residual pode estar presente a despeito do uso de monitores subjetivos da função neuromuscular, testes clínicos e uso de agentes reversores.2525. Baillard C. Incidence and complications of post operative resid- ual paralysis.. Ann Fr Anesth Reanim 2009;28 Suppl. 2:S41-5. and 2626. Kotake Y, Ochiai R, Suzuki T, et al. Reversal with sugammadex in the absence of monitoring did not preclude residual neuro- muscular block.. Anesth Analg 2013;117:345-51. Somente a monitoração objetiva da função neuromuscular é capaz de diagnosticar o grau de bloqueio neuromuscular residual e considera-se atualmente, que a relação T4/T1, pela sequência de quatro estímulos, deve ser igual ou preferencialmente superior a 0,9 para se considerar ausência de bloqueio neuromuscular residual. Di Marco et al., em estudo sobre o conhecimento acerca da curarização residual na Itália, demonstraram que apenas 24% dos anestesiologistas responderam que a relação T4/T1 segura para a extubação traqueal era de 0,9.2727. Di Marco P, Della Rocca G, Iannuccelli F, et al. Knowledge of residual curarization: an Italian survey.. Acta Anaesthesiol Scand 2010;54:307-12. Esse resultado é semelhante a outros registrados na Austrália e na Nova Zelândia, onde anestesiologistas consideraram a relação T4/T1 ≥ 0,9 como critério aceitável para extubação traqueal segura.1717. Phillips S, Stewart PA, Bilgin AB. A survey of the management of neuromuscular blockade monitoring in Australia and New Zealand. Anaesth Intensive Care. 2013;41:374-9. Os resultados da presente enquete mostram que, no Brasil, somente 4,6% usam apenas o monitor para o diagnóstico de recuperação do relaxamento muscular. Provavelmente, não é somente o conhecimento científico desatualizado por parte do anestesiologista, mas também a carência de monitores de função neuromuscular.

Uso de monitor e disponibilidade de monitores

A presente enquete mostrou que somente 14% dos anestesiologistas brasileiros usam rotineiramente a monitoração objetiva da função neuromuscular, resultado bastante próximo do encontrado (17%) na Austrália e Nova Zelândia17 e muito inferior ao percentual na França, que é de 52% quando se usa dose única de BNM e 74% quando se usam doses de manutenção.2828. Fuchs-Buder T, Meistelman C. Monitoring of neuromuscular block and prevention of residual paralysis.. Ann Fr Anesth Reanim 2009;28 Suppl. 2:S46-50.

Na presente pesquisa, apenas 18% dos locais de trabalho dos respondentes brasileiros têm monitor de função neuromuscular. Esses resultados aproximam-se daqueles encontrados nos EUA (22%) e diferem largamente daqueles encontrados na Europa (70%),1616. Naguib M, Kopman AF, Lien CA, et al. A survey of current management of neuromuscular block in the United States and Europe.. Anesth Analg 2010;111:110-9. embora no estudo brasileiro não haja separação de monitores qualitativos dos quantitativos. Na Austrália e na Nova Zelândia monitores quantitativos da função neuromuscular estão disponíveis em 58% dos hospitais onde os respondentes praticam a anestesia, números superiores aos encontrados no Brasil.1717. Phillips S, Stewart PA, Bilgin AB. A survey of the management of neuromuscular blockade monitoring in Australia and New Zealand. Anaesth Intensive Care. 2013;41:374-9.

Reversão do bloqueadores neuromusculares

Quanto à reversão do bloqueio neuromuscular, a presente enquete demonstrou que perto da metade dos anestesiologistas sempre usa agentes reversores, seja neostigmina ou sugamadex. Esse fato talvez seja resultado da indisponibilidade de monitores da transmissão neuromuscular na maioria dos hospitais brasileiros. Entretanto essa conduta pode ser questionada uma vez que o uso de neostigmina após a completa recuperação do bloqueio neuromuscular pode resultar em fraqueza muscular. Nesta pesquisa, apenas 14% responderam que o uso do agente reversor se condiciona ao resultado do TOF. Esse dado é inferior ao encontrado entre os anestesiologistas do Oriente Médio2323. Eldawlatly A, El- Tahan MR. A survey of the current use of neuromuscular blocking drugs among the Middle Eastern anes- thesiologists. Saudi J Anaesth. 2013;7:146-50. e poderia ser explicado pela carência de monitores da transmissão neuromuscular no Brasil.

Complicações do uso do bloqueadores neuromusculares e da reversão

As complicações mais citadas na presente enquete são o bloqueio neuromuscular residual seguido do bloqueio neuromuscular prolongado. Esteves et al.2929. Esteves S, Martins M, Barros F, et al. Incidence of postopera- tive residual neuromuscular blockade in the postanaesthesia care unit: an observational multicentre study in Portugal. Eur J Anaesthesiol. 2013;30:243-9. encontraram uma incidência de bloqueio neuromuscular residual (TOF < 0,9) de 26%. Isso demonstra que, a despeito do conhecimento científico do problema e do uso de sugamadex, ainda permanece alta a ocorrência dessa complicação.3030. Kaan N, Kocaturk O, Kurt I, et al. The incidence of resid- ual neuromuscular blockade associated with single dose of intermediate-acting neuromuscular blocking drugs. Middle East J Anesthesiol. 2012;21:535-41.

No Brasil, o uso de critérios clínicos para monitorar o fim do bloqueio neuromuscular e a carência de monitoração objetiva da transmissão neuromuscular podem ser uma das causas desse problema. Na Austrália e na Nova Zelândia, 71% de respondentes de uma enquete subestimam a incidência de curarização residual.1717. Phillips S, Stewart PA, Bilgin AB. A survey of the management of neuromuscular blockade monitoring in Australia and New Zealand. Anaesth Intensive Care. 2013;41:374-9.

O bloqueio neuromuscular residual pode resultar em graves complicações clínicas.3131. Kumar GV, Nair AP, Murthy HS, et al. Residual neuromuscular blockade affects postoperative pulmonary function. Anesthesi- ology. 2012;117:1234-44. and 3232. Cedborg AIH, Sundman E, Bodén K, et al. Pharyngeal func- tion and breathing pattern during partial neuromuscular block in the elderly: effects on airway protection.. Anesthesiology 2014;120:312-25.

Os dados da presente enquete demonstram que 26% referem reações alérgicas como complicação do uso de BNM. Dentre os agentes usados na anestesia, os BNM são os que mais causam anafilaxia, com um percentual de 58%.1919. Sadleir PHM, Clarke RC, Bunning DL, et al. Anaphylaxis to neuromuscular blocking drugs: incidence and cross-reactivity in Western Australia from 2002 to 2011. Br J Anaesth. 2013;110:981-7. and 3333. Mertes PM, Alla F, Tréchot P, et al. Anaphylaxis during anesthesia in France: an 8-year national survey. J Allergy Clin Immunol. 2011;128:366-73. A incidência de reações alérgicas durante a anestesia, obtida por meio de uma base de dados nacional francesa, é maior do que a estimativa prévia.3333. Mertes PM, Alla F, Tréchot P, et al. Anaphylaxis during anesthesia in France: an 8-year national survey. J Allergy Clin Immunol. 2011;128:366-73. Chong et al. encontraram que os BNM foram os agentes causais de anafilaxia durante anestesia geral em uma série de 23 doentes que apresentaram choque anafilático.3434. Chong YY, Caballero MR, Lukawska J, et al. Anaphylaxis dur- ing general anaesthesia: one-year survey from a British allergy clinic. Singap Med J. 2008;49:483-7.

A apneia prolongada referida por 9% e as arritmias cardíacas graves por 2% dos respondentes à presente pesquisa está listada nos resultados do estudo de Karanovic et al.3535. Karanovi´c N, Carev M, Kardum G, et al. Succinylcholine use in adult anesthesia - a multinational questionnaire survey. Coll Antropol. 2011;35 Suppl. 1:183-90. que apresentou os efeitos adversos mais frequentemente relatados para a succinilcolina: mialgia (47%), bloqueio prolongado (36%), reações alérgicas (13%) e assistolia (12%). Revisão sistemática feita por Abrishami et al.3636. Abrishami A, Ho J, Wong J, et al. Sugammadex, a selec- tive reversal medication for preventing postoperative residual neuromuscular blockade. Cochrane database Syst Rev. 2009. CD007362. demonstrou que não há evidências de diferenças na prevalência de eventos adversos entre sugamadex, placebo ou neostigmina.

Nessa pesquisa, a hipertermia maligna também tem sido relatada como uma das complicações do uso dos BNM em 1,8% dos respondentes. Isso demonstra a preocupação com essa complicação extremamente grave, com desfecho quase sempre desfavorável. Essa informação carece de maiores esclarecimentos, tendo em vista que o papel dos BNM não despolarizantes não parece estar envolvido na gênese da hipertermia maligna e o papel da succinilcolina como gatilho da hipertermia maligna ainda permanece controverso.3737. Hopkins PM. Malignant hyperthermia: pharmacology of trigger- ing.. Br J Anaesth 2011;107:48-56.

Evolução dos pacientes que apresentaram complicações após uso do bloqueadores neuromusculares

Na presente enquete, as sequelas decorrentes das complicações do uso de BNM foram consideradas graves em 0,5% dos casos e com morte 1,6%. Esse resultado demonstra que o uso dos BNM pode estar relacionado a desfechos desfavoráveis, como demonstrado por Naguib et al.,1616. Naguib M, Kopman AF, Lien CA, et al. A survey of current management of neuromuscular block in the United States and Europe.. Anesth Analg 2010;111:110-9. Eikermann et al.55. Eikermann M, Vogt FM, Herbstreit F, et al. The predisposition to inspiratory upper airway collapse during partial neuromuscular blockade. Am J Respir Crit Care Med. 2007;175:9-15. e Murphy et al.77. Murphy GS, Brull SJ. Residual neuromuscular block: lessons unlearned. Part I: Definitions, incidence, and adverse physi- ologic effects of residual neuromuscular block.. Anesth Analg 2010;111:120-8. 3838. Murphy GS, Szokol JW, Avram MJ, et al. Postoperative resid- ual neuromuscular blockade is associated with impaired clinical recovery.. Anesth Analg 2013;117:133-41. and 3939. Murphy GS, Szokol JW, Marymont JH, et al. Residual neuromuscular blockade and critical respiratory events in the postanesthesia care unit.. Anesth Analg 2008;107: 130-7. A justificativa poderia ser encontrada nos próprios resultados da presente pesquisa: o uso de critérios clínicos para diagnóstico de bloqueio neuromuscular residual, o baixo uso e a baixa disponibilidade de monitores quantitativos da transmissão neuromuscular, o uso inadequado de reversores e possivelmente o próprio diagnóstico e tratamento inadequados das complicações poderiam explicar os desfechos desfavoráveis graves.

Limitações da pesquisa

O meio eletrônico usado não atingiu todos os destinatários, seja por mecanismos do tipo spam ou mesmo por alguns endereços eletrônicos estarem desatualizados na base de dados usada, o que pode ter prejudicado a participação de maior número de anestesiologistas.

Concluímos, pela presente enquete sobre o uso de BNM no Brasil, que se destacam os seguintes aspectos: a succinilcolina é ainda o BNM mais empregado para situações de emergência, são altos os índices de curarização residual pós-operatória e de bloqueio muscular prolongado, bem como o registro de sequelas consideradas graves ou mesmo o óbito como complicações do uso desses fármacos. O bloqueio residual ou prolongado se registra, possivelmente, como consequência do alto índice do uso de critérios clínicos para diagnosticar se o paciente está recuperado ou não do bloqueio motor e, como um corolário, o baixo uso de monitores da transmissão neuromuscular na prática diária.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2014
  • Aceito
    02 Mar 2015
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